ESA_logo.png                                     Recebido: 04.out.2023   •    Aceito: 01.abr.2024   •    Publicado: 10.maio.2024                                                                                                                                                                                                                                                   

 

‘Uma das coisas que mais agrega valor é o orgânico’ – Novas trajetórias e singularidades no mercado dos produtos orgânicos

‘One of the things that adds the most value is organic’: New trajectories and singularities in the organic products market

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Jéssica Maria Rosa Lucion[1]

 

 

 

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Guilherme Francisco Waterloo Radomsky[2]

 

 

 

 

 

https://doi.org/10.36920/esa32-1_02   

 

 

 

 

Resumo: Durante sua regulamentação e institucionalização, os produtos orgânicos assumiram novas trajetórias e significados com o surgimento de um mercado mais variado, focado em públicos específicos e em novos referenciais de qualificação. Neste trabalho objetivamos desvelar alguns dos novos significados e distintos referenciais de qualificação assumidos pelos produtos orgânicos a partir da análise das suas novas trajetórias e singularidades em um mercado cada vez mais flexível e dinâmico, com um leque de atores mais amplo e heterogêneo e com produtos diferenciados circulando e gravitando em torno do orgânico, mas não fixos ou dependentes deste significado. A partir de dados de fontes primárias e secundárias acerca dos processos e experiências de singularização desses produtos, buscamos demonstrar que, ao longo do processo de regulamentação e institucionalização da produção orgânica, o “orgânico”, além de ser mercantilizado, assume outros significados que se sobrepõem a ele, deixando até mesmo de ser orgânico ou, eventualmente, esta característica perde sua centralidade. Na análise, destacamos as feiras de negócio com foco nesses produtos, sua entrada em grandes empresas alimentares e varejistas, os produtos orgânicos ultraprocessados e sua aproximação com outros referenciais de qualificação como veganos, diets e lights.

Palavras-chave: produtos orgânicos; singularização; qualificação.

 

Abstract: As they were regulated and institutionalized, organic products took on new trajectories and meanings with the emergence of a more varied market focusing on specific audiences and new qualification references. In this paper we investigate some of the new meanings and different qualifications organic products have assumed by analyzing their new trajectories and singularities within an increasingly flexible and dynamic market containing wider and more heterogeneous range of actors and distinct products that circulate around the organic concept but are neither rigidly defined by or dependent upon this meaning. Using data from primary and secondary sources on how these products were singularized, we attempt to demonstrate that throughout the process of regulating and institutionalizing organic products, “organic” has not only become commodified but also assumed other overlapping meanings, with this characteristic potentially becoming less central or products even ceasing altogether to be organic. In our analysis we highlight trade fairs that focus on these products, their entry into large food companies and retailers, ultra-processed organic products, and how they approximate other qualification references (such as the concepts of vegan, diet, and light).

Keywords: organic products; singularization; qualification.

 

 

 

 

Introdução

De uma concepção filosófica, passando por redes informais de produção e consumo, os produtos orgânicos[3] se tornaram alvo de transações globais e de constantes regulamentações, assumindo novas trajetórias e significados. Vemos o surgimento de um mercado de produtos orgânicos cada vez mais flexível e dinâmico, com um leque de atores amplo e heterogêneo, focado em públicos específicos e em novos referenciais de qualificação, com produtos diferenciados e singularizados que circulam e gravitam em torno do “orgânico”, mas que não são fixos ou dependentes deste significado.

De acordo com Lima et al. (2019), grandes corporações multinacionais do setor agroalimentar passaram a reformular produtos criando “linhas orgânicas”, a adquirir empresas menores de produtos orgânicos e a aproximar-se de startups e e-commerces para inserir mais rapidamente seus produtos no mercado. Essas inovações ressignificam o conceito de produto orgânico ao nos apresentar o advento de produtos orgânicos ultraprocessados, o surgimento de feiras de negócio com foco nos produtos orgânicos, o aparecimento de cosméticos, produtos de limpeza, de higiene e para animais, entre outros, também orgânicos, e sua aproximação com outras singularidades, como os produtos veganos, diets e lights.

O “orgânico” esteve inicialmente associado a concepções filosóficas que, a partir da década de 1920, questionavam avanços científicos na área da química e da biologia e que vieram a compor o projeto de modernização agropecuária algumas décadas depois. Na década de 1960 este projeto passou a ser alvo de críticas ético-cívicas, ecológicas, epidemiológicas e estéticas que envolveram uma ecologização das mentalidades (Viola, 1987) associada ao aumento da preocupação dos consumidores com questões ambientais e de saúde e bem-estar animal, abrindo portas para o surgimento de redes alternativas de produção e consumo.

A partir da década de 1970 a produção orgânica começa a se expandir consideravelmente, principalmente na Europa, juntamente com a criação da Federação Internacional dos Movimentos da Agricultura Orgânica (Ifoam) e das primeiras regulamentações internacionais e sistemas de conformidade orgânica. Desse momento em diante o “orgânico” assiste à sua primeira mudança de trajetória: de uma concepção filosófica e elemento de crítica, passa a ser reconhecido como um possível modelo de produção agropecuária.

Na década de 1990, foi instituída pela Comunidade dos Estados Europeus a primeira regulamentação no âmbito do comércio internacional para os produtos orgânicos em que se estabeleceram normas e padrões de produção, processamento, comercialização e importação, criando regras de controle e qualidade com base em auditorias externas. Essas regulamentações foram tomadas como modelo em diversos países e culminaram na formação de um sistema globalizado de comércio de orgânicos e na ascensão dos processos de certificação por meio de auditorias externas.[4] Esse é um segundo e importante momento de mudança na trajetória dos orgânicos: o cenário das redes locais e informais de produção e consumo começou a se transformar em um sistema de comércio global, regulado e formal.

Como Kopytoff (2008) e Appadurai (2008) apontam, as “coisas” possuem uma biografia e trajetória social que muda de significado ao longo de diferentes contextos. Pela análise dessa trajetória é possível identificar as transações e cálculos materiais e simbólicos que dão significado ao que é “orgânico” e os processos de qualificação, singularização e mercantilização a ele inerentes. Diante disso, temos como foco as recentes transformações e singularidades que permeiam a trajetória dos produtos orgânicos, buscando refletir em que medida estes vão deixando de ser apenas orgânicos e se tornando também veganos, lights, diets, entre outros, passando a ser vistos como mais um elemento que pode agregar valor comercial aos produtos. Assim, nosso objetivo é desvelar elementos socioculturais que promovem movimentações físicas e simbólicas em torno do “orgânico” e que se envolvem com a construção deste mercado no Brasil, buscando contribuir com a análise de como diferentes atores vêm transformando a forma de produzir, distribuir e comercializar produtos orgânicos e trazendo à tona os novos significados que estes assumem em contextos distintos.

Os trabalhos de Boltanski e colaboradores – citados adiante – são importantes para esta pesquisa e alguns dos conceitos dessas obras acompanharão a análise que segue. Em nossa visão, a capacidade do mercado de incorporar as críticas é ponto fundamental, e o argumento desenvolvido é que os orgânicos, tendo surgido associados a modos de vida alternativos e ecológicos, foram incorporados nos mercados capitalistas, ou seja, houve a capacidade de internalização da crítica (Boltanski; Thévenot, 1991; Boltanski; Chiapello, 2009).[5] Também com os trabalhos de Boltanski e outros pesquisadores que no Brasil têm desenvolvido investigações nessa linha de argumentação mostraremos como se modificam as formas de entendimento a respeito de como dispositivos, artefatos e normas performam relações econômicas.

Do ponto de vista metodológico, o trabalho tem caráter qualitativo. O foco nas inovações no âmbito do mercado de produtos orgânicos se justifica por se tratar de elementos ainda pouco explorados em outras pesquisas que tratam sobre este universo: absorção dos produtos orgânicos por grandes redes de supermercado e a criação por elas de linhas específicas para esses produtos; a organização de grandes feiras de negócio voltadas aos produtos orgânicos e de produtos não alimentares como cosméticos e produtos de limpeza; produtos orgânicos voltados para animais; novos canais de comercialização desses produtos, como e-commerces; e o surgimento de uma variedade de produtos orgânicos ultraprocessados.

Os dados primários foram gerados inicialmente em entrevistas com empresas certificadoras de produtos orgânicos, presencial e virtualmente, e uma primeira visita à Biofach e à NaturalTech em 2017, que ocorrem concomitantemente em São Paulo/SP, nas quais foram realizadas as primeiras entrevistas, de cunho informal, com empresas que produzem e comercializam produtos orgânicos processados. Como será descrito adiante, a Biofach é o principal evento do mercado orgânico no Brasil e na América Latina, e a NaturalTech a maior feira de negócios de produtos naturais do continente sul-americano, onde são comercializados diversos produtos que também são orgânicos. a

Em 2018 foi realizada uma nova visita a estas feiras com observações e coleta de materiais publicitários nos expositores. Na ocasião também foi possível acompanhar expositores, produtores, comerciantes e consumidores de produtos orgânicos, além de palestras e espaços de debates organizados no evento. Durante os anos de 2019 e 2020 foram elaboradas entrevistas com representantes da Associação de promoção dos orgânicos, a Organis, na cidade de Curitiba/PR, com uma empresa de processamento de banana orgânica do Litoral Norte do Rio Grande do Sul (empresa com foco em produtos lights e naturais) e com a Cooperativa dos Produtores Orgânicos Catarinenses (Coopervida), sediada na cidade de Praia Grande/SC. Por fim, em 2020, foi realizada uma entrevista por e-mail com o proprietário de um comércio varejista de produtos orgânicos de Vitória/ES, que possui também um e-commerce.

