ESA_logo.png                                             Recebido: 8.jul.2022   •    Aceito: 19.dez.2022   •    Publicado: 31.01.2023                                                                                                                                                                                                                                                   

Ruralidade trágica em Juan Rulfo: apontamentos entre ficção e realidade

Tragic rurality in Juan Rulfo:
considerations between fiction and reality


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Rodrigo Kummer[1]

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Eli Napoleão de Lima[2]

             

 

 

https://doi.org/10.36920/esa31-1_02  

 

Resumo: Esta é uma análise da produção literária do escritor mexicano Carlos Juan Nepomuceno Pérez Rulfo Vizcaíno (1917-1986). Buscou-se aprofundar os sentidos de seus enredos trágicos, ambientados e referenciados à desigualdade social e à ruralidade mexicana de meados do século XX. O objeto de discussão se circunscreve às obras literárias Chão em Chamas (1953) e Pedro Páramo (1955). Estes textos, notoriamente complexos e enigmáticos, se relacionam entre a realidade social mexicana do início do século XX e o imaginário social, permeado pelo misticismo e pelo fantástico. A literatura rulfiana, portanto, assumiu a tessitura de um discurso que oscila entre o real e o imaginário e que dá sentido às experiências históricas. Nesse viés, um dos elementos fundamentais da produção literária de Rulfo é a presença da tragédia. Ela apresenta, sobretudo, elementos de uma ruralidade permeada pela escassez, pela exploração e pela pobreza. Sua obra representa, de modo original, uma contribuição ao pensamento decolonial, pois apresenta uma manifestação literária que advoga e dialoga com sua realidade de forma propositadamente pragmática. Sua tragicidade rural é, além de denúncia, um forçoso choque de realidade.

Palavras-chave: ruralidade; literatura; tragédia; história; México.

 

Abstract: This analysis of literature by the Mexican writer Carlos Juan Nepomuceno Pérez Rulfo Vizcaíno (1917–1986) is intended to further explore the meanings of his tragic plots set among and making reference to social inequality and rurality in Mexico during the first half of the twentieth century. We focus on The Plain in Flames (1953) and Pedro Páramo (1955), two notoriously complex and enigmatic texts relating to the social reality in Mexico in the early 1900s and the social imagination permeated by mysticism and the fantastic. Rulfian literature consequently acted as an interwoven discourse oscillating between the real and the imaginary, lending meaning to historical experiences. In this sense, tragedy is one of the fundamental elements in Rulfo’s literary work, which essentially presents elements of a rurality permeated by scarcity, exploitation, and poverty. His writings represent an original contribution to decolonial thinking by offering a literary manifestation that advocates for and dialogues with its reality in a purposefully pragmatic way. The rural tragedy contained in this work is not only an accusation, but also an inevitable clash with reality.

Keywords: rurality; literature; tragedy; history; Mexico.

 

 

 

 

Introdução

O objetivo e o sentido deste artigo é aproximar-se da obra de Juan Rulfo. Nesta análise tomamos o pressuposto de Frederic Jameson (1992), de que a literatura engendra um aprofundamento político. Isso significa ir além da distinção do posicionamento do escritor. Refere-se ao conjunto articulado em que opera todo processo literário. Jameson, em sua abordagem do inconsciente político, destaca o método do metacomentário: “segundo o qual o nosso objeto de estudo é menos o próprio texto do que as interpretações através das quais tentamos abordá-lo e dele nos apropriar” (1992, p. 10). Assim, busca-se uma interpretação possível, não uma interpretação definitiva.

Juan Rulfo construiu uma literatura singular. Uma expressão sua, própria e complexa, em que se destaca a presença de quadros trágicos. A tragédia literária, como aponta Puppi (1981), evoca um conjunto de relações de poder que expressa um contexto de violência e sofrimento. Significa demonstrar o sofrimento como elemento humano e como denúncia. O autor define a tragédia como “situação de violência institucional, sofrida individualmente até as últimas consequências como denúncia” (1981, p. 43).

