Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 27, n. 2, junho a setembro de 2019

 

 

 

André Fernando Hein[1]

Nardel Luiz Soares da Silva[2]

 

 

 

A insustentabilidade na agricultura familiar e o êxodo rural contemporâneo

 

 

 

Introdução

Atualmente, encontram-se diversos estudos que afirmam a existência de situações de vulnerabilidade econômica e social na agricultura familiar do Brasil, destacando-se, dentre essas, dificuldades, a pobreza no campo (WANDERLEY, 2017; AQUINO; GAZOLLA; SCHNEIDER, 2016), a dificuldade no acesso a bens e serviços (WANDERLEY, 2009a), a falta de sucessão familiar (ABRAMOVAY et al., 1998) e fatores econômicos como dificuldades no acesso a mercados (PAULA; KAMIMURA; SILVA, 2014).

Outros estudos se debruçam sobre o tema da reprodução social da agricultura familiar e analisam fatores como a autonomia e o papel da produção de alimentos para o autoconsumo (GAZOLLA; SCHNEIDER, 2007), a opção pela produção agroecológica e a resiliência (TEIXEIRA et al., 2017) e a pluriatividade como estratégia de viabilizar e estimular a permanência no campo (SCHNEIDER, 2001).

Embora distintos quanto a recortes e abordagens, todos esses estudos, entretanto, apontam para a problemática da vulnerabilidade da agricultura familiar como forma de subsistência no Brasil. Como consequência direta das vulnerabilidades e das dificuldades na reprodução social, percebem-se fenômenos demográficos de esvaziamento de regiões rurais, de envelhecimento e de masculinização da população rural (CAMARANO; ABRAMOVAY, 1999; RAUBER et al., 2009; ANJOS; CALDAS, 2005).

Dados censitários sobre o êxodo rural apontam que o movimento de migração que se iniciou na segunda metade do século passado, e que reduziu drasticamente a população rural, vem diminuindo o ritmo nos últimos anos, no entanto, entre 2000 e 2010 mais de 2 milhões de pessoas deixaram o meio rural. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICAIBGE, 2006; IBGE, 2018).

Diante deste contexto, sobressai-se o questionamento norteador do presente estudo: por que agricultores familiares estão deixando o campo? Em face dessa indagação, este estudo tem como objetivo analisar os fatores que estão contribuindo para a saída das famílias dos agricultores de suas atividades rurais.

É válido ressaltar que não se trata de um questionamento novo, mas dada a sua constância, permanece contemporâneo. Aquino, Gazolla e Schneider (2016) apontam justamente este tema como uma lacuna a ser abordada pela academia, a quem cabe o papel de aprofundar o entendimento sobre as condições de reprodução econômica do segmento de produtores albergados na base da pirâmide social do campo. Essa mesma preocupação é compartilhada por Wanderley (2009a), que reforça a necessidade de compreender os processos de reprodução do mundo rural não mais sob a égide da civilização agrária, mas a partir de sua inserção numa sociedade urbano-industrial.

No que concerne aos aspectos metodológicos de tal abordagem, é importante ressaltar que quando se busca aproximar os conceitos analíticos ao referencial teórico das categorias empíricas e dos processos sociais concretos, fazem-se necessárias duas mediações fundamentais:

A primeira delas está na necessidade de se reconhecer que os conceitos e os referenciais analíticos nunca são instâncias abstratas prontas, terminadas e concluídas, pois nascem a partir de uma formulação original, são burilados ao longo do tempo, mas sempre ficam na dependência da renovação e atualização em virtude da mutabilidade constante da base empírica. Daí decorre a necessidade permanente de aperfeiçoamento das categorias de análise, algo que só pode ser adequadamente realizado através do processo contínuo de investigação. Outra mediação necessária refere-se ao recorte espacial e temporal dos objetos e processos a serem investigados. (SCHNEIDER, 2006)

Dada a necessidade de utilização de um aporte metodológico que sustente a busca de respostas à problemática apresentada neste estudo, optou-se pela adoção do enfoque interpretativo de Ellis (2000) sobre os meios de vida (livelihoods) na agricultura, que será detalhada no decorrer do texto. A delimitação de fatores relacionados à (in)sustentabilidade nas propriedades rurais resultou de uma atividade interdisciplinar e participativa com doutorandos do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste. Já os dados empíricos foram obtidos por meio de entrevistas com ex-agriculores do município de Marechal Cândido Rondon, no Oeste Paranaense.

 

A insustentabilidade na agricultura familiar

O termo “agricultura familiar” passou a ser disseminado no Brasil na década de 1990, inicialmente, apenas a partir da tradução do termo norte-americano family farms, mas, com o tempo, passou a ser utilizado pelos movimentos sociais e sindicais e, posteriormente, no meio acadêmico e governamental como uma forma de demarcar o processo político de resistência e luta para consolidar a diferença entre a agricultura patronal (agrobusiness) e o pequeno agricultor, ou camponês. A legitimidade, contudo, foi assentada com o advento do Pronaf – Programa Nacional da Agricultura Familiar (SAUER, 2008).

Durante o processo de consolidação desse termo, era comum a crença de que a agricultura familiar seria apenas um novo nome para situações já conhecidas e caracterizadas por expressões como “pequeno produtor”, “agricultor de baixa renda” ou até “unidades de subsistência” (ABRAMOVAY, 1998), no entanto, essa expressão tomou uma amplitude e uma representatividade muito além disso. Atualmente, a agricultura familiar é utilizada por diversas correntes e, em algumas delas, é compreendida como um conceito, um valor, um modo de vida, ou um bloco econômico.