A pesquisa de campo com materiais e dados secundários compreendeu, inicialmente, o levantamento das regulamentações em torno da produção de orgânicos no Brasil, por meio de materiais disponíveis no site do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Também foram analisados os dados quantitativos da pesquisa realizada pela Organis em 2019 acerca do perfil dos consumidores de produtos orgânicos no Brasil (Organis, 2021). Por fim, foram analisados materiais publicitários e imagens de embalagens e rótulos de variados produtos orgânicos coletados nos sites das empresas produtoras e durante as visitas à Biofach, além de reportagens sobre a produção e mercado orgânicos publicadas em sites de jornais e revistas, e sites e redes sociais de algumas empresas como o Grupo MJ Maciel Agro.

Para darmos conta dos objetivos, o texto se estrutura da seguinte forma: iniciamos com um breve resgate histórico sobre a regulamentação da produção de orgânicos no Brasil e alguns dos conflitos a ela inerentes, destacando-se a atuação de dispositivos e artefatos como selos de certificação na qualificação desses produtos; posteriormente damos ênfase às inovações e às novas singularidades envolvendo esse mercado como o advento dos produtos orgânicos ultraprocessados, o surgimento de feiras de negócio com foco nos produtos orgânicos, a criação de mercados virtuais (e-commerce) e a aproximação dos orgânicos com outras singularidades, como os produtos veganos, diets, lights, entre outros. Por fim, destacamos elementos importantes para se compreender em que medida o “orgânico” vem sendo utilizado como parte de estratégias de marketing para agregar valor a alguns produtos afastando-se de uma visão mais sistêmica, próxima ao sentido “original” que os produtos possuíam.

 

Os orgânicos ‘atravessam a rua’Atuação de dispositivos, mecanismos e artefatos na construção do ‘orgânico’

No Brasil, até o final da década de 1980, não se utilizava a terminologia “produção orgânica”, mas sim produção alternativa e, posteriormente, ecológica ou agroecológica. Os produtos oriundos circulavam por redes ou cadeias curtas em que a confiança se estabelecia direta e informalmente (Schneider; Gazolla, 2017). A regulamentação e a fiscalização dos produtos eram conduzidas por associações de produtores, ONGs, cooperativas de consumidores e técnicos que trabalhavam em prol da promoção desses sistemas de produção. Como a comercialização era direta e informal, não havia grandes preocupações com um controle protocolar da qualidade dos produtos ou com a necessidade de certificá-los.

Segundo Medaets e Fonseca (2005), no início da década de 1990, com a consolidação de normas internacionais para a produção orgânica, o Brasil passa a ser pressionado para adotar tais normativas a fim de operacionalizar as exportações de produtos orgânicos. A partir de então, começam a surgir no país arranjos normativos para o reconhecimento de critérios de qualidade, a formalização dos termos “orgânico e produção orgânica” e a criação de sistemas de conformidade e certificação orgânica.

Com a exigência inicial dada pela Instrução Normativa no 7/1999 (Brasil, 1999) de que os produtos orgânicos deveriam ser certificados para que pudessem ser comercializados e de que somente instituições externas e credenciadas poderiam realizar a verificação da conformidade orgânica, as ONGs, associações e, sobretudo, pequenos produtores, que até então envolviam-se com redes informais, necessitaram reorganizar seus arranjos institucionais para se adaptarem à nova realidade do mercado. Muitos ficaram à margem em virtude dos custos, burocracias e complexidade dos novos sistemas de acreditação (Fonseca, 2005). A partir de então, disputas normativas passaram a girar em torno dos impactos que a adoção de um sistema de verificação único, e nos moldes de uma certificação por terceira parte com altos custos econômicos e complexidade, traria, principalmente, para os pequenos produtores.

Assim, estes pautaram pelo reconhecimento de outros mecanismos de verificação da qualidade orgânica mais adaptados à sua realidade. Em 2003, a Lei no 10.831, conhecida como a Lei dos Orgânicos (BRASIL, 2003), tornou facultativa a certificação por produtores que comercializassem de forma direta, sem intermediários. Neste caso, a conformidade orgânica é controlada por meio de Organismos de Controle Social (OCS), registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), aos quais os produtores devem se associar. Com o Decreto no 6.323, de 2007 (BRASIL, 2007), houve também o reconhecimento da atuação de Organismos Participativos (Opacs) na verificação e controle da qualidade orgânica.[6] Assim, o Estado brasileiro passou a reconhecer como mecanismos de controle da qualidade orgânica tanto os Organismos de Avaliação representados pelas certificadoras por auditoria como os Sistemas Participativos e os OCS, sem certificação.

Com esse triplo reconhecimento, o Brasil passa a oportunizar que uma diversidade maior de produtos e propriedades possa ser reconhecida como orgânica e inserida nesse mercado, por outro lado, alguns desses produtos vão encontrar entraves para circular em determinados espaços. Desde 2007, por exemplo, o Brasil discute a possibilidade de equivalência entre a sua regulamentação e a europeia para facilitar o comércio internacional, porém, como representantes de certificadoras relataram em entrevistas à pesquisa, tal equivalência é impossibilitada por questões como a existência da certificação participativa e OCS no Brasil. Em outras palavras, diante de alguns mercados, esses produtos “deixam de ser orgânicos” por não estarem alinhados a padrões de verificação e qualidade internacionalmente reconhecidos. Essas questões ficaram traduzidas na fala de um dos representantes da Rede Ecovida de Agroecologia no Rio Grande do Sul entrevistado para a pesquisa de Lucion (2020, p. 123), sobre a certificação participativa:

[...] eu acho o seguinte, o produto que vai pra feira é ecológico? É. Então ele é ecológico para qualquer mercado, ele não é ecológico só pra feira. [...] então lá em Porto Alegre tem uma OCS que faz uma baita de uma feira, [...], então do outro lado tem um supermercado [...], que vende produto ecológico, mas não pode comprar deles. Quer dizer, o produto deixou de ser orgânico, isso pra mim é um mau senso danado. Eu sempre digo que podemos discutir longamente qual o método que garante a OCS, qual método que garante que aquele produto é orgânico, se ele gera credibilidade ou não. [...] a hora que a gente decide que ele gera credibilidade ele gera pra tudo quanto é mercado, não posso decidir que ele gera credibilidade e botar uma barreira de quilômetros ou mecanismos. Esses em Porto Alegre eu adoro: aqui ele é, atravessou a rua ele deixou de ser. (Grifos nossos)

A fala demonstra que os produtos orgânicos são construídos, significados e ressignificados: um produto controlado por meio de uma OCS torna-se orgânico em determinados contextos (feira de rua), mas ao atravessar a rua para ser vendido em um supermercado deixa de ser orgânico, pois não foi acreditado e certificado pelos mecanismos que, naquele espaço, lhe conferiram o status de produto orgânico.

A partir disso, é importante destacar a importância que os processos de institucionalização e regulamentação tiveram na trajetória dos produtos orgânicos, compondo o que Niederle e Radomsky (2017) denominam de dispositivos de regulação da atividade econômica e que autores como Boltanski (2013) analisaram como parte de uma forma de governança por meio de normas e padrões, a dominação gestionária. Mecanismos institucionais, a exemplos de normas e padrões, associados a artefatos técnicos, como selos de certificação, “performam e ordenam as relações sociais e econômicas, classificam e estabilizam o mundo; criam trajetórias de inovação e desenvolvimento; constrangem e, ao mesmo tempo, potencializam a ação social” (Niederle; Randomsky, 2017, p. 229), e a partir deles determinados atores controlam os mercados por meio desses dispositivos, buscando impor sua forma de ordenamento.

Sendo assim, com base na ordem atualmente institucionalizada, independente do que diferentes atores possam compreender por um produto orgânico, ele se tornará um a partir do momento que se submeter aos padrões legalmente estabelecidos e for avaliado por meio de mecanismos reconhecidos pelo Estado. Para ser considerado orgânico, é necessário submetê-lo “aos formatos das provas estabelecidas” pelos experts (Thévenot, 1997), aqueles que, sob a justificativa da impessoalidade técnica, dominam os dispositivos e os farão, então, atravessar a rua.

Com a institucionalização da produção orgânica, os produtores passaram a se adequar a processos de acompanhamento e fiscalização com os quais não estavam acostumados e ficaram submetidos à necessidade de regras rígidas acerca da denominação e verificação da qualidade orgânica, o que leva muitos dos pequenos produtores a abandonarem o projeto de certificação orgânica para permanecerem trabalhando apenas em feiras livres ou comercializando os produtos como convencionais. Na entrevista realizada com o representante da Coopervida, por exemplo, esta questão ficou evidente quando ele mencionou que por conta de dificuldades, principalmente financeiras, para acessar a certificação orgânica e investir em embalagens e publicidades, muito dos pequenos produtores acabam comercializando seus produtos a preços abaixo do mercado ou abrindo mão da burocracia necessária para a certificação e passam a comercializar seu produto como convencional.

