ESA_logo.png                                                                                                                                           Publicado: 9.ago.2023                                                                                                                                                                                                                                                 

 

Tradução para o português de artigo publicado originalmente em inglês na revista The Sociological Review,  v. 69, n. 3, 20 maio 2021. DOI: https://doi.org/10.1177/00380261211009061.
Foram feitas pequenas alterações no artigo que são de responsabilidade exclusiva da autora, não significando necessariamente a opinião da The Sociological Review  ou de seus editores.

 

Movimentos sociais como agentes de mudança: combatendo as desigualdades alimentares interseccionais, fazendo dos alimentos teias de vida

Social movements as agents of change: fighting intersectional food inequalities, building food as webs of life

orcid_id.png

Renata Campos Motta[1]

 

 

 

             

 

https://doi.org/10.36920/esa31-2_01tr

 

Resumo: O que a diversidade de movimentos sociais e de iniciativas alimentares nos diz sobre os processos de mudança social? Argumento que essa diversidade oferece uma lente analítica fértil para se investigar a mudança social, uma vez que esses agentes identificam injustiças e dinâmicas de desigualdades no sistema alimentar e se engajam ativamente em transformá-las. Iniciativas alimentares alternativas locais representam uma reação aos impactos ambientais associados às relações alimentares globalizadas; movimentos de soberania alimentar salientam as desigualdades de classe e as assimetrias de poder do sistema alimentar, as quais afetam os direitos das pessoas a práticas alimentares culturalmente adequadas; movimentos por justiça alimentar denunciam o racismo institucional; movimentos feministas lutam contra as persistentes desigualdades de gênero que estão presentes desde a produção até o consumo de alimentos; movimentos veganos defendem os direitos dos animais. Cada um destes movimentos e iniciativas é geralmente associado a uma região diferente do mundo: movimentos por justiça alimentar mais presentes nos Estados Unidos, movimentos de soberania alimentar mais ruidosos no Sul Global, movimentos alimentares feministas mais ativos na América Latina e movimentos alimentares locais mais comuns no Norte Global. Neste artigo, as diversas vertentes do ativismo e da pesquisa sobre as desigualdades sociais relacionadas à alimentação são reunidas sob o conceito guarda-chuva das desigualdades alimentares. Além da construção conceitual, este artigo contribui para uma sociologia dos estudos alimentares ao mapear a geopolítica do conhecimento sobre a mudança social que está por trás da crescente mobilização em torno das questões alimentares.

Palavras-chave: desigualdades alimentares; movimentos alimentares; desigualdades sociais; interseccionalidade; movimentos sociais.

 

Abstract: What does the diversity of social movements and food initiatives tell us about processes of social change? I argue that they offer a productive analytical lens to observe social change because they identify injustices and dynamics of inequalities in the food system and are actively engaged in transforming these. Alternative local food initiatives react to the environmental impacts of globalized food relations; food sovereignty movements highlight class inequalities and power asymmetries in the food system that affect people’s rights to culturally appropriate foodways; food justice movements denounce institutional racism; feminist movements fight persistent gender inequalities from food production to consumption; vegan movements defend animal rights. These are often mapped onto different world regions, with food justice movements more present in the US; food sovereignty movements louder in the Global South; feminist food movements more active in Latin America; and local food movements commonly in the Global North. This article brings together diverse strands of activism and research on social inequalities related to food under the conceptual umbrella of food inequalities. In addition to concept building, it contributes to a sociology of food studies by mapping the geopolitics of knowledge about social change behind the growing mobilization around food issues.

Keywords: food inequalities; food movements; social inequalities; intersectionality; social movements.

 

 

Introdução

Estratificação social, distinção social, diferença e desigualdades criadas por meio da alimentação são temas de pesquisa estabelecidos nos estudos sociais sobre alimentação. Novos processos de mudança social ocorrem na medida em que as questões alimentares se tornam progressivamente politizadas. A comida chega diariamente aos meios de comunicação de massa e às conversas públicas, e ela se torna cada vez mais um marcador de posicionamento político, principalmente entre os jovens, como visto nos debates recentes sobre o consumo de carne e as mudanças climáticas. As cidadãs e os cidadãos não estão apenas falando sobre comida e mudando seus comportamentos alimentares individuais por conta de questões políticas e éticas, mas também criando formas coletivas de promover relações alternativas de produção, distribuição, preparo, consumo e descarte de alimentos. Além disso, movimentos sociais com diferentes bases sociais, objetivos e estratégias se mobilizam para desafiar as forças estruturantes que geram e reproduzem as desigualdades no sistema alimentar. 

Os movimentos camponeses que lutam contra as desigualdades de classe no acesso aos meios de produção – tais como terra, créditos e políticas de apoio à produção – têm incorporado questões referentes à cultura alimentar e à produção agroecológica de alimentos sob a bandeira da soberania alimentar (HOLT-GIMÉNEZ; ALTIERI, 2013; MARTÍNEZ-TORRES; ROSSET, 2014). As iniciativas alimentares alternativas – muitas vezes lideradas por consumidores – visam criar redes de solidariedade entre a produção e o consumo em sistemas alimentares locais e na agricultura apoiada pela comunidade (ALLEN, 2010; GOODMAN; DUPUIS; GOODMAN, 2012). Movimentos feministas têm abordado a questão da soberania alimentar, enquanto os movimentos camponeses têm reagido às desigualdades de gênero dentro de suas estruturas (SILIPRANDI, 2015; AGUIAR, 2016; MASSON; PAULOS; BEAULIEU BASTIEN, 2017; CONWAY, 2018). Movimentos por justiça alimentar têm condenado o privilégio branco que existe no interior dos movimentos alimentares, assim como o racismo institucional que atua no sistema alimentar – visível, por exemplo, na falta de acesso a alimentos nutritivos em comunidades não brancas e pobres (SLOCUM, 2007; ALKON; AGYEMAN, 2011; GUTHMAN, 2011). As lutas decoloniais pelos direitos territoriais dos povos indígenas e quilombolas incorporam discursos de soberania alimentar para denunciar a insegurança alimentar e a privação de práticas alimentares que são culturalmente adequadas (SANTOS, 2020). Os movimentos veganos e aqueles que atuam em defesa dos direitos dos animais clamam por justiça interespécies, e as análises sobre o tema seguem o seu exemplo ao incorporar relações alimentares multiespécies de resistência e cuidado (BEILIN; SURYANARAYANAN, 2017; GARCÍA, 2019). O veganismo surge como uma nova prática entre feministas urbanas, movimentos de black soul e ecofeministas (CARMO, 2019).

As inovações e mobilizações sociais em torno dos alimentos são um lócus privilegiado para a análise da mudança social, uma vez que os atores nelas envolvidos estão ativamente engajados na transformação das relações alimentares e do sistema alimentar. Na medida em que identificam as injustiças associadas à alimentação e constroem soluções para ultrapassá-las, elas nos oferecem lentes excepcionais para identificar as principais dimensões e dinâmicas das desigualdades sociais em curso. Nesse sentido, ao acompanhar as agendas e lutas dos movimentos sociais, assim como a ação coletiva de iniciativas alimentares alternativas, obtém-se uma melhor compreensão da mudança social através do prisma dos alimentos. As pesquisas têm se concentrado em um ou outro aspecto dessas dinâmicas de mudança, acompanhando este ou aquele tipo de movimento ou iniciativa alimentar alternativa, conforme visto na literatura citada anteriormente. A multiplicidade de movimentos e iniciativas alimentares, no entanto, justifica uma abordagem mais sistemática para se fazer um balanço de seus impactos agregados na dinâmica de transformação do sistema alimentar. A transformação na direção de um sistema alimentar justo, democrático e ecológico, conforme será argumentado ao longo deste artigo, é um empreendimento complexo. É uma tarefa na qual várias organizações e movimentos da sociedade civil têm se envolvido, cada um focando em eixos específicos de injustiça, às vezes também tematizando a interseccionalidade das desigualdades e construindo alianças e solidariedades. Um quadro conceitual que faça jus a essa complexidade é necessário para que se possa avaliar a contribuição relativa desses grupos e iniciativas.

Este artigo busca oferecer uma dupla contribuição para a compreensão dos processos de mudança social que estão em curso neste momento de crescente politização das relações alimentares. Em primeiro lugar, ao desenvolver o conceito de desigualdades alimentares, o artigo – em uma análise interseccional – organiza a literatura sobre movimentos e iniciativas alimentares de acordo com suas respectivas ênfases em diferentes eixos de desigualdade. Mais do que servir como referencial analítico, uma abordagem interseccional que faça jus às suas origens nas lutas feministas negras deve manter seus fundamentos críticos e normativos vis-à-vis seus objetivos emancipatórios. Assim, fundamentado em epistemologias feministas e em compromissos políticos com a mudança social, o conceito de desigualdades alimentares deve servir também como um guia para investigar exclusões e potenciais de construção de solidariedade entre esses movimentos. O conceito de desigualdades alimentares baseia-se também no referencial teórico das desigualdades globais entrelaçadas (global entangled inequalities) (JELIN; MOTTA; COSTA, 2017) e busca incorporar: (1) múltiplas forças estruturais (socioeconômicas, sociopolíticas, socioecológicas e culturais) que produzem ordenações hierárquicas nas relações de produção, comercialização, preparo, consumo e descarte de alimentos; (2) uma perspectiva multiescalar e relacional, com foco nas interdependências entre fenômenos nos níveis macro, meso e micro, abarcando desde tendências históricas globais até negociações locais, aproximando espacialidades urbanas e rurais; (3) desigualdades plurais e interseccionais que afetam grupos sociais classificados em diversos eixos de diferenças; (4) dinâmica de transformação. 

Em segundo lugar, o artigo busca contribuir para uma sociologia do conhecimento na literatura dos movimentos alimentares, aproximando os estudos do Norte Global e do Sul Global, os quais não têm dialogado entre si. Ao conceber uma agenda feminista de estudos alimentares, Sachs e Patel-Campillo (2014) criticaram o paradoxo do aumento da participação das mulheres nos movimentos alimentares versus a ausência de uma consciência feminista dentro desses movimentos. No entanto, suas conclusões são baseadas em estudos empíricos conduzidos apenas nos Estados Unidos, desconsiderando a proliferação de movimentos alimentares feministas em outros países. Na América Latina, os feminismos populares fizeram uma interpretação produtiva em termos interseccionais sobre a expansão das fronteiras agrícolas sobre os corpos femininos e subalternos, articulando lutas anticapitalistas e socioambientais, e agendas de justiça de gênero e soberania alimentar (GAGO, 2020; MOTTA; TEIXEIRA, 2022). Frequentemente, as diferentes pesquisas se vinculam a diferentes regiões do mundo, como os movimentos por justiça alimentar que emergem nos Estados Unidos (ALKON; AGYEMAN, 2011), movimentos de soberania alimentar mais fortes no Sul Global (MARTÍNEZ-TORRES; ROSSET, 2014), movimentos agrários feministas mais ativos na América Latina e Sudeste Asiático (AGARWAL, 1995; DEER; LEÓN, 2001), a agroecologia mais forte na América Latina (ALTIERI; TOLEDO, 2011) e movimentos alimentares locais mais comuns no Norte Global (GOODMAN; DUPUIS; GOODMAN, 2012).