Para Paula, Kamimura e Silva  (2014), a agricultura familiar, mais do que uma forma de organização da produção, é um modo de vida, que vem, ao longo dos anos, resistindo e tentando se firmar diante dos modelos de desenvolvimento da agricultura moderna. Já para Abramovay (1998), muito mais que um segmento econômico e social claramente delimitado, a agricultura familiar é definida como um valor.

Wanderley (2009) afirma que a agricultura familiar é aquela em que a família, ao mesmo tempo que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo. Abramovay (1998, p. 146) vai além e inclui na definição do conceito a questão da gestão do empreendimento rural e um detalhamento do que vem a ser compreendido como família, definindo-a como “aquela onde a propriedade, a gestão e a maior parte do trabalho vêm de pessoas que mantêm entre si vínculos de sangue ou de casamento”.

Percebe-se, no entanto, que embora haja entendimentos diferenciados, em todas as definições e conceitos sobre a agricultura familiar é comum encontrar alguns fatores como trabalho, família e produção (não necessariamente ligada exclusivamente a terra). Esses fatores também estão presentes na definição instituída pela Lei no 11.326, de 24 de julho de 2006 (BRASIL, 2006), mais conhecida como Lei da Agricultura Familiar, segundo a qual é considerado familiar o estabelecimento agropecuário que atende, simultaneamente, aos seguintes requisitos:

I.      não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;

II.    utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;

III.  tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento;

IV.  dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

No Brasil, a agricultura familiar representa a maior categoria de produtores rurais. Enquanto não são publicados os resultados oficiais do Censo Agropecuário 2017, os últimos dados nacionais disponíveis são os do Censo Agropecuário do IBGE de 2006 (levantados em 2007), os quais mostraram que o Brasil possuía 5.175.489 estabelecimentos agropecuários, dos quais 4.367.902 poderiam ser classificados como de agricultores familiares. Isto significa que a agricultura familiar representava 84% do total dos estabelecimentos agropecuários brasileiros e ocupava uma área de pouco mais de 80,3 milhões de hectares, o que representava 24,3% da área total dos estabelecimentos rurais brasileiros. Em se tratando de produção agropecuária, a agricultura familiar representa 38% do valor da produção e 34% do total das receitas do agro (SCHNEIDER, 2014).

Apesar desta grande representatividade, a agricultura familiar não é um bloco compacto e homogêneo (ABRAMOVAY, 1998), pois há subgrupos de agricultores familiares que se encontram em situação de vulnerabilidade. Tendo em vista esse cenário, vários estudos têm abordado a questão da reprodução social da agricultura familiar com o objetivo de compreender os fatores que estão contribuindo para que agricultores deixem suas atividades.

Schneider (2006) afirma que a reprodução social da agricultura familiar está relacionada ao ambiente e ao espaço em que as unidades familiares estão inseridas. Para o autor, a reprodução não é apenas o resultado de um ato da vontade individual ou do coletivo familiar e, tampouco, uma decorrência das pressões econômicas externas do sistema social. A reprodução, em sua argumentação é, acima de tudo, o resultado do processo de intermediação entre os indivíduos-membros com sua família e de ambos interagindo com o ambiente social em que estão imersos. Nesse processo, cabe à família e a seus membros um papel ativo, pois suas decisões, estratégias e ações podem trazer resultados benéficos ou desfavoráveis a sua continuidade e reprodução.

Na mesma perspectiva de Schneider (2006), outro estudo, realizado com agricultores familiares catarinenses, buscou analisar o processo de reprodução social e examinou as dinâmicas demográficas e ocupacionais e o processo de mercantilização que vem ocorrendo desde a década de 1980. Esse estudo concluiu que, no cenário analisado, configurou-se um arranjo no qual o estabelecimento é pluriativo, ou seja, a unidade de produção e reprodução possui várias fontes de renda, mas, ao mesmo tempo, a produção agropecuária prevalece especializada. O estudo deixa uma questão aberta: até que ponto este “caminho”, como se pode verificar, não vai ameaçar a agricultura familiar da região, seus recursos naturais, bem como a reprodução social de um universo ainda maior de famílias? (SILVA; MIELITZ; XAVIER, 2013). O estudo aponta alguns fenômenos demográficos da amostra examinada, quais sejam: masculinização, envelhecimento e êxodo “seletivo”, no entanto, não avança no sentido de apontar suas causas, embora deixe evidente a preocupação com o processo de reprodução social da agricultura familiar, especialmente num contexto de especialização das atividades.

Também preocupados com os efeitos que a especialização de atividades (e o enfoque em ganhos de escala) causam na agricultura familiar, Gazolla e Schneider (2007) analisaram o papel da produção de alimentos para o autoconsumo na reprodução social de agricultores familiares. Para os autores, a produção para autoconsumo torna-se essencial, visto estar intimamente ligada à continuidade da reprodução social e alimentar dos membros do grupo doméstico. A produção para autoconsumo é importante para as unidades familiares na medida em que propicia as principais dimensões da segurança alimentar.

Questões econômicas também estão relacionadas à vulnerabilidade na agricultura familiar. Guanziroli et al. (2001) fizeram uma ampla compilação de dados para avaliar o perfil da agricultura brasileira e apontaram tipologias de agricultores familiares em vários aspectos: quanto à renda monetária, os pesquisadores classificaram os agricultores em quatro grupos pautados em níveis de capitalização, dentre os quais, o grupo D foi chamado de descapitalizado e indicado como vulnerável, o que representa risco à reprodução social.