Com isso é possível perceber que a produção orgânica perpassa processos de disputas normativas que irão se estabilizar em torno de normas, padrões e regulamentações que passam a definir, a partir de critérios técnicos e impessoais, o que é um produto orgânico, se ele pode ou não atravessar a rua. Ao ter a possibilidade de atravessar a rua, o produto sofre um processo de transformação, adquire novos referenciais de qualidade, perde sentidos e adquire outros, aumenta ou diminui seu valor simbólico, status ou prestígio e passa a poder circular ou não por determinados lugares. O ato de atravessar a rua representa mais do que oportunidades de mercantilização, são novos significados para o “orgânico”. Por outro lado, produtos que não consigam atravessar a rua podem deixar de ser reconhecidos como tal.

O processo de institucionalização e regulamentação da produção orgânica exigiu a adoção de uma série de normas técnicas que definiram o que seria um sistema de produção orgânico, e esse “desvio” de trajetória (Appadurai, 2008) alçou os produtos ao mercado global, formal e regulado em que novos atores passaram a fazer parte deste universo, como grandes empresas de produção, processamento, distribuição e varejo. Como resultado dessa pesquisa, e que será tema central da análise nas próximas páginas, grandes produtores começam a investir nos orgânicos, empresas de processamento, incluindo multinacionais, criam linhas de produtos orgânicos e supermercados separam espaço nas suas gôndolas para eles, assim vão experimentando novas mudanças de trajetórias e assumindo novos significados.

 

Novas trajetórias e singularidades dos produtos orgânicos

A entrada dos produtos orgânicos num mercado cada vez mais diversificado traz à tona o advento de diversas inovações e sua aproximação com outras singularidades. O orgânico passa a fazer parte de feiras de negócio, ganha canais de comercialização virtuais e capas de revista, vira protagonista no cardápio de restaurantes de chefs reconhecidos e renomados, passa a estar presente em cosméticos, roupas, produtos de higiene e limpeza, entre outros. Em entrevista a esta pesquisa, quando questionado sobre as transformações que a entrada de grandes empresas trouxe para o mercado de orgânicos, o representante da Organis Brasil[7] responde que

o orgânico começou a crescer quando uma visão mais empresarial viu uma oportunidade no orgânico e muita gente critica isso, eu acho positivo, prefiro uma pessoa que tenha um pé de orgânico do que uma pessoa que não tenha nenhum. [...] Se a gente quiser imaginar um mundo cada vez mais orgânico, não temos como pensar com essas empresas de fora. Você via poucos produtos orgânicos, numa loja, numa feirinha, um processado, mas com o passar do tempo eles foram crescendo não só quantitativamente, mas qualitativamente [...].

O artigo “O voraz apetite por orgânicos na indústria”,[8] publicado pela Revista Exame, em junho de 2017, por exemplo, traz alguns dados sobre a atração das grandes empresas para o setor de orgânicos e sobre a dificuldade delas para conseguir matéria-prima em volume suficiente para atender a demanda, o que as tem mobilizado a comprar empresas menores ou até mesmo financiar a transição de produtores para o modo de produção orgânico. Identificamos que essas mudanças são percebidas por produtores “pioneiros” como um caminho arriscado e moralmente ambíguo, talvez porque eles insistam na sua relação com a natureza e fiquem na expectativa de que os demais produtores reconheçam essa relação,[9] ao contrário de outros atores que podem estar correndo atrás de novos atributos para esses produtos pela necessidade de inovação que o mercado exige.[10]

É importante considerar que parte da busca por novos atributos visa atingir os consumidores ego trip que, preocupados com a sua saúde e imagem pessoal, procuram se preservar e se promover de acordo com seu ambiente: beleza, saúde e forma” (Guivant, 2003, p. 77). Os ego trip colaboraram para impulsionar o mercado de produtos orgânicos, fitness, diet, funcionais, entre outros, abrindo espaço para uma imensa variação e combinação de dietas alimentares. Esse conjunto de elementos parece ter mobilizado diversas transformações no mercado de produtos orgânicos, os quais serão objeto de análise aqui, e que aparentemente respondem à diversificação dos consumidores de orgânicos que a literatura referente a outros países já apontou (Lund et al., 2013).

No âmbito da comercialização, se antes produtos orgânicos in natura estavam restritos às redes locais de produção e consumo como feiras, hoje eles podem ser facilmente encontrados em supermercados. A importância destes é tão significativa que os países com as maiores participações no mercado de produtos orgânicos são aqueles em que a maioria dos produtos é vendida por meio de redes de supermercado (Oosterveer et al., 2010). Conforme pesquisa realizada no site das dez maiores redes de supermercado do mundo,[11] todas comercializam produtos orgânicos, sendo que destas apenas quatro não possuem marcas próprias de produtos orgânicos.

Como Oosterveer et al. (2010) apontam, a tendência é de que os supermercados deem espaço aos produtos orgânicos como elemento estratégico direcionado aos consumidores interessados em consumo verde. Para Escola e Laforga (2005), essa estratégia volta-se para o público de maior poder aquisitivo, por isso algo importante a se considerar acerca da atuação de grandes empresas varejistas nesse mercado é uma possível concentração do consumo de produtos orgânicos na classe média alta em virtude dos seus valores de oferta, em regra, maiores do que os ofertados em feiras livres, por exemplo. Essa é uma das questões que mais preocupa o movimento da produção orgânica em relação à expansão da venda em supermercados. Além disso, para atender a demanda de varejistas e consumidores, é necessário expandir a produção, e para o movimento isso poderia representar um processo de convencionalização com a “crescente especialização no aumento de escala produtiva e na substituição de insumo sintéticos por outros de ‘origem orgânica’, sem abarcar, contudo, níveis mais complexos de transição agroecológica” (Niederle; Wesz Jr., 2018, p. 281).[12]

Guivant (2003) considera que os supermercados passam a ter papel dominante em relação aos canais alternativos de comercialização e consumo, como as feiras locais, já que existe uma tendência internacional que os coloca como canais centrais na expansão do comércio de produtos orgânicos.

Empresas de marketing de prestígio reconhecido internacionalmente estão apontando a enorme potencialidade deste nicho, dentro de transformações no consumo de maior quantidade de frutas, legumes e verduras assim como de produtos light/diet. Frutas, legumes e verduras, não necessariamente orgânicas, cada vez mais são uma atração crucial dos consumidores para realizar compras frequentes nos supermercados, e passam a ter um papel de estímulo para aumentar as vendas de outros produtos, entre estes os orgânicos. (GUIVANT, 2003, p. 79)

Os supermercados proporcionam aos consumidores certas vantagens, pois ofertam os produtos diariamente, enquanto grande parte das feiras orgânicas ou ecológicas ocorre semanal ou quinzenalmente. Os produtores, por sua vez, ao comercializarem com os supermercados, reduzem os custos com as participações em feiras. Para o movimento da produção orgânica, o risco é de que, ao se integrar aos circuitos e às lógicas econômicas dominantes, a produção orgânica, que representou uma alternativa e crítica a essas mesmas lógicas, passe a reproduzir as desigualdades do sistema convencional.

Além destas, outras transformações que atingem as cadeias agroalimentares, sobretudo as informacionais, produzem impactos nesse mercado, vide o aparecimento dos e-commerce, ou mercados on-line de produtos orgânicos. Esses mercados, bem como os aplicativos de compra exclusivos para esses produtos, permitem que o consumidor realize compras sem sair de casa, podendo adquirir produtos de qualquer lugar do país. Na seção de notícias do site da Biofach há diversas informações sobre esses canais como uma tendência no mercado de orgânicos. David e Guivant (2020) apontam que eles se apresentam como novos arranjos de fornecimento e distribuição de produtos orgânicos, sendo seu surgimento consequência da expansão e profissionalização do setor nos últimos anos. Na pesquisa de campo realizada em 2017 na Biofach, por exemplo, não identificamos nenhum expositor de e-commerce, entretanto, em 2018, sua presença foi notada, sendo possível conversar e coletar material com vários deles.

Além destes canais, as feiras virtuais se proliferam, comandadas pelos próprios produtores que, de forma individual ou via cooperativas e associações, utilizam sites ou redes sociais para comercializar os produtos, e programas de assinaturas com envio de cestas mensais desses alimentos orgânicos. Com o crescimento dessas ferramentas fica evidente que o uso da internet se tornou uma estratégia barata e eficiente para a promoção do serviço das empresas do setor de orgânicos, embora em muitas localidades a inclusão digital seja ainda bastante precária.