Construir conhecimento sobre as transformações nos sistemas alimentares globais é um desafio em curso, e deve ser encarado como uma agenda coletiva que vai claramente muito além das aspirações e possibilidades deste artigo. Tal desafio implica reunir as várias perspectivas parciais que foram desenvolvidas em diferentes partes do mundo, com diferentes posicionamentos sociais – particularmente as vozes subalternas (HARAWAY, 1988; KILOMBA, 2010). Isso significa situar e descentrar não apenas o sujeito social dos sistemas e movimentos alimentares, visto que ativistas, consumidores, produtores, por exemplo, não são sujeitos abstratos e universais, e sim corpos marcados e situados socialmente, como situar também a própria construção do conhecimento sobre o tema. As transformações que ocorrem nos debates políticos – em que é salientado o lugar ocupado socialmente por quem fala ou escreve e assumir a responsabilidade por ele (RIBEIRO, 2019) – oferecem a nós, da academia, um exemplo a ser seguido. O meu lugar de fala é de uma mulher cis acadêmica migrante (não subalterna) geopoliticamente situada no norte da Europa, realizando pesquisas na América Latina e na Alemanha.

Considerando este lugar de fala, pretendo contribuir nesse esforço construindo pontes entre a literatura em língua inglesa, sobretudo sobre experiências norte-americanas e europeias, e a literatura em português e espanhol, referente a casos brasileiros e, quando possível, outras experiências latino-americanas, sem com isso reivindicar níveis (irrealizáveis) de abrangência ou representação. O artigo baseia-se em uma revisão da literatura sobre movimentos sociais e alimentação. Para isso, foram realizadas buscas por palavras-chave em inglês, nas bases de dados Scopus, Web of Science e Jstor, e em português e espanhol nos bancos de dados Scielo, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDBT), Catálogo de Teses e Dissertações (Capes), Latindex, Clase, Red de Bibliotecas Virtuales de Ciencias Sociales da América Latina y el Caribe (Clacso) e Google Scholar.[2] Todos os resumos foram lidos, e os artigos que mais claramente tratavam de movimentos sociais envolvidos com o tema das desigualdades alimentares foram selecionados. Por razões de escopo, nem todos puderam ser citados, mas apenas aqueles considerados exemplares para uma análise dos eixos das desigualdades. Quando pertinente, também me referenciei nas minhas pesquisas sobre movimentos alimentares (MOTTA, 2016, 2017; TEIXEIRA; MOTTA, 2020). A pesquisa e a análise são exploratórias e qualitativas.

Com esta combinação de idiomas pesquisados na revisão de literatura, inglês, português e espanhol, a versão original deste artigo, publicada em inglês, almejou superar alguns dos limites trazidos pela geopolítica do conhecimento científico, a qual desfavorece os estudos em língua não inglesa realizados no Sul Global, e trazer contribuições sobre este tema vindas do Brasil e da América Latina, considerando sua importância nas redes transnacionais de alimentação e ativismo rural. Esta versão, traduzida e adaptada ao português, é parte, por um lado, de um esforço para disponibilizar os resultados e ampliar o acesso ao público brasileiro de debates sobre os estudos da alimentação em publicações em língua inglesa. Porém, mais do que isso, trata-se de uma pesquisa relevante também para o contexto brasileiro e da América Latina, na medida em que inova ao organizar uma literatura rica, diversa e dispersa, em uma chave conceitual e analítica nova, a do conceito das desigualdades alimentares, a partir de uma análise interseccional.

O artigo se estrutura da seguinte maneira: inicia-se com uma nota explicativa sobre os diversos movimentos sociais e iniciativas que serão abrigados sob o (imperfeito) termo guarda-chuva “movimentos alimentares”. Em seguida, classifiquei analiticamente em categorias de acordo com o eixo principal de desigualdade tematizado, a saber: (1) classe; (2) gênero; (3) raça; (4) diferença colonial urbano-rural e indigeneidade; e (5) diferenças categóricas entre humanos e não humanos com ecologias e outras espécies. Em cada eixo de desigualdade, chamei a atenção para as intersecções com outras categorias de desigualdade e para as exclusões que estão presentes. Logo após, partindo das intersecções entre as categorias, desenvolvi o conceito de desigualdades alimentares interseccionais e discuti a contribuição do artigo para a compreensão da mudança social a partir das lentes dos movimentos alimentares.

 

Movimentos alimentares

Movimentos camponeses, redes alimentares alternativas, alianças entre feministas e movimentos por soberania alimentar, movimentos por justiça alimentar, movimentos agroecológicos, veganismo: todas essas mobilizações e iniciativas que lidam com as desigualdades no sistema alimentar foram reunidas – para os propósitos deste artigo – sob o termo guarda-chuva “movimentos alimentares”. Essa denominação não esgota suas agendas e histórias. Muito pelo contrário, alguns desses movimentos só assumiram recentemente e de modo marginal a questão da “comida”, embora estejam há muito tempo engajados tanto no combate às desigualdades interseccionais que afetam a alimentação e a agricultura quanto na construção de mundos alternativos em que os alimentos são vistos como teias de vida. Analisamos brevemente os principais movimentos sociais e iniciativas selecionados para este estudo.

Os movimentos compostos por pessoas pobres do campo constituem um dos setores mais ativos no combate ao sistema agroalimentar. Eles são

uma categoria social altamente heterogênea, [...] inclui pequenos proprietários agricultores, meeiros, arrendatários, trabalhadores rurais, trabalhadores migrantes, pescadores para subsistência e trabalhadores da pesca, habitantes da floresta, povos indígenas, mulheres camponesas e pastores. (BORRAS JR.; EDELMAN; KAY, 2008, p. 1)

Esses grupos formam a base da Via Campesina, o maior movimento social transnacional, presente em todas as regiões do mundo. Sua principal bandeira de luta é a soberania alimentar, conceito que afirma a alimentação como um direito, abordando também questões de poder e autonomia. Eles vêm fomentando relações alternativas entre seres humanos e meio ambiente na produção de alimentos, promovendo um deslocamento da lógica de exploração para a lógica do cuidado e da preservação, sobretudo por meio da promoção da agroecologia. Está em curso um processo de mudança social, qual seja, a reconstrução dos territórios camponeses no contexto das lutas contra a agricultura industrial capitalista. A agroecologia constitui um discurso contra-hegemônico, mas também um conjunto de saberes, técnicas, práticas e relações.

As agendas feministas e de soberania alimentar se cruzaram na esfera transnacional por meio da colaboração entre a Via Campesina e a Marcha Mundial das Mulheres, uma aliança popular feminista transnacional cujo princípio fundacional é a luta contra a fome, a pobreza e a violência sexista. Essa aliança é parcialmente explicada pela influência de lideranças brasileiras e latino-americanas em ambos os movimentos transnacionais (MASSON; PAULOS; BEAULIEU BASTIEN, 2017; CONWAY, 2018). A conformação de uma visão feminista da soberania alimentar pode ser atribuída a tais colaborações. Um claro exemplo é a Declaração de Nyéléni de 2007. Tal declaração é resultado do Fórum Mundial para a Soberania Alimentar, no qual 500 delegadas e delegados de todos os continentes se reuniram na aldeia que deu nome à Declaração: “Soberania alimentar implica novas relações sociais, livres de opressão e desigualdade entre homens e mulheres, povos, grupos raciais, classes sociais e gerações.”

Redes alimentares alternativas (conhecidas em inglês como AFNs – Alternative Food Networks) incluem: iniciativas para estabelecer conexões diretas entre produtores e consumidores como feiras livres (farmers’ markets) e agricultura apoiada pela comunidade (CSA – Community Supported Agriculture); comercialização de produtos alimentícios diferenciados, como os orgânicos, os localmente produzidos, os de qualidade premium, os artesanais, os de Comércio Justo (Fair Trade); esforços por estabelecer relações alimentares no nível local (localizing food relations), por exemplo, por meio dos sistemas alimentares locais, entre outras ações. Iniciativas alimentares alternativas também podem ser encontradas em políticas públicas que criam mercados institucionais para fortalecer produtores e regiões, incluindo programas que estimulam a venda de alimentos locais para a merenda escolar e bancos de alimentos. Goodman, Dupuis e Goodman (2012) questionam a identificação automática e idealizada do local como o alternativo, ao criticar a essencialização de categorias de escala, tais como o local e o global. Em vez disso, eles se ancoram em uma teorização crítica para avaliar questões de justiça social e sustentabilidade. Na mesma linha, Allen (2010) destaca a importância de se garantir justiça social e participação democrática em todos os esforços de construção de sistemas alimentares locais. Apesar das AFNs locais possuírem limites estruturais em sua capacidade de alterar dinâmicas nacionais e globais, elas “oferecem excelentes oportunidades para vislumbrar e incubar uma maior equidade no sistema alimentar” (ALLEN, 2010, p. 298). A mudança social no sistema alimentar global pode então surgir de crescentes experimentações em uma miríade de iniciativas locais.

Nos Estados Unidos, o movimento por justiça alimentar cresce valendo-se dos legados das lutas tanto do movimento pelos direitos civis e contra a segregação racial em espaços e serviços públicos quanto dos movimentos por justiça ambiental que denunciam a contaminação química nos bairros onde habitam comunidades de baixa renda e não brancas (ALKON; AGYEMAN, 2011). O movimento por justiça alimentar amplia a agenda dos movimentos por justiça ambiental – restrita, no que tange à alimentação, ao tema da contaminação química por agrotóxicos – e contextualiza as injustiças a partir de uma crítica mais ampla à agricultura industrial (ALKON; AGYEMAN, 2011). Os movimentos por justiça alimentar usam o mesmo repertório de iniciativas alimentares alternativas (feiras livres, hortas comunitárias, CSA), levando-as a comunidades não brancas de baixa renda. Eles visam melhorar o acesso a alimentos saudáveis, frescos e diversificados, aumentando assim a segurança alimentar. Buscam apoiar os agricultores locais e criar empregos estáveis e significativos, promovendo assim a justiça social. Finalmente, procuram expandir as áreas verdes e as possibilidades de lazer.

Todas essas lutas são importantes e o desafio é conseguir alianças, solidariedades e articulações. A transformação do sistema alimentar na direção de uma alternativa justa, democrática e ecológica não é uma tarefa fácil (HOLT-GIMÉNEZ; SHATTUCK, 2011) e “requer reconhecer e tratar as dinâmicas sobrepostas e conflitantes de raça, gênero, classe, sexualidade e cidadania relacionadas às desigualdades alimentares” (SACHS; PATEL-CAMPILLO, 2014, p. 409). Os movimentos alimentares têm de fato procurado essas intersecções e se articulado com outras lutas, expandindo sua agenda programática principal ou original. Nas próximas seções, analisamos os movimentos alimentares de acordo com seus respectivos focos em um ou outro eixo de desigualdade no sistema agroalimentar, ao mesmo tempo que abordamos brevemente como esses movimentos expandiram suas solidariedades e agendas – de forma interseccional – ao se engajar em outros eixos de desigualdades.

