ESA_logo.png                  Recebido: 8.fev.2023   •    Aceito: 11.abr.2023   •    Publicado: 19.abr.2023                                                                                                                                                                                                                                                   


Patronato, terra e política nos campos sulinos

Employers, land and politics in the southern fields

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Everton Lazzaretti Picolotto[1]

 

 

             

 

 

https://doi.org/10.36920/esa-v31n1-r1

 

 

Resumo: Resenha do livro Senhores de terra, senhores de guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019), de Marcos Botton Piccin.

Palavras-chave: resenha; patronato; agronegócio.

 

Abstract: Review of the book Senhores de terra, senhores de guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019), by Marcos Botton Piccin.

Keywords: review; employers; agribusiness.

 

 

 

PICCIN, Marcos Botton.  Senhores de terra, senhores de guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019). Curitiba: Editora CRV, 2021. 374 p.

 

 

A obra de Marcos Botton Piccin chegou às nossas mãos em um momento em que o chamado agronegócio está em alta no país, e a sua capacidade e poder contribuíram para galvanizar a ascensão política da chamada “nova direita”. Sua importância é destacada pelo seu peso econômico – em partes, aumentado pela crescente reprimarização da economia  (DELGADO; LEITE, 2022) –, pela modernidade tecnológica do setor, pelas suas contribuições, ao financiar e eleger grandes bancadas parlamentares, prefeitos, governadores e presidentes, e as suas ousadas intenções na disputa da hegemonia cultural da sociedade brasileira – direção intelectual e moral, no sentido gramsciano (BRUNO, 2022).

O protagonismo das elites rurais nesses temas não é novo no país. Desde os tempos do Império e da República Velha, tais elites comandam as grandes questões nacionais. Seja com o domínio dos partidos mais relevantes no período do Império, seja ocupando diretamente os maiores cargos da República, nas suas primeiras décadas e até mesmo no pós-golpes de Estado de 1930 e 1964. O livro de Piccin faz uma análise sociológica sobre como as elites estancieiras do estado mais meridional do Brasil participaram do jogo do poder regional e nacional desde a década de 1920, a sua participação nos movimentos políticos (e, em alguns casos, político-militares) que levaram à ascensão aos postos altos do país, em diferentes momentos, de alguns de seus membros mais ilustres, tais como: Getúlio Vargas, João Goulart, Arthur da Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici. Para além destes, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político, muitos integrantes das principais linhagens de famílias estancieiras riograndenses estiveram no centro das decisões políticas nacionais de 1930 até 1980.

A ascensão política da elite estancieira corresponde também à sua ascensão econômica, o que marca diferenças fundamentais de mobilidade para com outras elites agrárias nacionais como os senhores de engenho e barões do café, que viveram certo declínio relativo à sua importância político-econômica após 1930. O autor, fazendo uso da teoria de Pierre Bourdieu, debruça-se sobre o espaço social estancieiro para analisar a distinção social de classe, o poder simbólico do prestígio pelo consumo, o estilo de vida aristocrático, sua participação na política e nos movimentos armados, as estratégias matrimoniais e de sucessão dos seus patrimônios, as relações sociais de produção e de dominação em seus domínios fundiários, os cálculos econômicos e as transformações deste espaço ao longo do tempo. O livro está ancorado em extenso e diversificado material empírico, desde exaustiva observação direta em estâncias no município de São Gabriel (região da Campanha Gaúcha, área tradicional da pecuária), realizada entre 2011 e 2016, até entrevistas com diversos agentes (estancieiros e suas esposas, arrendatários, sindicalistas, prefeito, advogado, juíza do trabalho e peões), genealogias familiares de estancieiros de importância política e dados sobre as propriedades (cadastros do Incra e dos censos do IBGE).

 A obra é organizada em sete capítulos, abrangendo a formação dos latifúndios pastoris nos campos do Sul do Brasil, o estabelecimento das charqueadas para produção e processamento das carnes bovinas destinadas ao mercado nacional, para atender a demanda de alimentação dos trabalhadores das regiões agroexportadoras (como do café e da cana) e a formação dos frigoríficos controlados por cooperativas de estancieiros no pós-1930. A partir desta época, passaram a produzir “artigo de luxo”, a carne frigorificada destinada aos consumidores urbanos no país e no exterior. Com esta mudança, segundo a análise de Piccin, o rendimento monetário do estancieiro criador de gado bovino “é maior do que qualquer outra atividade agrícola para o período que vai até o final da década de 1980” (p. 15). Contudo, acompanhando o processo de redemocratização política, abertura da economia e outras mudanças, os estancieiros iniciaram o seu descenso político e econômico. A partir da década de 1990, presenciaram a ascensão de outros agentes no mesmo espaço social – tal como os colonos, descendentes de imigrantes e pequenos proprietários de outras regiões do Rio Grande do Sul, que passaram a arrendar e depois a comprar terras dos seus domínios –, a pressão dos movimentos sociais de luta por terra e a conquista de diversos assentamentos e as causas trabalhistas que passaram a interpelá-los na Justiça.

O livro traz uma análise sobre a estrutura da sociedade estancieira e a distribuição dos capitais entre as suas classes sociais no longo prazo. Situa a elite estancieira no topo da hierarquia social, conferindo-lhe prestígio social, títulos, domínio das terras, poder econômico, político e militar. Na base da estrutura social estão os peões, trabalhadores relativamente desqualificados, empregados na criação do gado. Conforma uma estrutura social bastante desigual. Neste aspecto, chama a atenção a forma particular com que a identidade de gaúcho (termo usado, nos tempos atuais, como identificadora dos nascidos no estado do Rio Grande do Sul) é usada nesse meio. Segundo o apontado por Piccin, no ambiente estancieiro, o termo gaúcho é guardado para a designação dos que “vivem do próprio trabalho” (p. 99). Tendo inclusive uma variação do termo, a de gauchinho, usada no interior das estâncias para designar “especificamente os peões de estância” (p. 99). Ou seja, nas áreas estancieiras do Rio Grande do Sul, os entusiastas e frequentadores de Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) são os gaúchos (peões) e adeptos urbanos, não os estancieiros. Estes últimos mantêm clubes próprios para o seu convívio social, como o “Aristocrático Clube Comercial” de São Gabriel. O nome do clube já diz muito!