É interessante considerar também que o surgimento das redes alternativas de produção e consumo esteve atrelado ao desejo de aproximar produtores e consumidores, fomentando as produções familiares e o conhecimento sobre a procedência dos produtos. Com a experiência dos e-commerces, aumenta-se a distância entre produtores e consumidores e a importância dos organismos de certificação que atestam a qualidade e procedência dos produtos. Isso nos remete novamente à forma como os produtos orgânicos circulam por rotas e desvios que os levam a mudanças de trajetória e a sua adequação a novos regimes de valor, mais próximos de uma ordem industrial e mercantil (Boltanski; Thévenot, 1991).

No âmbito das inovações em tela, considera-se também o surgimento de feiras de negócios voltadas para o mercado de produtos orgânicos, destacando-se a Biofach, com sete edições anuais em todos os continentes, que se tornou a principal feira mundial de produtos orgânicos e objetiva ser um ponto de encontro para produtores, distribuidores, comerciantes e consumidores. No Brasil, a feira ocorre desde 2004 e, segundo o site do evento,[13] é caracterizada como “a vitrine do mercado orgânico no continente”, há 16 anos trazendo oportunidades, fortalecendo relações comerciais e reunindo o que há de melhor em produtos orgânicos certificados em alimentos, moda, cosméticos, higiene e serviços” (grifo nosso).

A feira é o maior evento de negócios de produtos orgânicos da América Latina e tem como objetivo fornecer aos produtores e fabricantes a oportunidade de alavancar vendas, captar compradores e disseminar os benefícios desses produtos. O público-alvo são os produtores, indústrias, entes governamentais, fornecedores, certificadoras, consultores do setor de orgânicos, profissionais da área da saúde e consumidores finais. A feira se organiza em quatro setores de exposição: Bioalimentos, Biomoda, Biocosméticos e higiene e Bioprodução e serviços. Além dos estandes dos expositores, o público visitante pode participar de espaços com palestras, fóruns, encontro com produtores e rodadas de negócios. A referência a bios nesse caso não parece ser fortuita e demonstra a importância que assumem corpo, natureza e política de cuidado com a vida, tema que Goodman (1999) já havia explorado com pioneirismo, mas cuja abordagem não poderá ser esmiuçada aqui.

Concomitante à Biofach, e com similiar organização e funcionamento, há a NaturalTech,[14] que não tem como foco produtos orgânicos, mas sim o mercado de produtos naturais, probióticos e integrais, fitoterápicos e complementares. A NaturalTech envolve todo o universo da área de alimentos funcionais, suplementos, nutrição esportiva e estética, buscando disseminar a cultura de uma vida saudável. De acordo com o site do evento, “este é um mercado emergente que cresce cerca de 4,4% ao ano e faz o Brasil ocupar o 4o lugar no ranking de faturamento mundial”. Embora não tenha como foco os orgânicos, nas observações realizadas, identificou-se que diversos destes produtos também eram orgânicos e que, desta forma, os orgânicos conviviam e compartilhavam significados com produtos lights, diets, veganos, entre outros. Isso nos chama a atenção para a forma como produtos orgânicos passam a ser “também orgânicos”, conforme foi identificado e analisado em outros dados gerados ao longo deste trabalho e que serão mencionados adiante.

A partir das observações realizadas na Biofach e na NaturalTech, destacamos o caráter performativo das feiras de negócio e de como podem performar o que se entende por um produto orgânico. Como Callon aponta (2007), um discurso é performativo na medida em que suas ideias contribuem para a construção de uma dada realidade. Neste sentido, a Biofach torna-se performativa quando contribui para a construção do que é um produto orgânico e de quais elementos compõem tal universo, principalmente para aqueles indivíduos que o desconhecem. Mais do que apresentar produtos, estas feiras indicam perspectivas, sentidos e significados sobre o que é um produto orgânico. E em relação a isso, é essencial considerar que há um abismo estético e visual marcante entre a Biofach e NaturalTech e o que tradicionalmente se vê numa feira orgânica realizada nas ruas, por exemplo: as barracas de lona sustentadas por arames e barbantes, as mesas de madeira ou caixotes, com uma variedade imensa de produtos em nada se parecem com os estandes da Biofach e da Naturaltech que oferecem degustações de produtos ou demonstrações de uso de produtos não alimentares e serviços, fazem uso de inúmeros recursos tecnológicos e criam ambientes projetados e convidativos ao público com sofás, mesas e cadeiras, por exemplo.

Ao analisar feiras para casamentos, Pinho (2017) destaca que muitos futuros noivos procuram tais feiras justamente para “descobrir do que um casamento precisa”, visto se encontrarem diante de um mercado não familiar, e esses espaços cumprem um importante papel de criar perspectivas sobre o universo dos casamentos, orientando preferências e escolhas. As observações, conversas informais com consumidores e comentários escutados durante as visitas à Biofach e à NaturalTech expõem justamente isso: durante o trabalho de campo, observamos diversos comentários de consumidores que identificamos como “de primeira viagem”, tinham pouco conhecimento sobre o universo dos orgânicos e, em especial, a Biofach cumpria a função de lhes informar sobre o que seria esse universo (e a entrada do público na feira é gratuita, o que atrai muitas pessoas). Da mesma forma que Pinho (2017) entende que “introduzidas nesses agenciamentos, as noivas são progressivamente familiarizadas com uma perspectiva normativa sobre como devem ser as festas de casamento” (p. 148), entendemos que a Biofach e a Naturaltech (entre outras instituições, dispositivos, mecanismos e artefatos aqui citados) inserem o público em geral em uma perspectiva igualmente normativa sobre o que é um produto orgânico. Ao mesmo tempo, consumidores e empresas são apresentados a um mundo que se pauta por relações entre corporações e governos, com prioridade da ideia de negócios.

Como mencionado, a Biofach se divide em quatro áreas, mas apenas uma delas é dedicada aos produtos alimentares (bioalimentos) e, por essa razão, compreender as modificações que esse mercado vem sofrendo perpassa a análise dos produtos orgânicos não alimentares. Ainda pouco conhecidos, eles representam mudanças na trajetória dos orgânicos inicialmente identificados apenas como alimentos. Lucion (2020) mostra alguns exemplos desses produtos como linhas de cama, mesa e banho da empresa Tok&Stok e absorventes ecológicos femininos da empresa Natracare produzidos com algodão orgânico, e a All love, primeira linha de alimentos orgânicos certificados para cães, da empresa Dr. Stanley.

Poderíamos destacar ainda diversos outros produtos não alimentares, porém citamos o caso dos cosméticos orgânicos que chamam a atenção de quem visita a Feira, pois além de um espaço especial, o Painel de Cosméticos Orgânicos e Naturais, o número de expositores aumenta a cada ano, apesar do setor ainda não ter regulamentação própria no Brasil. O Painel agrega palestras, workshops e oficinas sobre temas como empreendedorismo e consumo consciente na área da estética, diversidade de padrões de beleza e produtos crueltyfree (produtos veganos ou não testados em animais), ministrados por cosmetólogos, esteticistas, dermatologistas e representantes de empresas de cosméticos orgânicos e naturais.

Os cosméticos orgânicos e sustentáveis integram uma prática conhecida como Slow beauty, que tem como premissa a redução do consumo de produtos industrializados e de tratamentos estéticos, e o aumento do uso de cosméticos e produtos de higiene caseiros. Recentemente, o Slow beauty acabou mobilizando a ascensão da indústria de cosméticos conhecidos como naturais e o surgimento de empresas voltadas para esse ramo. Nas visitas à Biofach foi possível perceber que a maioria dos expositores relacionados a este nicho representa pequenas e médias empresas, mas recentemente, em 2020, a Fundação Grupo Boticário também adentrou neste negócio, sendo referenciada no site Ci Orgânicos, um dos mais conhecidos canais de notícias do universo dos orgânicos, como “a primeira grande empresa de cosméticos brasileira a receber certificação da Ecocert”.[15] O grupo lançou a linha Natura Spa Orgânico, composta por loção corporal hidratante, shampoo e condicionador, produtos que, segundo o site da empresa, “foram desenvolvidos com fórmulas exclusivas e ingredientes cuidadosamente selecionados da agricultura orgânica e livres de componentes químicos agressivos. Além disso, toda a linha é vegana, não realiza testes em animais e conta com embalagens criadas com plástico reciclado”.[16]

Ao mesmo tempo que o consumo de produtos orgânicos não alimentares pode demonstrar preocupações para além da saúde pessoal, como ambientais, não se pode negar que se está diante de questões relativas a status e prestígio sociais agregados a estes estilos de vida, visto que tais produtos são, em regra, mais caros que os convencionais e acessíveis a uma parcela restrita da população.[17] As publicidades e embalagens dos produtos que foram analisados neste trabalho demonstram que o “orgânico” tem pouco destaque em relação aos demais elementos. Assim, colocam-se em evidência outros elementos que passam a ser explorados com o orgânico e que vão se combinando ou até tomando seu lugar.