 

Classes de consumidores transnacionais, privilégio de classe em AFNs e solidariedades camponesas transnacionais

As desigualdades de classe estão no centro dos debates sobre os principais fatores que levam à transformação do sistema alimentar. De um lado, existem redes alimentares alternativas, geralmente – mas não exclusivamente – situadas no Norte Global, que demandam alimentos locais, saudáveis e orgânicos, enraizados, portanto, em práticas e discursos cegos às diferenças de classe social. De outro lado, há em todo o mundo movimentos agrários de pessoas pobres do campo que atribuem um caráter classista à sua luta contra a expropriação de terras e a favor do apoio estatal à agricultura familiar e camponesa. Em contraste com o enfoque historicamente dado à esfera da produção nas ciências sociais, há hoje um ativismo e um campo de pesquisa em ascensão que se dedicam à esfera do consumo, incluindo o ativismo político alimentar (PORTILHO, 2020). No entanto, esse tipo de ativismo traz consigo a marca do privilégio de classe, e é dentro desse registro que as análises sobre suas possibilidades emancipatórias – a construção de um sistema alimentar “alternativo” – têm sido informadas. Em relação a esse aspecto, algumas questões emergem. Até que ponto esses esforços são alternativos? Quem está se beneficiando deles? E quem está sendo excluído?

Para Goodman, Dupuis e Goodman (2012), as redes alimentares alternativas representam uma virada qualitativa, um deslocamento para longe do mundo industrial – fundamentado em convenções de preço e padronização – em direção a um mundo doméstico – baseado em convenções de confiança, tradição e localidade –, bem como a um mundo cívico, sustentado em valores de justiça social e sustentabilidade. Ao revisar estudos sobre os esforços norte-americanos para construir redes alimentares ecologicamente sustentáveis, estes autores concluíram que estas iniciativas têm privilegiado estratégias individualistas de consumerismo verde, negligenciando as economias morais de justiça social, tais como as condições de trabalho de trabalhadores agrícolas, o status vulnerável de cidadania desses trabalhadores, questões de raça, gênero e de acesso igualitário a alimentos nutritivos e de qualidade. Há casos de “localismo defensivo” reacionário e neopopulista, marcados por políticas conservadoras e sentimentos nativistas. Em sua revisão da experiência da Europa Ocidental, Goodman, Dupuis e Goodman veem as AFNs como um mecanismo de revitalização do meio rural que se vale de nichos de mercado, turismo rural e cadeias de valor territorializadas. No entanto, poucas vezes faz-se uma análise crítica das relações de poder dentro destas AFNs no que se refere às condições de trabalho, às desigualdades de gênero nas estruturas de propriedade e à divisão do trabalho dentro da família e também da fazenda. Finalmente, a partir da análise de experiências de AFNs globalizadas, incluindo os orgânicos transnacionais, os de Fair Trade ou Comércio Justo,[3] os produtos certificados e as redes, os autores apontam para a geração de desigualdades dentro das comunidades, e identificam o surgimento de assimetrias de poder provocadas pelas auditorias externas. Por outro lado, também mencionam o aprimoramento das capacidades locais e a construção de redes de solidariedade, o que gera tensões entre o mercado e o mundo cívico.

Apesar das boas intenções por trás das AFNs, sua proliferação pode gerar uma dinâmica global perversa. Como apontado por Friedmann (2005), a crescente demanda por alimentos ecológicos e de qualidade pode criar um efeito indesejado, qual seja, gerar um sistema alimentar dividido em classes, em vez de sistemas alimentares alternativos. Para Friedmann, as reivindicações dos movimentos sociais pela produção de alimentos ecológicos e saudáveis se tornaram uma estratégia de mudança social privatizada: a demanda do consumidor por produtos de qualidade. Surge então um novo regime alimentar corporativo-ambiental, evidenciado pelo capitalismo verde, que se apropria de forma seletiva das pressões dos movimentos sociais para a maximização das oportunidades de lucro. Haveria então duas cadeias diferenciadas de abastecimento de alimentos atendendo a duas classes transnacionais: consumidores ricos e consumidores pobres. O capital privado esquiva-se da regulamentação estatal estabelecendo padrões privados em uma miríade de certificações em relação à qualidade, origem e métodos de produção, de modo a atender às demandas de consumidores abastados e privilegiados, tanto no Norte Global quanto no Sul Global. Novas formas de distinção social surgem por meio de novas tendências no consumo político e ético. “Boa comida” passa a estar associada ao acesso a conhecimento e renda, e práticas elitistas dos AFNs estabelecem distinções entre aqueles que comem boa comida e os outros que são “comedores industriais” (ALKON; AGYEMAN, 2011). A maior mercantilização dos alimentos, por sua vez, sistematicamente gera insegurança alimentar para grupos sociais nas intersecções de desigualdades de gênero, classe, raça e cidadania.

Ao contrário de Friedmann, McMichael (2005) argumenta que o que constitui a principal transformação do regime alimentar – denominado por ele de regime alimentar corporativo – não é a diferenciação entre classes de consumidores, mas sim a luta de classes associada à produção de alimentos. A crescente concentração de terra, capital e controle em todos os nós da cadeia agroalimentar global nas mãos de corporações – desde sementes, insumos químicos, até transporte, comercialização, processamento e varejo – acontece sob a proteção de acordos multilaterais de livre comércio negociados por Estados. O Estado neoliberal está ativamente envolvido neste processo, de um lado desregulamentando políticas que antes protegiam a agricultura de pequena escala e, de outro, regulamentando direitos de propriedade intelectual sobre sementes e flexibilizando políticas de proteção da saúde e do meio ambiente. A acumulação via espoliação é subjacente à lógica que contrapõe os sistemas alimentares “produtivos” aos sistemas alimentares de subsistência, estes últimos sendo desvalorizados juntamente com os saberes, práticas e povos empenhados no desenvolvimento de culturas alimentares camponesas. Isso é legitimado em nome do desenvolvimento, o qual constrói o consumidor urbano modelado de acordo com os padrões ocidentais, ao mesmo tempo que joga os modos de vida camponeses para a lata de lixo da história. Nesse contexto, os movimentos de soberania alimentar, liderados pelo movimento camponês transnacional Via Campesina, surgem como agentes principais das transformações emancipatórias do sistema alimentar, contrariando a dinâmica de acumulação capitalista ao reivindicar a reforma agrária. Em muitas regiões, os movimentos camponeses têm uma forte identidade de classe e caracterizam sua luta sobretudo como anticapitalista.

A Via Campesina é o maior movimento de base camponês transnacional, e reivindica representar grupos que realmente trabalham na terra ou produzem alimentos a partir de modos de vida diversos, tais como pescadores, pastores, habitantes da floresta. Distingue-se por fazer uma combinação de ação direta e negociação crítica com instituições multilaterais, tendo desempenhado um papel fundamental no questionamento da hegemonia do regime de livre comércio (BORRAS JR.; EDELMAN; KAY, 2008; MARTÍNEZ-TORRES; ROSSET, 2010). As ambivalências da Via Campesina e da agenda da soberania alimentar estão no centro de debates sobre como conciliar a defesa da agricultura familiar com o combate às desigualdades de gênero (AGARWAL, 2014); sobre a importância de não descartar completamente a tecnologia, mas sim moldar seu desenvolvimento para fins emancipatórios (KLOPPENBURG, 2014); e sobre a necessidade de estabelecer relações com mercados internacionais e domésticos, bem como com o Estado, para construir um modelo alternativo de desenvolvimento agrário que responda aos desafios globais (EDELMAN et al., 2014). Juntamente com a centralidade da reforma agrária e dos direitos, os movimentos camponeses abordam outras dimensões de desigualdades em uma série de situações, assumindo pautas feministas e ecológicas, e experimentando novas possibilidades disponíveis no mercado, como a busca por alianças com consumidores urbanos.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por exemplo, tornou-se o principal produtor e exportador de arroz orgânico do Brasil. Inovou ao criar cooperativas e desenvolver uma produção agroecológica de alimentos como formas de resistência (PAHNKE, 2015). De Carvalho (2020) reconstrói as transformações nas pautas e nos repertórios do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), abrangendo desde o enfoque inicial no acesso ao crédito e aos programas de habitação rural nos anos 1990 até a conformação da identidade camponesa nos anos 2000. Isso contrasta com a sua identificação anterior como agricultores familiares na agricultura capitalista de pequena escala. Sendo membros da Via Campesina, eles desenvolveram o chamado Plano Camponês, cujo objetivo é levar comida à mesa de todos os brasileiros. Ambos os movimentos têm adotado iniciativas alimentares alternativas, tais como feiras livres, cestas básicas e o estabelecimento de lojas em centros urbanos, como o Armazéns do Campo, do MST, e o Raízes do Brasil, do MPA (TANAKA; PORTILHO, 2019). Niederle e Wesz Junior (2018) contam como as redes agroecológicas e os movimentos camponeses incluíram com sucesso na legislação brasileira sobre agricultura orgânica dois processos de certificação participativa – como alternativa à auditoria externa convencional, em geral muito cara e excludente – e desenvolveram certificações agroecológicas e biodinâmicas, as quais se somam às certificações que reconhecem produtos da agricultura camponesa e indígena.

Em nossas pesquisas, participamos de plenárias e seminários em que lideranças do MPA e do MST afirmaram a importância de se solidarizar com trabalhadores urbanos e com consumidores politizados por meio das redes alimentares e da agroecologia, destacando que o sujeito político da soberania alimentar é a classe trabalhadora. Esses esforços em ir além das questões clássicas das lutas de classes apontam para a importância de uma abordagem interseccional das desigualdades alimentares. Se, por um lado, as desigualdades de classe são politizadas por camponeses como o principal problema no sistema agroalimentar, por outro, elas também podem ser usadas como lente analítica para avaliar o caráter inclusivo das redes alimentares alternativas. Isto é, até que ponto os discursos e estratégias destes movimentos são permeados por privilégios de classe? Ao identificarem desigualdades e dinâmicas de classe em uma perspectiva global e transnacional, os debates sobre regimes alimentares transpõem o nacionalismo metodológico e o caráter estático da maioria das análises dos determinantes sociais da segurança alimentar. No entanto, por muito tempo, o foco de classe impediu a politização de outros eixos de desigualdade.

 

Desigualdades de gênero, movimentos alimentares feministas e pesquisas alimentares feministas

Desigualdades nutricionais de gênero foram historicamente documentadas em muitas regiões do mundo, com mulheres e meninas recebendo porções menores de alimentos (BEARDSWORTH; KEIL, 1996; PATEL, 2012). Para além do foco nas mulheres e no consumo de alimentos no lar, uma análise teórica de gênero do sistema alimentar revela as desigualdades de poder também nos níveis meso e macro. No nível macro, a concentração de poder nas mãos das corporações ao longo da rede de fornecedores ressalta as masculinidades hegemônicas, com lógicas baseadas na obtenção de lucro e externalização de impactos sociais e ambientais (PATEL, 2012; MOTTA, 2017). Há um viés sistêmico que condiciona o crédito público à compra de sementes patenteadas e de insumos químicos, enquanto os saberes e práticas agroecológicas das mulheres são invisibilizadas e deixados sem apoio técnico (SILIPRANDI, 2015). A disseminação de alimentos processados está no centro da economia política da obesidade/DCNT (doenças crônicas não transmissíveis); o Estado, no entanto, esquiva-se de regular o poder corporativo; em vez disso, de um lado responsabiliza os indivíduos por suas dietas, de outro, responsabiliza as mães pela educação nutricional. Muitos autores concordam que a solução é enfrentar as desigualdades de gênero na tomada de decisões que afetam as políticas agrícolas e alimentares (ALLEN; SACHS, 2007; PATEL, 2012; SACHS; PATEL-CAMPILLO, 2014). Isso vale também para o nível meso de ordenamento social, nas organizações e movimentos sociais: as mulheres atuam na base dessas organizações, mas raramente alcançam cargos políticos que lhes permitiriam influenciar as políticas de Estado.

