ESA_logo.png                                     Recebido: 27.nov.2022   •    Aceito: 16.maio.2023   •    Publicado: 30.jun.2023

 

Seção Temática

Mulheres, territorialidades e epistemologias feministas – conflitos, resistências e (re)existências

                                                                                                                                                                                                                                                  
‘Sou preta, pobre e bicho do mato. É muita coisa pra uma pessoa só!’: violências, resistências e formas de luta das jovens mulheres na Região do Bico do Papagaio – TO, Brasil

‘I'm Black, poor, and from the sticks. It's a lot for just one person!’: violence, resistance, and forms of struggle among young women in the Bico do Papagaio region of Tocantins, Brazil

 

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Elisa Guaraná de Castro[1]

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Luiza Borges Dulci[2]

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Joyce Gomes de Carvalho[3]

 

 

  

https://doi.org/10.36920/esa31-1_st06



 

Resumo: A diversidade das condições e modos de vida das mulheres do território Bico do Papagaio – TO, no Norte do Brasil, compreendem questões ligadas à terra e à produção, à família, à sexualidade, ao gênero e ao pertencimento ao espaço rural. Partindo deste contexto, o presente artigo investigou como a construção das identidades e a participação das mulheres em espaços de decisão são atravessadas pelas dimensões de raça e de geração. A análise se baseia nos resultados do Projeto de Extensão Diagnóstico Participativo das Juventudes do Bico do Papagaio/TO, realizado em 2019, com a participação direta das juventudes do território. O projeto envolveu levantamentos de dados primários e secundários sobre a região e seu perfil demográfico. Os dados evidenciam a pluralidade de formas de manifestação da divisão sexual do trabalho e mostram como aspectos de gênero, racismo e preconceitos associados à origem rural compõem uma matriz de desigualdades que inventa e reinventa as relações rural e urbana em meio à objetividade de fronteiras invisíveis. Observar as jovens mulheres, e as mais velhas, em especial as lideranças do Movimento Interestadual de Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu (MICQCB), e como elas expressam e percebem formas de controle sobre seu corpo, relações de trabalho e dinâmicas de circulação no território, nos permitiu descortinar a persistência de violências imbricadas em relações de poder em uma sociedade patrical, racializada e heteronormativa. Ademais, foi possível captar as estratégias de resistência e enfrentamento, igualmente multifacetadas.

Palavras-chave: mulheres rurais; geração; raça; trabalho; sexualidade, território.

 

Abstract: The diverse conditions and ways of living for women in Bico do Papagaio, Tocantins, in northern Brazil, span issues related to land and production, family, sexuality, gender, and belonging to the rural space. Within this context, this article investigates how the construction of identities and women's participation in decision-making processes intersect with the dimensions of race and generation. The analysis is based on the results of an extension project conducted in 2019 entitled Participatory Diagnosis of Youths from Bico do Papagaio/TO which directly involved young people from this territory. The project involved surveying primary and secondary data on the region and its demographics, and found many different manifestations of the sexual division of labor, as well as how aspects of gender, racism and prejudice associated with a rural background comprise a matrix of inequalities that invent and reinvent rural and urban relations amid the objectivity of invisible borders. By observing young and older women, particularly from the Interstate Movement of Babassu Palm Nut Breakers (MIQCB), and how they express and perceive forms of control over their bodies, work relationships, and dynamics of circulation within the territory, we were able to uncover the persistence of violence intertwined with power relations in a patriarchal, racialized, and heteronormative society. We were also able to capture resistance and coping strategies, which were equally multifaceted.

Keywords: rural women; medicinal plants; emancipation.

 

 

 

Introdução

A construção de identidades e formas de participação na Região Bico do Papagaio, território localizado no extremo norte do estado do Tocantins, região Norte do Brasil, ocorre em meio à diversidade de trajetórias, condições e modos de vida das diversas comunidades ali situadas. Marcadores sociais como gênero, sexualidade e raça atravessam as distintas gerações de mulheres, pertencentes às 19 comunidades rurais dos 12 municípios que compreendem o universo desta investigação.[4] Suscitado a partir deste contexto, o presente artigo contribui com reflexões sobre território, identidades sociais e participação política, a partir da análise das relações de poder, violências, resistências e formas de luta das mulheres na Região do Bico do Papagaio – TO, Brasil.

Contudo, o ponto de partida para a aproximação com essas questões se apoiou nas inquietações coletivas das juventudes rurais da região a respeito de suas condições de vida. Os resultados aqui apresentados advêm, portanto, de um processo coletivo de compreensão dos dilemas, conflitos, interesses e preocupações das juventudes e de um conjunto de comunidades em relação à vida das e dos jovens. Compreender o território “a partir do seu uso, a partir do momento em que pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam” (SANTOS, 1996) permitiu estender o olhar para a problematização de percepções de rural e urbano, e ser jovem e mulher em uma região historicamente marcada por conflitos (OLIVEIRA; CRESTANI; STRASSBURG, 2014).

A expressão que dá título ao texto foi proferida por uma jovem do Bico: “Sou preta, pobre e bicho do mato. É muita coisa pra uma pessoa só!”. Esta aproximação conduz nosso olhar sobre a perspectiva interseccional que é demarcada pela noção de diferença, no sentido proposto por Avtar Brah e Ann Phenix (2004). Para as autoras, a interseccionalidade é a indissociabilidade das variáveis de múltiplos eixos de diferenciação: econômico, político, cultural, psíquico e subjetividade (2004, p. 76). Nesse sentido, a diferença como marcador social é ao mesmo tempo uma intersecção de relações sociais, historicamente construídas, experiências coletivas e subjetividade vivida (BRAH, 2006). Os marcadores que singularizam nossa jovem interlocutora estão demarcados por processos históricos de construção mas, também, pela experiência vivida coletivamente como jovem mulher, negra e do campo. No desenvolvimento do projeto com as juventudes do Bico foi possível observar como as relações sociais e as experiências coletivas informam processos identitários reforçando a persistência de opressões, ao mesmo tempo que reordenam e ressignificam formas de resistência. Como trata Brah (2006), as identidades que emergem politicamente por vivências em sociedades racializadas, como trabalhadoras e mulheres, não são nem homogêneas nem lineares. E, por isso, para a autora, eixos de análise como diferenças, diversidades e diferenciação permitem uma abordagem que observe narrativas performadas que expressam identidades que unificam diferentes.

O Projeto de Extensão Diagnóstico Participativo das Juventudes do Bico do Papagaio – TO, que tem este artigo como um de seus frutos, nasceu da demanda de jovens e adultos por compreender e buscar caminhos para compreender a questão do êxodo rural das juventudes.[5] O Grupo de Trabalho Juventude do Bico do Papagaio, como um dos principais demandantes do projeto de diagnóstico participativo, atuou como sujeito na sua construção e ao mesmo tempo como parte dos/das respondentes dos instrumentos aplicados. Se a identidade juventudes unifica a percepção do que os aproximam, a diversidade das juventudes no território, nas relações de gênero, vivência das suas sexualidades e racialmente identificadas apareceram como intersecções que os diferenciam. E o que pudemos constatar é que os marcadores da diferença que os identificam socialmente são também acionados para construção da ação e do fortalecimento de uma identidade política como juventudes do Bico na sua diversidade e pluralidade. Essa identidade política se mostrou atravessada especialmente por relações históricas de poder e dominação na vivência das jovens como mulheres de diferentes territórios rurais da região, e de forma ainda mais intensa quando racialmente marcadas.