É possível observar que as recentes inovações do mercado de produtos orgânicos modificam não apenas sua trajetória simbólica, mas também comercial, pois a partir delas os orgânicos passam a experimentar novos e incontáveis nichos de mercado, novos status e prestígio e a adentrar em novas rotas que se desviam das tradicionais, como é o caso dos produtos orgânicos ultraprocessados. Os produtos ultraprocessados são popularmente conhecidos como parte do universo junk food, e são caracterizados pelo Guia Alimentar para a População Brasileira (2014) como:

formulações industriais prontas para consumo e feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, proteínas), derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e outros aditivos usados para alterar propriedades sensoriais). (BRASIL, 2014)

Em regra, são produtos prontos ou pré-prontos para o consumo, baratos e de fácil acesso, possuem maior densidade energética e teor de açúcar e menor teor de fibras que alimentos in natura ou processados. De acordo com o professor Carlos Monteiro, um dos pesquisadores que colaborou com a construção do Guia, em entrevista cedida à Agência Fapesp,[18] o ultraprocessamento possibilita a produção de alimentos de baixo custo, de grande aceitabilidade e durabilidade, mas com perfis nutricionais desequilibrados. Pesquisas realizadas até o momento não comprovam seus possíveis efeitos no organismo humano a longo prazo, mas vêm mostrando, por exemplo, que algumas substâncias sintéticas podem provocar alterações que levam ao aumento do risco de colite, obesidade, diabetes e outras doenças crônicas (2014).

Com o aumento da demanda por produtos orgânicos, muitas empresas passaram a adentrar no mercado adquirindo pequenas empresas de processamento de orgânicos e criando linhas de produtos orgânicos ultraprocessados. Ao se realizar pesquisas em sites de busca com a expressão organic junk food, são encontrados diversos materiais produzidos por médicos e nutricionistas[19] com base em pesquisas de universidades como de Harvard[20] e Michigan[21], girando em torno do tema Organic junk food is still junk food (junk food orgânica continua sendo junk food). Eles advertem que os produtos orgânicos ultraprocessados não são, necessariamente, saudáveis, apesar de serem orgânicos, pois tendem a ser ricos em açúcar, carboidratos e gorduras e pobres em proteínas e fibras.

Sob esse ponto de vista, o debate da convencionalização da produção orgânica, em que pese relevante, parece ser insuficiente para dar conta do que está em jogo, uma vez que se trata de um rol de empresas e produtos agora cobertos pelo princípio da produção de orgânicos. Os produtos ultraprocessados orgânicos expressam a forma como a ordem industrial se apropria do apelo dos consumidores por alimentos saudáveis, produzindo novos (apesar de imprecisos) significados em torno destes. Uma pesquisa[22] da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, por exemplo, constatou que os consumidores consideram produtos rotulados como “orgânicos” mais saudáveis que os convencionais. Por carregar uma “aura saudável”, os consumidores entendem que os produtos orgânicos são mais ricos em fibras e possuem menos gorduras e calorias, mesmo que sejam ultraprocessados.

Esses produtos, embora ultraprocessados, são uma grande atração em feiras como a Biofach e a NaturalTech, que disseminam a “cultura de uma vida saudável”. A exemplo, durante o trabalho de campo realizado na Biofach em 2018 foi observado um chocolate orgânico com “18 g de Whey Protein de gado criado solto”, da empresa Chokolah. O produto chama a atenção não apenas por ser orgânico, mas pela utilização de Whey Protein na sua composição, o que parece indicar que o produto visa um público específico, os praticantes de musculação que, em razão de dietas restritivas, poderiam se abster de ingerir chocolate. Também percebe-se essa relação pela imagem contida na embalagem com um haltere e um recipiente de Whey Protein (Figura 1). Em outras palavras, o produto parece buscar atingir o público preocupado com saúde e beleza.

 

Figura 1 Chocolate orgânico da Chokolah com Whey Protein do gado criado solto

Fonte: Site da ChoKolah.[23]

 

 Além disso, o Whey Protein (produzido a partir do soro do leite bovino) utilizado é obtido do “gado criado solto”, o que evidencia preocupações ambientais e com o bem-estar animal. A embalagem do produto também informa que ele não contém glúten ou açúcares refinados e “contém alegria e energia”. Para o elemento orgânico, apenas como referência a frase “produto com ingredientes orgânicos” e o selo de certificação. O que chama a atenção em relação ao advento desses produtos é que pesquisas apontam que os consumidores de produtos orgânicos estão preocupados com a sua saúde e com o meio ambiente (Neutzling et al., 2010; Cerveira; Castro, 1999; Alves et al., 2015). Se isso é o que os motiva a optar pela compra de produtos orgânicos, por almejarem adquirir um produto natural, “mais saboroso”, por que crescem os investimentos e as vendas de produtos orgânicos ultraprocessados, sintéticos e que poderiam causar malefícios para a saúde humana e para o meio ambiente?

Entendemos que isto esteja associado a mudanças na trajetória e significados dos produtos orgânicos em torno de uma visão reducionista que leva em conta, ao definir o que é um bom alimento, a quantidade e quais nutrientes estão presentes nele, deixando de fora da análise detalhes como o grau de processamento, a forma de produção e impactos ambientais. Essa é uma tendência alimentar contemporânea que Scrinis (2013) denominou de nutricionismo, a qual atenta para a quantidade de nutrientes e calorias dos produtos e desconsidera que os efeitos de um nutriente dependem da combinação de vários fatores e do seu efeito sinérgico no organismo que o recebe. No nutricionismo o foco está, portanto, na composição do alimento e não nas técnicas de processamento e aditivos que recebe.

Segundo Scrinis (2013), o nutricionismo foi impulsionado pela ciência da nutrição e por estratégias de marketing que facilitaram o desenvolvimento de alimentos com maior ou menor conteúdo de certos nutrientes, como “sem glúten”, “com redução de gorduras”, “mais fibras” e “mais proteínas”, de acordo com os interesses de diferentes públicos. Isso estimulou o consumo de alimentos industrializados mesmo quando surgiam e se intensificaram críticas à ordem industrial de produção e consumo. Assim, as campanhas e apelos relacionados ao “saudável” se tornaram parte de uma estratégia que visa atingir os consumidores que buscam tais produtos. Por isso Scrinis (2003) aponta que esses produtos seriam tecnoalimentos, simulacros produzidos a fim de atrair o que Guivant (2003) chama de consumidores ego trip.

Barbosa (2009) compreende que o nutricionismo está relacionado à cientificação do comer, ou seja, ao impacto que a ciência moderna passa a assumir como principal instância legitimadora de decisões na nossa vida e alimentação. Para a autora, essa cientificação se desdobra em três perspectivas, sendo uma delas a da medicalização em que o discurso médico e nutricional passa a ter primazia em relação às escolhas alimentares. Nesse sentido, o nutricionismo adquire relevância porque os nutrientes se tornam centrais e porque, por serem invisíveis e incompreensíveis para a maior parte das pessoas, a ajuda de especialistas que orientem o que comer torna-se fundamental, dado que o objetivo da alimentação assume a promoção de um conceito estrito de saúde física (Barbosa, 2009).

Nestlé (2019), chamando a atenção para as estratégias utilizadas pelas empresas da indústria alimentícia, sinaliza que estas se utilizam de pesquisas científicas para sustentar as alegações de que certos alimentos “fazem bem” e que devem ser introduzidos em dietas “mais saudáveis” e, até mesmo, fazer com que outros alimentos sejam esquecidos. Essas pesquisas contribuem para construir bases de diferenciação (Karpik, 2007) entre estes alimentos e os “comuns” e, com isso, alavancar suas vendas, como exemplificado pela autora a partir do processo de construção do blueberry (mirtilo), noz pecã e romã como importantes fontes de antioxidantes: “alegações em favor da saúde que se baseiam em evidências científicas ajudam a vender alimentos e produtos alimentícios – não importa quão bem conduzidas são as pesquisas” (Nestlé, 2019, p. 124). Nesse contexto, chama a atenção a forma como o “orgânico” vem sendo apropriado como mais um dos elementos acionados para agregar valor a esses produtos.

 

‘Uma das coisas que mais agrega valor é o orgânico’

Como destacamos, ao analisarmos a trajetória dos orgânicos chama a atenção a forma como se aproximaram do discurso narrativo em torno da “saúde” e de como elementos desse universo acabam por ressignificar o conceito de produto orgânico de modo que assuma outros significados. O discurso ambiental e em torno da saúde sempre figurou no universo dos produtos orgânicos, no entanto, surge recentemente um novo discurso em que o próprio conceito de saúde se modifica restringindo-se à saúde física, beleza e forma, um conceito que visa atender alguns consumidores (ego trip). É por essa razão que compreendemos que o orgânico poderia se tornar apenas mais um dos elementos que compõem o discurso em torno de alguns produtos e não o elemento central como outrora foi ou é em outros contextos.

Isso pode ser observado, por exemplo, na NaturalTech. Conforme mencionado, embora o foco da Feira não seja o universo orgânico, alguns dos produtos nela oferecidos também são orgânicos, ocorrendo uma sobreposição de sentidos em que produtos orgânicos convivem com produtos diets, lights, sem glúten, sem lactose, veganos, entre outros, e com eles compartilham significados. Desperta interesse o fato de que ambas as feiras são realizadas de modo muito semelhante e no mesmo espaço, e as fronteiras, ainda que demarcadas, ficam menos expressivas se considerarmos que as duas apelam para imagens de produtos saudáveis e com atributos sobrepostos.