Allen e Sachs (2007) classificam as perspectivas de gênero sobre a alimentação em três domínios de teorização feminista. A primeira é corporal e diz respeito à relação atormentada da mulher com a alimentação em virtude das expectativas sociais em relação ao seu corpo. O segundo domínio é sociocultural e discute a responsabilidade das mulheres pelo trabalho de cuidado relacionado à alimentação em casa. As mulheres de classe média podem transferir o trabalho de cuidado a outras mulheres em trabalhos precários, em vez de renegociar a divisão de gênero do trabalho. Embora as mulheres sejam tipicamente mais engajadas como consumidoras políticas, as pesquisas feitas no campo de estudo sobre consumo político são cegas ao gênero. O terceiro domínio é de ordem material e se refere ao trabalho agrícola, na indústria de alimentos e no varejo: as mulheres tendem a ser contratadas para trabalhos sazonais, flexíveis, de meio período e em cargos inferiores. Assim como trabalhadores não sindicalizados e migrantes sem documentos, elas recebem salários mais baixos pelo mesmo trabalho e ficam expostas ao assédio sexual. Os homens, ao contrário, se concentram em posições de liderança e gestão em empresas do agronegócio e nas ciências agrícolas (em oposição ao domínio feminino na área de nutrição).

Apesar da participação ativa das mulheres nos movimentos alimentares, Allen e Sachs observam “uma curiosa ausência do feminismo per se nos esforços das mulheres em criar mudanças no sistema agroalimentar, com exceção da política do corpo” (ALLEN; SACHS, 2007, p. 13-14), já que as mulheres não desafiam de forma consciente as desigualdades de gênero, mas, em vez disso, reinscrevem essas desigualdades no interior dos movimentos sociais ao assumir tarefas mais invisibilizadas no lugar de posições de liderança. A política feminista do corpo, entretanto, não considera as divisões desiguais do trabalho por gênero, por exemplo, o preparo da comida, o qual funciona como um gatilho para a violência doméstica, em si um tema bem estabelecido dentro dos movimentos feministas (ALLEN; SACHS, 2007).

Indo além dos referentes empíricos presentes nas obras anteriormente citadas, e movendo-se para o hemisfério sul, mais especificamente para a América Latina, vemos que há de fato uma proliferação de movimentos alimentares feministas de base. Na década de 1990, a mobilização das mulheres pela posse de terra abordou questões associadas à desigualdade de poder no interior dos movimentos agrários e indígenas (DEERE; LEÓN, 2001).[4] No Brasil, a mobilização feminista em movimentos agrários conseguiu promover algumas mudanças em políticas públicas, como os títulos de propriedade conjunta, e também obteve direitos trabalhistas, como aposentadoria e licença maternidade. Tanto nos sindicatos urbanos quanto nos rurais, a implementação das regras de paridade teve início na década de 1990 (AGUIAR, 2016; PIMENTA, 2019). Os movimentos da Via Campesina também incluíram a questão de gênero em sua agenda, embora inicialmente tenha havido relutância por receio de deslocar o foco da luta de classes (DEERE; LEÓN, 2001). O Movimento de Mulheres Camponesas, também integrante da Via Campesina, surgiu como um movimento autônomo, uma alternativa às estratégias de promoção da igualdade de gênero no interior de movimentos sociais mistos. Em 2000, o MST criou um setor de gênero que atua em todas as suas instâncias e, recentemente, também tratou da questão dos direitos LGBT; mas foi somente em março de 2020 que o movimento organizou o I Encontro Nacional de Mulheres Sem Terra. Em 2003, o MPA organizou o I Encontro Nacional sobre Relações de Gênero, Poder e Classe (DE CARVALHO, 2020) e posteriormente publicou, em colaboração com acadêmicos, um livro sobre mulheres camponesas (NEVES; MEDEIROS, 2013). Há uma discussão em curso sobre os limites das regras de paridade dentro dos movimentos agrários. O desafio é fazer mais do que ter mulheres apenas ocupando cargos nos setores de gênero, juventude e educação e, em vez disso, reconhecer sua contribuição em discussões mais amplas sobre terra, desenvolvimento agrário e políticas alimentares.

O feminismo também é uma força mobilizadora no interior da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), uma rede – fundada em 2002 – que reúne movimentos agrários e urbanos e iniciativas alimentares alternativas. O slogan “sem feminismo não há agroecologia” ganhou força dentro da ANA, uma declaração de que a agroecologia envolve não apenas a transição para a agricultura ecológica, mas também uma mudança social nas relações de gênero. Mulheres ativistas dentro da Via Campesina realizaram importantes ações de protesto no dia 8 de março em todo o Brasil (MENEGAT; SILVA, 2019), associando uma data-chave no calendário feminista a demandas por transformação no sistema alimentar. Em paralelo, a mobilização feminista dentro dos sindicatos rurais liderou a Marcha das Margaridas, uma marcha nacional de protesto que contou com seis edições desde 2000, levando entre 20.000 e 100.000 mulheres a Brasília (TEIXEIRA; MOTTA, 2020). A Marcha das Margaridas surgiu em aliança com diversos movimentos rurais e feministas, entre os quais a Marcha Mundial das Mulheres.

Se de um lado as agendas dos movimentos populares feministas e dos movimentos de soberania alimentar articulam desigualdades de classe e de gênero, de outro, nesses movimentos um claro posicionamento antirracista deixa a desejar (CONWAY, 2018; MOTTA, 2021). Movimentos populares feministas no Brasil, entretanto, têm rejeitado veementemente o discurso que atribui a atual epidemia de obesidade à inserção das mulheres no mercado de trabalho nas últimas décadas do século XX, e fazem isso não apenas por meio da demanda feminista pela divisão igualitária da responsabilidade sobre o trabalho de cuidado, mas também condenando o privilégio de classe e de raça que permeiam tal narrativa. A agenda antirracista está no centro dos movimentos por justiça alimentar dos Estados Unidos, aos quais nos voltaremos a seguir. 

 

Movimentos por justiça alimentar: uma crítica antirracista explícita

As redes alimentares alternativas têm sido criticadas por seu privilégio branco e de classe, que permeiam suas narrativas, seus estilos de vida e sua principal estratégia: a compra de alimentos orgânicos locais como meio de promover mudanças econômicas, ambientais e sociais no sistema alimentar (GUTHMAN, 2008, 2011; SLOCUM, 2007). Abordagens antirracistas e análises de classe convergem aqui ao destacar o racismo institucional e as desigualdades estruturais na economia política do sistema alimentar, os quais conformam o contexto em que as escolhas alimentares serão feitas: “a economia política racializada da produção e distribuição de alimentos se encontra com a política cultural do consumo de alimentos” (ALKON; AGYEMAN, 2011, p. 13, tradução livre). Rejeitando a estrutura individualista de escolha, os estudos destacam, em vez disso, os limites e possibilidades socioeconômicas e culturais que os ambientes alimentares oferecem. Conceitos como desertos alimentares e pântanos alimentares ajudam a explicar a maior incidência de insegurança alimentar, desnutrição e obesidade entre grupos de baixa renda e não brancos. A falta de acesso a uma dieta diversificada, nutritiva, balanceada e de custo acessível está vinculada ao racismo institucional do planejamento urbano, o qual, intencionalmente ou não, promove uma segregação espacial que prejudica sistematicamente os não brancos.

Em reação a esse cenário, o movimento por justiça alimentar almeja fomentar sistemas alimentares comunitários locais, justos e sustentáveis. Procura expandir as discussões sobre tais sistemas alimentares para explicitamente incluir considerações de equidade e justiça socioeconômica e racial (ALLEN, 2010). Afirmam ainda que os benefícios que os sistemas alimentares locais trazem à saúde e ao meio ambiente devem ser acessíveis a todas as comunidades marginalizadas. Essas iniciativas dão ênfase à mobilização de base, à dinâmica organizacional enraizada na comunidade e ao acesso ao poder de decisão em políticas e assuntos que afetam suas comunidades. É necessário fazer uma advertência neste ponto. A definição da comunidade como sujeito político dos sistemas alimentares emancipatórios deve ser acompanhada da ressalva de que as comunidades não são entidades livres de conflitos ou poder, e podem, portanto, reproduzir desigualdades patriarcais. De fato, diversos autores observam que os movimentos por justiça alimentar não levam em consideração as intersecções com a dimensão de gênero (ALKON, 2012; SMITH, 2019).

Apesar de o racismo institucional operar semelhantemente na estruturação hierárquica do sistema alimentar do Brasil – país frequentemente comparado aos Estados Unidos em debates sobre racismo, com porcentagem muito mais elevada de negros na população –, seu ativismo antirracista é muito distinto. Justiça alimentar não é uma expressão ou denominação comum para movimentos brasileiros, mas há um crescente engajamento do ativismo negro em questões alimentares, o que pode ser constatado pela proliferação de eventos públicos, trabalhos artísticos engajados, podcasts, grupos de mídia social. Movimentos negros urbanos e ativistas negros têm usado o termo “nutricídio”, emprestado da ativista norte-americana Llaia O. Afrika (RIBEIRO, 2020). Tal termo refere-se à degradação da saúde das pessoas negras como algo relacionado à mudança nas dietas alimentares e na cultura em razão do crescente papel do poder corporativo na promoção de alimentos industrializados. Os ativismos afro-vegano, vegano periférico e feminista vegano negro estão organizando eventos e muito ativos nas redes sociais, contrapondo-se assim ao privilégio classista e racial dos movimentos feministas veganos (CARMO, 2019). Há registros da participação de movimentos negros em debates sobre segurança e soberania alimentar durante o Fórum Social Mundial em Salvador, na Bahia, em 2018, ocasião em que o tema do acesso das mulheres negras à alimentação como direito humano foi trazido à tona (HIDALGO et al., 2020).

A adoção de uma forte crítica antirracista ainda é um desafio político para movimentos sociais brasileiros organizados para desafiar as injustiças no sistema alimentar. Nos movimentos camponeses mencionados anteriormente, quase não há alianças com movimentos negros. Apesar de suas bases serem formadas em sua maioria por pessoas não brancas, os movimentos camponeses não conseguiram incorporar as desigualdades raciais, em contraste com as pautas de gênero – uma ausência que tem sido notada por ativistas e estudiosos. Provocativamente, uma ativista-acadêmica chama a atenção para a falta de uma abordagem interseccional nas redes agroecológicas: “se há racismo não há agroecologia e também não há feminismo” (MOTTA, 2020, p. 3). Nos documentos oficiais da Marcha das Margaridas mencionam-se intersecções de classe, gênero, raça, etnia, mas ainda há um longo caminho até a adoção de uma clara postura antirracista. De Souza (2017) entrevistou líderes do MST na Bahia – estado com a maior proporção de pessoas negras no Brasil – a fim de entender por que o MST não se dedica à questão racial. Baseando-se em obras sociológicas fundamentais que articulam classe e raça, e considerando que as desigualdades sociais em áreas rurais são estruturalmente imbricadas com a escravidão e o racismo, Souza defende fortemente considerar as questões agrária e racial como questões que se constituem mutuamente. Ele considera um equívoco que camponeses e movimentos negros optem por focar em apenas uma dessas questões em vez de articular ambas as lutas; a mudança social não estará completa a menos que isso seja enfrentado.

