ESA_logo.png
v. 28, n. 2, p. 413-433, junho a setembro de 2020.

Artigo recebido em 30 de outubro de 2019.

Aceito em 10 de abril de 2020.



Estratégias paternas para a manutenção da sucessão geracional em propriedades rurais
Paternal strategies for maintaining generational succession in rural properties

DOI:10.36920/esa-v28n2-7

orcid_id.png
 Sandro da Luz Moreira[1]

orcid_id.png Rosani Marisa Spanevello[2]

orcid_id.png Mariele Boscardin[3]

orcid_id.png Adriano Lago[4]

 

 

 

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir os aspectos internos das famílias e das propriedades que motivam a sucessão, mais especificamente as estratégias lançadas pelos pais como forma de motivar os filhos a permanecerem nas propriedades e nos negócios familiares. O estudo foi realizado no município de Cruz Alta, estado do Rio Grande do Sul, através de entrevistas semiestruturadas, realizadas com 31 produtores rurais. Considerando os resultados das táticas fomentadas pelos pais, é possível constatar a existência de seis tipos: 1) estratégia relacionada à ocupação; 2) estratégias de autonomia; 3) estratégia de novos investimentos; 4) estratégia de fornecimento de estudo; 5) estratégia de ocupação urbana; e 6) estratégia de doação de bens. Os esquemas destacados anteriormente revelam que a sucessão geracional perde o caráter de acontecimento natural como era nas gerações passadas quando os filhos permaneciam na propriedade por obrigação moral, pelo amor a terra e para manter a coletividade da família e a reprodução do patrimônio ao longo das gerações. Hoje, os agricultores entrevistados demonstram que é preciso motivar a sucessão entre os filhos. Esta condição mostra que os pais estão preocupados com a manutenção dos negócios e do patrimônio e fazem um esforço para este processo acontecer ou se manter.

Palavras-chave: bens materiais e simbólicos; manutenção dos negócios e do patrimônio; sucessão geracional.

 

Abstract: (Paternal strategies for maintaining generational succession in rural properties). This article aims to discuss the internal aspects of families and the properties that motivate succession, more specifically the strategies launched by the parents to motivate their children to remain on the properties and in the family businesses. The study was carried out in the municipality of Cruz Alta, state of Rio Grande do Sul, through semi-structured interviews with 31 rural producers. Considering the results of the strategies promoted by the parents, it is possible to verify the existence of six types of strategies: 1) strategy related to occupation; 2) strategies of autonomy; 3) new investment strategy; 4) provision of opportunities for study strategy; 5) strategy of urban occupation and 6) strategy of donation of assets. The strategies outlined above reveal that the generational succession loses the character of a natural process as it was in past generations when the children remained on the property through moral obligation, for love of the land and to maintain the family collectivityand the reproduction of the patrimony throughout generations. Today, the farmers interviewed demonstrate that succession among the children needs to be motivated. This condition shows that parents are concerned about maintaining business and equity and make an effort to enable or maintain this process.

Keywords: material and symbolic goods; maintenance of business and equity; generational succession.

 

 

Introdução

A reprodução das famílias e das propriedades rurais, segundo o trabalho pioneiro de Almeida (1986), tem como marco a reprodução de ciclo curto e de ciclo longo. A reprodução de ciclo curto compreende a combinação de fatores relativos ao trabalho, conhecimento tradicional e recursos naturais para atender ao consumo familiar e repor os insumos necessários para o reinício do processo produtivo. De forma geral, o autor relaciona a reprodução de ciclo curto com a lógica econômica da família, englobando elementos como trabalho e consumo. Já a segunda envolve os aspectos do ciclo geracional e de como as famílias se perpetuam. A perspectiva de perpetuação da família é baseada em aspectos relacionados ao nascimento, casamento, morte e herança (ALMEIDA, 1986).

Na reprodução de ciclo longo também podem ser acrescentadas as questões relativas à formação das novas gerações de agricultores, como a sucessão e a retirada dos pais do comando da propriedade. As famílias objetivam manter a sua reprodução usando estratégias ou respostas, tanto de ciclo curto como longo. No ciclo longo, está a possibilidade da migração, do controle da natalidade, da exclusão de herdeiros legais, de famílias poderem atingir uma dimensão corporativa ou mesmo fazer surgir famílias-tronco (ALMEIDA, 1986).

É sobre as possibilidades de reprodução de ciclo longo que este artigo se insere, em especial sobre a continuidade das propriedades rurais através do processo de sucessão geracional. A sucessão geracional é considerada parte do processo da reprodução social das famílias e das propriedades. É por meio da sucessão geracional que os filhos assumem os negócios paternos e o patrimônio, ou seja, a ocupação e os bens são repassados da geração dos pais para a geração dos filhos (GASSON; ERRINGTON, 1993).

Atualmente, a continuidade das propriedades passa por mudanças, podendo não haver a sucessão, pois esta perdeu o caráter de naturalidade em que “todo filho de agricultor também seria agricultor” (ABRAMOVAY et al., 1998). Conforme Palacios (2005), o processo de sucessão é interrompido quando os agricultores são solteiros, casados sem filhos ou quando os filhos não querem seguir na atividade. Trabalhos como de Spanevello et al. (2014) reforçam que a sucessão não é um processo natural como nas gerações passadas, e as chances de as propriedades garantir a sucessão geracional depende de uma série de fatores externos à família e à propriedade (tais como oferta de crédito rural, mercado de terra, cursos de formação técnica, entre outros), bem como fatores internos (autonomia dos filhos, renda, condições de capitalização da propriedade, entre outros).

Também são considerados outros fatores como a diminuição da população rural que tem sido um processo recorrente nas últimas décadas no Brasil, conforme apontam dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Conforme o Censo de 1991, a população que residia no meio rural era de aproximadamente 36 milhões de pessoas, diminuindo para cerca de 30 milhões em 2010. No caso do estado do Rio Grande do Sul, o cenário não é distinto. De acordo com dados do Censo Populacional de 1991, a população rural perfazia um total de aproximadamente 2,1 milhões de pessoas, reduzindo para aproximadamente 1,5 milhão em 2010, havendo um decréscimo em torno de 25%.

Associado à diminuição da população rural está o número de produtores rurais jovens. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, produtores rurais jovens (idade entre 25 a 35 anos) somam atualmente 9,5% do total dos produtores brasileiros, enquanto no Censo Agropecuário de 2006 representavam 13,5%. Por outro lado, o número de produtores rurais brasileiros (com 65 anos ou mais) representa 21,4% dos moradores de áreas rurais, sendo que em 2006, quando foi realizado o último levantamento representavam 17,52%. No caso do Rio Grande do Sul, o número de produtores rurais com 65 anos ou mais atuando no campo aumentou de 17,5% em 2006 para 23,1% no Censo Agropecuário de 2017. O percentual dos produtores com menos de 25 anos é de 1,2%, menos do que o registrado em 2006, 1,9%.