Na edição de 2018, por exemplo, essa sobreposição pode ser observada, entre outros elementos, pela distribuição dos estandes: ao atravessar o espaço da direita para a esquerda, saindo da Biofach (representada pela cor verde) e indo em direção à NaturalTech (representada pela cor azul), percebia-se o elemento “orgânico” desaparecendo, dos tapetes verdes mudava-se para tapetes azuis e os estandes de produtos orgânicos davam lugar aos veganos, sustentáveis, naturais, entre outros, que, embora em alguns casos também fossem orgânicos, o eram dependentes deste significado (Figura 2).

 

Figura 2 Mapa dos estandes da Biofach e NaturalTech 2018

Fonte: Site da Biofach (2018).

 

As palavras do representante da Organis Brasil, entrevistado para a pesquisa, corroboram o que estamos considerando:

Eu sempre digo que a busca pelos orgânicos é uma locomotiva com vários vagões: sustentabilidade, orgânico, agroecológico, biodinâmico, produto com responsabilidade social, produto sem glúten, comida de verdade. [...] Em grandes mercados, como na Europa, o orgânico está lá convivendo com outros, com o diet, com o light. Do ponto de vista do marketing ele é um qualificativo por isso ele já faz parte dessa “paisagem”, apesar do percentual pequeno. (Representante da Organis Brasil, 2019)

Como Raud (2010) menciona, para muitos críticos, a ascensão de mercados como dos produtos funcionais, naturais e orgânicos representa mais uma estratégia de marketing visando agregar valor aos produtos, em consonância com a ordem industrial de produção e consumo alimentar, do que propriamente uma revolução nutricional em torno de um padrão alimentar mais saudável. Ao analisar estratégias desenvolvidas por empresas do setor agroalimentar, Scrinis (2013) identifica esquemas de rotulagem e embalagem que visam informar e influenciar os consumidores por meio do enfoque em certos aspectos como o orgânico. O autor denomina essas estratégias de fachadas nutricionais, pois “distraem” a atenção para a presença ou ausência de certos componentes nutricionais.[24]

Numa das entrevistas que realizamos com uma empresa de processamento de produtos orgânicos, o representante menciona que uma das estratégias atuais é buscar outros conceitos para os produtos além do orgânico, pois “o orgânico não basta”, os consumidores estão preocupados em saber se o produto é “bom”, “sem glúten”, “sem lactose”, “com redução de açúcares, de sódio, de gorduras”, “com fibras”. Segundo o entrevistado, quanto mais uma empresa investir nas explicações sobre o que os “produtos não têm de ruim”, mais consegue se inserir no mercado. Alimentos associados a uma forte imagem de “saúde” vêm se apresentando como forte potencial de diferenciação e rentabilidade em certos mercados, principalmente naqueles saturados e estagnados (Raud, 2010), por isso esses elementos vêm sendo amplamente explorados em estratégias de marketing, incluindo as de produtos orgânicos. O “orgânico”, visto de forma sistêmica e como um modo de vida por muitos atores em outros contextos, passa a ser visto como apenas mais um elemento que agrega valor e atrai a atenção dos consumidores para esses produtos.[25]

Essas estratégias parecem estar diretamente associadas ao nutricionismo, visto que o orgânico é reduzido a um dos elementos presentes nesses produtos. Em sites que comercializam produtos orgânicos, por exemplo, é possível observar que o orgânico se torna uma categoria entre os demais “estilos de alimentação” oferecidos pelos e-commerces, como pode ser observado pela captura de tela feita em um site de venda de produtos orgânicos (Figura 3). Tais significados contrastam com os sentidos “originais” e sistêmicos em que os orgânicos estavam integrados a um modo de vida.

 

Figura 3Site da Nattu Orgânico: estilos de alimentação

 

Fonte: Site da Nattu Orgânico[26].

 

Essa desintegração abre caminhos para desvios que formam novas rotas e que passam a aparecer, por sua vez, nas estratégias econômicas dos agentes desse mercado, como pode ser observado num dos trechos da entrevista realizada com o representante de um e-commerce de produtos orgânicos do Espírito Santo, ao ser questionado se “trabalhar apenas com produtos orgânicos não seria rentável financeiramente”:

Para ter uma sustentação financeira no negócio, eu falo que não, é importante agregar outros segmentos que as pessoas procuram ou tenham necessidades por ideologia (vegano/vegetariano) ou restrição alimentar (sem glúten, sem lactose). (Representante da empresa Só Orgânicos, 2020)

Apesar de evidenciar que o principal interesse dos seus clientes é por produtos orgânicos, o empresário considera que o investimento em diferentes segmentos se torna uma oportunidade de mercado. A preferência crescente dos consumidores por esses produtos parece indicar uma mudança na trajetória dos orgânicos, que passam a se associar a outros significados que o fragmentam e afastam de concepções mais sistêmicas.

Nesse contexto, a Banalight é um produto que exemplifica essas estratégias (Lucion, 2020). Trata-se de uma banana orgânica produzida e distribuída pelo Grupo MJ Maciel Agro que, conforme o site da empresa,[27] “pensando em uma alimentação mais saudável”, buscou uma variedade de banana com redução de calorias e maior concentração de potássio. A partir de pesquisas encontrou-se a BRS – Thap Maeo, uma variedade tailandesa que possui 58 calorias em cada 100 g, metade do que se encontra numa banana-nanica comum. A Banalight é comercializada em cachos pequenos ou despencada e em embalagens plásticas de 600 g. É interessante notar que os elementos evidenciados nos materiais publicitários da Banalight são próprios de qualquer banana, ou de qualquer banana orgânica (Figura 4), no entanto, a empresa se apropria desses elementos produzindo bases de diferenciação entre suas bananas e as demais.

 

Figura 4 Apresentação da Banalight e fôlder de divulgação

                     

Fonte: Site e redes sociais Grupo MJ Maciel Agro.

 

O fôlder de divulgação do produto, coletado na Biofach em 2017, conforme imagem anterior, torna evidente esse processo ao destacá-la como a “evolução da banana”: “Descubra essa novidade, Banalight, um produto orgânico e muito mais saudável de sabor inigualável, com menos calorias e mais fibras alimentares, disponível em embalagem Pet com 600 g, com frutas de tamanho ideal para o consumo”. A Banalight, mesmo que possua algumas características físicas que lhes são próprias, é também uma construção simbólica feita por meio de narrativas, anúncios publicitários e embalagens diferenciadas. A descrição sobre a Banalight apresentada no site da empresa traz poucas informações em relação aos aspectos éticos e ambientais relacionados à produção e ao consumo de produtos orgânicos (única referência é o selo). O destaque maior está nos elementos do tripé beleza-saúde-forma, enfatizando elementos como “produto natural”, “não contém glúten” e “saúde é vida”. Aparentemente, o que mais atrai é o fato de a banana ser light e não orgânica.

Na edição 353 de março de 2016 da Revista Boa Forma, uma das principais revistas de conteúdos de saúde e bem-estar do país, foi feita uma menção à Banalight na seção “Menos calorias”, na qual consta uma nota intitulada “#SUPERINDICO”. Nesta são indicados três produtos, entre eles a Banalight: “tem 58 calorias em 100 g – metade do valor da nanica, além de oferecer o dobro de fibras”. Ao final da nota é mencionado que “a Banalight custa 9 reais (600 g) na versão orgânica”. Em outras palavras, a Banalight se torna independente e o “orgânico” vira uma versão do produto. Isso endossa a hipótese de que ao longo da sua trajetória os produtos orgânicos vão assumindo outros significados, para além do orgânico em si.

Como Boltanski e Esquerre (2017 apud Niederle; Wesz Jr., 2018) apontam, essas estratégias também são parte de processos de enriquecimento cultural por meio dos quais se selecionam elementos pertinentes a um produto que são colocados em primeiro plano em dispositivos narrativos, como embalagens e materiais publicitários. Por essa razão, torna-se importante atentar também para a atuação de intermediários, artefatos e dispositivos, e seus efeitos performativos, no processo de qualificação dos produtos e como elementos centrais na organização dos mercados. Quando uma empresa utiliza matéria-prima orgânica, enriquece um produto com determinada vitamina ou reduz a quantidade de açúcares e enfatiza isso na embalagem para transmitir que o produto é saudável, está fazendo uso do efeito performativo dos artefatos em suas estratégias de comercialização, pois estes influenciarão nas escolhas dos consumidores. Eles conferem e informam o valor e a imagem dos produtos, sendo, portanto, parte do processo de construção da sua qualidade.

Raud (2010) observa que os alimentos associados à ideia de “saúde” representam uma importante fonte de diferenciação e rentabilidade no setor alimentar e, também por isso, atraem a atenção da indústria alimentícia. Por essa razão, Guivant (2003) assinala que “empresas de marketing de prestígio reconhecido internacionalmente estão apontando a enorme potencialidade deste nicho, dentro de transformações no consumo de maior quantidade de frutas, legumes e verduras, assim como de produtos light/diet” (p. 79).

