ESA_logo.png                                      Recebido: 29.maio.2023   •    Aceito: 16.jun.2023   •    Publicado: 30.jun.2023

 

Seção Temática

Mulheres, territorialidades e epistemologias feministas – conflitos, resistências e (re)existências


Mulheres, territorialidades e
epistemologias feministas –
conflitos, resistências e (re)existências

Women, territorialities, and feminist epistemologies – conflicts, resistances, and (re)existences


Organizadoras

orcid_id.png

Fabrina Furtado[1]

orcid_id.png

Ana Carneiro[2]

orcid_id.png

Dibe Ayoub[3]

 

 

  

https://doi.org/10.36920/esa31-1_st01



Esta Seção Temática reúne trabalhos que refletem sobre como diferentes coletivos de mulheres em contextos de violenta expansão da fronteira agroextrativista modernizante são, por um lado, atingidos e, por outro, articulam-se na defesa da vida, do território, do corpo e da natureza. Tratam-se de estudos que lançam luz sobre os processos singulares de resistência e (re)existências de mulheres, em sua ampla diversidade, na defesa dos seus territórios.

Compreendemos esses coletivos e movimentos – que podem ou não se reconhecer na chave do “feminismo” – como criadores de conhecimentos e saberes diversos. Esses saberes ajudam-nos a problematizar e ampliar definições correntes sobre o que constitui o fazer político nos processos em defesa da terra e do território e, ao mesmo tempo, contribuem para o debate sobre epistemologias feministas no tratamento das questões agrárias e socioambientais vividas em inúmeras localidades brasileiras. Trata-se aqui de valorizar a produção de conhecimento centrada na experiência das mulheres na defesa dos seus territórios, nas suas autopercepções e negociações de identidade descritas a partir de suas perspectivas, e não na outridade (COLLINS, 2016; KILOMBA, 2019). Saberes que buscam superar diversas dicotomias hierarquizadas, em especial, a que supõe a natureza sob domínio e intervenção da sociedade e as mulheres simbolicamente associadas à natureza.

Uma ampla literatura, consolidada nas últimas décadas por autoras preocupadas em trazer uma abordagem feminista para o estudo dos conflitos ambientais, sobretudo no campo da ecologia política feminista latino-americana, ressalta a generificação dos efeitos gerados por empreendimentos modernizantes no campo, na floresta e nas cidades, articulados a processos de opressão, exploração, expropriação e outras formas de intervenção sobre os modos de vida de quilombolas, agricultoras familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais em geral (ULLOA, 2016; OLIVEIRA, 2020; SOF, 2020; FURTADO; ANDRIOLLI, 2021, entre outros). Outros trabalhos ressaltam como as formas de resistir às ameaças perpetuadas pelo avanço do capitalismo extrativista, e consequentemente à perda de territórios físicos e existenciais, estão relacionados com modos de cuidado coletivo do corpo, da saúde (física e mental) e do próprio território, além da construção e fortalecimento de redes de solidariedade entre mulheres (PAIM, 2020; NOBRE, 2021).

Com o intuito de ampliar a compreensão sobre a lógica geradora dos conflitos ambientais e dos efeitos diferenciados na vida das mulheres, bem como sobre as estratégias criadas por elas para resistência, enfrentamentos e insurgências, assumimos o viés da crítica a tais processos de expropriação, denunciados como de caráter colonial, racista, patriarcal e capitalista (MEZADRI et al., 2020; OLIVEIRA, 2020; QUEIROZ; PRAÇA, 2020). Buscamos avançar na reflexão não só sobre os efeitos negativos que recaem de forma desproporcional nas mulheres, em especial as negras, indígenas e mestiças, localizadas na fronteira de expansão do extrativismo, mas também pensar sobre como o patriarcado e o racismo são condições que permitem a existência e o aprofundamento de um sistema econômico, político, cultural e ideológico baseado na destruição do meio ambiente e na expropriação dos grupos sociais aqui mencionados: povos e comunidades negras, indígenas, camponesas e tradicionais (FERDINAND, 2022).