De acordo com a abordagem das capacitações de Sem (1999), a vulnerabilidade social é consequência da redução de liberdades. Nesse sentido, Ellis (2000) trouxe uma importante contribuição para o tema ao publicar seus estudos sobre os “meios de vida” no meio rural e a diversidade em países em desenvolvimento. Na sua perspectiva, para exercer suas capacitações, o indivíduo precisa de um meio que possibilite condições para o seu desenvolvimento. Por isso, quando o indivíduo ou a família têm seus meios de vida ameaçados, seja por incertezas, riscos ou mudanças, fica comprometida a sua liberdade de exercer suas capacidades, limitando, dessa forma, suas escolhas e possibilidades de reação.

Esta abordagem dos meios de vida (livelihoods) de Ellis (2000) inclui um aporte analítico que permite ponderar as condições de vulnerabilidade ao considerar que as famílias desenvolvem suas estratégias de reprodução social estabelecendo relações entre “ativos” e “atividades”: os ativos podem ser entendidos por bens ou capitais (natural, físico, humano, financeiro e social, também chamado de pentágono de capitais); e as atividades são aquelas desenvolvidas pela família, mediadas pelas instituições e relações sociais. Dessa forma, os agricultores familiares determinam o seu modo de viver em função dos ativos de que dispõem e de suas atividades e as formas de acesso a elas.

Tendo como base o aporte analítico de Ellis (2000), Aquino, Gazolla e Schneider (2016) realizaram um estudo com agricultores familiares gaúchos pobres e concluíram que a situação de pobreza dessa categoria é multidimensional, perpassando por carências em vários componentes do pentágono de capitais constitutivo da plataforma de ativos, que é a base para ampliar as liberdades de escolha das famílias em situação de vulnerabilidade social. Em função de múltiplas carências produtivas, os autores inferem que aqueles agricultores familiares necessitam de políticas e ações que favoreçam um leque variado de estratégias de reprodução social e de sobrevivência, sejam elas agrícolas ou não agrícolas, objetivando abarcar a grande heterogeneidade socioeconômica.

Por meio desse estudo realizado com agricultores familiares gaúchos, ficou evidente a aplicabilidade do aporte metodológico-analítico (framework) de Ellis para analisar as múltiplas carências produtivas utilizando o pentágono de capitais. Esse pentágono é apresentado na Figura 1.

 

Figura 1 – Pentágono de Capitais

Fonte: Adaptado de Ellis (2000, p. 49).

 

O capital natural corresponde aos recursos naturais, tais como a terra, solo, água, fauna, flora. O capital humano se refere às pessoas do conjunto familiar e suas condições, habilidades, atribuições, como escolaridade, conhecimento, habilidades, condições de saúde, capacidade de trabalho, entre outros. Já o capital financeiro está relacionado à disponibilidade de dinheiro, poupança e crédito, bem como à possibilidade de acesso para adquirir bens para a produção ou consumo. O capital físico, que também pode ser chamado de capital construído ou capital econômico, é representado pelos bens materiais, construções, instalações, maquinários, insumos disponíveis, ou seja, são bens advindos do processo de produção econômica. Por fim, o capital social corresponde a redes de reciprocidade, confiança e associações nas quais as pessoas participam e, a partir das quais, podem receber apoio direto ou indireto para o seu sustento, como associações de moradores, sindicatos, e cooperativas (ELLIS, 2000).

Ao detalhar os tipos de ativos, as atividades e as estratégias de subsistência (livelihoods), o autor afirma que algumas situações atípicas, inesperadas pelos agricultores, tais como perdas de rebanhos por doenças, frustrações de safras por secas ou enchentes, ou situações que limitam a capacidade de trabalho da família, como doenças ou ausência de sucessores, entre outros, causam mudanças na sustentabilidade dos meios de vida da família. A essas mudanças, chama de “choques”, os quais provocam a perda de acesso aos ativos e causam efeito imediato na viabilidade de sustentação individual e das famílias de agricultores (ELLIS, 2000).

Nesse contexto, para Niederle e Grisa (2008), o agricultor, diante desses choques ou crises, adota estratégias reativas ou adaptativas. As adaptativas se expressam como processos voluntários para a diversificação dos meios de vida. Já as reativas (ou de enfrentamento), manifestam-se como uma alternativa advinda da necessidade de sobrevivência familiar perante a um contexto de vulnerabilidade.

Para Ellis (2000), uma unidade familiar pode adotar diferentes estratégias diante da crise, como busca esquematizar a seguinte sequência:

1.     em primeiro lugar, a estratégia é diversificar as fontes de renda e atividades;

2.     depois, amplia as suas relações sociais de reciprocidade baseadas no parentesco e na comunidade (capital social);

3.     em terceiro lugar, reduz o tamanho da família por meio da migração temporária de alguns membros;

4.     em quarto lugar, vendem-se alguns bens da propriedade como: parte das terras, maquinários, plantel de animais;

5.     finalmente, como quinta e última estratégia ante a crise, vendem-se a própria propriedade e os demais bens, abandonando, talvez, definitivamente a atividade agrícola.

 

Diante do exposto nesta seção, verifica-se que a agricultura familiar não é um bloco homogêneo e vários estudos demonstram vulnerabilidades de alguns subgrupos. Considerando o aporte metodológico e analítico proposto por Ellis (2000), as vulnerabilidades são consequências de mudanças ocorridas nos meios de vida dos agricultores, causadas por choques ou crises que, por sua vez, apresentam-se como carências no acesso aos capitais (humano, social, físico, financeiro e natural). Várias podem ser as reações a essas crises para manter a sobrevivência, inclusive, abandonar as atividades rurais.