Cruz e Menasche (2011) destacam que grandes empresas da cadeia secundária, percebendo o interesse dos consumidores em alimentos tradicionais, naturais, de origem ou orgânicos, por exemplo, têm adotado propagandas e rótulos que visam vincular seus produtos a essas imagens que se reportam a saudabilidade, ruralidade, autenticidade, natureza, entre outros. Ao analisarem embalagens de alimentos industrializados orgânicos e convencionais, Calegari, Colomé e Jacques (2016) identificaram que as embalagens dos produtos orgânicos informam valores sociais relacionados à alimentação saudável e natural, enquanto as embalagens dos produtos convencionais fazem mais referência a sabor, aroma e paladar, ou seja, reportam-se ao prazer obtido por meio da alimentação. Para os autores, isso aponta para a materialização de diferentes tendências alimentares.

Ao analisarem, por exemplo, as embalagens do café Três Corações, Cardoso e Rodrigues (2015) observaram que a versão tradicional possui embalagem plástica com alta qualidade de brilho (remetendo a elementos industriais), enquanto a embalagem do café orgânico é impressa em material fosco e opaco, áspero e sem brilho que gera a sensação de um produto artesanal, não industrializado, rústico (referente à ordem doméstica). A utilização de cores em tons de verde, que remetem à natureza, à matéria-prima natural, também é muito comum nas embalagens de produtos orgânicos, buscando diferenciá-los dos tradicionais. No entanto, o que verificamos nesta pesquisa é que os elementos relacionados aos produtos orgânicos estão mais próximos de um apelo à saúde física do que propriamente à saudabilidade dos alimentos ou a questões ambientais. Pode-se dizer que paradoxalmente os produtos evocam uma imagem do campo e de formas tradicionais ou rústicas de viver, contudo os produtos embalados e disponíveis nas feiras de negócios ou nas prateleiras de supermercados se distanciam dos modos de vida dos agricultores que os produziram.

Essas questões também podem ser exemplificadas pela embalagem dos “Mini Cookies integrais de banana e cacau” da Mãe Terra (Figura 5). Apesar da parte frontal da embalagem trazer poucas informações, no verso há uma série de dados acerca do produto, sobre os ingredientes e modo de produção. A empresa investiu em explicações acerca dos ingredientes contidos nos Mini Cookies, enfatizando o que os torna diferentes dos demais: possui sete grãos integrais, ingredientes orgânicos, é fonte de fibras e selênio e é leve e prático.

 

Figura 5 – Mini Cookies integrais da Mãe Terra

Fonte: Site da empresa Mãe Terra.[28]

 

A maior parte dos atributos dos produtos orgânicos não será quantificada pelos consumidores, mesmo após a compra. Assim, as informações contidas na embalagem dos Mini Cookies, por exemplo, e a forma como são expostas, colaboram para o processo de construção da confiança nesse mercado, além de atraírem a atenção dos consumidores para o produto. É interessante notar como a Mãe Terra investe numa linguagem simples que cumpre a função de transmitir informações científicas (relacionadas à saudabilidade e à segurança dos alimentos), como exemplificado na embalagem acerca dos “7 princípios da Mãe Terra”: “integral de verdade, menos processado”, “livre de transgênicos e pozinhos artificiais” (grifo nosso).

Os materiais analisados na pesquisa corroboram o entendimento de Callon et al. (2002) de que a qualificação e requalificação dos produtos são processos constantes e que acompanham a demanda dos consumidores. No caso em tela, alguns produtos se tornam bens (goods) em determinados momentos a partir da evidência de certas características, aquilo que o produto “não tem de ruim”, ou seja, como sem glúten, sem lactose ou light. Trata-se, portanto, de um processo de requalificação em que mais importante que o conteúdo de um produto ou a sua forma de fabricação é o que ele não contém. Por essa razão, Scrinis (2013) fala em fachadas nutricionais que parecem apelar para produtos que são um agregado de valores morais e simbólicos e cujo modelo empresarial de apresentação e marketing é amplamente disseminado. É nesse contexto que o “orgânico” se torna mais um dos elementos utilizados para chamar a atenção dos consumidores e agregar valor aos produtos no âmbito de um marketing alimentar e nutricional. Em outras palavras, não se trata mais de um produto orgânico, mas de um produto que também é orgânico.

É importante não deixar de considerar, ainda, que as mudanças de significados das quais falamos estão relacionadas com a capacidade do mercado de internalizar críticas (Boltanski; Thévenot, 1991; Boltanski; Chiapello, 2009): é preciso ter em mente que os processos de convencionalização da produção orgânica, as singularizações e diversificações de produtos (principalmente em relação ao advento dos produtos ultraprocessados, não alimentares e daqueles que apelam para questões de saúde e estética corporal) e as trajetórias pelas quais o orgânico passa são formas do mercado internalizar e responder às críticas éticas, estéticas e ecológicas a ele direcionadas.

 

Considerações finais

Neste trabalho buscamos contribuir com a análise de como diferentes atores vêm respondendo às mudanças sociais e transformando a forma de produzir, distribuir e comercializar produtos orgânicos e procuramos trazer à tona novos significados que tais produtos assumem em diferentes contextos sociais, sinalizando novas tendências de mercado e consumo, bem como algumas controvérsias. Assim, ao mapear a trajetória social de produtos, como os orgânicos, e os contextos sociais pelos quais circulam, é possível observar e indicar mudanças nos mercados e os reflexos e impactos que têm para os atores envolvidos.

Percebemos que os produtos orgânicos perdem e incorporam atributos, atravessando redes de significados que os classificam e reclassificam socialmente. A guinada de trajetória dos produtos orgânicos os afasta da sua rota inicial como concepção filosófica, e mais tarde como um estilo de vida, e os leva a desvios que vão se tornando novas rotas, atendendo a novos estilos de vida muitas vezes contrastantes com os dos “pioneiros”. Aparentemente, o objetivo atual do mercado é dar conta de um conceito de saúde em que os alimentos devem melhorar certas funções corporais ou reduzir o risco de doenças e não propriamente, ou somente, alimentar. Além disso, em certa medida, o caráter político ligado ao ato de alimentar vai se dissipando e dando lugar às preocupações de beleza-saúde-forma.

Ao contrário dos “pioneiros”, novos produtores de orgânicos, sobretudo na cadeia secundária, parecem investir nesses produtos como uma forma de responder às críticas éticas e estéticas ou como um novo nicho de mercado a partir de atributos de beleza e saúde incorporados aos produtos. Como observado, em muitos momentos, aspectos ecológicos e ambientais ganham pouca atenção nos rótulos dos produtos, aparentemente, importam mais os elementos do tripé beleza-saúde-forma, em que a saúde está ligada a questões de performance e beleza física. E aqui não falamos apenas de produtos processados ou ultraprocessados, mas também naturais, vide o caso da Banalight. Assim, o que notamos é que os produtos deixam de ser convencionais para se tornarem orgânicos, mas com o passar do tempo se transformam também lights, sem glúten, sem lactose etc., em que o “orgânico”, que em outros momentos foi um good, se torna um mero elemento no processo de qualificação de outros goods.

Como destacado, tais mudanças de trajetória estão relacionadas com a capacidade do mercado de internalizar as críticas a ele direcionadas, e aqui mais uma vez nos inspiramos nos trabalhos de Boltanski. Em outras palavras, as transformações nas formas, funções e significados dos produtos orgânicos são fruto das apropriações que as ordens industrial e mercantil têm feito desses produtos, retirando-os de um âmbito de crítica ao mercado e inserindo-os como produtos desse próprio mercado. Hoje as críticas estão sendo incorporadas pelo mercado como uma espécie de ecologização da produção agropecuária moderna com a criação de novos nichos de mercado para os produtos orgânicos ou recauchutagens do modo de produção convencional (Almeida, 2002).

As mudanças de rotas e significados dos produtos orgânicos nos levaram a refletir, também, sobre quais foram as trajetórias dos produtos orgânicos que não são certificados. Como exposto, eles são considerados legítimos do lado de cá da rua, mas não a atravessam, pois não são reconhecidos pelos atores que compartilham de outros círculos de crença. Para tal, necessitam adequar-se a dispositivos, mecanismos e artefatos que operam o mercado. Por conta de dificuldades, principalmente financeiras, para acessar a certificação e investir em embalagens e publicidades, muitos dos pequenos produtores acabam comercializando seu produto por preços baixos ou renunciando à burocracia necessária para a certificação e comercializando seu produto como convencional. Em outras palavras, alguns produtos não atravessam a rua, e deixam de ser considerados orgânicos.

Isso leva a crer que os atores mais capitalizados desta cadeia são aqueles que conseguiram agregar valor e novos referenciais de qualidade aos produtos. Mesmo com a existência de processos e de atores mais bem posicionados, é importante levar em conta que no mercado de produtos orgânicos há ainda muitos espaços para atores que, mesmo menos capitalizados e enfrentando dificuldades, fazem valer suas potencialidades e capacidades. No entanto, é importante sinalizar que atores mais frágeis poderão ter mais dificuldades no âmbito desse mercado. Assim, análises de como as instituições, dispositivos e artefatos se comportam continuarão trazendo contribuições para a reflexão acerca do mercado de produtos orgânicos, em especial para se considerar em que medida contribuem para a inclusão ou exclusão de parcelas de produtores deste mercado e quais as possibilidades encontradas para resistência.