A partir de perspectivas feministas interseccionais, descoloniais ou que simplesmente se assentam na ideia de “mulher” como categoria política, os artigos aqui publicados refletem sobre a produção de conhecimento, significados, vivências e experiências de mulheres na constituição dos territórios. Com esses trabalhos, é possível apreender o caráter polissêmico do termo “território” e compreender que, em linhas gerais, a “territorialidade” constitui um “tecer território”, nesse caso, privilegiando a narração das mulheres e a “construção criativa do mundo e suas perspectivas sobre este, num contexto dinâmico no tempo e no espaço” (NIETO MORENO, 2017, p. 14).

Neste início de século XXI, notamos uma nova força política assumida, em âmbito nacional e internacional, por organizações de mulheres na luta por terra e território, como as mulheres da Via Campesina, a Marcha Mundial de Mulheres, a Marcha das Margaridas, o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), o Movimento Nacional de Mulheres Indígenas, o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), e os grupos de mulheres de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB) e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), entre muitos outros. Percebemos ainda um avanço mais recente da articulação de mulheres que se autodenominam “mulheres atingidas” por megaprojetos ou “defensoras” do meio ambiente, da terra, das águas, dos territórios ou ainda como parte de um feminismo quilombola, indígena e/ou camponês. A força desses grupos vem sendo construída e acumulada ao longo de um processo histórico mais amplo de organização, que remete ao período de articulação do movimento sindical de trabalhadores rurais, nos anos 1960 e 1970, e dos movimentos sociais no campo durante a década de 1980 (MEDEIROS, 1989; ALMEIDA, 2011). No Brasil, o protagonismo feminino no interior dessas mobilizações se soma ao quadro das políticas de inclusão social nas universidades públicas, ensejadas na primeira década dos anos 2000, que levaram ao crescimento e à consolidação da produção acadêmica realizada por mulheres rurais, indígenas, quilombolas e pertencentes a outras comunidades e povos tradicionais.

Nesta Seção Temática, os artigos adotam abordagens tecidas nos próprios contextos de resistências e (re)existências, seja porque as autoras estão diretamente envolvidas em tais processos, seja porque dialogam com as perspectivas das mulheres que deles participam. Por este caminho, os debates que propõem são teoricamente relevantes para a discussão, ainda pouco tematizada pela produção acadêmica em geral, sobre a articulação entre os mecanismos de discriminação e violência contra as mulheres e a lógica de desenvolvimento adotada no Brasil e em outros países do Sul global. Na medida em que associamos, aos processos mais amplos de luta por reforma agrária e/ou em defesa dos territórios, a perspectiva das experiências dos movimentos de mulheres e de suas lutas, buscamos contribuir com o objetivo de “descolonização do pensamento” enunciado pelas chamadas epistemologias feministas (KOROL, 2016; HOLLANDA, 2020; RIVERA, 2021; OYĚWÙMÍ, 2021). 

Os artigos aqui reunidos ajudam-nos assim a refletir sobre temas importantes para as abordagens feministas voltadas aos conflitos ambientais e às lutas em defesa dos territórios. De modo geral, a inclusão do gênero surge para fornecer, a outros marcadores de diferença (geração, raça, classe, acesso à terra), definições do pertencimento a territórios tradicionais (CASTRO; DULCI; CARVALHO, 2023; BAMBIRRA; MAGRINI, 2023) ou para nos indicar novas pautas e estratégias de luta contra o capitalismo extrativista e formas variadas de violência (WEITZMAN, 2023; COSTA; MARIN, 2023; COSTA; JALIL; BIDASECA, 2023; CALAÇA, 2023). Tais estratégias incluem a demanda por políticas públicas setoriais ainda incipientes ou inexistentes (BAMBIRRA; MAGRINI, 2023; COSTA; MARIN, 2023), a valorização de um saber-fazer voltado às plantas medicinais (COSTA; MARIN, 2023), a criação de novas narrativas (COSTA; JALIL; BIDASECA, 2023) ou a formação de uma abordagem feminista e popular capaz de refletir a experiência das mulheres do campo (CALAÇA, 2023). Vale destacar a inserção da perspectiva interseccional nos debates sobre desigualdade social e diferença de gênero em contextos rurais (BAMBIRRA; MAGRINI, 2023; CASTRO; DULCI; CARVALHO, 2023; CALAÇA, 2023), e a inclusão, no debate público sobre o direito à terra e ao território, do valor social, econômico e ambiental das atividades femininas em espaços como a casa, o quintal ou áreas de extrativismo (COSTA; JALIL; BIDASECA, 2023; COSTA; MARIN, 2023; WEITZMAN, 2023; CALAÇA, 2023). Como questões de fundo que permeiam os diferentes artigos da seção, encontramos as denúncias contra formas diversas de opressão patriarcal, seja nas relações cotidianas ou no âmbito dos movimentos sociais, bem como o significado da noção de “autonomia” quando se considera o protagonismo feminino em tais movimentos, e ainda o contraste entre o reconhecimento público, de um lado, e a falta de políticas de incentivo, de outro, diante das práticas sustentáveis características do trabalho feminino em áreas rurais.