De acordo com Maia (2014), para justificar a diminuição da população rural no Brasil e o envelhecimento dos produtores rurais é preciso considerar fatores como a redução da taxa de fecundidade das mulheres, a formação tardia de novas uniões no meio rural e a geração de filhos entre a população, ou até mesmo a dificuldade de constituição de novas famílias e geração de filhos em virtude da migração juvenil. A migração juvenil no meio rural brasileiro tem sido apontada como um dos fatores do esvaziamento populacional do campo, pois geralmente os migrantes são filhos e filhas de agricultores que rumam em direção às cidades sem expectativa de voltar ao campo para exercer o trabalho e a produção agrícola ou para dar continuidade aos negócios paternos através do processo de sucessão geracional.

A diminuição da população rural, associada ao êxodo juvenil e envelhecimento, conforme dados apresentados anteriormente, sugere dificuldades em termos da manutenção da sucessão das propriedades rurais. Ademais, a ausência dos filhos representa também a perda do capital inovador, pois, geralmente, são as novas gerações que tendem a estar à frente dos conhecimentos técnicos e de gestão que podem melhorar os rendimentos econômicos das propriedades (SILVESTRO et al., 2001; SPANEVELLO, 2008).

É importante considerar que, diante das dificuldades de manter os filhos nas propriedades e nos negócios, como sucessores, é preciso incentivar a sua permanência (MATTE; MACHADO, 2016). Geralmente este incentivo parte dos pais como forma de garantir a permanência dos filhos, através de distintas estratégias. Spanevello et al. (2014) destacam que para cativar um sucessor podem ser empregadas estratégias distintas, incluindo bens materiais e simbólicos. Estas questões sugerem que os pais buscam construir a sucessão das suas propriedades não esperando apenas a decisão de ficar ou sair dos filhos, mas cativando o filho (ou sucessor) para a ocupação agrícola.

Este artigo tem como objetivo discutir os aspectos internos das famílias e das propriedades que estimulam a sucessão, mais especificamente as estratégias lançadas pelos pais visando motivar estimular os filhos a permanecer nas propriedades e nos negócios familiares.

Além desta breve introdução e das considerações finais, o artigo está estruturado em três seções: a que contempla uma revisão bibliográfica sobre o tema do estudo, seguida dos procedimentos metodológicos e dos principais resultados obtidos com base na pesquisa de campo.

 

Estratégias de reprodução e a questão da sucessão geracional

De acordo com Bourdieu (2000, 2001), estratégias de reprodução dizem respeito à reprodução dos indivíduos num determinando espaço social, através de uma socialização que engendra neles determinadas posições ou disposições a ser. Essa socialização forma o que o autor define como habitus. Segundo Bourdieu (1989, p. 91), “o habitus é definido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e representações”. O habitus é, sobretudo, produto da incorporação da ordem social e histórica e orienta sua ação para assegurar a reprodução das condições que o formam. Nesse sentido, o habitus funciona como uma disposição incorporada que predispõe o indivíduo a agir de determinadas formas decorrentes das suas condições objetivas de existência e de sua trajetória social (CORCUFF, 2001). Na sua essência, a noção de habitus pressupõe a reprodução nas dimensões individual e social, pois é o princípio orientador das estratégias de reprodução (BOURDIEU, 2001).

A partir desta definição de habitus é possível argumentar que a sua integração faz parte de um processo natural de incorporação do modo de ser e viver. Trazendo esta conceituação para dentro da proposta deste artigo, é possível afirmar, conforme Abramovay et al. (1998), que a sucessão, nas gerações passadas, acontecia como parte de um “processo natural”. Segundo os autores, além de alimentos e matérias-primas, os agricultores produziam novas propriedades no mesmo local onde viviam (por meio da repartição da área), ou mediante compras de outras áreas de terra para instalar os filhos de forma independente. Esse padrão era o que garantia a permanência dos filhos.

Abramovay et al. (1998) afirmam que no sul do Brasil a garantia da sucessão nas gerações passadas ocorria, entre outros fatores, pela valorização da agricultura e do modo de vida no meio rural repassada aos filhos pelos pais. O autor também aponta outros agentes motivacionais: o amplo mercado de terras, que favorecia a instalação dos filhos em novas propriedades, a baixa escolaridade dos filhos, que limitava os horizontes profissionais, e a pressão dos pais para um filho ficar na propriedade com a responsabilidade de ampará-los na velhice. Valia a lógica que todo filho de agricultor também seria agricultor (SILVESTRO et al., 2001).

No entanto, embora o habitus pressuponha o ajustamento entre as condições objetivas e subjetivas dos indivíduos e, assim, a reprodução das condições que o formaram, isso não significa que seja imutável. Ocorre que, em determinadas condições de mudanças, pode acontecer um desajustamento entre as condições objetivas e subjetivas na percepção dos próprios agentes sociais ou indivíduos. Desse modo, pode haver a não reprodução das estruturas e relações formadoras ou geradoras do habitus inicial.

Isso significa dizer que embora os filhos tenham sido socializados no trabalho agrícola, convivido com os pais nesta atividade, ou seja, tenham criado uma predisposição ou um habitus para permanecer no meio rural e na propriedade não significa que atualmente não haja mudanças.

Os estudos referentes à sucessão geracional no Brasil, especialmente na região Sul, têm mostrado a crescente desistência dos filhos em seguir a ocupação de agricultor. Neste cenário, a perspectiva que todo filho de agricultor seria agricultor não tem se concretizado (CHAMPAGNE, 1986). Hoje, a continuidade das propriedades por meio da sucessão geracional passa por uma série de fatores que não necessariamente é mais a obrigação moral de ficar tocando o mesmo negócio e o mesmo patrimônio da família, podendo seguir para outros ramos ocupacionais (SPANEVELLO, 2008; SILVESTRO et al., 2001; PALACIOS, 2005). Com isso, os filhos dos agricultores passam a olhar o meio rural como um campo de escolhas, ficar na agricultura passou a ser uma possibilidade diante da proximidade do meio rural com o meio urbano, o maior acesso à educação e a determinados bens (SPANEVELLO, 2008; SILVESTRO et al., 2001; ABRAMOVAY et al., 1998).

De acordo com Neiman (2013), quanto mais os filhos desenvolvem trajetórias individuais de trabalho, mais afetam as trajetórias familiares de manter a sucessão e a herança. Para Woortmann (1995, p. 196), ‘“o nós’ coletivo da família tende a ser substituído pelo ‘eu’ de cada indivíduo”, e aponta um impasse quanto à reprodução em razão de os projetos individuais dos filhos estarem em oposição aos projetos coletivos familiares. Neste sentido, segundo a autora, aos pais resta cativar um sucessor, ou seja, é preciso “ajudar” os filhos a despertar o desejo pela agricultura e pelo morar no meio rural.