Curiosamente, essas separações historicamente evoluíram a partir de dentro dos movimentos negros. Os quilombos, ou seja, as comunidades rurais negras formadas por pessoas escravizadas, fugitivos e ex-escravizadas, têm focado sua luta nos direitos territoriais. A resistência quilombola mostra como as lutas antirracistas fazem parte das lutas decoloniais (SANTOS, 2020).[5] As lutas pelos direitos territoriais historicamente representam a busca pela soberania sobre uma determinada porção de terra, pela autonomia para desenvolver práticas alimentares ecológicas e culturalmente adequadas. Relatos históricos mais recentes sobre a escravidão e a resistência no período colonial nas Américas colocam em xeque as descrições que vinculavam pessoas escravizadas a uma situação de vitimização, e reconhecem sua agência na construção de uma variedade de sistemas alimentares e economias mercantis dinâmicas, os quais superam aquilo que é retratado nas histórias de fugas isoladas e economias de subsistência. Na verdade, a produção de alimentos por povos escravizados foi decisiva em contextos de escassez crônica de alimentos, como as monoculturas. Santos (2020) afirma que as lutas pela soberania alimentar devem adotar a agenda racial devido à colonialidade do poder no sistema alimentar.

 

A colonialidade da diferença urbano-rural e a soberania alimentar dos povos indígenas

Ao assumir uma perspectiva decolonial sobre as desigualdades alimentares, abre-se a lente analítica a diferentes histórias de racialização, indo além da construção da negritude e da branquitude, tão central no caso dos Estados Unidos. Na América Latina, discursos de mestiçagem complexificaram categorias raciais dicotômicas, o que gerou efeitos duradouros na legitimação de desigualdades, e ainda cria obstáculos significativos para a resistência. Como consequência, muitas das lutas decoloniais não dão centralidade à pauta antirracista, apesar do papel constitutivo do racismo em sua condição subalterna. No caso do Brasil, os povos e comunidades tradicionais surgiram como categoria política a partir das lutas e alianças entre povos indígenas, comunidades rurais negras e diversos outros grupos rurais pobres que, apesar de não se identificarem com categorias primordialmente raciais ou étnicas, são, em geral, formados por não brancos. A luta pelos direitos territoriais representa o cerne das lutas decoloniais, uma vez que a violência colonial envolveu não apenas o genocídio de comunidades indígenas, mas a contínua desapropriação de suas terras e possibilidades de reprodução cultural. Nas lutas latino-americanas contra a colonialidade do poder e a colonialidade do gênero, a ruralidade representa uma categoria da diferença colonial que emerge no processo de construção de solidariedades. Apesar de não ser uma categoria estabelecida na análise interseccional, a ruralidade pode informar outras lutas em um contexto de aumento global da violência em áreas de extração de commodities, como em regiões de mineração e fronteiras agrícolas (MOTTA; TEIXEIRA, 2021). 

A colonialidade da diferença urbano-rural é um eixo da desigualdade que se cruza com a raça. Organizações de agricultores negros nos Estados Unidos condenaram a discriminação racial sistemática no acesso à terra, ao crédito e à assistência técnica. As leis de imigração garantiam o acesso à terra para grupos de imigrantes europeus, enquanto o negavam aos asiáticos (ALKON; AGYEMAN, 2011). As políticas de migração inscritas nos processos de construção da identidade nacional na América Latina também foram informadas pelo racismo científico. A terra foi distribuída para imigrantes vindos da Europa e da Ásia, mas nunca para vindos da África. No Brasil, de acordo com dados coletados em 5 milhões de propriedades rurais pelo Censo Agropecuário do IBGE de 2017, agricultores negros ocupam 74% das propriedades com menos de 5 hectares, e sua participação na posse da terra decresce na medida em que o tamanho das propriedades aumenta; já agricultores brancos possuem 70% das propriedades com mais de 1000 hectares (FONSECA; PINA, 2019). Essa intersecção de categorias raciais com direitos de cidadania também pode ser observada em comunidades de migrantes em outras partes do mundo. Migrantes pobres, sem documentos e discriminados racialmente têm mais probabilidade de serem explorados na condição de trabalhadores agrícolas. Considerando os diferentes históricos de racialização existentes em outros lugares, uma importante agenda de pesquisa para uma sociologia global da alimentação seria desvendar de que formas o racismo institucional se manifesta em diferentes partes do mundo.

A expropriação de terras e a discriminação cultural criam obstáculos para a produção e consumo de alimentos culturalmente adequados por parte de povos indígenas e tradicionais. A comida tradicional se torna um símbolo de resistência decolonial. As populações rurais pobres em todo o mundo são as mais afetadas pela insegurança alimentar (FAO et al., 2020), incluindo-se aí as populações indígenas (BERTONCELO, 2019). Nos Estados Unidos, Norgaard, Reed e Van Horn (2011) explicam que o aumento da pobreza e da insegurança alimentar entre povos indígenas deve-se não apenas à história das conquistas coloniais, mas às violações persistentes da autonomia e dos direitos territoriais que decorrem de projetos contemporâneos estatais de infraestrutura, como a construção de estradas e barragens. Tratam-se de projetos raciais, no sentido de que levam à assimilação forçada desses povos e dificultam o exercício das práticas culturais de gestão ambiental que moldaram a forma como os povos indígenas coletam e produzem alimentos.

Além das lutas territoriais, os povos indígenas e os povos tradicionais vêm ativamente construindo um sistema alimentar alternativo e contra-hegemônico. Alguns movimentos indígenas assumiram a pauta da soberania alimentar e também fazem parte da Via Campesina. Mulheres indígenas têm se mobilizado por seus direitos, articulando as agendas políticas dos direitos territoriais, dos feminismos populares e da política do corpo. Em 2019, no Brasil, 3.000 mulheres indígenas acamparam e marcharam em Brasília, juntando-se posteriormente à Marcha das Margaridas (TEIXEIRA; MOTTA, 2020). Novas iniciativas alimentares também podem favorecer a criação de espaços seguros para as mulheres indígenas. Em uma cooperativa de panificação, mulheres zapatistas trocaram experiências de opressão – como a violência doméstica – e estabeleceram laços de amizade e solidariedade feminista, superando o isolamento dos laços de parentesco (EBER, 1999).

Formas de resistência indígena também envolvem relações de mercado. No México, Hernández Castillo e Nigh (1998) estudaram como cafeicultores maias – o povo Mam da região de Chiapas – incorporaram princípios da agroecologia, do cooperativismo e do Comércio Justo em suas relações de produção e comercialização, em resposta às ameaças representadas pela entrada em vigor do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta). Contrariando noções essencializadas, Castillo e Nigh descrevem como os Mam participaram de oficinas ministradas pela Igreja Católica e aprenderam com o cooperativismo europeu, o qual lhes pareceu semelhante a suas tradições de trabalho comunitário. A agroecologia, por sua vez, ofereceu uma resposta adequada aos problemas que enfrentavam com os pesticidas e a degradação do solo, além de se aproximar de seu conhecimento e as tradições agrícolas. Eles conseguiram estabelecer um acesso direto a um mercado global de consumidores europeus ecológicos de agricultura orgânica.

Nem sempre os povos indígenas se beneficiam da mercantilização de seus produtos e culturas alimentares. Na nova cozinha peruana, a mestiçagem tornou-se um valor (de mercado). Depois de séculos de negação de referências indígenas, o Peru vive a celebração de uma culinária fusion multicultural que incorpora a comida indígena em processos de construção nacional, mas que, segundo Matta (2017), apoia-se em construções neoliberais sobre subjetividades empresariais que não promovem de fato a inclusão social dos povos indígenas subalternos. García (2013, 2019) volta o seu olhar ao que é subalterno nesse processo, trazendo para a análise mundos indígenas e não humanos invisíveis que compõem a rede de fornecedores da nação culinária. O histórico colonial de violência vai além do genocídio da população indígena e se manifesta também na colonialidade do poder que oprime as epistemologias e cosmologias dessa população, inclusive suas culturas alimentares. García conecta histórias de racialização e animalização através das quais foi estabelecido o domínio racial e sobre a natureza nos processos coloniais em entrelaçamentos de violência humano-animal. As cosmologias indígenas são não dualistas, mas envolvem ontologias relacionais mais-do-que-humanas que reconhecem agência política nas diversas relações estabelecidas nas teias de vida.

 

Não humanos: agroecologia, direitos dos animais e questões de cuidado

Existem pelo menos duas vertentes importantes de ativismo e de pesquisa sobre alimentação que vão além das categorias de desigualdade centradas no ser humano para também incluir as relações humano-ambientais e interespécies. Em primeiro lugar, como mostrado nas seções anteriores, diferentes movimentos e iniciativas adotam a agroeocologia como um discurso contra-hegemônico, uma prática agrícola e um movimento político. Uma “forma-movimento” chave da agroecologia é o método cubano campesino a campesino, ou camponês a camponês, no qual se estabelecem trocas horizontais para a solução de problemas na agricultura. Em suas pesquisas sobre movimentos no Brasil, na região andina, no México, na América Central e em Cuba, Altieri e Toledo (2011) falam de uma “revolução agroecológica” na América Latina, a qual se estruturaria em pilares epistemológicos, técnicos e sociais. A agroecologia vale-se tanto dos conhecimentos e técnicas tradicionais dos camponeses quanto da ciência contemporânea para produzir alimentos saudáveis e diversos com poucos insumos; ao mesmo tempo, resgata e conserva o solo e a agrobiodiversidade. É também um movimento político que empodera organizações camponesas, com potencial para “promover mudanças agrárias e sociais amplas e sustentáveis” (ALTIERI; TOLEDO, 2011, p. 587). Martínez-Torres e Rosset (2014) argumentam que a crescente adoção da agroecologia entre organizações da Via Campesina é resultado de suas práticas políticas e pedagógicas, as quais promovem um diálogo de saberes entre diferentes culturas rurais do mundo, incluindo tradições camponesas, indígenas, agrárias, pastoris e proletárias rurais. Ativistas da Via Campesina participam de treinamentos em agroecologia e liderança política ministrados em escolas e faculdades camponesas.

Uma segunda perspectiva é encontrada na área de humanidades ambientais, um novo campo de pesquisa transdisciplinar muito inspirado no trabalho pioneiro de Donna Haraway sobre espécies companheiras. Ao reconhecer que o ser humano estabelece com outras espécies uma relação estrutural de interdependência e entrelaçamento, seu trabalho exerceu grande influência e chamou a atenção para o antropocentrismo nas categorias científicas. Aprender a perceber, pensar e sentir com alteridades não humanas (TSING, 2015) é igualmente desafiador para os movimentos alimentares. As análises das desigualdades alimentares interseccionais deveriam incorporar os não humanos para que situações de injustiça sejam identificadas, redes de solidariedade desenvolvidas e a responsabilidade por tais injustiças, assumida.