Concomitantemente aos constrangimentos socioeconômicos, a investigação jogou luz sobre a vocalização de formas de opressão e de conflitos intergeracionais, os quais evidenciam a visão desqualificadora e as nuances de subalternidade entre pessoas de diferentes gerações. Conforme apontado em outros estudos sobre juventude rural (CASTRO, 2013; WEISHEIMER, 2013), estes também constituem fatores de distanciamento dos jovens e, sobretudo, das jovens da região. Ainda, o Diagnóstico desvelou a persistência de outras formas de opressão e conflito, ligadas à discriminação racial e por “ser do campo”. Igualmente contundentes, relações de gênero e a difícil ruptura com uma estrutura patriarcal marcam as falas de mulheres de três gerações. Como em Stropasolas (2004), observamos a persistência de relações que privilegiam ainda homens na sucessão, gestão e tomada de decisões. Segue um sentimento percebido no estudo de Stropasolas de que as relações vividas pelas jovens mulheres do campo estão  enviesadas contra a mulher  (2004, p.  54). O próprio casamento aparece como uma categoria questionada por possibilitar representar a continuidade de relações de poder. Contudo, assim como no território analisado pelo autor, na Região do Bico do Papagaio verificamos conflitos e mudanças na divisão das tarefas domésticas, da produção agrícola e extrativista, e mesmo na sua gestão. Contudo, os jovens, e em especial as jovens, ainda se sentem excluídos de espaços de decisão e do acesso à renda sob o controle dos mais velhos.

Nesse contexto, as experiências de organização social e política fomentam processos reflexivos de construção das mulheres e de suas realidades, ao mesmo tempo que abrem caminhos para a participação política e para o enfrentamento das múltiplas e persistentes opressões. Tais processos de emancipação, desconstrução de subalternidades e construção de alternativas ocorrem sobretudo no âmbito das entidades presentes na região: sindicatos das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais; associações de assentamentos da reforma agrária; associações de mulheres trabalhadoras rurais; cooperativas; movimentos sociais representativos das quebradeiras de coco babaçu (Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, MIQCB), Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), quilombolas (Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Tocantins, Coeqto); agricultoras e agricultores familiares; e o GT de Juventudes do Bico do Papagaio.

Vale notar que a construção cultural e política das relações no Bico são historicamente marcadas pela violência, aspecto que evidencia a formação de muitas das entidades da região. No que tange à violência no campo, o assassinato de Padre Josimo em 1986 tornou-se um dos episódios emblemáticos, que retrata uma realidade de conflitos fundiários entre grileiros e posseiros (OLIVEIRA; CRESTANI; STRASSBURG, 2014). A marca das violações na região motivou inclusive a criação de uma Regional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Araguaína-Tocantins. Segundo o Relatório da Violência no Campo da mesma CPT, em 2021 o estado do Tocantins registrou 62 conflitos no campo envolvendo diretamente cerca de 15 mil pessoas (CPT, 2022). A vivência das juventudes sempre foi, portanto, atravessada pelas memórias das violências sofridas por seus pais e avós. No presente, outras formas de opressão se somam às marcas do passado. Neste artigo, apresentamos como as juventudes enfatizam sobremaneira violências de gênero – que já vinham sendo notadas e enfrentadas pelas mulheres nas décadas anteriores –, de raça e os preconceitos que enfrentam por serem do campo. Denunciam ainda formas menos visíveis de expressão das relações de poder nas famílias e nas comunidades, tais como conflitos, tensões e violências nos espaços da casa, das associações e sindicatos, da escola, do ir e vir no território, com mais ou menos liberdade.

As formas de violência relacionadas a marcadores sociais como raça e território foram mais presentes nas falas das jovens, em especial sobre a identificação racializada do corpo e, mais ainda, dos cabelos. “A questão da cor. Do cabelo. Eu sofria muito preconceito onde eu estudava” (Jovem mulher, EFA). Ser rural em espaços escolares ainda carrega a desqualificação e violência de preconceitos e agressões verbais “jocosos” como Chegou os hepatite[6] do ônibus amarelo. Os come barro. Os poeirinha, os do mato, os macaco (Jovem mulher, EFA).  Processos de reprodução de um olhar que reforça um rural pobre e desqualificável, em oposição “à cidade”, como registrado em morar bem e morar mal. Lá vem os poeira (CASTRO, 2013, p. 50). No entanto, no Bico, o uso de termos racistas como na reprodução da nossa interlocutora são frequentes. Nestas persistências, pobreza e território rural são intersecções que reforçam um marcador social da diferença de classe. Além da identificação com o território, ser negro, e mais ainda negra, também aparecem como essas convergências alvo de agressões verbais e exclusão nos espaços de sociabilidade. Como na fala da nossa interlocutora: “Sou preta, pobre e bicho do mato. É muita coisa pra uma pessoa só!” (Jovem mulher, EFA).

A presente análise buscou trazer de forma sistematizada parte da riqueza dos diálogos ocorridos no Projeto Diagnóstico, com seus múltiplos olhares e desejos. Por essa razão, optamos por combinar distintas abordagens, quanti e qualitativas, provenientes de levantamentos primários e secundários sobre o território e a população em questão. A riqueza da análise provém sobretudo das falas dos interlocutores e, principalmente, das interlocutoras. Nos incluímos nessa condição de interlocutoras por termos a possibilidade de, nessa experiência, sermos três mulheres pesquisadoras. Se o olhar informado não deve ser tomado de forma essencializada por essa identificação generificada, não devemos, também, deixar de considerar o que pode ter sido posto em movimento por encontros entre as interlocutoras de fora e de dentro.

As fontes primárias analisadas constituem questionário e grupos focais, ambos idealizados com a participação direta do GT das Juventudes Rurais, desde o desenho à aplicação, envolvendo ainda um seminário destinado ao diálogo entre as diferentes gerações de sujeitos presentes na região. O questionário distribuiu 80 questões em sete blocos temáticos – identificação do entrevistado; escolarização; uso e propriedade da terra; trabalho e renda; lazer; percepção sobre a permanência no meio rural; e participação – além de uma questão “aberta” referente ao papel da juventude do campo na região. Ele foi respondido por 245 pessoas, sendo 111 mulheres, 128 homens e 2 pessoas autodeclaradas “Outro” gênero. Já os 12 grupos focais contaram com participantes das 19 comunidades, envolvendo “jovens”; “pais”; “avós” “professores”; e “lideranças de organizações e movimentos sociais/outros atores que atuam com juventude”.[7] Os dados secundários provêm de fontes públicas e de organizações sociais.

O diálogo de jovens e mais velhos, o fortalecimento de espaços de fala, por meio de coletivos e formas de organização dos e das jovens, surgiram como modos de resistência e mudança. Consideramos que ter como chave analítica a interseccionalidade e dar visibilidade às diferentes opressões e maneiras de enfrentá-las, como observamos nas entrevistas, e principalmente no Seminário de apresentação dos resultados, contribui para o que Patrícia Hill Collins define como a articulação entre produção de conhecimento e arma política (COLLINS, 2014 apud HIRATA, 2014, p. 69).

O artigo está organizado em quatro seções, além desta Introdução. Na segunda seção, analisamos dados que nos permitiram conhecer o território do Bico do Papagaio – TO e a diversidade das juventudes e, em particular, das mulheres. A terceira seção trata das desigualdades de gênero, em especial a persisitência da divisão sexual do trabalho. A quarta, discute perspectivas interseccionais na persistência de conflitos e formas de violência mas, também, de resistência e ressignificação. E, por fim, as Considerações Finais.

 

O território do Bico do Papagaio e o perfil das juventudes

O Território do Bico do Papagaio encontra-se na fronteira entre o Cerrado e a Amazônia. Situa-se em região historicamente marcada pela pobreza e por conflitos agrários, ao mesmo tempo que é referência no processo de luta e de organização das populações extrativistas, com destaque para as mulheres quebradeiras de coco babaçu. São 12 os municípios abarcados no Projeto: Araguatins; Augustinópolis; Axixá do Tocantins; Buriti do Tocantins; Carrasco Bonito; Esperantina; Itaguatins; Praia Norte; Sampaio; São Miguel do Tocantins; São Sebastião do Tocantins; e Sítio Novo do Tocantins.