Hoje é necessário cativar um sucessor, modernizando a unidade de produção e realizando a transmissão da propriedade mais cedo, apesar das consequências para os mais velhos. É preciso também, ou melhor, principalmente, “cativar” uma noiva para ele, suprindo a casa com eletrodomésticos e outros símbolos modernos. Se é difícil reter o herdeiro ou convencer alguém a aceitar tal posição, mais difícil ainda é conseguir lhes uma esposa disposta a permanecer na colônia, pois as mulheres também migram. Esse quadro faz com que em muitas casas reste apenas um herdeiro celibatário e seus velhos pais. (WOORTMANN, 1995, p. 197)

Na proposta de Bourdieu (1962, 2000, 2001), os filhos dos agricultores são estratégicos e buscam manter, ampliar e reproduzir o capital ou a posição social existente (seja material ou simbólico), ou mesmo reconverter esse capital quando é desfavorável. As estratégias são biológicas (relativas à fecundidade); educacionais (a maior escolarização e a busca por maior capital escolar através de títulos e diplomas); matrimoniais (voltadas a assegurar casamentos ou uniões para manter a integridade do patrimônio); econômicas (para aumentar ou não fragmentar o capital disponível); simbólicas (comparação com outros grupos sociais, desvalorização da ocupação de agricultor) e de sucessão (com a finalidade de assegurar a transmissão do patrimônio entre as gerações), podendo ser empregadas de forma conjunta ou de forma articulada em diferentes espaços de tempo.

Com vistas a assegurar a sucessão dos filhos, os pais lançam mão de distintas estratégias como forma de garantia do processo de permanência. No trabalho de Spanevello et al. (2014) foram apontados fatores que levam à manutenção da sucessão nos estabelecimentos familiares, as táticas utilizadas pelos pais são ligadas a possibilidades simbólicas (autonomia, a percepção positiva da propriedade rural e o gosto pela terra) e materiais (terra, imóveis, automóveis, modernização das atividades e novas atividades geradoras de renda, garantem mobilidade social de lazer tanto em comunidades rurais como urbana) que eles podem ofertar aos filhos e favorecer a permanência deles como sucessor.

Com relação à autonomia, os pais podem criar oportunidades a fim de que os filhos realizem investimentos para determinada atividade, tomem decisão sobre a compra de novas áreas e maquinários, sejam os responsáveis pelo atendimento e recepção de técnicos e vendedores na propriedade, decidam sobre a venda da produção, aplicações e investimentos, incentivo a pesquisar inovações tecnológicas para propriedade rural. Logo, são responsabilidades que fazem com que seja mais atrativa a perspectiva de permanência dos filhos na propriedade, pois essa autonomia é vista como um “voto de confiança”. Os incentivos monetários como salários e comissões de safra ou venda de animais são estratégias tanto simbólicas como materiais. A modernização das atividades é ligada a investimentos em animais de raças melhoradas, equipamentos e maquinários agrícolas, esses investimentos visam diminuir a “penosidade” do trabalho. No caso de o filho ser casado, este fator pode assegurar a permanência e a obtenção de uma casa separada da do pai, pois as gerações têm hábitos, ideias e modos de vida diferentes (SPANEVELLO et al., 2014).

As estratégias de dimensões materiais garantem certo recurso patrimonial ao filho. Assim, os pais proporcionam certa independência aos filhos, antecipando o recebimento de parte do patrimônio, não sendo necessária a espera pelo fim da vida ou pela idade avançada, aumentando as possibilidades de sucessão, não pelo modelo sucessório vigente, que é o da sucessão tardia (SPANEVELLO et al., 2014).

Trabalhos realizados fora do Brasil como o de Kwanmuang (2011), na Tailândia, reforçam a relação entre as condições econômicas e produtivas das propriedades como um esquema importante para a sucessão. Segundo os resultados do trabalho do autor, propriedades rurais com maiores áreas de terras e com altos índices de irrigação são mais propensas a ter sucessores, especialmente se houver filhos que trabalhem na propriedade rural e planejem a sucessão (KWANMUANG, 2011).

O aumento do patrimônio (terra) e de investimentos em tecnologias também é visto como tática importante para manter a sucessão, conforme aponta trabalho de Mishra e El-Osta (2007), desenvolvido nos Estados Unidos. Os autores levantaram os fatores que influenciam a sucessão familiar nas propriedades rurais americanas. Os resultados indicaram que propriedades rurais maiores são mais propensas ao processo de sucessão geracional. Isso significa dizer que as grandes propriedades rurais apresentam mais possibilidades de garantir a sucessão por oferecer ao sucessor a garantia de uma renda razoável e segura. Por outro lado, o nível de endividamento da propriedade rural, o grau educacional e o envolvimento dos filhos com o trabalho e a cultura urbana afetam as transferências intrafamiliares no negócio, ou seja, prejudicam a sucessão (MISHRA; EL-OSTA, 2007).

Aumentar o patrimônio (terra), garantir renda, mostrar a viabilidade do trabalho agrícola em termos econômicos são estratégias importantes capazes de funcionar como motivação à sucessão. Morais, Borges e Binotto (2017) afirmam que o tamanho da propriedade influencia a intenção de sucessão, ou seja, quanto maior a propriedade rural, maior também é a intenção do potencial sucessor assumir, pois são mais propensas a garantir renda segura para eles. No entanto, outros fatores também pesam na decisão de ficar, tais como a pressão social dos pais, o apego emocional a terra que funciona como uma identidade sucessora, despertando o desejo dos filhos dos produtores rurais de seguir no trabalho agrícola e na função de gestor da propriedade rural. Ainda, segundo Morais, Borges e Binotto (2017), a vontade de trabalhar na agricultura diminui a probabilidade de migrar para áreas urbanas.

O estudo feito por Kerbler (2012) sobre propriedades rurais eslovenas sugere que não são apenas os fatores econômicos que funcionam como estratégia para sucessão, embora estes tenham mais destaque. O autor analisou 48 fatores que afetam a sucessão, e constatou que 13 se sobressaem no que diz respeito à sucessão na propriedade rural. Entre estes, três fatores econômicos se destacam: (1) tamanho da propriedade rural; (2) comercialização da produção pecuária; (3) quantidade de renda anual proveniente de fontes agrícolas. Outros dez fatores têm efeito significativo e são divididos em dois grupos: (1) Fatores que refletem a tradição ou os padrões de pensamento e comportamentos: número de filhos do sexo masculino; idade do proprietário na transferência da propriedade. (2) Fatores que refletem a posição do proprietário, as percepções e opiniões: convicção do proprietário sobre o afastamento da propriedade rural; sobre se ele/ela se tornaria sucessor, caso pudesse decidir novamente; sobre as mudanças no volume de trabalho na propriedade no futuro; sobre mudanças no tamanho da propriedade no futuro; sobre o futuro da propriedade, se a renda aumentará; sobre a capacidade financeira da propriedade rural para investimento e desenvolvimento; sobre a capacidade de desenvolvimento da propriedade em razão de empréstimos e outros encargos financeiros.