A obra destaca que as mudanças ocorridas após os anos 1990 tornaram visível certo descompasso entre o habitus aristocrático internalizado pelas famílias da elite estancieira ao longo de décadas de bonança e as estruturas do campo econômico que se deterioram rapidamente. O estilo de vida, status e prestígio social foram sedimentados em momento em que a atividade do gado era muito valorizada e os membros da elite estancieiras obtiveram acessos aos melhores espaços da sociedade brasileira. Desenvolveram um habitus que valoriza atividades de “espírito desinteressado”, como pintura, esportes, literatura, política e em profissões como medicina, direito, engenharia e no exército, em detrimento de ocupações garantidoras do sustento econômico e do “espírito” burguês, da avareza, da acumulação. Mesmo após a derrocada econômica, as estruturas anteriores sobreviveram como disposições sociais incorporadas, como “efeito de histerese”, nos termos de Bourdieu (1983), para designar o descompasso histórico entre o passado e o presente do agente, ou seja, entre as suas condições de geração e as suas condições de operação. Nesse sentido, o habitus desinteressado nos aspectos econômicos se apresenta como um fator desestabilizador em muitas estâncias e, até mesmo, como motivador da falência, se os seus proprietários não são capazes de realizar um processo de reconversão das espécies de capitais que detém para outros mais rentáveis e legítimos nos tempos atuais. Essas situações, acabam atraindo para as áreas das estâncias outros agentes, melhor adaptados ao campo econômico (atentos às regras do mercado) e o cultivo de grãos, especialmente, a soja.

Outra grande revelação das pesquisas sistematizadas no livro diz respeito ao relativo atraso entre a promulgação da legislação trabalhista rural e a sua aplicação efetiva no espaço estancieiro. Apesar da legislação trabalhista rural ter sido regulamentada ainda no início da década de 1960 e aplicada desde essa época em áreas de Pernambuco, Paraíba e São Paulo, por exemplo, na região estancieira só passou a ser efetivamente cumprida a partir da década de 1990. Alguns dos depoimentos de estancieiros trazidos na obra de Piccin (p. 176-179) revelam inclusive certo saudosismo de como eram “boas” as relações com os trabalhadores e suas famílias no passado, em formas de “dominação tradicional” (em sentido weberiano), antes da vigência efetiva das leis trabalhistas: “os empregados eram muito baratos... eles eram achegos ali, ganhavam alguma coisa”; “eles nasciam no campo... apreendiam com os avôs e com os pais... eram empregados polivalentes, sabiam domar um cavalo, amansar uma junta de boi, alambrar [fazer cercas], sabiam de tudo”; “antigamente... o peão era um pessoal que era da família praticamente, porque o cara entrava guri pra estância e se aposentava lá... com o advento da justiça essa... do trabalho, mudou tudo, agora é pura questão trabalhista”; “naquela época era assim: o empregado era como se fosse um patrimônio, porque dava casa e o empregado morava, dependia. O empregado, o filho e o neto todo mundo trabalhava…”; “começou a mudar mesmo de 90 a 2000... a estância tinha 8 funcionários e meu avô gastava uma vaca para pagar os 8 funcionários [por mês]... Hoje [2011] eu preciso de duas vacas para pagar um empregado.”

Como se percebe, a modernização nas relações de trabalho trazida pela legislação é vista como algo nocivo para a ordem local e revela certo descompasso no habitus desinteressado dos estancieiros diante da sua nova condição social, da falta de certos privilégios e das angústias da necessidade de tratar os empregados como cidadãos, como iguais perante a lei. O ressentimento da perda de status, da necessidade de reconhecer direitos, de certa aproximação social com grupos que julgam inferiores é apontado por vasta bibliografia como uma das bases morais do conservadorismo contemporâneo, base da “nova direita”. O livro de Marcos Piccin nos dá algumas indicações preciosas de como esses processos ocorrem no espaço social das estâncias sulinas. Vale muito a sua leitura.

 

 

 

Referências

BRUNO, Regina. O processo de construção da hegemonia do agronegócio no Brasil: recorrências históricas e habitus de classe. Trabalho Necessário, Niterói, v. 20, n. 41, p. 1-26, 2022. Disponível em: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/52566. Acesso em: 20 dez. 2022.

DELGADO, Guilherme Costa; LEITE, Sergio Pereira. O agro é tudo? Pacto do agronegócio e reprimarização da economia. Revista Rosa, São Paulo, v. 6, n. 2, 2022. Disponível em: https://revistarosa.com/6/agro-e-tudo. Acesso em: 10 jan. 2023.

PICCIN, Marcos Botton.  Senhores de terra, senhores de guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019). Curitiba: Editora CRV, 2021.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 46-81.

 

 

Como citar

PICOLOTTO, Everton Lazzaretti. Patronato, terra e política nos campos sulinos. Resenha do livro Senhores de terra, senhores de guerra: sociologia histórica do patronato estancieiro do Rio Grande do Sul (1920-2019), de Marcos Botton Piccin. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, e2331113, 19 abr. 2023. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v31n1-r1.  

 

 

 

 

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[1] Professor de Sociologia do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (PPGCS/UFSM). Doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: everton.picolotto@ufsm.br.