Diante do quadro de sobrecarga de trabalho feminino, sobretudo entre mulheres negras, indígenas, camponesas e de comunidades tradicionais, aprofundado pela pandemia da Covid-19, esta ST pretende contribuir com um debate cada vez mais evidenciado sobre o que vem sendo reconhecido como uma “crise do cuidado” (GÊNERO E NÚMERO; SOF, 2020; NOBRE, 2021). A desigualdade em que esta sobrecarga se assenta manifesta-se – nas áreas de fronteira agroextrativista de larga escala – em forma de ameaças, exploração e violação dos corpos de mulheres, moças e meninas. Ao mesmo tempo, a frequente recusa em observá-las como sujeitos políticos desses contextos evidencia mais uma maneira com que as desigualdades de gênero, raça, etnia, classe, geração, sexualidade, de acesso à terra e ao ambiente saudável são reforçadas e articuladas pelos empreendimentos agroextrativistas – o agronegócio, a mineração, a produção de energia e outros projetos de infraestrutura relacionados.

A defesa dos territórios engajada por coletivos de mulheres visa à proteção do ambiente não apenas como meio de sobrevivência econômica, mas sobretudo como fonte da vida em seu sentido mais amplo. Afirmam-se e se qualificam conexões entre o território e o corpo, entre a violência decorrente da expropriação dos territórios, da destruição dos modos de existência não capitalistas, e a violência contra os corpos das mulheres. Essa relação fundamenta-se na ideia de um território-corpo-terra-águas que garante a reprodução material e cultural das comunidades, dignificando a própria existência das mulheres (CABNAL, 2010). Neste sentido, vislumbra-se uma reconfiguração das práticas políticas da luta por terra e território. Os artigos desta ST tratam de nos fazer conhecer, reconhecer e valorizar o trabalho cotidiano e os esforços de mobilização realizados por mulheres, bem como notar sua participação na geração de riqueza, na saúde das relações interpessoais, na valorização de memórias e narrativas silenciadas por forças opressoras. Estamos diante de saberes, práticas e movimentos sociais que transformam sistemas dominantes de produção, distribuição e consumo, promovem princípios ecológicos, conhecimentos tradicionais, sementes nativas e economias solidárias, subvertem relações de poder e tensionam a apropriação desigual da riqueza.

Ao propor esta Seção Temática, algumas questões gerais nortearam nossas reflexões, por exemplo: como as relações de gênero produzem os e são produzidas pelos territórios? Como os movimentos de mulheres se articulam aos processos políticos de autorreconhecimento, às disputas e às alianças que conformam a luta por terra e território? Como o viés das relações de gênero pode tensionar as formas já estabelecidas de se conceber um território e as relações de poder que o constituem? Os artigos recebidos e selecionados para compor esta publicação, focados em geral em áreas rurais, reagiram a tais indagações nos presenteando com reflexões originais, novas questões e pistas criativas de investigação.