Reconstruindo a história da mobilização pelo bem-estar e direitos dos animais, Heltosky (2012) argumenta que estes movimentos exerceram um impacto mensurável nas ideias e no comportamento associados ao consumo de animais e produtos de origem animal. Ao contrário das tradições culinárias que haviam sido foco dos estudos sobre alimentação, este é um caso de mudança culinária que resulta não da necessidade ou da adaptação à escassez de recursos, mas da escolha dos consumidores. O vegetarianismo e o veganismo surgiram de dois debates amplos que despontaram no Norte Global na década de 1970, quando se discutiam as consequências das dietas alimentares. Eram debates éticos sobre a subjugação de animais para fins humanos (especismo) e sobre as consequências das dietas à base de carne para o meio ambiente em um mundo de recursos escassos. Durante a década de 1990, a atenção pública à produção industrial de animais cresceu em razão da epidemia da vaca louca na Europa. Desde então, questões de crueldade e segurança alimentar foram levantadas em relação às práticas de criação de animais, incluindo o uso de antibióticos e hormônios. Os protestos que surgiram na Europa na esteira dos movimentos por justiça global também criticaram a McDonaldização dos alimentos, ou seja, a homogeneização das culturas alimentares ao redor do mundo, um fenômeno liderado pela indústria transnacional de alimentos. Heltosky contrasta esses movimentos com o vegetarianismo não intencional que pessoas pobres em todo o mundo foram forçadas a praticar até pelo menos a década de 1950, a partir de quando o consumo em massa de carne aumentou.

No entanto, é preciso situar essa mudança social nas dietas – ou transição nutricional – no Norte Global (BEARDSWORTH; KEIL, 1996); mesmo em sociedades ricas, essas tendências se mostram diferentes de acordo com a classe, raça, gênero, cidadania. No Sul Global, a carne e os alimentos processados são símbolos de ascensão social, e seu consumo só se tornou mais acessível a setores mais amplos da sociedade nas últimas duas décadas. Este não é um processo irreversível: há um aumento da insegurança alimentar em contextos de crise econômica, como no caso da pandemia de Covid-19 (GALINDO et al., 2021). Conforme observado anteriormente, um ativismo vegano vem crescendo no interior de movimentos negros e de movimentos periféricos no Brasil, mas é preciso ainda investigar como os movimentos veganos abordam questões de classe, privilégio racial e alteridade. A disseminação de práticas e repertórios veganos dentro dos movimentos feministas brasileiros foi estudada por Carmo (2019) sob o conceito de gastropolítica feminista. A autora investiga novos significados, valores, corporalidades e sujeitos políticos que emergem do cruzamento das gramáticas políticas do veganismo e do feminismo. Carmo argumenta que o veganismo reforça o processo de politização da esfera privada e se torna um signo político feminista a partir do qual convenções de gênero e sexualidade são contestadas. Ao incluir relações interespécies, ele aprofunda os debates sobre as hierarquias e opressões sobre corpos (comestíveis), sejam humanos ou de outra natureza. A gastropolítica feminista mostra a pluralidade tanto do veganismo quanto do feminismo. Ciente das exclusões raciais e de classe, a autora também nota a ausência de questões caras às lutas das mulheres rurais, fato que ela atribui ao caráter urbano e individualista do ativismo vegano. Entretanto, há um ativismo feminista vegano negro que cresce nos Estados Unidos e no Brasil.

Pesquisas também adotaram o especismo como categoria analítica para investigar as desigualdades alimentares. Em sua etnografia multiespécies sobre o novo boom da gastronomia peruana, García (2019) visita fazendas de porquinhos-da-índia (cuys), os quais passaram por um processo de ressignificação: antes associados à pobreza e ao racismo, agora aspiram ao cosmopolitismo da nova cozinha andina. Tendo testemunhado a morte de uma porquinha-da-índia grávida, ela interroga “quem conta como sujeito? Quem é transformado em ser matável, ou passível de ter sua morte lamentada? Quem vive e como?” (GARCÍA, 2019, p. 358). Desafiando a indiferença à violência exercida contra corpos femininos de cuys confinadas, instrumentalizadas para fins lucrativos e destinadas à morte, García abre possibilidades promissoras de queixa e compaixão. A partir de uma ética do cuidado, ela acredita que podemos aprender a nos sentir responsáveis por essas vidas. Uma “angústia profunda pode nos tornar mais abertos a formas de justiça mais radicalmente abrangentes que não dependem das previsíveis coletividades da família, nação, raça ou espécie, deixando espaço para o ‘nós imprevisível’ que cruza essas linhas” (GARCÍA, 2019, p. 368).

A justiça alimentar interespécies não envolve apenas o veganismo e a criação de animais. Inspirada pelo trabalho de Haraway e pelo apelo que Tsing (2015) faz em sua pesquisa com cogumelos para que cultivemos as artes de notar, observamos, durante nossa pesquisa sobre transformações agroecológicas em hortas domésticas e na agricultura familiar de pequena escala na cidade de Belo Horizonte, mudanças nos discursos e práticas mobilizados para se lidar com as “pestes” e as “pragas”. Em vez de combater formigas ou fugir delas (CABRAL, 2015), vimos participantes de oficinas falar em “coexistir com formigas” e disseminar a prática do cultivo consorciado como forma de criar espaços alimentares diversificados que também alimentam insetos. Em vez de encarar as hortas de forma instrumentalizada, como operações voltadas exclusivamente à alimentação humana, os praticantes da agroecologia reconhecem a necessidade de alimentar e cuidar dos não humanos. De forma equivalente, Beilin e Suryanarayanan (2017) incluíram outras espécies nas alianças contra a agricultura industrial na Argentina e, para essa finalidade, utilizaram o conceito de resistência multiespécies. Vista como uma praga para os produtores de soja, o amaranto tornou-se um aliado para as comunidades que lutam contra a expansão das monoculturas de soja e a contaminação do meio ambiente por agrotóxicos. Uma abordagem interespécies dos alimentos como teias de vida incluem outros reinos biológicos, como os fungos (TSING, 2015) e as bactérias do solo (PUIG DE LA BELLACASA, 2015). Puig de la Bellacasa vê as relações humanos-solo dentro do movimento de permacultura como uma alternativa às racionalidades exploratórias, instrumentais e unilaterais dos regimes dominantes de produção de alimentos. A partir de uma perspectiva feminista, ela entende o cuidado nas relações alimentares como algo que envolve dimensões ético-políticas, práticas e afetivas. A política do cuidado na produção de alimentos anseia por uma agricultura que preserve e repare o solo, que use técnicas de cuidado com o solo que fomentem teias alimentares. Curiosamente, embora estas técnicas representem práticas inovadoras para alguns movimentos alimentares, seus praticantes estão cientes de que elas possuem “mil anos de idade, incorporando conhecimento a partir das formas indígenas contemporâneas de reencenar ecosmologias ancestrais” (PUIG DE LA BELLACASA, 2015, p. 708). Seguindo a pista de Puig de la Bellacasa, adotar uma abordagem do cuidado implica perguntar-se: quem cuida de quem? Em outras palavras, quem é o sujeito político da política do cuidado alimentar? 

É problemático, portanto, quando perspectivas mais-do-que-humanas ou pós-humanas, ao expandirem a teorização das desigualdades e resistências para incorporar alteridades não humanas, o fazem esquecendo-se de descentrar os seres humanos. Por exemplo, conviver com minhocas e fazer compostagem pode se tornar uma tendência para indivíduos ricos e informados que buscam estilos de vida ecológicos nos centros urbanos, mas é preciso situar essa experiência e contextualizar as várias desigualdades envolvidas no descarte de alimentos; em muitas partes do mundo, há pessoas que buscam comida em depósitos de lixo. Ao se descentrar o especismo na prática ativista e na pesquisa sobre as desigualdades alimentares, corre-se o risco de tratar a espécie humana de forma indiferenciada. Seguindo as perspectivas feministas pós-humanas de Braidotti (2013), entende-se que os seres humanos não são todos igualmente afetados – e tampouco compartilham a mesma responsabilidade – em se tratando de questões globais como mudanças climáticas e segurança alimentar. Assim, os estudos críticos em alimentação devem enfrentar o desafio de incorporar muitos eixos de desigualdades, incluindo os não humanos, como animais, plantas, insetos, fungos, bactérias e ecologias. Da mesma forma, movimentos com foco nos direitos dos animais também devem ser criticamente avaliados em sua capacidade de se sensibilizar com outros seres humanos que sofrem injustiças no sistema alimentar.

 

Desigualdades alimentares interseccionais

Com base em uma revisão de estudos sobre movimentos sociais que lutam contra várias dimensões das desigualdades alimentares, este artigo buscou contribuir com este campo de pesquisa de duas maneiras. Primeiro, o conceito de desigualdades alimentares é desenvolvido como ferramenta analítica interseccional para compreender os diferentes eixos e dimensões das desigualdades, em suas várias escalas, assim como captar as dinâmicas de reprodução e mudança no sistema alimentar. O conceito aqui sugerido baseia-se no referencial teórico das desigualdades globais entrelaçadas (JELIN; MOTTA; COSTA, 2017). Em primeiro lugar, isso significa reconhecer a multidimensionalidade das desigualdades alimentares, visto que o ordenamento estrutural das relações alimentares envolve simultaneamente a economia política da agricultura, a política cultural da alimentação, a macropolítica de gênero do sistema alimentar, o racismo institucional e a colonialidade do poder presentes no sistema alimentar e os ordenamentos estruturais opressivos entre humanos e natureza. Em segundo lugar, as desigualdades alimentares globais entrelaçadas devem ser entendidas a partir de uma perspectiva multiescalar e relacional, no sentido de que podem ser observadas nos níveis dos corpos, lares, no interior das comunidades, nas organizações de movimentos sociais nacionais, em movimentos e alianças transnacionais, e em suas relações com a dinâmica global do sistema alimentar. Terceiro, as desigualdades alimentares não são apenas multidimensionais e multiescalares, mas também interseccionais, afetando diferentes grupos de maneira diversa. A literatura sobre movimentos alimentares foi estruturada a partir das categorias analíticas de classe, gênero, raça, ruralidade, indigeneidade e o não humano, as quais representam as faces mais visíveis da injustiça e do ativismo. Identificamos intersecções com outras categorias, de forma a construir um marco analítico no qual estas categorias não são adicionadas, mas avaliadas na medida em que incluem ou excluem outras categorias. Esse marco conceitual-analítico deve ser expandido para incluir diversas outras categorias de desigualdade, como deficiências (GERBER, 2007; WILLIAMS-FORSON; WILKERSON, 2011), sexualidade (SMITH, 2019) e outras que virão. Em quarto lugar, a discussão buscou identificar dinâmicas de mudança nas relações alimentares, incluindo novos ativismos, novas alianças entre movimentos alimentares e outros movimentos, assim como procurou apreender como as pautas circulam entre esses movimentos. Além disso, foram analisados os limites das lutas emancipatórias, por exemplo, quando as transições agroecológicas ou a formação de sistemas alimentares comunitários não são acompanhadas de uma discussão sobre poder e desigualdades de gênero dentro dos movimentos. O conceito foi construído indutivamente, seguindo os posicionamentos dos movimentos sociais contra as injustiças no sistema alimentar hegemônico, bem como suas políticas prefigurativas de construção de práticas alimentares alternativas. Concomitantemente, o conceito pode ser usado como uma lente analítica em expansão para fazer um balanço das novas lutas e das desigualdades invisibilizadas.