O trabalho de Fischer e Burton (2014) sugere que a efetivação da sucessão nas propriedades passa por estratégias não necessariamente materiais, mas pela possibilidade de os filhos criarem a identidade com o trabalho agrícola e com a propriedade. Este processo de identificação ocorre quando os filhos ainda são crianças e passam a se envolver progressivamente no trabalho agrícola, nas tarefas e na hierarquia da tomada de decisão até o ponto em que mudanças são feitas na propriedade e nos negócios agrícolas em razão do novo sucessor passar a assumir os negócios. As condições de sucessão são essenciais para o desenvolvimento tanto da identidade do sucessor como da propriedade rural (FISCHER; BURTON, 2014).

 

Procedimentos metodológicos

O presente trabalho foi realizado no município de Cruz Alta, estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Para obtenção dos dados, utilizou-se como instrumento de coleta entrevistas semiestruturadas. A escolha dos agricultores se deu a partir da indicação nos Sindicatos Rurais do município (Sindicato dos Trabalhadores Rurais e o Sindicato Rural), e também por indicações de técnicos da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural). As entrevistas foram realizadas nas propriedades rurais em que ocorre o processo de sucessão geracional, sendo entrevistado um dos pais, obedecendo aos critérios de seleção propostos no trabalho de Spanevello (2008):

a)         ter pelo menos um(a) filho(a), independentemente do sexo;

b)        agricultores com 50 anos ou mais. Esse recorte etário justifica-se pelo fato de a pesquisa centrar-se em casos de situação definida ou encaminhada de sucessão. A literatura referente ao tema aponta que a sucessão é um processo tardio, ou seja, os pais encaminham ou realizam a transmissão do patrimônio quando atingem idade mais avançada. Isto é necessário para evitar o risco de entrevistarmos agricultores jovens ou recém-estabelecidos, ou mesmo com filhos pequenos;

c)         agricultores com sucessão: há pelo menos um filho residindo na propriedade rural (ou em outra propriedade próxima) já definido ou encaminhado como sendo o sucessor.

No total, foram realizadas 31 entrevistas, abarcando distintas propriedades em termos de tamanho, sistemas produtivos e local de residência dos gestores. Este número de entrevistados ocorreu pelo fato de a amostra ser por conveniência. O procedimento utilizado para a análise de dados foi a avaliação de conteúdo.

 

Estratégias utilizadas pelos pais como fomento à sucessão geracional: análise dos dados empíricos

Os dados desta pesquisa apontam que os pais lançam mão de distintas estratégias, podendo ser encontrado mais de um procedimento por entrevistado. No total, foram registrados seis tipos de esquemas: as distintas táticas e seus desdobramentos são apresentados de forma sucinta na Figura 1.

 

Figura 1 – Estratégias paternas e seus desdobramentos

01_1359_figura01.png

Fonte: Dados da pesquisa de campo. Elaborada pelos autores.

Conforme representação anterior, as estratégias paternas dividem-se em: 1) Estratégias motivacionais ligadas à ocupação; 2) Estratégias de autonomia; 3) Estratégia de novos investimentos; 4) Estratégias de fornecimento de estudo; 5) Estratégias de ocupação urbana e 6) Estratégias de doação de bens. Nas seções seguintes, detalhamos cada um dos esquemas, bem como seus desdobramentos.

 

Estratégias motivacionais ligada à ocupação

As estratégias motivacionais dizem respeito ao estímulo que os pais dão aos filhos por meio da percepção positiva da ocupação agrícola. Esta percepção é fundamentada no fato de os filhos participarem das atividades agrícolas desde crianças, gerando um apego a terra e à ocupação paterna. Outros aspectos estão relacionados à tentativa de mostrar aos filhos que o trabalho agrícola apresenta vantagens comparativamente ao trabalho urbano, tais como ser o próprio patrão e ser dono do negócio, além do esforço dos pais em afirmar que as condições de trabalho na propriedade não são penosas, dadas às condições de infraestrutura disponível (maquinário, terras planas, poupanças, possibilidade de contração de mão de obra, entre outras).

A partir das entrevistas realizadas, constatou-se que a grande maioria dos entrevistados apontou a existência de três estratégias motivacionais combinadas: gostar da atividade, melhores condições de trabalho no campo e infraestrutura da propriedade. Três citaram apenas gostar da atividade, e apenas um entrevistado não citou fazer uso de nenhuma estratégia motivacional,

Considerando que uma motivação para permanecer é gostar da atividade, Champagne (1986) já afirmava que, entre os agricultores franceses, o desejo dos filhos ficarem no lugar dos pais está diretamente relacionado com a aprendizagem e o desenvolvimento pelo gosto da ocupação. Spanevello (2008) afirma que o discurso positivo dos pais sobre a ocupação e suas vantagens em relação ao trabalho urbano e estratégico no despertar da vontade dos filhos permanecerem tende a imprimir nos filhos uma visão positiva sobre trabalhar e viver no campo, funcionando como estímulo à permanência. Por outro lado, discursos negativos que relatam apenas as dificuldades do trabalho, da renda e do viver no meio rural podem favorecer a saída dos filhos.

Outra estratégia motivacional à permanência diz respeito à visão de que o trabalho no campo é melhor que o trabalho urbano. Esta classificação, “melhor”, refere-se ao fato de que a renda da propriedade pode ser até mesmo superior ao trabalho urbano, além da possibilidade de o trabalho agrícola ser realizado com horário flexível dentro da ideia de que o produtor é seu próprio patrão. Conforme Champagne (1986), as decisões de ficar ou sair do campo estão atrelados às perspectivas relacionais com que os produtores se comparam, especialmente com grupos urbanos. Neste caso, ao acionar o comparativo, os produtores visualizam como vantagens para os seus filhos exercer o trabalho agrícola a autonomia de horário ou flexibilidade e a possibilidade de gerar renda superior.

A terceira estratégia ligada ao campo motivacional mais citada é a questão da infraestrutura da propriedade. Aqui se situam os produtores com maior área ou área mecanizada, com maquinário e possibilidade de contratar mão de obra. Somam-se ainda a esta, a infraestrutura e o acesso a itens de lazer como internet, TV, entre outros.