Em Mulheres rurais e plantas medicinais: saberes populares e significados na luta pela terra, Juliana Almeida Costa e Joel Orlando Bevilaqua Marin abordam os saberes-fazeres de mulheres rurais integrantes do MST, mais especificamente os cultivos e usos de plantas medicinais em assentamentos no Rio Grande do Sul. Essas práticas de conhecimento, que a princípio foram apreendidas e experimentadas no âmbito das relações familiares e de comunidade, têm sido acionadas na implementação de políticas públicas de saúde e educação. As mulheres em questão expressam como esse conhecimento foi adquirido na vivência cotidiana com as suas mães e avós, pessoas que sempre cultivaram remédios em seus quintais e que muitas vezes atuavam como parteiras e benzedeiras. A autora e o autor ressaltam a articulação entre esses saberes-fazeres, a luta pela terra e o reconhecimento das famílias sem terra, sobre as quais recaem uma série de preconceitos sociais que impedem ou limitam o acesso aos serviços públicos e, por conseguinte, a direitos básicos. Além de fortalecer a soberania e a autonomia das comunidades, os saberes dessas mulheres e suas ações são caminhos pelos quais elas consolidam lugares de respeito e sua autoestima, e constroem formas próprias de intervenção política em seus assentamentos e municípios. O artigo também nos leva a refletir sobre a centralidade da participação das mulheres na consolidação de políticas públicas de educação, saúde e alimentação escolar. Por meio de ações como a produção de hortas escolares, e dos projetos de reconhecimento e valorização dos usos de plantas medicinais, as mulheres em questão revelam que a luta pela terra é indissociável da luta pelo cultivo da dignidade e da saúde dos corpos e territórios.

O artigo Las quebradeiras de coco babaçu y las nuevas narrativas emergentes en contra del Matopiba en el Médio Mearim-Maranhão, escrito por Michelly Costa, Laeticia Jalil e Karina Bidaseca, discute os impactos do projeto governamental Matopiba nas vidas das mulheres quebradeiras de coco babaçu no Médio Mearim, Maranhão. Ao salientarem os efeitos do agronegócio sobres os corpos-territórios e os bens comuns, as autoras refletem sobre as reexistências e formas de ação coletiva criadas por aquelas mulheres. O patriarcado e o racismo estrutural são destacados como elementos fundantes dos projetos de desenvolvimento, os quais separam terra e natureza. A expansão da soja, dos cercamentos, dos tanques de peixes, do uso de agrotóxicos e do desmatamento dos babaçuais põe em movimento uma lógica de privatização e envenenamento do mundo, um processo de repressão da vida de comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas. As autoras demonstram como, em contraposição a isso, as mulheres do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) atuam segundo uma ética coletiva de cuidado comunitário para a sustentabilidade da vida. As lutas deste movimento social são compreendidas como algo que se inicia no corpo, tido como um veículo que propicia relações e afetos com o território, e também como um território político a ser defendido. Destacam-se assim conquistas emblemáticas – como a Lei do Babaçu Livre – e uma série de outras formas pelas quais essas mulheres têm atuado politicamente (associações e cooperativas, por exemplo). Nas falas das lideranças do MIQCB, o babaçu é relacionado à vida e ao bem-estar que se espera de uma existência plena, e também a práticas de conservação que se aproximam da ideia de justiça ambiental. Ao combaterem os processos de devastação da Amazônia e do Cerrado, as quebradeiras de coco desafiam a necropolítica das corporações e fomentam a continuidade e a proteção dos bens comuns.

Remetendo-nos, por outros caminhos, a essa reflexão mais ampla sobre as novas configurações da relação entre sociedade e natureza a partir de estratégias femininas na luta por terra e território, o artigo da militante, pesquisadora e autora Michela Calaça mostra como, em decorrência dos debates sobre a relação das lutas camponesas com as lutas feministas, surge o Feminismo Camponês Popular (FCP). Noção construída de forma coletiva pela Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo (Cloc), e assumida pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) no Brasil, o FCP como apresentado por Calaça, nos provoca a refletir sobre a própria ideia de feminismo e as lutas das mulheres camponesas. Reflexo de um dos principais desejos dessa seção, de disseminar conhecimento produzido a partir das experiências concretas de mulheres, o artigo demonstra como, nas suas diferentes lutas, por direitos trabalhistas, reforma agrária, contra o capitalismo extrativista expresso, nesse caso, pelos monocultivos de eucalipto, e em defesa do território, contra a violência, e pela agroecologia, essas mulheres, que vivem no e do campo, florestas e águas, colaboram com mudanças profundas que afetam a sociedade como um todo: a necessária transformação na relação sociedade-natureza e a valorização da vida.