É nessa percepção que Juan Rulfo escreve sobre a sociedade ruralizada do México de meados do século XX, e é sobre essa representação que se dispõem elementos de compreensão histórico-social. Segundo Boixo (1986), o ambiente rural é o que define a obra de Rulfo. Uma ruralidade que está envolvida nos processos de poder e que não está isolada das manifestações humanas em geral. Mais, que sofre pela injustiça e que se verifica como um problema social não resolvido pelas tentativas revolucionárias. Não se trata de fazer terra arrasada sobre os movimentos sociais, mas de demonstrar que havia, ainda, muito a se fazer.

O texto está organizado em três partes. Inicialmente, abordam-se os aspectos biográficos de Juan Rulfo, ponderando sobre os possíveis vetores que influenciaram sua maneira de escrever e sua obra. Na segunda parte, analisa-se a obra Pedro Páramo, focalizando a produção da tragédia rural, relacionada à morte e ao esquecimento. Por fim, na terceira parte, discutem-se os contos da obra Chão em Chamas, com especial atenção à tragicidade e aos aspectos da desigualdade social mexicana, ambientados no contexto rural.

      

Juan Rulfo: um escritor da perplexidade enigmática

Carlos Juan Nepomuceno Pérez Rulfo Vizcaíno, popularmente conhecido como “Juan Rulfo”, nasceu em Apulco,[3] um povoado da cidade de Sayula, província de Jalisco, em 16 de maio de 1917 e faleceu em 7 de janeiro de 1986, na Cidade do México. Casou-se com Clara Angelina Aparicio Reyes em 1947, tendo quatro filhos: Claudia Berenice, Juan Francisco, Juan Pablo e Juan Carlos. Foi um trabalhador trivial, atuando como vendedor ambulante, vendedor de pneus e funcionário do Serviço de Migração. A inserção na vida literária, além da fotografia e do cinema, lhe rendeu reconhecimento e atividades em revistas e no Instituto Nacional Indigenista na Cidade do México. A partir de 1976, passou a integrar a Academia Mexicana da Língua.

Rulfo foi, além de literato e redator de cinema, um grande fotógrafo. A arte fotográfica que apresentou dialogava com um México interiorano, rural e focado em paisagens humanas. Havia em sua percepção da realidade uma perspicaz visão humanística. Os cenários e paisagens que descreveu ou fotografou tinham sempre o foco na existência de pessoas, de histórias e de vida (BRENNAN, 2018).

Eric Nepomuceno afirma que o escritor mexicano teve uma vida “frágil, intensa e atormentada” (2014, p. 9). Para Miriam Adelstein (1982), a literatura de Rulfo descreve a si mesmo como reflexo da história do México, isto é, de forma trágica e fatalista: “los temas generales de que tratan los cuentos de Rulfo son los establecidos por su vida personal. La trágica vida del campesino mexicano preocupa a Rulfo y le provee de la temática para toda su obra” (1982, p. 91).

Sua infância foi dura. Perdeu sua família na Guerra Cristera (1926-1929) e acabou em um orfanato. Assim, Jalisco se constituiu num símbolo nebuloso e no qual teceu, não por acaso, os enredos de suas histórias. Sua experiência de infância no orfanato, de fato, deixou marcas significativas: “a disciplina era péssima e o sistema era a prisão, a única coisa que aprendi foi ficar deprimido. O pânico que tenho da multidão é uma coisa natural congênita, talvez. Aprendi a conviver com a solidão” (RULFO, 1977).

A Guerra Cristera que afetou o escritor foi um desdobramento da Revolução Mexicana (1910-1917). O conflito foi desencadeado pelos atritos que tomaram corpo a partir da constituição do governo revolucionário em 1917. Havia um objetivo claro de minorar o poder eclesiástico, que era muito grande entre trabalhadores pobres e camponeses, e aumentar o poder do Estado. A Igreja estaria condicionada ao poder estatal (LÓPEZ, 2011; QUEZADA, 2012).

A disputa em torno da religião em meio aos desdobramentos da Revolução Mexicana levou a divisão entre: a “Confederación Regional Obrera Mexicana” – Crom, que era aliada do governo, anticlerical, e tinha intenção de estabelecer uma Igreja Católica Apostólica Mexicana; e a “Unión Popular y la Liga Nacional de Defensa de la Libertad Religiosa” – LNDLR, que arregimentava os militantes católicos (LÓPEZ, 2011; QUEZADA, 2012).