 

 

 

Referências

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Como citar

LUCION, Jéssica Maria Rosa; RADOMSKY, Guilherme Francisco Waterloo. ‘Uma das coisas que mais agrega valor é o orgânico’ – Novas trajetórias e singularidades no mercado dos produtos orgânicos. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, e2432102, 10 maio 2024. DOI: https://doi.org/10.36920/esa32-1_02.  

 

 

 

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[1] Docente no Instituto Federal Farroupilha (IFFar). Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: jessica.lucion@iffarroupilha.edu.br.  

[2] Professor Associado III do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS/UFRGS). Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: g.radomsky@gmail.com

[3] Em alguns países da América Latina, utiliza-se o termo “orgânico” como referência aos produtos voltados para atender um nicho de mercado desmembrado de uma dimensão social e cultural mais presente no que se chama de Agroecologia (Flores, 2019). Apesar de considerar estas tensões, adotamos ao longo deste trabalho, o termo “produtos orgânicos” ou “produção orgânica”, conforme a Lei Federal no 10.831, de 2003 (Brasil, 2003), como referência a um padrão de produção de alimentos sem o uso de insumos químicos, agrotóxicos, fertilizantes, organismos geneticamente modificados, entre outros, sem nos atermos ao debate sobre a agroecologia como disciplina científica ou sobre outras correntes como produtos ecológicos, biodinâmicos, naturais, sustentáveis, regenerativos, biológicos, de permacultura etc. (Medaets; Fonseca, 2005).

[4] Nesse modelo, conhecido como certificação por auditoria ou terceira parte, a conformidade orgânica é verificada por uma organização independente na qual os auditores não estão envolvidos com a produção que avaliarão. Assim, a confiança na qualidade do produto é intermediada pelo organismo certificador em que “o documento de certificação emitido por terceira parte atesta, mediante a aplicação de instrumentos como testes, ensaios e outros, que os requisitos exigidos pelo mercado e constantes nas normas e regulamentos foram atendidos” (Medaets; Fonseca, 2005, p. 17).

[5] Para Boltanski e Chiapello (2009), a dinâmica de evolução dos mercados está relacionada às críticas que lhes são dirigidas, pois estas cumprem a função de impulsionar mudanças nesses mercados. A tendência é que a resposta às críticas tente apaziguá-las, por meio da incorporação de parte dos valores em nome dos quais foram mobilizadas. Contemporaneamente, os mercados têm tido a capacidade de se apropriar de críticas éticas e estéticas, introduzindo novos nichos de mercado e modalidades lucrativas que permitem realizações pessoais sem desestruturar os sistemas já existentes, sendo um dos exemplos destacados pelos autores o marketing em torno de produtos ecológicos ou “verdes”.

[6] Na certificação participativa, uma produção é reconhecida como orgânica mediante um processo de controle mais constante que ocorre por meio de outros produtores e consumidores: “o que se pretende com esse tipo de iniciativa é estabelecer um sistema de certificação que não dependa exclusivamente do exame realizado por um técnico ou auditor externo, e onde seja dada aos produtores a oportunidade de participar de um processo cujo resultado lhes afeta diretamente. A aplicação deste sistema prevê, como o próprio nome indica, que os atores envolvidos assumam um compromisso tácito e pleno com os princípios da produção ecológica, assim como um papel ativo na supervisão de todas as etapas do processo” (Caldas et al., 2012, p. 457). Esse controle é organizado pelas Opacs, que também emitem selos de certificação próprios. O trabalho de Puga (2022), entretanto, mostra os efeitos de práticas em certificações participativas que podem se assemelhar aos realizados por terceira parte.

[7] Organics Brasil é um programa de fomento que teve início em 2005 e tem por objetivo promover os produtos orgânicos brasileiros e estimular a geração de negócios no mercado internacional. Disponível em: https://organis.org.br/.

[8] Disponível em: https://exame.com/mundo/o-voraz-apetite-por-organicos-na-industria/. Acesso em: 3 mar. 2020.

[9] Para Caporal e Costabeber (2004), o termo “agricultura ecológica” tem por objetivo distinguir tais práticas de modos de produção que os autores chamam de “dupla revolução verde”, isto é, quando se incorporam aspectos ecológicos à produção convencional de maneira que ocorra uma espécie de recauchutagem desse modelo produtivo, “temos hoje, tanto algumas agriculturas familiares ecologizadas, como a presença de grandes grupos transnacionais que estão abocanhando o mercado orgânico em busca de lucro imediato, como vem ocorrendo com os chamados ‘alimentos corporgânicos’”. [...] Na realidade, uma agricultura que trata apenas de substituir insumos químicos convencionais por insumos “alternativos”, “ecológicos” ou “orgânicos” não necessariamente será uma agricultura ecológica em sentido mais amplo” (Caporal; Costabeber, 2004, p. 9-10).

[10] No Brasil, um dos exemplos mais conhecidos de como grandes empresas têm atuado no mercado de orgânicos é a aquisição da empresa brasileira Mãe Terra pela Unilever, em 2017. Diversas empresas do setor agroalimentar lançaram nos últimos anos linhas de produtos orgânicos no mercado brasileiro. A Nestlé, por exemplo, investiu nos últimos dois anos mais de R$ 23 milhões em um laboratório de controle da qualidade com foco nos produtos orgânicos (LIMA et al., 2019).

[11] Dados da Expo Supermercados, feira de negócios brasileira voltada ao setor supermercadista. Disponível em: https://www.exposupermercados.com.br/novidades/as-10-maiores-redes-de-supermercados-do-mundo. Acesso em: 10 out. 2019.

[12] Ver também Niederle e Almeida (2013).

[13] Disponível em: https://biobrazilfair.com.br/home/. Acesso em: 20 dez. 2022.

[14] Disponível em: https://naturaltech.com.br/home/. Acesso em: 20 dez. 2022.

[15] Disponível em: https://ciorganicos.com.br/noticia/o-boticario-e-a-primeira-grande-empresa-de-cosmeticos-brasileira-a-receber-certificacao-ecocert/. Acesso em: 14 mar. 2023.

[16]    Disponível em: https://www.boticario.com.br/nativa-spa/organico/. Acesso em: 14 mar. 2023.

[17] O fôlder da edição de 2020 da Biofach, por exemplo, menciona que o mercado de orgânicos para o qual se volta “atrai visitantes, profissionais e público com alto poder de compra”.

[18] Disponível em: https://agencia.fapesp.br/alimentos-ultraprocessados-sao-ruins-para-as-pessoas-e-para-o-ambiente/20820.  Acesso em: 21 dez. 2023.

[19] Organic Junk Food is Still Junk Food. Disponível em: https://drspencer.com/organic-junk-food-is-still-junk-food/. Acesso em: 22 dez. 2023.

[20] Just because a snack food is organic doesn’t mean it’s healthy. Disponível em: https://www.hsph.harvard.edu/news/hsph-in-the-news/organic-snack-foods-unhealthy/. Aeesso em: 22 dez. 2023.

[21] Organic junk food. Disponível em: https://www.canr.msu.edu/news/organic_junk_food. Acesso em: 22 dez. 2023.

[22] Disponível em: http://news.cornell.edu/stories/2011/04/organic-food-label-imparts-health-halo-study-finds. Acesso em: 15 mar. 2020.

[23]    Disponível em: https://www.chokolah.com/. Acesso em: 25 jun. 2021.

[24] É importante considerar que essas são estratégias de personalização no âmbito de uma economia das singularidades (Karpik, 2007), em que produtos são ajustados às necessidades e desejos dos consumidores, ou de estratégias de codificação que Bolstanki e Chiapello (2009) identificam como fundamentais no âmbito das adaptações da ordem industrial de produção a fim de responder às críticas. Segundo os autores, a codificação atua por meio de infinitas possibilidades de combinação de diversos elementos (sem glúten, sem lactose, sem açúcar etc.), introduzindo variações que originam produtos relativamente diferentes, permitindo que se conserve algo do produto original e singular, como o fato de ser orgânico.

[25] Lucion (2016) observa que o processo de transição para a agricultura ecológica envolve não apenas uma mudança técnica, mas também uma mudança no modo de se relacionar com o meio ambiente e com a sociedade, o que permitiria compreendê-la como um espaço de atividades socioculturais constituindo-se um modo de vida, de forma mais ampla e sistêmica, e não unicamente como um modelo de produção agropecuária visando somente mudanças técnicas, como a não utilização de fertilizantes e defensivos químicos, por exemplo. O que se destaca nos materiais e entrevistas analisados pelo(a) autor(a) é a indissociabilidade dos vínculos entre os aspectos técnicos, ecológicos e socioculturais que envolveriam a produção ecológica. De acordo com o(a) autor(a), esse modo de vida se associa a diversos elementos como uma ética do cuidado, da confiança e do bem comum, e a interdependência entre os seres.

[26]    Disponível em: https://www.nattuorganico.com.br/. Acesso em: 13 fev. 2023.

[27]    Disponível em:  https://www.mjmaciel.com.br. Acesso em: 13 fev. 2023.

[28] Disponível em: https://www.loja.maeterra.com.br/. Acesso em: 13 fev. 2023.