Os elementos teórico/políticos do FCP nos ajudam a compreender como o tripé que fundamenta o MMC, “organização, formação e luta” e a construção de unidade na luta dentro do Movimento, da Cloc e da Via Campensina em torno de questões da terra e território, soberania alimentar e autonomia dos camponeses e camponesas, tem sido fundamental para a construção do FCP. Um feminismo que, ao reconhecer a imbricação indissociável entre o capitalismo, o patriarcado e o racismo, e ao enfrentar o debate LGBTQIA+ e de sexualidade, protagonizado por jovens camponesas, lança luz sobre a construção de uma “sociedade mais justa, igualitária e com relações harmônicas com a natureza”. Por meio da mística, conteúdo teórico/político do FCP, essas mulheres enfrentam um desafio fundamental para as nossas reflexões em torno da construção de epistemologias feministas: a superação de dicotomias hierarquizantes como objetividade/subjetividade, mente/corpo e razão/emoção.

Também para abordar estratégias de resistência de mulheres rurais, Natércia Ventura Bambirra e Pedro Rosas Magrini assinam o artigo “Uma análise interseccional das estratégias e resistências mobilizadas por mulheres negras em um assentamento de reforma agrária no sul de Minas Gerais”. Destacando a lógica dos processos de marginalização que atingem as mulheres negras de modo específico, o estudo, realizado no Assentamento Santo Dias (Guapé – MG), do MST, os autores baseiam-se em entrevistas voltadas às histórias de vidas de mulheres assentadas, indagando sobre as estratégias que elas adotaram em momentos decisivos de suas vidas, marcadas pela luta por terra. O artigo mobiliza a noção de interseccionalidade como ferramenta analítica e teórica, buscando articular uma diversidade de autoras, tais como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Patrícia Hill Collins, Kimberlé Crenshaw e Grada Kilomba. Em uma perspectiva interdisciplinar, chegam a considerações sobre “a urgência da pauta por autonomia econômica, atravessada por questões de gênero e raça/etnia”. Destacam desta forma a importância de políticas públicas de viés interseccional, ou seja, “construídas com e para os diferentes grupos que compõem os rurais”. Especialmente, tratam do exemplo do Contrato de Concessão de Uso da Terra do Crédito Instalação como demandas importantes na busca de autonomia das mulheres negras assentadas.

O artigo Sou preta, pobre e bicho do mato. É muita coisa pra uma pessoa só!: violências, resistências e formas de luta das jovens mulheres na Região do Bico do Papagaio/TO, Brasil”, escrito por Elisa Guaraná de Castro, Luiza Borges Dulci e Joyce Gomes de Carvalho, também procura traçar uma abordagem interseccional, neste caso para compreender as desigualdades que atravessam e constituem as existências e resistências de mulheres que vivem em comunidades de agricultores familiares, extrativistas de coco babaçu, quilombolas e acampamentos do MST em Tocantins. Tem como ponto de partida o Projeto de Extensão Diagnóstico Participativo das Juventudes do Bico do Papagaio/TO, com base na demanda de jovens e adultos por uma discussão sobre o tema do êxodo rural entre as juventudes de comunidades cuja população é majoritariamente negra. A partir de dados oriundos de diversas entrevistas e grupos de discussão, as autoras abordam as intersecções entre gênero, raça, geração e localidade como fundamentais para se pensar neste êxodo e na própria organização política desses grupos. As mulheres relatam uma série de preconceitos que enfrentam quando chegam na cidade, entretanto, no campo precisam lidar com diversas formas de controle de sua mobilidade e sexualidade, controle geralmente exercido por pais que limitam as saídas das filhas e reiteram que, para ser respeitada, uma mulher precisa se casar com um homem.

A questão da divisão sexual do trabalho também se revela como exercício de controle sobre as mulheres. Se, por um lado, mulheres mais jovens têm ensinado seus filhos a dividirem com elas as tarefas domésticas, por outro, suas experiências desvelam que seu trabalho na roça, bem como as atividades de quebrar coco, cuidado dos quintais e beneficiamento dos produtos agrícolas não são compreendidas como trabalho, mas sim como uma espécie de extensão das atividades domésticas, sendo que estas últimas tampouco são reconhecidas socialmente como trabalho. Embora a organização política de movimentos sociais como o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) sejam fundamentais para o reconhecimento e valorização das atividades produtivas desempenhadas pelas mulheres, várias delas relatam que a participação nos movimentos é por vezes tolhida pelos maridos ou motivo de conflito com eles. As autoras ressaltam ainda a preocupação de mulheres mais velhas com o interesse dos jovens em participar dos movimentos sociais e espaços de luta política. Afirmam nesse sentido que o diálogo entre gerações é um caminho essencial para o rompimento com as diversas opressões que persistem nas famílias e comunidades.