Se incluirmos no debate a ideia de que a sustentabilidade é multidimensional (SACHS, 2009) e que abrange aspectos ambientais, sociais, econômicos, políticos, culturais, e tem uma perspectiva de continuidade na sua manutenção para as gerações futuras (BRUNDTLAND, 1991), pode-se concluir que no contexto da agricultura familiar, o ápice da insustentabilidade é a descontinuidade, ou seja, a saída da família da agricultura, fenômeno também chamado de êxodo rural.

 

O êxodo rural

O êxodo rural é o processo de migração rural-urbana, ou seja, o deslocamento de populações do campo para as cidades levando à intensa urbanização como consequência (PORTELA; VESENTINI, 2009). Analisando os dados censitários, percebe-se que no Brasil a proporção de população rural em 2010 reduziu para menos de um quarto do que tinha em 1950. A Figura 2 apresenta essa evolução, comparando dados do Brasil, da Região Sul do país, do Paraná e do município de Marechal Cândido Rondon, que faz parte da amostragem deste estudo, bem como da mesorregião Oeste paranaense, na qual o município está geograficamente situado.

 

Figura 2 – Gráfico indicando evolução da proporção de população censitária rural

Fonte: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

 

Percebe-se que em Marechal Cândido Rondon, o processo de urbanização ocorreu mais tarde e com menos intensidade do que na média da mesorregião Oeste do estado, da Região Sul e do país. No entanto, em 2010 a representatividade de sua população rural praticamente equivale à média nacional, demonstrando assim que o município também vem se deparando com a saída de agricultores do campo.

Em função da vulnerabilidade de pequenos agricultores, camponeses, como discutido na seção anterior, e da grande representatividade da agricultura familiar entre os produtores rurais, certamente o êxodo rural atinge também a agricultura familiar.

Quando se aborda o tema do êxodo rural, e da urbanização, é necessário considerar os debates quanto à definição de rural e de urbano, de cidade e de campo, que ainda não é assunto pacificado na academia.

Para Abramovay (2000), há três formas dominantes de delimitação do rural: primeiro pela delimitação política-administrativa segundo a qual uma localidade pode ser considerada rural ou urbana em determinado dispositivo legal, como no Plano Diretor das cidades. Outra forma é pela ocupação econômica da população, na qual o urbano e o rural são definidos pela natureza das atividades econômicas: Rural (setor primário) e Urbano (setor secundário e terciário). E a terceira forma de diferenciação é por meio de um patamar demográfico ou populacional, segundo o qual o meio rural se caracteriza pela dispersão e o urbano, pela aglomeração.

Bernardelli (2013) fez uma ampla análise histórica sobre os principais autores que se debruçaram em estudar as diferenças entre o rural e o urbano e concluiu que não se consegue “apreender o urbano e o rural, a cidade e o campo, a cidade e o urbano, a partir de leituras dicotômicas”. Os processos, passados e em curso, que (re)produzem e (re)definem o espaço devem ser pensados a partir de múltiplas dimensões (sociais, políticas, ideológicas, econômicas, históricas, culturais), extrapolando, portanto, definições estanques, para poder apreendê-los em sua totalidade.

O mundo rural é um lugar de vida que se define como um espaço singular e um ator coletivo. Em cada caso, as tramas espaciais e sociais e as trajetórias de desenvolvimento dão o sentido das relações campo-cidade, construídas no plano da complementariedade e da integração. A intensidade da vida local depende, em grande parte, das possibilidades econômicas, sociais e culturais acessíveis à população das áreas rurais, de modo especial, as oportunidades de trabalho e acesso a bens que constituem os fundamentos indispensáveis para a própria permanência no campo (WANDERLEY, 2009b).

Essas afirmações apontam para a compreensão de que há uma relação direta entre as vulnerabilidades no campo e o êxodo rural. Nesse sentido, Portela e Vesentini (2009) apresentam os motivos individuais que levam as pessoas a se deslocarem para as cidades:

a)    a influência da pressão demográfica sobre os recursos: situações em que uma pequena parcela de terra não é suficiente para prover o sustento de uma família em crescimento; ou por questões de divisão de herança a parcela que cabe a cada herdeiro se torna insuficiente para o sustento de cada um, que tende a constituir nova família;

b)    as pressões econômicas: quando grandes proprietários forçam pequenos agricultores a venderem suas terras;

c)     a ilusão de uma vida melhor nos grandes centros urbanos: a atração por um estilo de vida baseado no consumo e amplamente divulgado na mídia, atração sofrida especialmente pelos jovens.

Ainda, segundo os autores, essas motivações variam de lugar para lugar, sendo que em algumas áreas predomina a mecanização das atividades agrícolas com o aumento do desemprego no campo e, em outras, prevalece a expansão das grandes propriedades com a aquisição de áreas de pequenos proprietários, e em outras ainda pode predominar o elevado crescimento demográfico das famílias rurais e a insuficiência de terra para todos (PORTELA; VESENTINI, 2009).

Singer (1990), quando aponta as causas das migrações, conclui que, por se tratar de um processo social, deve-se distinguir os “motivos” para migrar (que são individuais) das “causas” da migração (que são estruturais). Cabe ressaltar que, neste estudo, busca-se identificar os principais motivos (individuais) que contribuíram para a decisão dos agricultores de deixar a agricultura, vendendo a propriedade rural.

 

Variáveis relacionadas com a sustentabilidade na agricultura familiar

Dado o diálogo sobre as questões de vulnerabilidade na agricultura familiar e as situações que podem levar à insustentabilidade e ao êxodo rural, na busca por respostas à problemática proposta neste estudo, tornou-se necessária a elaboração de um quadro de variáveis para subsidiar o levantamento de dados com os ex-agricultores.