Portanto, percebe-se que os pais têm o desejo de ter sucessor na propriedade. Para fortalecer esta vontade, eles se valem de táticas que facilitem a aptidão do filho para a atividade através do convívio com a propriedade e a produção agrícola, tendo em vista a tradição familiar neste tipo de trabalho e na passagem da propriedade de geração para geração.

Assim, os pais ofereceram condições e motivaram os filhos a permanecer em 27 propriedades, alegando as seguintes razões: gostavam da atividade, devido ao convívio na propriedade e na atividade; para manter a tradição; tinham aptidão; e, também, em virtude da renda. Em cinco propriedades, por que os filhos só sabiam trabalhar na agricultura, não tinham experiência em outro trabalho. No entanto, em 22 propriedades, os entrevistados avaliaram que trabalhar no campo é melhor que na cidade (salário melhor, horário flexível). Em 21 propriedades, os pais atribuíram ter boas condições de área e infraestrutura na propriedade para dispor aos filhos e, em outras 13, alegaram boas condições de internet, TV, como motivações para a sucessão. Apenas em uma propriedade foi citado o fato de conquistarem uma nova oportunidade de negócio e trabalho.

 

Estratégias ligadas à autonomia

As estratégias ligadas à autonomia estão relacionadas ao estímulo que os pais proporcionam aos filhos para estar à frente do trabalho, do gerenciamento das atividades produtivas agrícolas e do gerenciamento da renda gerada. Os resultados mostram que a quase totalidade faz uso das estratégias de autonomia, seja na realização do trabalho, seja no gerenciamento dos negócios e na renda, podendo associar mais de um procedimento ao mesmo tempo.

De modo geral, a quase totalidade apresenta uma tática de divisão de trabalho considerada igual entre os pais e os sucessores. Na maioria das propriedades (em 21 casos), o esquema adotado é a divisão de tarefas de forma igualitária, não sobrecarregando nenhum deles. Em sete propriedades, o filho desenvolve o trabalho sozinho, com autonomia, e o pai auxilia quando ele precisa. No entanto, em três propriedades, os pais ficam com a maior parte do trabalho e o filho auxilia quando ele precisa, e em apenas uma propriedade o filho não auxilia o pai, apenas trabalha na sua atividade independente.

A estratégia de gerenciamento dos negócios merece destaque, tendo em vista as particularidades que apresenta. É preciso dizer que nenhum entrevistado afirmou que o sucessor possui gestão dos negócios de forma plena, ou seja, os sucessores apresentam autonomia em alguma atividade relacionada ao negócio, como realizar as tarefas produtivas, mas dividindo com as tarefas burocráticas (tais como serviços bancários).

Para melhor compreender esta questão, dividiu-se a gestão dos negócios em dois aspectos: a) Gestão burocrática – diz respeito à organização dos custos da propriedade, da responsabilidade sobre o bloco de produtor, dos serviços bancários, de decidir sobre investimentos e de aplicar recursos; responsabilidade pela manutenção da casa; contratação de mão de obra; e b) Gestão produtiva – responsabilidade sobre decisões referentes aos sistemas produtivos (época de plantio, escolha variedades, adubação, tratos culturais, colheita).

Em relação à gestão burocrática, constatou-se que em 13 propriedades a responsabilidade é do pai. Em 11 propriedades, fica a cargo do sucessor. E em sete propriedades, é compartilhada entre o sucessor e o pai. Já no que diz respeito à gestão produtiva, em 11 propriedades esta é dividida entre pais e filhos. Em 17 propriedades, fica a cargo do sucessor. E, em outras três, é o pai quem faz a gestão plena produtiva da propriedade.

No entanto, ainda que os sucessores atuem de forma integral ou parcial na gestão burocrática e produtiva, nenhum sucessor detém a posse da terra ou o patrimônio. Outro item que contempla a estratégia de autonomia diz respeito ao gerenciamento da renda. A gestão financeira refere-se ao gerenciamento da renda gerada contemplando a possibilidade de os sucessores dividirem os lucros da produção ou receberem um salário, ou outra forma de remuneração ou, então, a renda ficar concentrada nas mãos dos pais, que repassam valores aos sucessores conforme demanda ou necessidade.

A respeito desta questão, constatou-se que na maioria dos casos, em 20 propriedades, o sucessor recebe recursos financeiros pelo trabalho realizado, seja por meio de salário fixo, de comissões sobre a produção, de comissões sobre a venda de produtos, de divisão de lucros com o pai, ou ainda fica com a renda gerada pela atividade que gerenciam.

Nestas situações, os pais afirmam que o valor recebido proporciona a autonomia financeira do sucessor, podendo ele destinar o recurso para seus gastos pessoais ou utilizar de outra forma que achar conveniente, sendo que o valor recebido, segundo os entrevistados, ocasiona a independência financeira do sucessor. Contudo, é preciso ponderar que a renda passa antes “pelas mãos dos pais”, que remuneram os sucessores a partir de acordos sobre a divisão dos lucros ou o fornecimento do salário.

Já em 11 propriedades, a gestão financeira fica a cargo do pai, que é o controlador da renda, remunerando o sucessor conforme a necessidade. Neste caso, os filhos recebem “mesada” ou recebem conforme com as demandas. A menção à remuneração na forma de “mesada” foi feita pelos entrevistados que têm os filhos ainda estudando (situação de três propriedades).

Em síntese, os sucessores que recebem renda por meio da divisão dos lucros ou de salários apresentam mais chances de receber mais recursos do que os sucessores que recebem dos pais conforme a necessidade. Este diferencial pode ocasionar, inclusive, a possibilidade de uma independência financeira dos sucessores, que podem investir em novos negócios voltados para a produção agropecuária ou não, ou até mesmo em seu bem-estar.

Fazendo uma relação entre gestão produtiva e gerenciamento de rendas, o estudo apontou que em 13 propriedades a gestão produtiva plena é do sucessor, com gerenciamento da renda obtida com as atividades. Em sete propriedades, a gestão produtiva é compartilhada entre pai e sucessor, porém com gerenciamento da renda pelo sucessor. Em quatro propriedades, a gestão produtiva é plena do sucessor, mas sem gerenciamento da renda, assim como em quatro propriedades a gestão produtiva é compartilhada entre pai e sucessor, com gerenciamento da renda pelo sucessor. Por fim, em três propriedades, a gestão produtiva é plena do pai, sem gerenciamento da renda pelo sucessor.

Segundo trabalhos de Brumer (2017), Spanevello et al. (2011) e Weisheimer (2019), a falta de autonomia dos filhos para executar tarefas na propriedade, sejam relacionadas à produção ou à gestão, acaba desestimulando-os a seguir na atividade. A posição de dependente do pai (que na visão dos filhos pode ser tecnologicamente ultrapassada), não permite que as novas gerações “experimentem” a aplicação de novas ferramentas de gestão e tecnologia. Esta condição é particularmente incômoda entre os jovens que passam por cursos técnicos ou cursos superiores e não encontram no pai receptividade para aplicar os novos conhecimentos na propriedade.