Novamente à luz de vertentes das teorias e epistemologias feministas interseccionais, o artigo da Rodica Weitzman, “Novos modos de resistência protagonizados por ‘mulheres atingidas’  a partir das intervenções no âmbito territorial”, apresenta discussões, primeiro, sobre os múltiplos efeitos diferenciados do neoextrativismo, dos grandes projetos de desenvolvimento e da criação de “zonas de sacrifício” relacionadas, na vida das mulheres, sobre seus modos de subjetivação e sobre suas territorialidades; e, segundo, a construção de estratégias de enfrentamento aos modos hegemônicos de controle da gestão territorial, que caracterizam os processos de indenização e deslocamento compulsório.

A partir de dois casos, as situações vivenciadas por mulheres atingidas por uma “tragédia das chuvas” nas comunidades urbanas do Rio de Janeiro e pela instalação de uma obra hidrelétrica em Tucuruí no estado do Pará, que revelam as tensões inerentes ao gerenciamento dos conflitos ambientais, Weitzman ressalta não só os efeitos perversos das intervenções corporativas e governamentais sobre os territórios, mas as dinâmicas coletivas desencadeadas por mulheres, na sua pluralidade e multiplicidade. Ou seja, destaca como, diante da ameaça de expropriação territorial, essas mulheres, marcadas por gênero, raça, classe, etnia e geração, defendem a vida, seus corpos e territórios, construindo na luta cotidiana “uma postura política epistêmica que vislumbra novos percursos de ação política”. A prática da troca, reciprocidade e construção coletiva constrói assim uma nova gramática das relações entre pessoas, e entre estas e a terra, as plantas e as águas, os comuns; uma espécie de “contrafeitiçaria”. A partir dessas experiências e reflexões, Weitzman colabora, portanto, com a construção do que denomina uma “epistemologia ecofeminista relacional”.

É significativo que três dos seis artigos da ST adotem uma abordagem interseccional, até pouco tempo praticamente ausente nos estudos rurais. Tal perspectiva mostra-se fundamental para nossa proposta de contribuir, via epistemologias feministas, com uma reflexão politicamente engajada contra as diversas formas de perpetuação das desigualdades em nossa sociedade. Convidamos vocês a estarem conosco nesse processo, na leitura, compartilhamento e debate sobre os artigos aqui apresentados. Tomando emprestadas as palavras de Calaça, mas que poderiam ser das outras autoras, nós, as organizadoras, reafirmamos que, lendo, compartilhando e debatendo sobre mulheres, territorialidades e epistemologias feministas, seus conflitos, resistências e (re)existências, com base no “sentir das lutas, das histórias e construções cotidianas”, poderemos avançar não só na disseminação de epistemologias feministas, mas na “própria luta por libertação”, em todos seus sentidos. Boa Leitura!

 

Referências

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Universalidade e localismo: movimentos sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazônia. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Quilombos e novas etnias. Manaus: UEA Edições, 2011. p. 15-33.

BAMBIRRA, Natércia Ventura; MAGRINI, Pedro Rosas. Uma análise interseccional das estratégias e resistências mobilizadas por mulheres negras em um assentamento de reforma agrária no sul de Minas Gerais. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 2023. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa31-1_st05. Acesso em: 19 maio 2023.

CABNAL, Lorena. Feminismos diversos: el feminismo comunitario. Guatemala: Acsur, 2010.

CALAÇA, Michela Katiuscia. Feminismo camponês popular: integração de lutas. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 2023. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa31-1_st04. Acesso em: 19 maio 2023.

CASTRO, Elisa Guaraná de; DULCI, Luiza Borges; CARVALHO, Joyce Gomes de. ‘Sou preta, pobre e bicho do mato. É muita coisa pra uma pessoa só!’: violências, resistências e formas de luta das jovens mulheres na Região do Bico do Papagaio – TO, Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 2023. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa31-1_st06. Acesso em: 19 maio 2023.