Um segundo objetivo do artigo foi construir pontes entre estudos sobre alimentação no Norte Global e no Sul Global, por meio da revisão de trabalhos que foram publicados em língua inglesa, portuguesa e espanhola. Por um lado, o artigo publicado em inglês visou decentralizar os estudos alimentares, ao incorporar pesquisas não publicadas como artigos das revistas indexadas nos bancos de dados dominantes, ou não conduzidas por autores baseados no Norte Global. O artigo recuperou debates de ativistas e acadêmicos da área da alimentação que trabalham na América Latina, com um foco maior no Brasil, e contribuiu para a construção de uma sociologia global da alimentação. Este é um esforço inicial, tendo em vista a força do ativismo e da pesquisa sobre alimentação na América Latina e a necessidade de expandir esses esforços para outras regiões e línguas do mundo. Por outro lado, o artigo visou provincializar a literatura dos estudos de alimentação do Norte Global, ao ir além da tradução de obras em língua inglesa para o público brasileiro, mas incorporando-as em um diálogo com a literatura latino-americana dentro de um marco analítico comum. Às pesquisas e às realidades empíricas latino-americanas não é, portanto, aplicado um marco conceitual desenvolvido em outras latitudes, mas elas servem de ponto de referência para a construção deste marco, que busca organizar a literatura de diferentes referenciais empíricos.

Este panorama geral também revelou que há dois debates a serem aprofundados sobre a dinâmica e direções das mudanças no sistema alimentar. O primeiro diz respeito às linhas de conflito e de construção de coalizões entre os movimentos pela alimentação. Embora haja consenso sobre a necessidade de reformar o sistema alimentar global, há uma série de divisões que impedem a formação de coalizões voltadas à transformação das relações alimentares em práticas justas, democráticas e ecológicas. Há divergências quanto à liderança de diferentes movimentos na direção da mudança, como os movimentos pelo consumo saudável e verde versus aqueles preocupados com a justiça social, bem como entre movimentos reformistas e radicais (HOLT-GIMÉNEZ; SHATTUCK, 2011). O segundo debate diz respeito ao potencial emancipatório das inovações sociais que surgem desses movimentos. É possível que o consumo político esteja substituindo a política e a ação coletiva e criando novas desigualdades, tais como dietas divididas em classes sociais? Os mercados locais e a agricultura apoiada pela comunidade podem gerar novas exclusões com base em raça e classe?

Futuras agendas de pesquisa sobre alimentação e mudança social podem se ocupar desses debates sobre os movimentos alimentares, fazendo a ponte entre contestações e experimentações alternativas, guiadas por um referencial teórico que abarque várias dimensões e intersecções das desigualdades abordadas por diferentes movimentos, tal como o conceito de desigualdades alimentares apresentado aqui. As desigualdades alimentares são conceitualizadas a partir de uma posição epistemológica pró-justiça social, feminista, antirracista, decolonial e pós-humana. Esta é uma aspiração política e teórica, um princípio que possivelmente nunca seja plenamente realizado, mas que orienta os esforços teóricos e analíticos. Uma perspectiva pró-justiça social deve estar atenta às novas dinâmicas de formação de classes que atuam no sistema alimentar, considerando também o privilégio de classe associado a diversos movimentos alimentares e redes alimentares alternativas. Uma agenda feminista de estudos alimentares identificaria desigualdades e relações de opressão na produção, distribuição, preparação, consumo e descarte de alimentos. Também daria visibilidade aos esforços para mudar esse cenário, bem como às relações de poder dentro dos movimentos alimentares; ao trabalho associado às tarefas de cuidado com a alimentação; aos saberes e práticas dos sistemas agroecológicos, difundindo suas contribuições para a reprodução da vida. E, finalmente, adotaria uma abordagem interseccional que envolvesse, por exemplo, uma compreensão do gênero como algo que é sempre classista, racializado e cruzado com outras diferenças. Uma perspectiva decolonial traz à tona o papel constitutivo das hierarquias raciais e incorpora a questão da alteridade, o subalterno, ou seja, quem é incluído, quem fica de fora? Uma perspectiva ecológica pós-humana vai além das diferenças entre categorias no interior da espécie humana, e inclui os outros que são não humanos, como animais, plantas, bactérias e ecologias. O conceito de desigualdades alimentares assume uma abordagem interseccional aberta e acolhe uma política do cuidado que concebe os alimentos não de forma instrumentalizada, como algo que serve apenas ao propósito de alimentar humanos, mas como teias de vida a serem apreciadas e preservadas.

Tal conceito pode servir de guia para análises das experimentações sociais e políticas que buscam enfrentar as desigualdades que atualmente minam a capacidade da justiça e da soberania alimentares em construírem relações alimentares justas e ecológicas. Por exemplo, um movimento camponês pode postergar a discussão de medidas que envolvam mais diretamente questões de gênero; movimentos rurais feministas podem não combater o racismo; e movimentos alimentares alternativos locais podem, de forma acrítica, ser exclusivistas na perspectiva de classe. Há uma grande heterogeneidade também dentro dessas denominações: movimentos camponeses logram avanços maiores ou menores em suas demandas não classistas nas diferentes localidades. Embora não pareça problemático que movimentos sociais tenham prioridades políticas e alianças estratégicas, é importante – de uma perspectiva analítica – discutir abertamente que critérios claros poderiam ser usados para mapear casos diversos e avaliar os potenciais emancipatórios e os limites dos movimentos sociais e redes alimentares alternativas como agentes de mudança. Sistemas alimentares alternativos e contra-hegemônicos exigirão a construção de solidariedades de classe, coalizões inter-raciais, estruturas de gênero renovadas e coalizões interespécies respeitosas.

 

Referências

AGARWAL, Bina. A field of one’s own: gender and land rights in South Asia. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

AGARWAL, Bina. Food sovereignty, food security and democratic choice: critical contradictions, difficult conciliations. The Journal of Peasant Studies, v. 41, n. 6, p. 1247-1268, 2014.

AGUIAR, Vilenia Venancio P. Mulheres rurais, movimento social e participação: Reflexões a partir da Marcha das Margaridas. Política & Sociedade, v. 15, p. 261-295, 2016.

ALKON, Alison H. Food justice: an overview. In: ALBALA, Ken (Ed.). Routledge International Handbook of Food Studies. Londres: Routledge, 2012. p. 295-305.

ALKON, Alison H.; AGYEMAN, Julian. Cultivating food justice: race, class, and sustainability. Cambridge: MIT Press, 2011.

ALLEN, Patricia. Realizing justice in local food systems. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, v. 3, n. 2, p. 295-308, 2010.

ALLEN, Patricia; SACHS, Carolyn. Women and food chains: the gendered politics. International Journal of Sociology of Agriculture and Food, v. 15, n. 1, p. 1-23, 2007.

ALTIERI, Miguel A.; TOLEDO, Victor M. The agroecological revolution in Latin America: Rescuing nature, ensuring food sovereignty and empowering peasants. The Journal of Peasant Studies, v. 38, n. 3, p. 587-612, 2011.

BEARDSWORTH, Alan; KEIL, Teresa. Sociology on the menu: an invitation to the study of food and society. Londres: Routledge, 1996.

BEILIN, Katarzyna O.; SURYANARAYANAN, Sainath. The war between amaranth and soy: Interspecies resistance to transgenic soy agriculture in Argentina. Environmental Humanities, v. 9, n. 2, p.204-229, 2017.

BERTONCELO, Edison. Classe social e alimentação: padrões de consumo alimentar no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 34, n. 100, p. 1-28, 2019.

BORRAS JR., Saturnino M.; EDELMAN, Marc; KAY, Cristóbal. Transnational agrarian movements confronting globalization. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2008.

BRAIDOTTI, Rosi. The posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013.

CARMO, Íris Nery do. Feminista e vegana: Gastropolíticas e convenções de gênero, sexualidade e espécie entre feministas jovens. Estudos Feministas, v. 27, n. 1, 2019.

CONWAY, Janet M. When food becomes a feminist issue: Popular feminism and subaltern agency in the world march of women. International Feminist Journal of Politics, v. 20, n. 2, p. 188-203, 2018.

CABRAL, Diogo de C. Into the bowels of tropical earth: Leaf-cutting ants and the colonial making of agrarian Brazil. Journal of Historical Geography, v. 50, p. 92-105, 2015.

DE CARVALHO, Priscila D. Além da forma-movimento: compilações do Movimento dos Pequenos Agricultores. Revista Brasileira de Sociologia, v. 8, n. 18, 2020.

DE SOUZA, Raumi J. Terra, raça, classe e estratégia. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2017.

DEERE, Carmen D.; LEÓN, Magdalena. Empowering women: land and property rights in Latin America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2001.

NYÉLÉNY. Declaraçao de Nyélény – Foro Mundial Pela Soberania Alimentar. Disponível em: https://nyeleni.org/spip.php?article327. Acesso em: 10 fev. 2021.

EBER, Christine E. Seeking our own food: indigenous women’s power and autonomy in San Pedro Chenalho, Chiapas (1980-1998). Latin American Perspectives, v. 26, n. 3, p. 6-36, 1999.

EDELMAN, Marc; WEIS, Tony; BAVISKAR, Amita; BORRAS JR., Saturnino M.; HOLT-GIMÉNEZ, Eric; KANDIYOTI, Deniz; WOLFORD, Wendy. Introduction: Critical perspectives on food sovereignty. Journal of Peasant Studies, v. 41, n. 6, p. 911-931, 2014.

FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations; IFAD – International Fund for Agricultural Development; UNICEF – United Nations Children’s Fund; WFP – World Food Programme; WHO – World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world 2020. Transforming food systems for affordable healthy diets. Roma, 2020. Disponível em: www.fao.org/3/ca9692en/CA9692EN.pdf. Acesso em: 5 fev. 2021.

FONSECA, Bruno; PINA, Rute. O agro é branco. OutrasMídias, 21 nov. 2019. Disponível em: https://outras-palavras.net/outrasmidias/o-agro-e-branco/. Acesso em: 28 jan. 2021.

FRIEDMANN, Harriet. From colonialism to green capitalism: Social movements and emergence of food regimes. Research in Rural Sociology and Development, v. 11, p. 227-264, 2005.

GAGO, Verónica. Feminist International: how to change everything. Nova Iorque: Verso Books, 2020.

GALINDO, Eryka; TEIXEIRA; Marco A.; ARAÚJO, Melissa de; MOTTA, Renata Campos; PESSOA, Milene; MENDES, Larissa; RENNÓ, Lúcio. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil. Food for Justice Working Paper Series, n. 4, 2021.

GARCÍA, María E. The taste of conquest: Colonialism, cosmopolitics, and the dark side of Peru’s gastronomic boom. Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, v. 18, n. 3, p. 505-524, 2013.

GARCÍA, María E. Death of a guinea pig: grief and the limits of multispecies ethnography in Peru. Environmental Humanities, v. 11, n. 2, p. 351-372, 2019.