Da parte dos pais, conforme mostra o trabalho de Spanevello (2008), existe o receio de que a inexperiência dos futuros gestores coloque em risco as condições financeiras das propriedades ou até mesmo a manutenção do patrimônio. Este receio justifica muitas das ações efetivadas pelos pais dentro das propriedades em relação aos sucessores: gestão parcial ou gestão de algum negócio específico, pagamento pelo trabalho mediante um valor considerado salário, comissão ou pró-labore, ou a liberação de um recurso de acordo a demanda do sucessor.

 

Estratégias de novos investimentos

As estratégias de novos investimentos dizem respeito ao estímulo que os pais dão aos filhos para que estes invistam em alguma atividade produtiva ou empreendimento.

Compete destacar que a tática utilizada pelos pais em algumas propriedades é o investimento em atividades diferenciadas. Em 15 propriedades, as famílias investiram em melhorias zootécnicas, como atividade leiteira, visando gerar mais renda, motivação e permanência dos filhos. Outros ainda investiram em atividades diferenciadas como cavalos crioulos e pecuária de corte (gado PO Angus).

Em três casos, as famílias investiram em empreendimentos (empresas na cidade) como estabelecimento de revenda de pneus; unidade de recebimento de grãos; insumos agrícolas. Cinco produtores fizeram investimento em infraestruturada produtiva, ou seja, compra de maquinários agrícolas; e sete não investiram em nada ou não usaram esta estratégia.

O investimento em atividade leiteira, segundo Niederle e Grisa (2008, p. 59), “possibilita a garantia de uma renda mensal que possibilita maior estabilidade financeira e faça frente a um conjunto de gastos mensais (energia elétrica, telefone etc.) tem sido um dos principais motivos para a adoção desta estratégia”. No entanto, comparativamente às demais estratégias, os ativos determinantes ou relacionados a esta atividade são os capitais físico e natural. Além do crédito, a produção leiteira demanda outros itens de capital produzido, como estábulo, sala de ordenha, ordenhadeira, resfriador, implantação de pastagens e montagem dos piquetes. Logo, o capital natural para a atividade leiteira não precisa de grandes áreas de terra (comparativamente à soja), permitindo o desenvolvimento em pequenas propriedades (NIEDERLE; GRISA, 2008, p. 59).

 

Estratégias de fornecimento de estudo

As estratégias de fornecimento de estudo estão relacionadas ao estímulo que os pais dão à permanência dos filhos motivada pela conclusão do ensino técnico ou superior. O estudo é uma estratégia usada por 19 produtores.

Possibilitar que os filhos estudem – curso técnico ou superior – é buscar a qualificação pessoal dos sucessores, o que pode resultar num melhor desempenho econômico e produtivo da propriedade no futuro, e é uma das estratégias usadas pelos pais para manter a sucessão.

[...] Está estudando para ser o possível sucessor, está fazendo o técnico agrícola e esta pensando em fazer agronomia [...]. (Entrevistado 8)

[...] Já trabalhava na propriedade, estudaram o que eles vão praticar aqui [...]. (Entrevistado 11)

[...] Foi se qualificar para tocar a atividade [...]. (Entrevistado 19)

[...] Estudou agronomia para aplicar seus conhecimentos [...]. (Entrevistado 24)

Entre os principais cursos dos sucessores, destacam-se: Técnico agrícola; Agronomia, Administração e Economia. Os resultados dos estudos de Panno e Machado (2014) se contrapõem ao deste trabalho. Segundo os autores, os filhos estudam para sair, e a maioria dos jovens que buscam esse aperfeiçoamento, principalmente no curso superior, depois de formados não tem retornado para as propriedades da família para desenvolvê-la com as técnicas e conhecimentos adquiridos. Pelo contrário, o fato de terem estudado os direciona para o mercado de trabalho urbano, tido como mais seguro e menos oneroso, oportunizando maior tempo para si, entre outros atrativos urbanos.

 

Estratégias de ocupação urbana

As estratégias de ocupação urbana dizem respeito à motivação que fez com que os filhos voltassem à propriedade para ser os sucessores. Destaca-se que esta motivação acontece em razão da experiência negativa na cidade. Em quatro propriedades, os filhos tentaram se aventurar em uma nova realidade, mas não deu certo, e retornaram para se tornar sucessores.

[...] Foi trabalhar em Chapecó, trabalhou na Aurora, mas não deu certo [...]. (Entrevistado 15)

[...] A filha foi trabalhar na cidade, porém não deu certo e preferiu voltar [...]. (Entrevistado 21)

[...] Trabalhou na cidade e voltou [...]. (Entrevistado 22)

[...] Na cidade eles viram que não é o lugar deles [...]. (Entrevistado 29)

Evidencia-se que três propriedades, das quais os sucessores saíram, são caracterizadas como minifúndios, em que a escala de produção e tamanho de área são menores. Esta situação pode também ser vista como um motivo de saída, fazendo com que os filhos busquem oportunidade de trabalho e renda urbanos por causa das condições produtivas e de renda das propriedades.

No caso do entrevistado 29, a filha sucessora (graduada em Engenharia Química) retornou após experiências de trabalho urbano em empresas multinacionais. O retorno, segundo o entrevistado, deve-se ao fato de sua propriedade ser considerada grande e dos “números que a lavoura representa”, o que levou a filha a considerar que os ganhos na propriedade eram melhores que os da cidade e, por isso, retornou. Além dos ganhos, a possibilidade de o pai oferecer carro e outros benefícios que permitem a mobilidade da sucessora e sua independência também se inclui nesta escolha de retorno. Conforme afirma Champagne (1986), hoje os jovens acionam um campo de escolhas sobre as ocupações que desejam ter e fazem um comparativo entre o que é rentável para eles.

 

Estratégias de doação de bens

As estratégias relacionadas a este sexto grupo referem-se ao estímulo dado pelos pais por meio da doação de bens. Entre elas, pode-se elencar: automóveis; área de terra; imóveis e salários. A maioria dos entrevistados que fizeram uso desta estratégia lançou mão da doação de um bem específico ou mais de um. Apenas cinco entrevistados não motivaram a sucessão através da doação de bens materiais.

Spanevello et al. (2014) afirmam que a sucessão pode ser motivada por questões materiais e objetivas, podendo ser a doação de bens que garantam a mobilidade social dos sucessores, tais como carros, motocicletas ou mesmo terras colocadas em nome dos filhos. Os meios de transporte representam a autonomia dos jovens sucessores para se deslocar em busca de lazer tanto no meio rural como no meio urbano, sem depender de pedir empréstimos dos carros e motocicletas dos pais para tal finalidade. Este procedimento representa, sobretudo, independência social.