 

Figura 1 – Localização do Bico do Papagaio, relativamente ao Tocantins e ao Brasil

Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, 2015.

 

Os municípios possuem baixa densidade demográfica, com população inferior a 18 mil habitantes – à exceção de Araguatins, com 35 mil habitantes. Outras características compartilhadas referem-se à renda e ao Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM),[8] Esses indicadores refletem o contexto de alta incidência de pobreza em que a população, particularmente das áreas rurais, encontra-se submetida, refletindo em más condições de moradia, falta de trabalho e informalidade e pouca inserção nas cadeias produtivas agrícolas.


Juventudes: diversidade e persistências

A aplicação do questionário permitiu a constituição de um perfil detalhado das juventudes da região. Para fins do debate proposto, destacamos dados sobre faixa sexo/gênero, faixa etária, cor, estado civil e renda. Os respondentes têm idade entre 12 e 39 anos, sendo 29 adolescentes de 12 a 14 anos, 209 jovens de 15 a 29 anos e 7 de 30 a 39 anos.[9] 

Na divisão das juventudes entrevistadas, segundo sexo/gênero, a porcentagem entre homens (53%) e mulheres (46%) foram próximas. Mesmo que em menor número (1%), vale ressaltar a presença de jovens que declararam “outro” gênero. A maior parte declarou estado civil como “solteiro” (83,3%) e não possuir filhos (86,5%). Com relação à cor/raça, a média de autodeclarados negros (88,6%, preta e parda) ultrapassou a média nacional e estadual, 4,9% declaram-se amarelos, 4,1% indígenas e somente 2,4% se autodeclaram brancos.[10] Entre a juventude autodeclarada negra, 47,4% são mulheres e 52,6% são homens.

Quanto à renda familiar mensal, 6,6% dos jovens responderam não possuir nenhuma renda; 34,4% disseram ter renda mensal familiar de até um salário mínimo;[11] e outros 24,6% de 1 a 2 salários mínimos. Isso faz com que 65,6% dos jovens pertençam a famílias com renda mensal entre 0 e 2 salários mínimos. Destaca-se ainda que 68 jovens (27%) afirmaram não saber qual é a renda mensal de suas famílias.[12]

Não há dúvida de que o tema da renda é central para o debate das juventudes e das mulheres. Suas implicações para as condições de permanência no campo são largamente tratadas pela literatura (BRUMER, 2007; OLIVEIRA; MENDES; VASCONCELOS, 2021). O tema adquire ainda mais relevância quando analisado em perspectiva com a dimensão de gênero. Os resultados da presente investigação evidenciam que, em meio à diversidade populacional da região, há marcadores sociais específicos que unificam realidades e vivências. O racismo e a renda são destacados pelos jovens e, sobretudo, pelas jovens mulheres, como fatores que desqualificam suas condições de vida, reforçando, assim, imagens depreciativas do “rural” em oposição ao “urbano”.

A trajetória das quebradeiras de coco babaçu mostra que tais representações não são novidade. Tomadas aqui como caso paradigmático, sua história retrata a persistência de desigualdades e de conflitos vivenciados nas buscas pelo reconhecimento de seu trabalho e pela construção de identidades políticas materializadas em formas de auto-organização. O caso é também privilegiado para demonstrar as persistências de relações de gênero marcadas por enfrentamentos com a autoridade masculina tanto nas famílias quanto nas comunidades. Esses processos de permanente tensão trouxeram rupturas progressivas, ainda que parciais da estrutura patriarcal, como veremos a seguir.

 

Desigualdades de gênero: persistências e rupturas da divisão sexual e valorização do trabalho

“As meninas vão aprender a quebrar coco, e os meninos vão aprender a trabalhar na roça.” (Homem jovem, 17 anos. GF – Juventude Juverlândia/Folha Seca)

O tratamento da interseccionalidade como caminho analítico nos permite dar visibilidade às persistências da desvalorização do trabalho das mulheres, associado à precarização e à remuneração desigual, ou da não remuneração. Como define Jules Falquet (2008), o trabalho desvalorizado tem sexo e raça – é desempenhado majoritariamente por mulheres negras. Helena Hirata (2014) demonstra ainda como os trabalhos associados aos cuidados envolvem outro segmento vulnerabilizado, as mulheres migrantes, sejam elas de outros países ou de outras regiões de um mesmo país.[13]

A divisão sexual do trabalho marca, ao mesmo tempo, aspectos de continuidades e descontinuidades geracionais entre as comunidades rurais do Bico. Por um lado, cada comunidade rural guarda particularidades históricas ligadas aos processos de ocupação e uso das terras, bem como à incidência de lutas e à organização social específicas. Por outro, o cotidiano das mulheres e a presença das desigualdades de gênero e suas variações interseccionais apresentam traços comuns entre todas as comunidades, ainda que vivenciados de forma distinta, por exemplo, nos espaços da EFA Padre Josimo, nos quilombos Carrapiché e Prachata ou nas comunidades Juverlândia e Folha Seca, as quais congregam lideranças do MIQCB.

A identificação com a zona rural é também um elemento comum. A maior parte das famílias se dedica ao trabalho na roça, porém há uma diferença expressiva entre a declaração das ocupações dos pais e das mães. No caso das mães, o trabalho na roça (informado por 31,7% dos jovens respondentes ao questionário) acompanha outros afazeres, sendo o principal deles o trabalho no lar (21,6%). Já no caso dos pais, mais da metade (52,5%) é identificado como trabalhador da roça. A vida das mulheres expressa em grande medida um cotidiano de duplas e triplas jornadas:

E mulher quando vai pra roça com o pai, ainda faz a comida pro pai. (Jovem mulher, GF estudantes da EFA Pe. Josimo)

E sem contar final de semana, que o homem tem folga e a mulher não. (Jovem mulher, GF estudantes da EFA Pe. Josimo)

Estas falas mostram que as mulheres acumulam funções, ao passo que não é esperado que os homens contribuam com o preparo da comida, com o cuidado das crianças e com as demais tarefas domésticas. A esse respeito, duas questões merecem destaque. A primeira delas tem a ver com o fato de o trabalho doméstico ser atribuído majoritariamente às mulheres – apenas 7% dos pais foram identificados com a ocupação “no lar (sem remuneração)”. No entanto, alguns jovens, tanto mulheres quanto homens, sinalizam a existência de certo grau de igualdade na divisão das tarefas:

Rapaz, na minha casa é igualdade. (Jovem mulher, 20 anos, GF com jovens da comunidade Olhos D'Água)

Lá em casa eu faço tudo, principalmente minha roupa, minha mãe nunca lava minha roupa. (Jovem homem, 16 anos, GF jovens da comunidade Olhos D’Água)

No processo de criação das(os) filhas(os), algumas mães demonstram se empenhar na desconstrução das desigualdades características da divisão sexual do trabalho:

Lá em casa pelo menos meus meninos, eles fazem de tudo, o almoço, eles lava a roupa, eles varrem casa. Eu posso sair tranquila, que eles tomam conta de casa… eu não criei eles no preconceito. (Mulher, GF pais do acampamento Pe. Josimo)

Em alguns casos, a divisão mais igualitária extrapola o trabalho doméstico e alcança também o trabalho na roça:

Não, a gente sempre é igual, aqui não diferencia, ne? A gente sempre trabalha isso. Pra não “ah, a mulher não pode porque é mais fraca”. Aqui não tem essa história. Vamos os dois fazer isso, é isso, vamos fazer. A gente não diferencia um trabalho do outro. (Mulher, GF pais do acampamento Pe. Josimo)

Priorizar na análise a dimensão do trabalho doméstico e do cuidado importa não somente do ponto de vista das relações sociais e de poder no interior das famílias e da sociedade de maneira geral, como também traz implicações analíticas relevantes. Uma leitura restrita aos aspectos monetários leva a uma compreensão das mulheres como dependentes dos homens – maridos, pais, irmãos –, ao passo que a perspectiva do cuidado inverte a lógica e coloca os homens no lugar de dependentes, uma vez que as mulheres realizam trabalhos igualmente produtivos, indispensáveis à reprodução social (CARRASCO, 2003).