Para tanto, foi realizada uma atividade interdisciplinar e participativa em que se discutiu a insustentabilidade na agricultura familiar com o objetivo de levantar variáveis que pudessem estar relacionadas à saída do agricultor familiar da sua atividade. Participaram dessa dinâmica 21 doutorandos em Desenvolvimento Rural Sustentável, e a atividade pôde ser considerada interdisciplinar, pois no grupo havia graduados em ciências econômicas, administração, arquitetura e urbanismo, engenharia florestal, agronomia, direito, filosofia, ciências contábeis, biologia, tecnologia em análise e desenvolvimento de sistemas e engenharia civil. Os integrantes deste mesmo grupo possuem mestrado em desenvolvimento regional e agronegócio, administração, construção civil, ciências florestais, filosofia do direito, agroecologia, desenvolvimento rural sustentável e tecnologias computacionais para o agronegócio.

Por meio dessa atividade, desenvolvida no segundo semestre letivo de 2018, foi possível elaborar um brainstorming, que é representado pela Figura 3, a seguir.

 

 

Figura 3Word cloud criado a partir de brainstorming para identificar, de forma acadêmica, os motivos que levam agricultores familiares a deixar suas atividades

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

 

Com a sistematização da discussão, foram selecionadas 32 variáveis que têm relação com a sustentabilidade e que estejam relacionadas ao Pentágono de Capitais de Ellis (2000), conforme apresentadas na Tabela 1, abaixo.

 

 

 

Tabela 1 – Variáveis relacionadas com a sustentabilidade na agricultura familiar

No

Nome da Variável

Descrição da Variável

Tipo de Capital[3]

1

Escolaridade

Nível de escolaridade das pessoas que não estão em idade escolar.

Humano

2

Acesso à Educação

Acesso das crianças e adolescentes em idade escolar, e acesso a transporte escolar.

Social

3

Saúde e Capacidade de Trabalho

Relaciona as condições de saúde à capacidade de trabalho. Analisa se houve problemas de saúde das pessoas da família que forçassem a redução das atividades produtivas.

Humano

4

Acesso à Saúde

Acesso a consultas e exames médicos.

Social

5

Produção de Alimentos

Produção de alimentos para o autoconsumo.

Natural

6

Acesso a Bens e Serviços

Acesso a bens de consumo duráveis (veículo de passeio, geladeira...) e serviços (telefonia, internet...).

Físico

7

Condição de Moradia

Opinião do agricultor sobre as condições de moradia.

Físico

8

Satisfação com o meio rural

Nível de satisfação do agricultor, por estar na condição de produtor rural, em aspectos gerais, de qualidade de vida, renda, entre outros.

Social

9

Sucessão Familiar

Existência e interesse de herdeiros em continuar na agricultura.

Humano

10

Produtividade

Volume de produção das atividades, a sua capacidade instalada.

Físico

11

Rentabilidade

Resultado financeiro (Lucro ou prejuízo) das atividades.

Financeiro

12

Recursos Disponíveis

Recursos disponíveis para as atividades rurais, tais como: tamanho da propriedade, instalações, maquinários, culturas permanentes, açudes. Busca retratar a capitalização da propriedade em bens que contribuem diretamente com a capacidade de gerar renda.

Natural e Físico

13

Fluxo Financeiro

Frequência em que há a entrada de recursos financeiros.

Financeiro

14

Endividamento

Nível de endividamento relacionado à produção, e pessoal.

Financeiro

15

Gestão e Contabilidade Rural

Planejamento, direção e controle dos gastos e resultados das atividades e também pessoais/familiares.

Financeiro

16

Acesso a terra

Condição de acesso a terra e instalações. Pode ser proprietário e/ou arrendatário, assentado, posseiro...

Natural

17

Força de trabalho familiar

Disponibilidade de mão de obra familiar diante da necessidade para manter as atividades instaladas.

Humano

18

Recursos de outras atividades

Necessidade de injetar recursos de outras atividades (ou aposentadorias) para a subsistência na atividade rural.

Financeiro

19

Qualificação Profissional

Participação em capacitações e treinamentos.

Humano

20

Assistência Técnica

Disponibilidade de assistência técnica para as atividades rurais e/ou Ater.

Humano

21

Crédito Rural

Acesso e utilização de crédito rural.

Financeiro

22

Autogerenciamento

Condição do agricultor familiar em poder decidir o que produzir, como produzir, quais atividades realizar em sua propriedade.

Humano e Social

23

Integração Cívica

Regularidade de documentos pessoais dos integrantes da família.

Social

24

Adequação Jurídica

Regularidade da documentação referente à propriedade.

Social

25

Adequação Trabalhista

Regularidade no cumprimento de deveres relacionados aos funcionários contratados, se for o caso.

Social

26

Adequação Ambiental

Adequação à legislação ambiental: mata ciliar, área de preservação permanente, licenças ambientais...

Natural

27

Disponibilidade de Água

Disponibilidade de água para consumo humano e para a produção.

Natural

28

Qualidade da Água

Qualidade da água disponível para o consumo humano e para a produção.

Natural

29

Dejetos

Destinação adequada dos dejetos produzidos.

Humano

30

Agroquímicos

Utilização adequada de herbicidas e inseticidas, ou o não uso no caso da agroecologia.

Humano

31

Solo: Uso e ocupação

Condições de uso e ocupação do solo, evitando principalmente a erosão.

Natural

32

Práticas Conservacionistas

Adoção de práticas conservacionistas.

Físico

 

Fonte: Elaborado pelos autores. Estas variáveis foram tomadas como parâmetro para a análise dos dados coletados com os ex-agricultores entrevistados.