Outra estratégia que visa manter a independência é a possibilidade da moradia própria. Esta pode ser dentro da propriedade, onde os pais vivem em uma residência e o filho (casado) em outra. Na raiz desta tática estão a manutenção da privacidade dos jovens casais e o impedimento de conflitos entre noras e sogras bastante comuns quando as gerações de pais e filhos casados dividem a mesma residência (SPANEVELLO et al., 2011). A residência no meio urbano também é vista como uma estratégia. Nestes casos, os pais oferecem aos filhos a possibilidade de viver na cidade, mas retornando à propriedade para extrair dela a renda.

O pagamento de salário também é destacado pelos entrevistados. Neste caso, os pais remuneram os sucessores pelo trabalho desenvolvido na propriedade. A remuneração dada aos filhos é considerada um recurso importante no fomento à sucessão. Conforme Silvestro et al. (2001), a falta de renda mensal ou a falta de uma remuneração dos pais pelo trabalho exercido pelos filhos nas propriedades é um fator negativo para a sucessão, pois os filhos demandam o reconhecimento financeiro dos pais pelo trabalho executado. Outros fatores negativos dizem respeito a ser reconhecidos pelos pais apenas como mão de obra e receber algum recurso financeiro apenas quando demandam ou necessitam. Para os sucessores, o recebimento de um salário representa, sobretudo, a liberdade de ter um recurso financeiro para gastar conforme sua vontade.

 

Considerações finais

Este artigo buscou detalhar, através de um estudo específico no município de Cruz Alta – RS, quais são as estratégias utilizadas pelos pais para fomentar a sucessão geracional de suas propriedades rurais. Aquelas aqui destacadas fazem parte do processo de manutenção da reprodução de longo prazo das propriedades rurais através do processo de sucessão geracional.

Retomando os resultados principais do artigo, constatou-se a realização de seis tipos de estratégias, cada uma com desdobramentos e detalhamentos internos. A primeira está ligada ao campo do discurso motivacional dos pais para a permanência dos filhos e o repasse do gosto pela ocupação. A segunda estratégia está relacionada ao campo da autonomia, referindo-se ao estímulo que os pais dão aos filhos para que estes estejam à frente na realização do trabalho, no gerenciamento das atividades produtivas e dos negócios que a envolvem e no gerenciamento da renda gerada. A terceira aponta para realização de novos investimentos e está relacionada ao incentivo dado pelos pais para que os filhos invistam em alguma atividade produtiva ou empreendimento. A quarta estratégia tem como norte o fornecimento de estudo pelos pais como motivação pela permanência dos filhos, depois de passarem pelo ensino técnico ou superior. O estudo objetiva a qualificação pessoal dos sucessores, visando ao desenvolvimento socioeconômico da propriedade. A quinta estratégia, refere-se à motivação que fez com que os filhos voltassem à propriedade para ser os sucessores, tudo isso devido à experiência negativa na cidade. Já a última estratégia, trata da doação de bens materiais aos filhos sucessores, incluindo bens para o lazer, moradia, produção e autonomia financeira através do pagamento de salário.

O que estas estratégias destacadas anteriormente revelam é que a sucessão geracional perde o caráter de acontecimento natural como nas gerações passadas, quando os filhos ficavam por obrigação moral, pelo amor a terra e para manter a coletividade da família e a reprodução do patrimônio ao longo das gerações. Hoje, os produtores entrevistados mostram que é preciso motivar a sucessão entre os filhos através do discurso, de bens materiais, de envolvimento na atividade, de qualificação profissional, entre outros. Cada entrevistado mostrou distintas táticas, inclusive com mais de uma delas por propriedade.

Outra questão importante derivada desta análise é que as estratégias utilizadas condicionam a sucessão geracional não apenas à condição de ser agricultor, ou seja, seguir na ocupação paterna desenvolvendo a atividade agrícola, mas também em duplas atividades (como é o caso de sucessores que trabalham e administram revendas de pneus, unidades de recebimento de grãos, entre outros). Ou, ainda, nos casos em que os sucessores exercem outras atividades nas propriedades como a produção de leite ou outras produções zootécnicas.

É preciso ponderar ainda que, independentemente das estratégias utilizadas pelos pais, a manutenção das propriedades, nos casos analisados, está garantida. Assim como está assegurada a manutenção da população e a dinâmica produtiva, sendo estas condições positivas para o desenvolvimento rural do município analisado.

No entanto, é preciso reconhecer as limitações deste trabalho. A primeira delas diz respeito ao fato de tratar apenas de um município, impossibilitando uma análise mais generalizada destas táticas para a região e até mesmo para todo o Rio Grande do Sul. A segunda limitação está associada à análise, a qual não foi diferenciada por perfil de produtor quanto à área, renda, sistema de produção, entre outras variáveis que possibilitariam uma avaliação mais complexa destas estratégias motivadoras à sucessão geracional.

 

 

Referências bibliográficas

ABRAMOVAY, R; SILVESTRO, M.; CORTINA, N.; BALDISERRA, I. T.; FERRARI, D.; TESTA, V. M. Juventude e agricultura familiar: desafios dos novos padrões sucessórios. Brasília: Edições Unesco, 1998.

ALMEIDA, M. W. B. Redescobrindo a família rural. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 66-83, jun. 1986.

BOURDIEU, P. Célibat et condition paysanne. Études Rurales, Paris, n. 5-6, p. 32-125, 1962.

BOURDIEU, P. Reprodução proibida: a dimensão simbólica da dominação econômica. In: BOURDIEU, P. O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 2000. p. 93-119.

BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Tradução de Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

BRUMER, A. A problemática dos jovens rurais na pós-modernidade. In: CARNEIRO, M. J; GUARANÁ, E. (Orgs.). Juventude rural em perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad, 2017.

CHAMPAGNE, P. La reproduction de l´identité. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 65, 1986. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1986_num_65_1_2349. Acesso em: 20 abr. 2019.

CORCUFF, P. As novas sociologias: construções da realidade social. São Paulo: Edusc, 2001.

FISCHER, H.; BURTON, R. J. F. Understanding farm succession as socially constructed endogenous cycles. Sociologia ruralis, v. 54, n. 4, p. 417-438, 2014. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/soru.12055. Acesso em: 8 jun. 2019.

GASSON, R.; ERRINGTON, A. The Farm Family Business. Wallingford: Oxford University Press, 1993.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Contagem populacional.  Rio de Janeiro, 1991. Disponível em: http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/listabl.asp?z=t&c=200. Acesso em: 20 jun. 2018.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.  Censo agropecuário de 2017. Disponível em: https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/. Acesso em: 5 abr. 2019.