O presidente Elías Calles (1924-1928) insistiu em aplicar leis constitucionais anticlericais. Como forma de protesto, em agosto de 1926 a Igreja Católica anunciava que suspenderia os cultos. Esse jogo de poder entre Estado e Igreja tinha contornos mais diplomáticos no meio urbano, porém ganhou notória dimensão física no meio rural. No início de 1927, o conflito agravou-se, transformando-se em uma guerra civil, sem ameaçar, contudo, o poder do governo. A zona centro-ocidental, congregando os estados de Jalisco, Michoacán, Colima, Aguascalientes, Nayarit, Zacatecas e Guanajuato, foi a mais afetada. Nessa região, os cristeros chegaram a controlar povoados e recebiam grande apoio social (LÓPEZ, 2011; QUEZADA, 2012).

O fim da guerra foi operado por um acordo entre governo e Igreja. Os combatentes cristeros foram desautorizados a seguir na luta que havia tolhido de 70.000 a 85.000 almas. Foi um episódio cruel e que retomou o imaginário de violências vivido na Revolução Mexicana. Em pontos mais isolados, o conflito se manteve por mais tempo, irrompendo “la segunda”, em 1934, até a rendição completa, em 1940 (ARIAS URRUTIA, 2002). Essa continuidade representava também outras insatisfações das populações camponesas com o governo revolucionário (LÓPEZ, 2011).

A vida de Rulfo foi, efetivamente, um corolário trágico em que a violência se manifestou de diversas formas, seja contra a vida em si, seja contra a dignidade da existência. Tal qual outros tantos mexicanos, o contato com a miséria humana, com os infortúnios e com os problemas sociais moldou seu olhar e sua identidade. O infortúnio pode ser tomado como um vetor aleatório, porém falamos aqui de uma condição social, estruturada por forças antagônicas e interesses escusos. Havia em Rulfo, portanto, uma condição social trágica.

De acordo com Ubaldo Puppi (1981), o trágico literário é um conceito relacionado à violência e às relações de poder. Entende que ela é, ao mesmo tempo, uma consequência e uma denúncia da violência institucional. Segundo ele, existe um sentido real e um sentido ficcional do trágico. Em Rulfo, porém, é complexo definir uma diferenciação clara. Ainda que seus personagens e suas situações narrativas estejam frontalmente construídas ficcionalmente, o vetor central da tragédia é tomado da realidade. Ele é incorporado pelo cotidiano, numa triste e concreta existência.

Dessa forma, a tragédia como tecitura literária evoca uma relação mais íntima com a realidade. Como assevera Roger Chartier, o romance ocupa o lugar da fábula e a comédia e a tragédia pertenceriam à representação “[...] se a tragédia e a comédia são ‘representações’ é porque dão uma imagem verdadeira, um conhecimento adequado das ações humanas” (CHARTIER, 2003, p. 89, grifos do autor).

Trata-se, portanto, de construir e dialogar com cenários reais da ruralidade mexicana. Esses, por sua vez, tendem a ser fundamentados em descrições bucólicas, como pontua Raymond Williams (1989). Para este o autor, a ruralidade é historicamente associada a um par qualitativo-pejorativo. É descrita ao mesmo tempo como um lugar de paz e tranquilidade, mas também de atraso e pobreza. A cidade, como espectro opositivo do campo, seria espaço de realizações, de riqueza, ao mesmo tempo que congrega a pecha de mundanidade, de perigos e barulho. Nesse contraste dicotômico, relacionado à intensa migração rural-urbana, a característica primordial relativa ao campo acaba sendo o bucolismo, a romantização e a nostalgia. Trata-se de um rural não mais vivido no cotidiano, mas acionado na memória e por isso eivado de idealizações. Conforme Williams (1989), a construção representacional da ruralidade tomada pela noção bucólica invisibiliza o trabalho e a condição de vida dos trabalhadores rurais.