COLLINS, Patricia Hills. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, 2016.

COSTA, Juliana; MARIN, Joel Orlando Bevilaqua. Mulheres rurais e plantas medicinais: saberes populares e significados na luta pela terra. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 2023. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa31-1_st02. Acesso em: 19 maio 2023.

COSTA, Michelly Aragão Guimarães; JALIL, Laeticia Medeiros; BIDASECA, Karina. Las quebradeiras de coco babaçu y las nuevas narrativas emergentes en contra del Matopiba en el Médio Mearim-Maranhão. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 2023. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa31-1_st03. Acesso em: 19 maio 2023.

CUSCANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores. São Paulo: N-1, 2021.

FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu, 2022.

FURTADO, Fabrina; ANDRIOLLI, Carmen. Mulheres atingidas por megaprojetos em tempos de pandemia: conflitos e resistências. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, 2021. Disponível em: https://www.revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa29-1_06_mulheres. Acesso em: 26 maio. 2023.

GÊNERO E NÚMERO; SOF – Sempreviva Organização Feminista. Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. São Paulo: SOF, 2020. Disponível em: https://mulheresnapandemia.sof.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio_Pesquisa_SemParar.pdf. Acesso em: 19 abr. 2023.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

KOROL, Claudia (Org.). Feminismo populares. Pedagogias y políticas.  Buenos Aires: El Coletivo; Editorial Chirimbote; America Libre, 2016.

MEDEIROS, Leonilde Servolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989.

MEZADRI, Adriana; CIMA, Justina; TABORDA, Noeli; GASPARETO, Sirlei; COLLET, Zenaide. Feminismo camponês e popular: reflexões a partir das experiências do Movimento de Mulheres Camponesas. São Paulo: Outras Expressões, 2020.

NIETO MORENO, Juana Valentina. Uno de mujer es andariega: palavras e circulações de mulheres Uitoto entre a selva e a cidade. 2017. 325 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.

NOBRE, Miriam (Org.). Um meio tempo preparando outro tempo: cuidados, produção de alimentos e organização de mulheres agroecológicas na pandemia. São Paulo: SOF, 2021. Disponível em: https://www.sof.org.br/livro-meio-tempo-outro-tempo-mulheres-agroecologicas-pandemia/. Acesso em: 20 abr. 2023.

OLIVEIRA, Tatiana (Org.). Mulheres amazônidas: ecofeminismo, mineração e economias populares. Brasília: INESC, 2020. Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2020/12/inesc_MulheresAmazonidas_20jul20211.pdf. Acesso em: 20 jan. 2023.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónḱ. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

PAIM, Elisangela Soldateli (Org.). Resistências e re-existências: mulheres, território e meio ambiente em tempos de pandemia. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; Funilaria, 2020.

QUEIROZ, Ana Luisa; PRAÇA, Marina. Dos impactos à defesa: mulheres, corpo-território e direitos humanos. Massa Crítica, [s.l.], ano_XVII, v. 75, 2020.

SOF – Sempreviva Organização Feminista. Economia feminista e ecológica: resistências e retomadas de corpos e territórios. São Paulo: SOF, 2020.

ULLOA, Astrid. Feminismos territoriales en América Latina: defensas de la vida frente a los extractivismos. Nómadas, La Paz, v. 45, p. 123-139, 2016.  

WEITZMAN, Rodica. Novos modos de resistência protagonizados por ‘mulheres atingidas’ a partir das intervenções no âmbito territorial. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 2023. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa31-1_st07. Acesso em: 19 maio 2023.

 

Como citar

FURTADO, Fabrina; CARNEIRO, Ana; AYOUB, Dibe. Mulheres, territorialidades e epistemologias feministas – conflitos, resistências e (re)existências. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, e2331106, 30 jun. 2023. DOI: https://doi.org/10.36920/esa31-1_st01.

 

 

 

ccby.png

Creative Commons License. This is an Open Acess article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License CC BY 4.0 which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium. You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if changes were made.

 



[1] Professora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ). Doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: f.furtado7@gmail.com.

[2] Professora adjunta do Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais (CFCHS) e do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Pós-doutora pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ). E-mail: anacarcer@gmail.com.

[3] Professora adjunta do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (IEAR/UFF). Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ). E-mail: dibeayoub@gmail.com.