 

Descrição e análise dos dados

Para identificar e localizar os ex-agricultores, partiu-se do pressuposto de que um agricultor deva possuir o Cadastro de Produtor – CAD/PRO. De acordo com a legislação estadual do estado do Paraná, Norma de Procedimento Fiscal 031/2015 (PARANÁ, 2015), deverão se inscrever no Cadastro de Produtores Rurais – CAD/PRO, antes do início de suas atividades, as pessoas físicas que se dediquem à atividade agropecuária e que pretendam realizar operações relativas à circulação de mercadorias. Para efeito da norma, considera-se produtor rural a pessoa física que se dedica, em caráter permanente ou temporário, às atividades de agricultura, pecuária, silvicultura, aquicultura, exploração, florestal, pesca, bem como à extração de produtos primários vegetais ou animais e que realize operações relativas à circulação de mercadorias.

Um agricultor familiar também se enquadra na norma supracitada quando deixa sua atividade, devendo solicitar a baixa no CAD/PRO na Prefeitura do município em que exercia suas atividades. Assim, como o objeto deste estudo são os ex-agricultores familiares, foi realizada uma consulta à Prefeitura do Município de Marechal Cândido Rondon para identificar os cadastros CAD/PRO que foram baixados entre os anos de 2009 e 2018. Verificou-se que foram baixados nesse período 2.175 cadastros, no entanto, a grande maioria por ajustes de cadastro (erros e centralização de cadastros da mesma pessoa) e transferências temporárias de posse e exploração da área (arrendamento e retorno de arrendamento). Em apenas 474 solicitações de baixa foi informado o motivo de venda da propriedade rural.

No intuito de identificar apenas agricultores que deixaram a sua atividade, realizou-se um cruzamento dos nomes das pessoas que baixaram o cadastro com a relação de produtores com cadastro ativo e foi possível verificar que, do total de vendas, em 186 casos havia outro cadastro ativo, o que pode indicar a venda de parte da propriedade rural ou a venda e a aquisição de outra propriedade. Restaram, portanto, 288 produtores que baixaram o cadastro por motivo de venda e não possuem mais CAD/PRO ativo. Realizou-se, ainda, uma seleção por tamanho da propriedade vendida, na qual foram classificadas 118 que tinham área acima de 5 ha. Esta última seleção teve como objetivo classificar agricultores cujo tamanho da área indicasse que tinham a agricultura como única (ou principal) fonte de renda, o que foi posteriormente confirmado nas entrevistas, excluindo da amostra as propriedades muito pequenas. Desse conjunto, foram entrevistados 45 ex-agricultores, e a Figura 4, adiante, ilustra os critérios de amostragem adotados.

 

 

 

Figura 4 – Critérios de amostragem adotados nesta pesquisa

Uma imagem contendo itens de toalete, creme para a pele

Descrição gerada com alta confiança

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

A partir da seleção da amostra, foram contatados os ex-agricultores por telefone, presencialmente, por meio de aplicativos de trocas de mensagem, ou por redes sociais. Após a confirmação de que a família realmente não possuía mais vínculo com a agricultura e que, de fato, vendera a propriedade rural, utilizou-se a técnica da entrevista semiestruturada para identificar os principais motivos que fizeram com que tomassem a decisão de deixar a agricultura e migrar para o meio urbano. Posteriormente, essas motivações foram relacionadas às variáveis predefinidas, de forma dicotômica (Possui relação: 0 – Não, 1 – Sim). Cabe ressaltar que a unidade de análise neste estudo é o conjunto familiar que deixou o campo e não os indivíduos que saíram isoladamente.

Na sequência, os dados foram tabulados com o uso de planilha eletrônica e também do pacote estatístico SPSS e, para a avaliação desses dados, optou-se pela análise de conglomerados.

A técnica de análise de conglomerados (cluster analysis), também conhecida como análise de agrupamentos, é uma técnica estatística de interdependência que permite agrupar casos ou variáveis em grupo homogêneos em função do grau de similaridade entre os indivíduos, a partir de variáveis predeterminadas. Tal técnica tem como objetivo principal definir a estrutura dos dados de maneira a alocar as observações mais parecidas no mesmo grupo (FÁVERO et al., 2009). De acordo com os autores, essa técnica pode ser aplicada em todas as áreas do conhecimento humano, desde que o objetivo seja o de segmentar as observações em grupos homogêneos internamente e heterogêneos entre si.

Neste estudo, foi utilizado o método hierárquico aglomerativo por distância média entre os grupos, e a medida de similaridade adotada foi a distância quadrática euclidiana para variáveis dicotômicas, sem a necessidade de padronização (FÁVERO et al., 2009).

Como resultado, foram obtidos quatro agrupamentos, conforme descritos na Figura 5, que representam quatro conjuntos de “principais motivos” apontados pelos agricultores como justificativa por terem deixado suas atividades rurais. Os resultados podem ser traduzidos em quatro perfis distintos de agricultores que deixaram o campo.