A questão parece ser tratada por um outro viés na literatura rulfiana. Embora não negue essa dicotomia, Rulfo aborda a ruralidade prioritariamente pelas relações de classe. A maior tragédia rural é a pobreza, a desigualdade, a injustiça social. O leitor de Rulfo percebe, com facilidade, que o cenário de tragédias representado em sua obra tem relação com o real, dado o contexto sócio-histórico no qual escreve. O sentido dessa tragédia, porém, é assumido com graus variados pelos leitores, notadamente influenciados pela experiência social em que cada um processa uma comparação.

As proposições literárias de Rulfo podem contribuir para a construção de uma representação negativa da ruralidade, sobretudo como lugar de pobreza. Num sentido mais acurado, pode-se afirmar que a paisagem rural humana construída por Rulfo é uma denúncia sobre a desigualdade, donde a pobreza é um dos seus produtos, tal qual a fome, a violência ou a morte. É um sentido de sobrecarga dramática, pois expõe – numa ambientação fantástica – que aquela fortuna é obra humana e como tal, sobressaem a maldade e a falta de empatia com as misérias, malogros e má-sorte. 

A noção de tragédia pode ser associada a um destino manifesto dos povos. Aqueles bem-aventurados colhem resultados positivos por uma definição da divina providência. Aqueles que sofrem, tragicamente, estão sendo testados ou punidos. Há um recurso heurístico de definir que o trágico é o que é, ponto. Não cabe revolta, mas aceitação. Povos sofrem porque haveriam de sofrer. A alocução é geralmente apontada aos ditos “povos inferiores”, povos selvagens, pobres (de cultura e matéria). Nesse conjunto aparecem, por exemplo, os povos rurais, camponeses, extrativistas, entre outros. Sua existência é trágica pelo destino que precisam enfrentar e aceitar. Como problematiza Puppi (1981), na trama, aquele que sofre o infortúnio nem sempre conhece suas causas nem as estruturas que produzem o sofrimento.

Todavia, nos pressupostos de Rulfo, os enredos deixam esses elementos evidentes para o leitor. O trágico é menos inexorável, é uma situação concreta, não uma condição inevitável. É evitável, passível de alteração e ressignificação. Trata-se de uma realidade social construída e que se revela trágica, na medida em que se compreendem os jogos de poder e a violência imputada sobre determinadas pessoas ou grupos sociais. Não se joga com o destino, senão com a vida tal qual ela é. Aqueles que sofrem, sofrem por um motivo claro.

O que queria Rulfo com suas obras carregadas de um contexto trágico? A interpretação que perdura é a de denunciar, de relatar um quadro social complexo e sofrível. Sustenta-se numa tragédia social vívida que incorpora elementos religiosos, folclóricos e culturais. Um drama contemporâneo, diferente dos casos clássicos gregos (contexto mítico) ou modernos shakespearianos (contexto político controverso). É uma composição fortemente articulada com as condições históricas, materiais, sociais, políticas e culturais das sociedades. Como aponta Puppi, “a variante contemporânea da tragédia denuncia, sempre por meio de pobres personagens marcadas como vítimas exemplares, a violência institucional contida nas contradições da formação econômica e política manipulada por centros esotéricos de decisão” (1981, p. 44).

Efetivamente, Rulfo não parece desejar construir uma moral catártica com suas obras. Trata-se de uma demonstração pragmática de uma realidade visível e vivenciada. Como não é dado conhecer no íntimo a intenção do autor, tampouco seja isso o mais importante, interessa analisar os efeitos possíveis de sua obra. No caso de Rulfo, o que se torna evidente, além do caráter denuncista, é o ponto de inflexão entre a empatia com o sofrimento e a indiferença com o alheio.

A violência, nesse contexto, exerce um dos papéis proeminentes. Seja operada pelo Estado, pelos caudilhos, pelos revolucionários, ou mesmo pela dinâmica familiar, pois fora naturalizada de tal forma que assumia a face mais dramática da miséria humana. Logo, também a morte assumia papel de protagonismo no imaginário social. Não é difícil perceber, portanto, a relação que a realidade social desempenhava nos textos de Rulfo (SEBESTYEN, 2011).