O segundo aspecto de relevo sobre a divisão sexual do trabalho diz respeito às percepções e à forma como as(os) rurais classificam as atividades desempenhadas por seus pais e mães. Embora o trabalho na roça seja comumente realizado por todos da família, a parcela desempenhada pelas mulheres nem sempre é reconhecida como trabalho. Isto é, embora sejam elas as principais responsáveis pelo cultivo de hortas e plantas medicinais, pelo cuidado dos quintais produtivos e o manejo dos animais de pequeno porte, essas atividades não são vistas com frequência como trabalho na roça. Segundo Jalil (2009), o trabalho das mulheres não é associado à roça porque o espaço das hortas, dos quintais produtivos e do manejo de pequenos animais é, via de regra, entendido como extensão do espaço doméstico. E podem ser associadas a trocas não monetizadas que têm lugar no próprio território e, assim, deixam de ser percebidas e valorizadas como trabalho. Ou seja, como na noção de trabalho desvalorizado (FALQUET, 2008) observamos atividades percebidas como femininas associadas aos cuidados e não reconhecidas como trabalho, em oposição ao trabalho percebido como “produtivo” por ser realizado por homens. A desqualificação e mesmo a invisibilidade do trabalho feminino é um componente-chave das formas de reprodução de desigualdades de gênero e uma das razões pelas quais as mulheres, especialmente as mulheres jovens, participam menos do planejamento das decisões produtivas nas propriedades da agricultura familiar do Bico.

O item sobre o planejamento da produção agropecuária e extrativista e uso das terras, presente no questionário, mostrou que em menos da metade (42,2%) das famílias as decisões são tomadas coletivamente. A exclusão dos jovens é evidente: somente 35,5% afirmaram participar do planejamento; 45,9% disseram que participam “às vezes”; e 7,4% não participam. Dentre os que afirmaram fazer parte do planejamento de maneira recorrente, 23,4% são homens e menos da metade (11,3%) são mulheres; já entre os que participam “às vezes”, 25,5% são mulheres e 20,5% são homens.

Nos grupos focais, pudemos observar que a participação das mulheres é frequentemente negada por justificativas que desqualificam sua capacidade de opinar sobre o trabalho. O depoimento de uma jovem estudante da EFA Pe. Josimo discorre sobre a desconsideração dos conhecimentos das mulheres e, em particular, das jovens mulheres no manejo da lavoura:

O pai sabe que eu tô aqui, sabe que eu vou me formar em agroecologia. Aí às vezes ele me pergunta alguma coisa. Eu dou minha opinião como técnica. Aí meus irmãos: “ela não sabe de nada, o senhor não tem que ficar ouvindo a opinião dela”. Aí o que eu falei, o que falo, nem leva em consideração. (Jovem mulher, GF estudantes da EFA Pe. Josimo)

A opinião da jovem é desconsiderada não apenas pelo pai, o que evidencia uma barreira geracional, mas também pelos irmãos, fato que denota a reprodução de formas culturais machistas e da desigualdade de gênero nos espaços de decisão. Como extensão do que ocorre em relação ao planejamento, as jovens mulheres são igualmente excluídas das decisões sobre a remuneração do trabalho que realizam na roça das famílias, conforme mostra o Gráfico 1, a seguir:

 

Gráfico 1 Participação dos jovens na forma como a remuneração é decidida, segundo sexo/gênero

Fonte: Elaboração própria a partir dos questionários da pesquisa Diagnóstico da Realidade das Juventudes Rurais do Bico do Papagaio – TO.

 

Tanto em relação às definições de “comum acordo” com as famílias quanto às definições “dos próprios jovens”, o contingente de mulheres corresponde à metade dos homens. Além disso, a maior participação das mulheres na categoria dos que “não exercem atividade no campo” reforça o questionamento anterior a respeito do reconhecimento do trabalho. Quando perguntados sobre o grau de satisfação com a forma como a remuneração do trabalho nas famílias é paga, entre os que se dizem satisfeitos, 21,6% são mulheres e 37,1% são homens. A pesquisa também desvelou que muitos jovens, tanto homens quanto mulheres, trabalham em múltiplas atividades, porém com baixa ou nenhuma remuneração. Tal constatação destoa de percepção recorrente entre os adultos de que os jovens não gostam de trabalhar.

Quem enfrenta mesmo são os antigos que tão acostumados. Eles que são novos não querem pegar na enxada, na foice… acham que saindo … vão arrumar um dinheiro mais ligeiro. (Mulher, GF pais e tios da comunidade Olhos D’Água)

Como se vê, múltiplas construções da divisão sexual do trabalho estão interseccionadas por percepções geracionais, assim como são impactadas diretamente pelas condições de vida atuais encontradas na região.

 

Interseccionalidade: desigualdades, violências, enfrentamento e ressignificação

“Aí nós chega nelas e pergunta o que é? Ela é um bicho por acaso? Ela é um ser humano, e ela é linda, vocês não devem ficar mangando dela.” (Jovem mulher quilombola. Carrapiché)

Preconceitos, ofensas e violências são elementos corriqueiros da paisagem rural do Bico do Papagaio, no passado e também no presente. Os dados obtidos nos questionários mostram que 40,9% dos respondentes relataram já terem vivido situações de preconceito e/ou discriminação por serem do campo. Essas situações foram vivenciadas predominantemente no espaço escolar, envolvendo diferentes sujeitos, dentre os quais colegas de escola (29,7%), professores (4%), estudantes de outras escolas e no ônibus escolar (1,8%). Outras formas de preconceito e discriminação estão relacionadas à “cor da pele/cabelo/raça” (23,2%); à “condição econômica” (11,8%); ao fato de “ser mulher” (6,4%); “ser jovem” (5,4%); e também relativos a atributos físicos (alto, magro, gordo, orelhas etc.), constituindo 2,5%.

Apontados desde os questionários, somente durante a realização dos grupos focais que foi possível identificar e compreender os vários significados atribuídos aos preconceitos por parte das juventudes. Ao mesmo tempo que a marca da discriminação é forte e ubíqua, nota-se a construção de subjetividades a partir de vivências em particular e coletivas. A variedade de reações tem a ver, portanto, com os temas dos preconceitos – racial, gênero, renda, sexualidade, ser do campo etc. –, porém é sentida e processada de maneiras diferentes a depender dos sujeitos em questão. Evidencia-se corpos não aceitos em espaços como a escola e no comércio local, onde a intersecção de raça e ser do campo/quilombo, assentamento rural – podendo ainda ser associada a construções heteronormativas – produzem agressões verbais violentas. Não sem reação e resistência.

No que concerne às questões gênero e sexualidade, a realidade das comunidades rurais do Bico do Papagaio nos remete a Scott (1990), para quem o aprofundamento da análise deve relacionar as percepções sobre gênero – tidas em muitas representações, incluindo os marcos teóricos, como binárias – e as relações de poder. Os resultados do Diagnóstico mostram que a variável gênero precisa ser interpretada a partir das percepções flutuantes e transbordantes, que extrapolam o binarismo, como ferramenta analítica para a compreensão de relações de poder. Tal construção permite relacionar dois fatores que apareceram de formas distintas nas falas de jovens e de adultos: os entendimentos sobre a violência simbólica e física dos homens em comparação às das mulheres; e sobre a vivência da sexualidade. Há aí persistências e ressignificações que evocam continuidades e rupturas. Tal configuração evidencia-se, por exemplo, nas compreensões da geração adulta de hoje sobre seus pais, relativamente às relações de hoje com seus filhos e filhas. O mesmo ocorre nas falas de jovens sobre seus pais e seus avós. Gênero e geração se cruzam neste percurso. O controle sobre a sexualidade dos e das jovens é mais presente na fala dos e das jovens, enquanto é mais ausente nas falas dos mais velhos e mais velhas, como veremos adiante.