               

Figura 5 – Agrupamentos de ex-agricultores e os principais motivos por terem saído do campo

Grupo 1 (58%)

Grupo 2 (20%)

Grupo 3 (16%)

Grupo 4  (7%)

 

96,2%

Sucessão Familiar

 

96,2%

Força de Trabalho Familiar

 

88,5%Saúde e Capacidade de Trabalho

 

61,5%

Recursos Disponíveis

 

38,5% Rentabilidade

 

11,5% Endividamento

 

7,7%

Recursos de Outras Atividades

 

100%

Rentabilidade

 

100%

Recursos Disponíveis

 

66,7%

Produtividade

 

55,6%

Recursos de

Outras Atividades

 

44,4%

Satisfação com

o Meio Rural

 

22,2% Saúde e Capacidade de Trabalho

 

22,2%

Solo: Uso e Ocupação

 

71,4%

Satisfação com o

Meio Rural

 

42,9% Força de Trabalho Familiar

 

42,9%

Outros Fatores

 

28,6%

Acesso a Terra

 

14,3% Saúde e Capacidade de Trabalho

 

14,3% Sucessão Familiar

 

14,3% Recursos Disponíveis

 

14,3%

Adequação Jurídica

 

100% Produtividade

 

100%

Rentabilidade

 

100%

Fluxo Financeiro

 

100% Endividamento

 

33,3%

Satisfação com o Meio Rural

 

33,3%

Recursos Disponíveis

 

33,3%

Gestão e Contabilidade Rural

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

Diante dos resultados, verifica-se que o Grupo 1 representa 58% dos agricultores da amostra que deixaram suas atividades e é caracterizado por famílias de idosos, já aposentados como agricultores, normalmente compostas apenas pelo casal, que em sua grande maioria apresentam problemas de saúde que os impedem de continuar trabalhando. Neste grupo, os filhos (quando há) não têm interesse em continuar na agricultura, tendo em vista que já haviam saído do meio rural e estão engajados em atividades urbanas. Outra característica presente em mais de 60% das famílias que compõem este grupo é o baixo volume de recursos disponíveis (área pequena, baixos investimentos, nível tecnológico baixo, pouco capitalizados), o que torna inviável financeiramente a contratação de funcionários para manter as atividades rurais.

O Grupo 2 representa 20% da amostra de ex-agricultores e tem como característica principal o fato de estarem deixando o meio rural por fatores econômicos e financeiros. Todos deste grupo alegaram estar obtendo renda insuficiente para se manter no campo e possuir baixa disponibilidade de recursos, ou seja, área pequena, baixos investimentos, nível tecnológico baixo, pouco capitalizados. Ainda neste grupo, 66,7% dos entrevistados informaram ter baixa produtividade em suas atividades; 55,6% dependiam de recursos de outras atividades, isto é, trabalhavam na propriedade em regime de part-time para manter a subsistência; e ainda, 44,4% alegaram insatisfação com a vida no meio rural. As variáveis que diferenciam os Grupos 1 e 2 se devem ao fato de que, ao contrário do primeiro, neste grupo poucos (11,1%) alegaram problemas de saúde e falta de sucessão familiar. O Grupo 2 é composto por famílias mais jovens do que o Grupo 1.

Já o terceiro grupo tem como característica as seguintes variáveis: 71,4% dos entrevistados alegaram ter como principal motivo a insatisfação com o meio rural; 42,9% com poucas pessoas para manter as atividades instaladas ou exploradas; 28,6% com problemas de acesso a terra, que ocorre quando um dos herdeiros precisa adquirir a parte da herança de seus irmãos ou demais herdeiros mas não possui recursos financeiros para tal e, aliado a isso, o fato de serem propriedades pequenas, torna a divisão da área entre os herdeiros inviável. Outros fatores para terem deixado a agricultura também foram mencionados por 42,9%.

O quarto e último grupo representa 7% da amostra, entretanto, é composto por apenas três ex-agricultores e se caracteriza pela baixa produtividade, pela baixa rentabilidade, pelo baixo fluxo financeiro por depender de atividades que geram recursos semestralmente ou por safra, o que provocou um consequente endividamento. A soma destes fatores forçou esses agricultores a venderem suas propriedades rurais.

Analisando os dados sob a ótica dos meios de vida de Ellis (2000), em especial, comparando as carências nos acessos dos agricultores familiares aos capitais, e considerando a associação entre as variáveis e o tipo de capital apresentado na Tabela 1, percebe-se que as principais carências dos ex-agricultores se concentram no capital humano, no capital físico e no natural, como representa a Figura 6. Dentre os entrevistados, 73% apontaram carências no capital humano, 67% no capital físico, 64% no capital natural, 49% no capital financeiro e apenas 31% no capital social.

 

Figura 6 – Pentágono de Capitais dos ex-agricultores entrevistados no estudo

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

As carências no capital humano são demarcadas pelos problemas de saúde, redução da capacidade de trabalho, ausência de sucessores e força de trabalho familiar insuficiente para manter as atividades. Já as carências no capital físico se referem à baixa disponibilidade de recursos para as atividades rurais, tais como: área da propriedade muito pequena, poucos investimentos em instalações, maquinários, culturas permanentes; e baixa produtividade, que pode ser causa ou consequência de pouca disponibilidade de recursos materiais e financeiros. Quanto ao capital natural, as carências se referem à baixa qualidade e produtividade do solo, inviabilizando o cultivo em partes consideráveis da área dos imóveis, bem como às dificuldades de acesso a terra, nos casos em que os herdeiros não têm condições de adquirir as parcelas pertencentes aos outros herdeiros, restando a alternativa de vender toda a área e repartir a herança em dinheiro.

 

Considerações finais

Uma das conclusões deste estudo é a de que está ocorrendo um processo de mudança social entre famílias de agricultores familiares em virtude de sua saída do meio rural. Apesar de a amostra ser local, é possível que esse êxodo também esteja ocorrendo, em maior ou menor intensidade, em outras regiões. Cabe, neste ponto, citar Schneider (2007) quando afirma que o estudioso do desenvolvimento deve procurar saber ou responder os motivos ou as causas que provocam as mudanças, entender como elas ocorrem, conhecer os fatores que produzem a mudança.