GERBER, Elaine; Food studies and disability studies: Introducing a happy marriage. Disability Studies Quarterly, v. 27, n. 3, 2007.

GOODMAN, David; DUPUIS, Melanie E.; GOODMAN, Michael K. Alternative food networks: knowledge, practice, and politics. Londres: Routledge, 2012.

GUTHMAN, Julie. Bringing good food to others: Investigating the subjects of alternative food practice. Cultural Geographies, v. 15, n.4, p. 431-447, 2008.

GUTHMAN, Julie. "If they only knew": the unbearable whiteness of alternative food. In: ALKON, Alison H.; AGYEMAN, Julian (Eds.). Cultivating food justice: race, class and sustainability. Cambridge: MIT Press, 2011. p. 263-281.

HARAWAY, Donna. Situated knowledges: The science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. 14, n. 3, p. 575-599, 1988.

HELTOSKY, Carol. Food studies and animal rights. In: ALBALA, Ken (Ed.). Routledge International Handbook of Food Studies. Londres: Routledge, 2012. p. 306-317.

HERNÁNDEZ CASTILLO, Rosalva A.; NIGH, Ronald. Global processes and local identity among Mayan coffee growers in Chiapas, Mexico. American Anthropologist, v. 100, n. 1, p. 136-147, 1998.

HIDALGO, Veronica; CARVALHO, Lizia; HOMERO, Nô; FARIAS, Maria Albenize; UGO, Edu. Território, feminismos e luta das mulheres negras pela segurança alimentar e nutricional. Cadernos de Agroecologia, v. 15, n. 3, 2020.

HOLT-GIMÉNEZ, Eric; ALTIERI, Miguel A. Agroecology, food sovereignty, and the new green revolution. Agroecology and Sustainable Food Systems, v. 37, n. 1, p. 90-102, 2013.

HOLT-GIMÉNEZ, Eric; SHATTUCK, Annie. Food crises, food regimes and food movements: Rumblings of reform or tides of transformation? The Journal of Peasant Studies, v. 38, n. 1, p. 109-144, 2011.

JELIN, Elizabeth; MOTTA, Renata Campos; COSTA, Sergio. Global entangled inequalities: conceptual debates and evidence from Latin America. Londres: Routledge, 2017.

KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Münster: Unrast-Verlag, 2010.

KLOPPENBURG, Jack. Re-purposing the master’s tools: the open source seed initiative and the struggle for seed sovereignty. The Journal of Peasant Studies, v. 41, n. 6, p. 1225-1246, 2014.

MARTÍNEZ-TORRES, María Elena; ROSSET, Peter M. La Vía Campesina: the birth and evolution of a transnational social movement. The Journal of Peasant Studies, v. 37, n. 1, p. 149-175, 2010.

MARTÍNEZ-TORRES, María Elena; ROSSET, Peter M. Diálogo de saberes in La Vía Campesina: food sovereignty and agroecology. The Journal of Peasant Studies, v. 41, n. 6, p. 979-997, 2014.

MASSON, Dominique; PAULOS, Anabel; BEAULIEU BASTIEN, Elsa. Struggling for food sovereignty in the World March of Women. The Journal of Peasant Studies, v. 44, n. 1, p. 56-77, 2017.

MATTA, Raúl. Unveiling the neoliberal taste: Peru’s media representation as a food nation. In: MAY, Marah; SIDALI, Katia Laura; SPILLER, Achim; TSCHOFEN, Bernhard (Eds.). Taste, power, tradition: geographical indications as cultural property. Göttingen: Universitätsverlag Göttingen, 2017. p. 103-117.

MCMICHAEL, Philip. Global development and the corporate food regime. In: BUTTEL, Frederick H.; MCMICHAEL, Philip (Eds.). New directions in the sociology of global development. Bingley: Emerald Group, 2005. p. 265-299.

MENEGAT, Alzira Salete; SILVA, Sandra Procópio. Mulheres camponesas em movimentos: Análises da atuação feminina na Via Campesina, na caminhada para a soberania alimentar. MovimentAção, v. 6, n. 10, p. 126-138, 2019.

MOTTA, Renata Campos. Social mobilization, global capitalism and struggles over food: a comparative study of social movements. Londres: Routledge, 2016.

MOTTA, Renata Campos. Socio-environmental inequalities and GM crops. In: JELIN, Elizabeth; MOTTA, Renata Campos; COSTA, Sergio. Global entangled inequalities: conceptual debates and evidence from Latin America. Londres: Routledge, 2017. p. 214-230.

MOTTA, Renata Campos; TEIXEIRA, Marco Antonio. Food sovereignty and popular feminism in Brazil. Anthropology of food, v. 16, 2022. Disponível em: http://journals.openedition.org/aof/13575. Acesso em: 10 jan. 2023.

MOTTA, Renata Campos; TEIXEIRA, Marco Antonio. Allowing rural difference to make a difference: the Brazilian Marcha das Margaridas. In: MASSON, Dominique; CONWAY, Janet; DUFOUR, Pascale. Cross-border solidarities in 21st century context – feminist perspectives and activist practices. Lanham: Rowman and Littlefield, 2021. p. 79-100.

MOTTA, Renata Campos. Feminist Solidarities and Coalitional Identity: the Popular Feminism of Marcha das Margaridas. Latin American Perspectives, v. 48, n. 4, p. 25-41, 2021.

MOTTA, Vivian Delfino. Por uma agroecologia antirracista. Cadernos de Agroecologia, v. 15, n. 3, 2020.

NEVES, Delma; MEDEIROS, Leonilde Servolo de (Orgs.). Mulheres camponesas – trabalho produtivo e engajamentos politicos. Niterói: Alternativa, 2013.

NIEDERLE, Paulo; WESZ JUNIOR, Valdemar João. As novas ordens alimentares. Porto Alegre: UFRGS, 2018.

NORGAARD, Karie Marie; REED, Ron; VAN HORN, Carolina. A continuing legacy: Institutional racism, hunger, and nutritional justice on the Klamath. In: ALKON, Alison H.; AGYEMAN, Julian. Cultivating food justice: race, class, and sustainability. Cambridge: MIT Press, 2011. p. 23-46.

PAHNKE, Anthony. Institutionalizing economies of opposition: explaining and evaluating the success of the MST’s cooperatives and agroecological repeasantization. The Journal of Peasant Studies, v. 42, n. 6, p. 1087-1107, 2015.

PATEL, Rajeev C. Food sovereignty: power, gender, and the right to food. PLoS Medicine, v. 9, n. 6, 2012.

PIMENTA, Sara C. Experiências em trajétorias de mulheres rurais: engajamento sindical, feminismos e subjetividades. 2019. 310 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

PORTILHO, Fátima. Ativismo alimentar e consumo político – duas gerações de ativismo alimentar no Brasil. Redes, v. 25, n. 2, p. 12-33, 2020.

PUIG DE LA BELLACASA, María. Making time for soil: technoscientific futurity and the pace of care. Social Studies of Science, v. 45, n. 5, p. 691-716, 2015.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019.

RIBEIRO, Edda. Nutricídio, mas pode também chamar de fome. O joio e o trigo, 5 nov. 2020. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2020/11/nutricidio-mas-tambem-pode-chamar-de-fome/. Acesso em: 16 jan. 2021.

SACHS, Carolyn; PATEL-CAMPILLO, Anouk. Feminist food justice: crafting a new vision. Feminist Studies, v. 40, n. 2, p. 396-410, 2014.

SANTOS, Felipe Imidio. Soberania alimentar quilombola: uma abordagem histórica e desafios para romper colonialidades. 2020. 176 f. Dissertação (Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural), Universidade de Brasília, Brasília, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/38427. Acesso em: 13 jan. 2021.

SILIPRANDI, Emma. Mulheres e agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015.

SLOCUM, Rachel. Whiteness, space and alternative food practice. Geoforum, v. 38, n. 3, p. 520-533, 2007.

SMITH, Bobby J. Food justice, intersectional agriculture, and the triple food movement. Agriculture and Human Values, v. 36, n. 4, p. 825-835, 2019.

TANAKA, Jennifer; PORTILHO, Fátima. Ambiguidades da politização do consumo. Raízes, v. 39, n. 2, p. 344-358, 2019.

TEIXEIRA, Marco Antonio; MOTTA, Renata Campos. Unionism and feminism: alliance building in the Brazilian Marcha das Margaridas. Social Movement Studies, p. 79-100, 2020.

TSING, Anna Lowenhaupt. The mushroom at the end of the world: on the possibility of life in capitalist ruins. Princeton: Princeton University Press, 2015.

WILLIAMS-FORSON, Psyche; WILKERSON, Abby. Intersectionality and food studies. Food, Culture & Society, v. 14, n. 1, p. 7-28, 2011.

 

 

Como citar

MOTTA, Renata Campos. Movimentos sociais como agentes de mudança: combatendo as desigualdades alimentares interseccionais, fazendo dos alimentos teias de vida. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, e2331203, 9 ago. 2023. DOI: https://doi.org/10.36920/esa31-2_01tr.

 

 

ccby.png

Creative Commons License. This is an Open Acess article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License CC BY 4.0 which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium. You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if changes were made.

 



[1] Professora de Sociologia no Heidelberg Center for Ibero-American Studies (HCIAS), da Universidade de Heidelberg, Alemanha. Líder do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdes Alimentares na Bioeconomia, financiado pelo Ministério de Educação e Pesquisa da Alemanha (2019-2025). Doutorado em Sociologia pela Freie Universität Berlin, Alemanha. Mestrado em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: renata.motta@uni-heidelberg.de.

[2] A combinação de palavras-chave utilizadas em inglês foi: social movements AND food; social movements AND agricultural OR agrarian; social movements AND rural; social movements AND consumption; inequalities AND racism OR race; inequalities and feminism OR gen- der OR women; inequalities AND class; inequalities AND environment; inequalities AND animals OR vegan OR vegetarian. Em português: alimentação AND movimentos sociais OR movimentos camponeses OR movimentos sociais rurais; alimentação AND ação coletiva OR ação política; ativismo alimentar; movimentos sociais AND soberania alimentar; alimentação AND consumo OR politização do consumo; alimentação AND mulheres OR feminism OR gênero; alimentação AND raça OR questão racial OR antirracismo OR população negra; alimentação AND povos e comunidades tradicionais; alimentação AND povos indígenas; alimentação AND quilombolas; alimentação AND desigualdades sociais OR classe social OR pobreza. Para o espanhol foram utilizadas as mesmas palavras do português. A pesquisa incluiu resultados publicados até agosto de 2020.

 

[3] http://www.brfair.org.br/.

[4] Deere e León (2001) estabelecem um diálogo com o estudo de Agarwal (1995) sobre posse de terra e desigualdades de gênero no Sudeste Asiático.

[5] Ao mesmo tempo, a pauta dos direitos territoriais dos quilombolas está legal e institucionalmente situada na política brasileira sob a égide da questão racial, e não da questão agrária. O Plano Brasil Quilombola inclui ações de fomento à soberania alimentar, incluindo a compra de seus alimentos pelo governo para a merenda escolar pública. Os quilombolas formaram uma comissão no então Conselho Nacional de Segurança Alimentar e organizaram Encontros Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional da População Negra e Povos Tradicionais (SANTOS, 2020).