A perspectiva interseccional permite o diálogo entre as vivências e relações nas comunidades e nas famílias, e outros marcadores, como ser do campo, que demarcam as diferenças “de dentro” e “de fora”. Como veremos a seguir, de fato, nota-se que as desigualdades são múltiplas. Retomando Brah e Phenix (2004, p. 75), a interseccionalidade é percebida como a indissociabilidade das variáveis de múltiplos eixos de diferenciação.[14] Por fim, a recuperação de estudos sobre as quebradeiras de coco babaçu (ANTUNES, 2006; BARBOSA, 2006) contribuiu para a análise da persistência de desqualificadores de gênero e raça e a vivência de preconceitos observados naquele território.

 

Ser do campo, raça e classe: violência, resistência e ressignificação

O debate sobre “rural” e “urbano” e suas fronteiras movimenta, há décadas, distintas análises e compreensões que fogem ao escopo deste artigo. Interessa analisar aqui como as experiências e as impressões das juventudes a respeito de seus processos de socialização fora das comunidades rurais são atravessadas por formas de preconceito e discriminação que extrapolam os marcadores de raça, gênero e geração. Se, por um lado, as discriminações ligadas à origem rural permitem articular maneiras simbólicas de construção e afirmação das identidades entre as juventudes do Bico, por outro, reforçam estereótipos e representações de caráter negativo. A maior parte das vivências do preconceito se dá em espaços urbanos.

A mãe foi comprar uma blusa branca, e a mulher pergunta onde ela mora, diz leva outra. Ela responde vou levar a branca, a gente mora no campo, mas tem água pra lavar. (Mulher Jovem, GF com as Juventudes em Comunicação)

No rol das discriminações e das imagens distorcidas a respeito das comunidades rurais, destacam-se as ofensas endereçadas aos sem-terra, frequentemente referidos como PA:

No meu primeiro ano na escola esperava o ônibus, aí teve uma vez que a gente chegou e se encostou no ônibus que tava sujo de poeira e o cara falou “ô PA, tu não se banhou hoje não?”. Aí eu disse “pelo menos eu tenho dinheiro no bolso”. Eles chamam de PA, de projeto de assentamento. (Homem Jovem, GF com as Juventudes em Comunicação)

Eles falam que a gente é bandido, ladrão, fica tomando as terras dos outros. Mas a gente sabemos que terra não é do proprietário que diz que sim, ne? Que a terra é da União.  (Homem Jovem, GF com estudantes da EFA Pe. Josimo)

Os relatos dos dois jovens e da jovem nos mostram as formas de violência sofridas por moradores do campo, mas demonstram também como são respondidas com a valorização de identidades coletivas e das suas lutas pela terra e seus direitos.

Como vimos no início deste artigo, a escola é o espaço de maior vivência dessas violências para os e as jovens, com termos como os hepatite do ônibus amarelo. Os come barro. Os Zé fumaça por causa do ônibus. Os poeirinha, os do mato, os macaco. A questão do racismo foi um dos aspectos mais destacados na investigação. O cabelo, em especial, é foco de preconceitos que mesclam aspectos de gênero e raça, uma vez que têm como alvo prioritário as mulheres. Como afirmamos anteriormente, evidencia-se corpos jovens não aceitos em especial na escola. A violência das agressões verbais partem principalmente de estudantes. No entanto, é clara a não ação institucional e mesmo agressões de professores. Nesse contexto, recolocamos a fala de nossa interlocutora que compõe o título deste artigo. Agora desvelando que o agente da construção violenta desses marcadores da desigualdade foi um professor em sala de aula.

A questão da cor. Do cabelo. Eu sofria muito preconceito onde eu estudava. Ela era índia também. Só que eu morava no centro, ela era da cidade. E o professor disse que além de eu ser preta, pobre ainda era bicho do mato. E disse só pra mim. Eu me senti muito mal. Ele me ofendeu muito. E eu sofri muito. E eu ainda sofri bullying porque sou preta, pobre e bicho do mato. É muita coisa pra uma pessoa só. Risos. (Mulher jovem, GF estudantes da EFA Pe. Josimo)

A violência sofrida por essa jovem é difícil de descrever. No entanto, a maneira como ela jocosamente ressignifica o que viveu, rindo e reforçando é muita coisa para uma pessoa só, e seu reconhecimento como jovem liderança demonstram como os espaços coletivos de organização e vivência como juventudes do Bico contribuíram para a resistência e reação aos processos cotidianos de exclusão.[15] Portanto, como afirmamos, essas ações não são recebidas sem resitência e ressignificação.

Em outro caso, a manifestação contra as violências recorrentes sofridas por uma das jovens do quilombo demonstra uma experiência coletiva compartilhada (BRAH; PHENIX, 2004) em defesa do direito à diversidade. O relato seguinte também pode ser lido como um laço afetivo importante dos e das jovens dessa comunidade.

Por causa da cor, do cabelo, a maioria fala que ela é macho, é feia porque o cabelo dela é curto [jovem de cabelo negro curto presente no Grupo], tem várias pessoas que faz piadinha com ela. Ela gosta de sair com nós e as pessoas ficam olhando de cara feia e mangando. Aí nós chega nelas e pergunta o que é? Ela é um bicho por acaso? Ela é um ser humano, e ela é linda, vocês não devem ficar mangando dela. Aí ela acaba se zangando acaba xingando as pessoas. (Jovem mulher quilombola, Carrapiché)

Os depoimentos evidenciam como raça, “ser do campo”, serem associadas a uma categoria de trabalho rural, e ainda gênero, se intersectam na perspectiva de diferenciação, que vem atravessada pela história dos conflitos por terra na região, como tratamos na Introdução. Tais desqualificadores carregam formas de reprodução de uma sociedade racializada (PINHO, 2004). Mas pontuamos como a reação a formas de violência são processos de resistência e ressignificação. Ao mesmo tempo que a vocalização das violências marca e interdita relações com o outro, veremos adiante como violências persistentes nas comunidades e nas famílias reforçam maneiras de opressão de gênero e geração.

 

Gênero, geração e sexualidade no territorio das quebradeiras de coco

As questões sobre o controle da circulação e da vivência da sexualidade apareceram em diversos relatos no Diagnóstico. Contudo, dois Grupos Focais permitiram um olhar diferenciado. O GF de Jovens de Juverlândia e Folha Seca e o GF mães e avós da mesma região, territórios do extrativismo do coco babaçu, localizados no município de Sítio Novo. O primeiro grupo, formado por um jovem e todas as demais jovens mulheres, foi realizado na igreja católica da comunidade. O segundo, foi composto por mulheres, a sua maioria integrante do MIQCB, e ocorreu na casa da principal liderança do MIQCB. Talvez esses formatos propostos pelas próprias interlocutoras tenham gerado um ambiente que possibilitou o aprofundamento dessas questões. Os Grupos permitiram abarcar um olhar privilegiado sobre três gerações de mulheres, as adultas de hoje, falando sobre seus pais e suas filhas, e as jovens, falando sobre seus pais e avós. As principais questões tratadas foram as desigualdades entre homens e mulheres e o papel da participação no MIQCB para mudanças nessas relações de poder. Já a conversa com o grupo focal de jovens permitiu tratar também do tema diversidade sexual.