Nesse sentido, a atividade interdisciplinar e participativa realizada pelos doutorandos em Desenvolvimento Rural Sustentável permitiu discutir e selecionar algumas variáveis que têm relação com a sustentabilidade na agricultura familiar, considerando o objetivo deste estudo de analisar os fatores que estão contribuindo para a saída das famílias de agricultores de suas atividades rurais. Ao funcionarem como indicadores, estas variáveis quando bem avaliadas (empiricamente) em uma propriedade rural, indicam a sustentabilidade mas do contrário, quando recebem avaliação ruim, vão indicar a insustentabilidade.

Pautando-se numa amostra de 45 ex-agricultores familiares do município de Marechal Cândido Rondon que deixaram suas atividades e venderam a propriedade rural nos últimos 10 anos, foi possível identificar os principais motivos que os fizeram deixar o campo. Estes motivos foram confrontados com as variáveis predefinidas, bem como com o tipo de capital (humano, social, natural, físico e financeiro) correspondente a essa motivação.

Foi possível identificar que não há motivações isoladas e sim em combinações que culminam com o êxodo rural. Por meio da análise de agrupamentos (cluster analysis) foram identificados quatro perfis distintos de agricultores familiares que deixaram suas atividades: o primeiro grupo é caracterizado por famílias de idosos, normalmente apenas o casal, com problemas de saúde, com força de trabalho familiar insuficiente, sem sucessão familiar e com baixo nível de recursos disponíveis, ou seja, com uma área cultivável pequena, com instalações insuficientes e descapitalizadas, o que inviabiliza a contratação de mão de obra de terceiros.

O segundo grupo, que também apresenta baixo nível de recursos disponíveis, além de baixa rentabilidade e produtividade, tem dependência de recursos de outras atividades para manter a subsistência da família. Já no terceiro grupo, observou-se baixo nível de satisfação com a vida no campo, pouca força de trabalho familiar, dificuldades no acesso a terra, incluindo a divisão de herança, e fatores como questões conjugais, problemas jurídicos, dentre outros. O quarto e último grupo apresenta baixa produtividade e rentabilidade, problemas com o fluxo financeiro e alto endividamento.

Quanto ao estoque de ativos (ELLIS, 2000), verificou-se que as principais carências das famílias que deixaram o campo estão no capital humano, no natural e no físico, o que corrobora as conclusões de Aquino, Gazolla e Schneider (2016) no que tange às múltiplas carências produtivas.

Naturalmente, o estudo também apresenta suas limitações, principalmente em função do recorte espacial, e as restrições para a generalização dos resultados. No entanto, por se tratar de um processo social de mudança, torna-se inviável a investigação por meio de dados secundários e estatísticas macroeconômicas.

De maneira geral, pode-se concluir que os diversos fatores apontados neste estudo estão contribuindo para o aumento da vulnerabilidade dos meios de vida dos agricultores familiares entrevistados, que provoca a insustentabilidade (multidimensional) e culmina com a saída definitiva dos agricultores do campo, o que se pode chamar de êxodo rural contemporâneo.

 

 

 

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Resumo: (A insustentabilidade na agricultura familiar e o êxodo rural contemporâneo). A agricultura familiar se configura, atualmente, como uma parcela de grande representatividade entre os produtores rurais brasileiros, no entanto, não se trata de um bloco homogêneo, e alguns de seus subgrupos enfrentam situações de vulnerabilidade. Considera-se vulnerabilidade, neste estudo, uma consequência da redução de acesso a ativos como capital humano, social, físico, financeiro e natural (ELLIS, 2000), sem os quais os agricultores familiares ficam em situação de extrema dificuldade, tornando-se insustentável sua sobrevivência no campo e deixando-lhes como única estratégia o êxodo rural. Assim entendido, este estudo tem como objetivo analisar por que os agricultores familiares da região de Marechal Candido Rondon estão deixando suas atividades, quais fatores levaram a isso e quais as carências em seus ativos. Para tanto, organizou-se um estudo por meio de entrevistas com ex-agricultores e, ao avaliar os dados, concluiu-se que as motivações para o êxodo rural contemporâneo são multidimensionais, sendo possível, pela análise de cluster, identificar quatro perfis distintos de motivações, bem como que as principais carências se apresentam no capital humano e físico.

Palavras-chave: êxodo rural; agricultura familiar; insustentabilidade.

 

Abstract: (Unsustainability in family farms and the present rural exodus). Family farming represents a large share of Brazilian rural producers. However, it is not a homogeneous group and some of its subgroups face situations of vulnerability. In this study, vulnerability is considered a consequence of reduced access to human, social, physical, financial and natural capital (ELLIS, 2000). Without this access, family farmers end up in a difficult situation and their survival in the countryside becomes unsustainable, leaving rural exodus as the only option. Thus, this study aims to analyze why family farmers in the Marechal Candido Rondon region are leaving their activities, what factors led them to do this and what are the deficiencies in their assets. For this purpose, interviews with former farmers were carried out, and in analyzing the data, it was concluded that the motivations for rural exodus today are multidimensional. Cluster analysis enabled the identification of four distinct motivational profiles as well as the principal shortcomings in human and physical capital.

Keywords: rural exodus; family farms; unsustainable.

 

 

 

Recebido em abril de 2019.

Aceito em maio de 2019.

 



[1]  Doutorando em Desenvolvimento Rural Sustentável e professor assistente do Curso de Ciências Contábeis da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). E-mail: prof.andrefernando@gmail.com.

[2] Doutorado no Programa de Pós-graduação em Agronomia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e professor associado nos cursos de graduação em Agronomia e Zootecnia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). E-mail: nardel.silva@unioeste.br.

[3] Tipo de Capital apresentado no Pentágono de Capitais de Ellis (2000).