KERBLER, B. Factors affecting farm succession: the case of Slovenia. Agricultural Economics – Czech, v. 58, n. 6, p. 285-298, 2012. Disponível em: https://www.agriculturejournals.cz/publicFiles/66564.pdf. Acesso em: 19 ago. 2019.

KWANMUANG, K. Succession Decisions on Family Farms in Nakhon Si Thammarat Province, Thailand. Journal of Developments in Sustainable Agriculture, v. 6, n. 2, p. 181-188, 2011. Disponível em: https://www.jstage.jst.go.jp/article/jdsa/6/2/6_2_181/_article/-char/en. Acesso em: 23 ago. 2019.

MAIA, A. G. O esvaziamento demográfico rural. In: BUAINAIN, A. M. et al. O mundo rural no Brasil do século 21. Brasília: Embrapa. 2014. p. 1081-1099.

MATTE, A.; MACHADO, J. A. D. Tomada de decisão e a sucessão na agricultura familiar no sul do Brasil. Revista de Estudos Sociais, v. 18, n. 37, p. 130-151, 2017. Disponível em: http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/res/article/view/3981. Acesso em: 9 abr. 2019.

MISHRA, A. K; EL-OSTA, H. Factors affecting succession decisions in family farm businesses: evidence from a national survey. Journal of the American Society of Farm Managers and Rural Appraisers, v. 7, p. 1-10, 2007. Disponível em: https://ageconsearch.umn.edu/record/190674/files/259_Mishra.pdf. Acesso em: 9 ago. 2019.

MORAIS, M; BORGES, J. A. R; BINOTTO, E. Using the reasoned action approach to understand Brazilian successors’ intention to take over the farm. Land Use Policy, v. 71, p. 445-452, 2017.

NEIMAN, M. La herencia: los(as) hijos(as) y el trânsito entre generaciones en la agricultura familiar de la región pampeana argentina. Estudios Sociológicos, v. XXXI, n. 93, p. 889- 920, 2013. Disponível em: https://estudiossociologicos.colmex.mx/index.php/es/article/view/111. Acesso em: 15 jul. 2019.

NIEDERLE, P. A; GRISA, C. Diversificação dos meios de vida e acesso a atores e ativos: uma abordagem sobre a dinâmica de desenvolvimento local da agricultura familiar. Cuadernos de Desarrollo Rural, v. 5, n. 61, 2008. Disponível em: https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/desarrolloRural/article/
view/1199
. Acesso em: 9 jul. 2019.

PALACIOS, S. P. I. La crisis de sucesión generacional em la agricultura japonesa. Estudos Agrosociales y pesqueros, n. 207, p. 51-78, 2005. Disponível em: https://www.mapa.gob.es/ministerio/pags/biblioteca/revistas/
pdf_REEAP/r207_02.pdf
. Acesso em: 10 ago. 2019.

PANNO, F.; MACHADO, J. A. D. Influências na Decisão do Jovem Trabalhador Rural Partir ou Ficar no Campo. Desenvolvimento em Questão, v. 12, n. 27, 2014. Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/desenvolvimentoem
questao/article/view/2863
. Acesso em: 17 mar. 2019.

SILVESTRO, M. L.; ABRAMOVAY, R.; MELLO, M. A.; DORIGON, C.; BALDISSERA, I. T. Os impasses sociais da sucessão hereditária na agricultura familiar. Florianópolis: Epagri; Brasília: NEAD, 2001.

SPANEVELLO, R. M. A dinâmica sucessória na agricultura familiar. 2008. 236 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural) – Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/16024. Acesso em: 5 mar. 2019.

SPANEVELLO, R. M.; LAGO, A.; CHRISTOFARI, L. F.; ANDREATTA, T. As estratégias para manter a sucessão em estabelecimentos familiares. In: RENK, A.; DORIGON, C. (Orgs.). Juventude rural, cultura e mudança social. Chapecó: Argos, 2014. p. 163-188.

SPANEVELLO, R. M.; AZEVEDO, L. F.; VARGAS, L. P.; MATTE, A. A migração juvenil e implicações sucessórias na agricultura familiar. Revista de Ciências Humanas UFSC, v. 45, n. 2, p. 291-304, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-4582.2011v45n2p291. Acesso em: 12 mar. 2019.

WEISHEIMER, N. Situação juvenil e projetos profissionais de jovens agricultores familiares no Recôncavo da Bahia. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 27, n. 1, p. 67-94, 2019. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/ESA27-1_situacao_juvenil. Acesso em: 25 mai. 2019.

 WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do Sul e sitiantes no Nordeste. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora UNB, 1995.

 

 

Como citar

MOREIRA, Sandro da Luz ; SPANEVELLO, Rosani Marisa; BOSCARDIN, Mariele; LAGO, Adriano. Estratégias paternas para a manutenção da sucessão geracional em propriedades rurais. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 413-433, jun. 2020.

 

 

 

 

Sandro da Luz Moreira

Mestrado em Agronegócios pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

https://orcid.org/0000-0003-0743-1340
http://lattes.cnpq.br/2966578236878041
sandromoreira_rs@hotmail.com


Rosani Marisa Spanevello

Doutorado em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora associada do Departamento de Zootecnia e Ciências Biológicas e do Programa de Pós-graduação em Agronegócios da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

https://orcid.org/0000-0002-4278-6895
http://lattes.cnpq.br/6662827969659065
rspanevello@yahoo.com.br


Mariele Boscardin

Mestrado em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Agronegócios (NPEAGRO) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

https://orcid.org/0000-0002-3308-4189
http://lattes.cnpq.br/9766492034788870
marieleboscardin@hotmail.com

 


Adriano Lago

Doutorado em Agronegócios pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Departamento de Administração e do Programa de Pós-graduação em Agronegócios da Universidade Federal de Santa (UFSM).

https://orcid.org/0000-0002-0499-102X
http://lattes.cnpq.br/1448024112231315
adrianolago@yahoo.com.br

 

 

 

ccby.png

Creative Commons License. This is an Open Acess article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License CC BY 4.0 which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium. You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if changes were made.

 



[1] Mestrado em Agronegócios pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: sandromoreira_rs@hotmail.com.

[2] Doutorado em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora associada do Departamento de Zootecnia e Ciências Biológicas e do Programa de Pós-graduação em Agronegócios da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: rspanevello@yahoo.com.br.

[3] Mestrado em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Agronegócios (NPEAGRO) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: marieleboscardin@hotmail.com.

[4] Doutorado em Agronegócios pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Departamento de Administração e do Programa de Pós-graduação em Agronegócios da Universidade Federal de Santa (UFSM). E-mail: adrianolago@yahoo.com.br.