Para analisarmos os relatos colhidos, é preciso apresentar alguns elementos a mais sobre a região. O Bico do Papagaio integra o que podemos chamar de território do coco babaçu.[16] Lá as quebradeiras encontram-se organizadas no MIQCB e produzem, além do coco in natura, produtos dele derivados, como o óleo e a farinha. A história do extrativismo do coco babaçu é reconhecida pela luta de trabalhadores contra o domínio dos grandes produtores. Nessa trajetória, as mulheres são protagonistas nos movimentos que lutam pelo direito da coleta e do beneficiamento e, sobretudo, pela manutenção e proteção dos babaçuais (ANTUNES, 2006; BARBOSA, 2006). Ambas as autoras enfatizam o papel do MIQCB para a promoção da autonomia das mulheres na região, assim como para o aumento dos níveis de renda, para a preservação ambiental e o fortalecimento dos mecanismos políticos relativos ao cumprimento da Lei do Babaçu Livre. Apontam, contudo, que o empoderamento das mulheres não representou a superação definitiva de desigualdades de gênero nas famílias. A participação política delas segue como um assunto conflituoso, e elas nem sempre encontram suporte familiar na divisão das tarefas.

Nossa investigação corrobora esses estudos e detalha a percepção das pessoas do Bico sobre o histórico das lutas na região. Em ambos os grupos focais foi possível perceber a reprodução dos mecanismos de controle sobre a circulação espacial de mulheres de distintas gerações, bem como a persistência da divisão desigual das tarefas e, ainda, o diálogo nem sempre livre de conflitos no âmbito das famílias. As mulheres mais velhas reiteradamente afirmaram que era muito mais difícil na época em que eram jovens. Segundo avaliam, o controle era muito maior tanto em termos de circulação quanto na divisão das tarefas, e, em especial, no que se refere à renda.

Os pais antes administrava tudo, dizia pra onde a gente ia pra fazer o trabalho, era o pai. [...] Nós nem sabia quanto dava, nem quanto lucrava. [...] Eu não tinha dinheiro não tinha nada. E era a mesma coisa, quando queria ir pra algum lugar pedia pro papai. (Mulher, GF mães e avós da comunidade de Juverlândia e Folha Seca)

Papai não deixava nada. (Mulher, GF pais e avós da comunidade de Juverlândia)

Eu não tinha pai, fui criada pela vovó, minha vó não deixava eu ir pra lugar nenhum, só trabalhando. Não sabia nem o que era dinheiro. Fui conhecer o dinheiro quando quebrei o coco e vendi. (Mulher, GF mães e avós da comunidade de Juverlândia e Folha Seca)

Segundo afirmaram, o casamento reproduzia o mesmo padrão de dominação.

Eu sofri muito que todo ano eu tinha filho, todo ano eu tinha filho. Todo tipo de serviço eu fiz. Vendia banca em festa, com cocada de coco. Eu comecei dando meu dinheiro pra ele. (Mulher, GF mães e avós da comunidade de Juverlândia e Folha Seca)

Os relatos apontam como as condições mudaram quando começaram a quebrar coco e, de forma mais preponderante, após a criação do Movimento. O direito à aposentadoria também apareceu como outro elemento que conferiu mais autonomia financeira. Ainda assim, como apresentado por Antunes (2006), se a violência doméstica persiste, a atividade extrativista e de beneficiamento organizado a partir do MIQCB trouxe autonomia para essas duas gerações, hoje avós e mães das jovens com quem conversamos.

Mas depois que eu passei a me governar ai mudou. Eu passei a ganhar meu dinheiro. A humilhação é demais, mas só quando ele tá bêbado. Quando tá bom ele é bom. E as meninas quando tavam aqui eu que administrava. Depois que eu botei o pano no ombro melhorou. (Mulher, GF mães e avós da comunidade de Juverlândia e Folha Seca)

Aí chegou a idade de aposentar aposentei. Aí minha vida mudou. O marido domina a mulher, ele tinha até vontade que eu desse meu dinheiro pra ele, mas aí cada um domina seu salário. (Mulher, GF mães e avós da comunidade de Juverlândia e Folha Seca)

Assim como ocorreu no estado do Maranhão (ANTUNES, 2006; BARBOSA, 2006), também na região do Bico, em Tocantins, a participação das mulheres no movimento social foi e continua sendo, para muitas lideranças, um processo de enfrentamento com os maridos. Em alguns casos, os conflitos familiares foram atenuados ou até mesmo superados em razão do aumento da renda e da garantia de trabalho remunerado por meio de sindicatos e associações. No entanto, a aceitação ou o reconhecimento do direito à atuação política das mulheres segue como um tema contencioso na relação com os maridos.

O meu marido chegava a me chamar de vagabunda. E eu dizia vai te embora, me deixa como vagabunda. Me esculhambava. E eu não tinha medo não. Toda vez que tinha reunião eu perguntava se tinha vaga. Eu dizia to lá. E eu voltava e era uma briga, tinha vez que passava dias intrigado comigo. E eu trabalhando, cantando e fazendo o almoço. (Mulher, GF mães e avós da comunidade de Juverlândia e Folha Seca)

Na visão desta liderança, o apoio por parte dos maridos fez a diferença para permitir que algumas mulheres conseguissem participar e outras não.

O marido ajuda. Porque tem gente que não chegou nessa luta porque o marido não ajuda, não combinou. Fazer viagem de três dias o marido tem que combinar. O meu marido combinou. (Mulher, GF mães e avós da comunidade de Juverlândia e Folha Seca)

A fala das gerações mais velhas contrasta com a dos jovens em alguns temas, ao passo que demonstra a persistência de padrões de desigualdade de gênero, especialmente no que tange ao controle sobre a circulação espacial e da violência doméstica. Em estudos sobre a juventude rural (STROPASOLAS, 2004; CASTRO, 2013) é recorrente o controle diferenciado sobre a circulação de homens e mulheres. Distintas formas de controle, ontem e hoje, seguem constituindo dimensão relevante das desigualdades de gênero. Tanto é assim que as jovens se referem reiteradamente ao controle imposto pelos pais. As restrições às jovens mulheres são muito mais comuns do que aquelas impostas aos seus irmãos homens. Elas são submetidas ao controle dos homens – pais, irmãos e outros parentes – quando crianças e jovens. As pressões pelo casamento se apresentam como um dos mecanismos de manutenção da hierarquia masculina:

Eu particularmente lá em casa a gente não pode fazer nada. O pai não deixa. Só deixa sair se tiver uma pessoa de responsabilidade pra sair. A menina tem que chegar as 10 em casa, o menino pode chegar a hora que quiser. E quando chega numa idade tem que casar com um homem pra ser respeitada. Ai se não casar todo homem quer tomar uma saliência. Essa pressão é um dos motivos das mulheres saírem. De não ter a liberdade que não tem. E muitas vezes saem casadas ou na primeira oportunidade de sair. Mas, quando casam descobrem que o marido é pior que os pais. (Mulher, GF jovens da comunidade Juverlândia e Folha Seca)

Contudo, as jovens afirmaram que estão ocorrendo mudanças. Por exemplo, a cavalgada, muito associada a uma atividade masculina, passou a ser praticada por jovens mulheres. Na citação a seguir, a jovem reforça a questão geracional no controle sobre o que as mulheres podem ou não fazer, mas fala sobre a cavalgada como um símbolo de mudança.

E também a menina é vista muito como sexo frágil. Não pode fazer isso porque é menina, e os meninos podem porque são fortes. O preconceito com a menina é muito forte, isso aqui a menina não pode usar, isso aqui não pode fazer porque é coisa de homem. Já vem das criações dos nossos pais, porque eles aprenderam isso. Uma coisa que vem trazendo pro lado positivo nas cavalgadas é que as meninas estão andando de cavalo. Antes era só menino, e agora tão participando e sendo a guia do cavalo mesmo. Tem mais menina que menino. (Mulher jovem, Juverlândia e Folha Seca)

O cerceamento da liberdade também se apresenta no aspecto da orientação sexual. Segundo um professor da EFA Padre Josimo, até então nenhum estudante da região havia assumido a condição de LGBTQIA+,

Nesses três anos eu não vi nenhum aluno que se sentiu à vontade pra assumir a sua sexualidade sei lá diferenciada né? Então eu acho que ainda tem um tabu pra eles se sentirem a vontade de se expor, tem algum medo. (Homem, GF com professores da EFA Pe. Josimo)

A questão só apareceu nas conversas com as juventudes e sempre atravessada por elementos de conflito e de violência simbólica, sendo ainda apontada como fator determinante para a saída daqueles que desejam viver sua sexualidade. Além do grupo de Juverlândia e Folha Seca, outros(as) jovens corroboram a difícil vivência da diversidade sexual na região do Bico, principalmente nas áreas rurais. Algumas manifestações demonstram que os homens, sobretudo, têm mais dificuldade de romperem com formas heteronormativas de vivência de sua sexualidade.

O preconceito tem em todo lugar, mas na zona rural é maior porque eles dizem que aprenderam assim dos pais, homem é homem e mulher é mulher. Os jovens aceitam mais. (Homem jovem, 17 anos GF jovens da comunidade Juverlândia e Folha Seca)

Porque assim quem é camponês trabalha com gado. E quem trabalha com gado tem que ser muito machão… O pai já diz: toma jeito de homem! (Homem jovem, GF as Juventudes em Comunicação)

O preconceito tem em todo lugar, mas na zona rural é maior porque eles dizem que aprenderam assim dos pais, homem é homem e mulher é mulher. Os jovens aceitam mais. Os mais velhos não aceitam e acham que é influencia, ou então porque você quer. Quem que escolhe passar por tudo isso, todo o preconceito, ter dificuldade pra estudar pra trabalhar. Aí você ouve a esse menino é muito inteligente, mas ele é gay. Eles veem como defeito. (Homem jovem Juverlândia/Folha Seca)

Os diálogos nos grupos focais e outros dados mobilizados ao longo do Diagnóstico apontaram como as relações de gênero reproduzem formas históricas típicas de sociedades patriarcais, heteronormativas e racializadas, com a persistência de representações que desqualificam os trabalhadores e, em especial, as trabalhadoras do campo. A realidade do Bico mostrou, contudo, que as relações de poder e os mecanismos de reprodução das desigualdades são também enfrentadas com experiências coletivas que as ressignificam e vêm promovendo mudanças.

 

Considerações finais: persistências, resistências e mudanças

Ao retomar o percurso do Diagnóstico e seus resultados, procuramos tratar território, gênero, raça, geração e sexualidade por uma perspectiva interseccional, que demonstra sua indissociabilidade. O tema das violências e desigualdades foi sem dúvida o mais presente nas falas, mas vimos também formas de se contraporem, enfrentarem, resistirem e ressignificarem essas experiências. Embora materializadas e percebidas de maneira plural, especialmente no que tange ao aspecto geracional, raça, gênero, sexualidade e território aparecem em relevo na percepção das interlocutoras, principalmente das jovens.

No esforço de conclusão, destacamos processos de mudança em curso. As diferenças geracionais indicam que há transformações ocorrendo com respeito às formas de uso e ocupação das terras, à divisão sexual do trabalho, aos níveis de renda e escolaridade da população, assim como quanto à participação dos e das jovens. Em meio a estas transformações, continuidades e rupturas marcam as vivências e percepções das jovens mulheres, suas mães e avós, com respeito à família, ao trabalho doméstico e na roça e ao cotidiano da vida coletiva das comunidades. Se há muitas persistências em relação ao marcador social de raça, há também novas questões no que tange a gênero e sexualidade.

Interessadas em aprofundar leituras sobre a formação e as expressões dessas diversas identidades das mulheres do Bico do Papagaio – TO, analisamos se e como fronteiras visíveis e invisíveis no âmbito das desigualdades de gênero vêm sendo superadas ou, ao invés, reificadas pela combinação de antigas e novas dinâmicas de sociabilidade. Nos dedicamos ainda a compreender como se dá o processo de reinvenção e pertencimento à ruralidade a partir desses corpos/sujeitos e identidades. Como afirmamos na Introdução, observamos que os marcadores da diferença que os identificam socialmente são também acionados para construção da ação e do fortalecimento de uma identidade política como juventudes do Bico na sua diversidade e pluralidade.

Na perspectiva dos pais e professores, as juventudes têm o papel de dar seguimento ao trabalho das gerações anteriores, seja no âmbito da produção, do cultivo da lavoura, seja no sentido da luta pela terra na região do Bico.

Eu creio que a função da juventude é levar a diante de onde a gente parar, eles têm que crescer pra ser alguém na vida. Buscar os objetivos deles. Tudo que a gente não conseguiu ter pra gente, a gente tá ali incentivando pra que eles venham a ter. (Mulher, GF pais da comunidade quilombola Carrapiché e Prachata)

Introduzir o jovem nesse espaço justamente pra que ele dê continuidade nesse processo de luta que nós tivemos e nós precisamos dessa juventude pra dar continuidade a este processo. (Mulher, GF professores da EFA Pe. Josimo)

Uma questão que já se apresenta nas falas de jovens e adultos é que as mudanças nas práticas produtivas devem vir acompanhadas de uma maior abertura para a participação das juventudes. Exemplo disso é o MIQCB, que mais recentemente passou a contar com uma assessoria de juventude, atento à questão da transição geracional.

No MIQCB pela primeira vez tá tendo espaço pra juventude. Antes não tinha. Agora tem assessoria jovem, eu sou de lá. Nos encontros estamos sempre priorizando. As mulheres mesmo tão percebendo que daqui um tempo elas não vão conseguir mais então que tem que formar essa juventude. (Mulher, GF jovens da comunidade Juverlândia e Folha Seca)

Eu acho que com as mudanças ainda tem muito jovem querendo espaço pra essa troca de experiências. Só falta garantir esse espaço. Porque os jovens dizem que quando os mais velhos estão eles não dão espaço pra eles falarem. E os mais velhos dizem que os jovens não querem se misturar. Então a gente precisa unir esse povo. (Mulher, GF jovens da comunidade Juverlândia e Folha Seca)

Outro aspecto relevante é o fato de que as mudanças surtem mais efeito quando são fruto de trabalho coletivo entre as várias organizações presentes na região, conforme apontou uma professora da EFA:

E eu acho também que não é só a escola, eu sempre coloco isso ne? Existe a EFA, existe os movimentos, existe a APATO, a gente vai ter que pensar isso coletivamente ne? (Mulher, GF com professores da EFA Pe. Josimo)

Todo o processo de elaboração do Diagnóstico da Realidade das Juventude Rurais do Bico do Papagaio – TO, bem como a trajetória das quebradeiras de coco babaçu evidenciam idas e vindas de lutas históricas pelo território, por direitos e igualdade. Nesse sentido, corroboram a análise de Miguel e Biroli (2014), para os quais a luta contra as desigualdades e pelo direito das mulheres é ela mesma a luta pela democracia, uma vez que esta não existe sem a participação efetiva das mulheres em toda a sua diversidade. Mostram ainda que as necessárias mudanças formais na legislação relativa ao direito das mulheres não devem negligenciar o descompasso entre os direitos formais já estabelecidos e as desigualdades efetivas que ainda persistem. À luz da realidade do Bico, acrescentamos que a sustentação das mudanças requer legislações e políticas públicas que combinem melhorias materiais e transformações nas estruturas políticas, culturais e sociais.

As demandas das juventudes do Bico pelo Diagnóstico podem ser lidas como uma forma de resistência e busca de mudanças. O processo do Diagnóstico permitiu um diálogo, há muito desejado, entre jovens e mais velhos, que vivenciam espaços de conflito aberto e contínuo na região, e constroem demandas políticas de fortalecimento de seus espaços de organização. Um desses encontros de diálogo entre gerações foi proporcionado ao final dos trabalhos. Ali, jovens e adultos dos movimentos, coletivos e organizações que participaram do Projeto, se reencontraram em um seminário de trocas e análise coletiva dos resultados. Os(as) jovens expuseram suas preocupações, assim como suas propostas para enfrentar as violências e a desqualificação cotidiana que sofrem. Apresentaram ainda proposições para fortalecer formas de organização das juventudes e dos próprios movimentos sociais. Nesse espaço foi amplamente defendido que o diálogo entre jovens e mais velhos é um caminho para novas formas de participação política e a ampliação das juventudes nos espaços organizativos. Chamaram especial atenção sobre o controle da vida das jovens mulheres, a divisão desigual de trabalho, o racismo e outros preconceitos vivenciados principalmente nas escolas, o controle das sexualidades e a violência heteronormativa, com ênfase na reprodução de padrões de masculinidade. Nesse sentido, o diálogo intergeracional se mostra um caminho fundamental no que se refere às possibilidades de rupturas com práticas e estruturas opressoras que persistem nas famílias e comunidades.

Esse percurso nos aproximou não só de um território, mas das vivências dessas juventudes e das mulheres marcadas por violências, resistências e suas formas de luta. Para além do espaço, o tempo informa nosso olhar em diálogo com nossas interlocutoras. Estar lá, de julho de 2019 a fevereiro de 2020, e Escrever aqui, em novembro de 2022 – em uma livre apropriação (GEERTZ, 1998) –, remete e movimenta muitas formas de violência, resistência e luta, nos aproximando ainda mais. E informa olhares mais densos de significados em ser jovem, mulher e negra no Bico do Papagaio ontem, mas especialmente hoje. O fortalecimento de jovens “dentro”, em especial em suas possibilidades coletivas, contribui para o enfrentamento de históricas desigualdades sociais “fora”, abrindo caminho para a derrubada de muros e a abolição de fronteiras, visíveis e invisíveis, que seguem controlando corpos e limitando seus espaços de vivência e atuação.

 

 

Referências

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Como citar

CASTRO, Elisa Guaraná de; DULCI, Luiza Borges; CARVALHO, Joyce Gomes de. ‘Sou preta, pobre e bicho do mato. É muita coisa pra uma pessoa só!’: violências, resistências e formas de luta das jovens mulheres na Região do Bico do Papagaio – TO, Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, e2331111, 30 jun. 2023. DOI: https://doi.org/10.36920/esa31-1_st06.

 

 

 

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[1] Professora Titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), atuando na graduação de Ciências Sociais, no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS) e no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA). Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ). Integrante do Grupo de Trabalho Infâncias e Juventudes do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), do Núcleo de Antropologia da Política (NuAP) e cocoordenadora do Grupo de Trabalho do CNPq em Gênero e Ruralidades. E-mail: elisaguarana@gmail.com.  

[2] Doutora pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: luiza.dulci@gmail.com.  

[3] Professora concursada da Seeduc/RJ, atuando no Ensino Médio. Mestra em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS/UFRRJ). E-mail: joyceufrrj@yahoo.com.br.   

[4] O território do Bico do Papagaio – TO é composto por 25 municípios, 12 dos quais integram o escopo da pesquisa: Araguatins; Augustinópolis; Axixá do Tocantins; Buriti do Tocantins; Carrasco Bonito; Esperantina; Itaguatins; Praia Norte; Sampaio; São Miguel do Tocantins; São Sebastião do Tocantins; e Sítio Novo do Tocantins.

[5] Parceria Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Alternativa para a Pequena Agricultura no Tocantins (APA-TO), apoio da Escola Família Agrícola (EFA) Padre Josimo em julho de 2019 com dois instrumentos principais questionário e grupos focais. Os grupos focais permitiram um diálogo amplo, no entanto, sem identificação de idades e perfis específicos para todas as manifestações. Por essa razão suas falas estão identificadas principalmente por sexo, jovem ou adulto (e derivações) e grupo. Em fevereiro de 2020 o relatório final foi apresentado e debatido em um seminário com as juventudes, as comunidades e lideranças locais.

[6]  Em referência ao ônibus escolar amarelo que serve de transporte aos estudantes entre as áreas rurais e a cidade.

 

[7] A comunidade Olhos D’Água (São Miguel), área regulamentada para a ocupação comunitária de pequenos produtores, todos pertencentes à mesma família. Juverlândia e de Folha Seca (Sítio Novo), comunidades extrativistas do coco do babaçu, presença de lideranças do Movimento das Quebradeiras de Coco de Babaçu (MIQCB). As comunidades quilombolas Carrapiché e Prachat (Esperantina). O Acampamento Pe. Josimo (Carrasco Bonito), organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). A Escola Família Agrícola (EFA) Pe. Josimo (Esperantina). Grupo de Trabalho Juventudes do Bico do Papagaio e o Projeto Jovens em Comunicação surgiram a partir da atuação da APA-TO com as juventudes da região. E um GF de lideranças dos movimentos sociais (STTR Regional, STTR de Axixá, STTR de Sítio Novo, ASBB, Cooaf-BICI).

[8] O intervalo 0,600 a 0,699 caracteriza IDHM médio, no qual se localizam npve dos 12 municípios pesquisados. São Sebastião do Tocantins, Carrasco Bonito e Praia Norte apresentam IDHM inferior a 0,600, considerado índice baixo (0,500 a 0,599).

[9] Embora o Estatuto da Juventude utilize a faixa etária de 15 a 29 anos para fins de identificação da juventude, optou-se pela autodeclaração visando incluir nas atividades do Projeto todas as pessoas que se identificavam como jovens.

[10] Em termos percentuais, a população negra local é substancialmente maior do que a brasileira, 53,92%, e um pouco maior do que a tocantinense, 78,8%, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PAND/IBGE) de 2015 e 2019, respectivamente.

[11] R$ 998,00 SM em 2019.

[12] Segundo a Pnad/IBGE de 2018, o rendimento nominal mensal domiciliar per capita da população brasileira era de R$ 1.373 em 2018. O estado do Tocantins apresentou rendimento domiciliar mensal per capita de R$ 1.045.

[13] Dados de 2018 indicam que sete em cada dez pessoas com fome no mundo são mulheres. Em termos fundiários, as mulheres possuem menos de 15% das terras e menos de 2% das propriedades rurais registradas. Recebem apenas 10% de toda a renda global, embora sejam responsáveis por 2/3 do trabalho. Considerando as áreas rurais, 60% das famílias chefiadas por mulheres situam-se em terras marginais, desprovidas de saneamento básico e de insumos e máquinas para a produção. Soma-se a isso o fato de que dos 194 países que compõem a ONU, 102 possuem leis e práticas que negam e/ou dificultam às mulheres o direito à terra. Ainda assim, as mulheres produzem a metade dos alimentos no mundo e até 80% em países em desenvolvimento (IICA, 2018).

 

[14] Tradução livre: “We argue that the need for understanding complexities posed by intersections of different axis of differentiation is as pressing today as it has always been (BRAH; PHENIX, 2004, p. 75).

[15] A jovem é uma das organizadoras do GT Juventudes e muito atuante na comunidade e nos espaços de organização das e dos jovens na região. Em conversas informais relatou a importância dos espaços das juventudes do Bico organizados pela Apato para que pudesse enfrentar a violência cotidiana e valorizar a sua realidade.

[16] A produção extrativa do coco babaçu está presente em seis estados brasileiros: Maranhão, Pará, Piauí, Tocantins, Mato Grosso e Goiás.