Rulfo não escreveu para narrar a Revolução Mexicana ou a Guerra Cristera. O que fez foi construir enredos literários que davam conta de expressar a perplexidade da vida daqueles que eram afetados, não só pelos conflitos em si, mas pela causa e efeitos deles (CHOUBEY, 2004). Como destaca López-Quiñones (2013, p. 84), Rulfo mostra um México ferido após a Revolução que fracassara em trazer “liberdade, bem-estar e justiça”. Seus personagens são silenciados, não reproduzem discursos estetizados e ocidentalizados. Seu silêncio reflete uma condição social de dupla marginalização: “son mexicanos (pertenecientes a un país periférico si tomamos como referencia el modelo europeo) y, pertenecen a una clase social de parias absolutamente desprotegida que, además, después de la revolución, ha quedado desolada y en tierra de nadie” (LÓPEZ-QUIÑONES, 2013, p. 84).

       Embora vários dos contos de Rulfo, presentes em Chão em Chamas, tenham sido escritos ainda nas décadas de 1930 e 1940, somente na década de 1950 foram publicados, assim como Pedro Páramo. Nesse momento histórico havia uma estabilidade social, que na verdade tinha relação com o desenvolvimento produtivo no campo, mas solidificava as contradições e as desigualdades presentes desde os movimentos revolucionários. Nas obras de Rulfo resiste uma crítica fatalista ao fracasso das esperadas transformações.[4] A morte havia sido a personificação das mudanças e era sentida principalmente entre aquelas famílias pobres, que continuavam a conviver com ela, seja no imaginário, seja num dia a dia dramático.

[...] os prêmios são como o destino. Estão girando sempre na roda da vida; às vezes, alguns são contemplados, e outros não. E nessa roda a gente sempre está no centro, e ao redor de nós estão sempre girando a vida, a morte, a saúde, a doença, o destino, o infortúnio e a felicidade, que alternativamente se aproxima de nós. Mas a única coisa inexorável desta espécie de serpente que morde a própria cauda é a vida e a morte. (RULFO, 1986)

Particularmente, a literatura passou a ocupar o cotidiano de Juan Rulfo na medida em que via nela uma forma de enfrentar a solidão, que desde muito cedo fazia parte da sua existência (NEPOMUCENO, 2014). Nessa faina, buscou reconstruir contextos memoriais particulares, aproximando-se da vida rural, porém reorganizando cenários, questionando paradigmas e mesclando todo esse conteúdo com uma linguagem direta, polida e inovadora.

Segundo Myriam Núñez (2012), Rulfo herdou a tradição da escrita realista de outros autores, como Victoriano Álvares e Mariano Azuela, também jaliscienses. Porém, ele constituiu um estilo próprio ao aprofundar técnicas de narrativa experimentais e incorporar influências da literatura universal, sobretudo daquela publicada em língua inglesa. Isso, reforçando as palavras de Núñez, lhe permitiu fundir dois elementos expressivos da realidade social e literária do México entre 1915 e 1940, isto é, o campo e a violência armada. Além disso, é também unânime a suposição de que Rulfo foi influenciado pela literatura nórdica, russa e notadamente por Dante Alighieri, já que há uma similaridade na dramaticidade exposta nos livros de ambos os autores. Outra referência significativa é a da filosofia, especialmente do existencialismo que permeia seus escritos, como destaca López-Quiñones.

 

En la obra del autor jalisquense hay obsesiones filosóficas de fondo que van de la mano de la agenda intelectual que el existencialismo impuso en la ciudad letrada de varios continentes: énfasis en la subjetividad, extrañamiento ante el mundo, identificación de lo auténtico con el ejercicio de la voluntad, el pathos de la angustia como tono predominante y la aspiración de la libertad como último horizonte antropológico y la certeza de su negación. (2013, p. 89)

 

A obra rulfiana, baseada na ambiguidade, na fragmentação, na ruptura intermitente e no fatalismo, gerou e gera um sensível desconcerto, assombro e perplexidade (FELL, 1997). A complexidade de seus textos, ainda concordando com Claude Fell, está vinculada a dois paradoxos articulados: a) a universalidade de um autor ligado à realidade local; b) a utilização de uma linguagem popular por um escritor eminentemente moderno, cosmopolita e audaz. A oralidade que utiliza é mesclada num processo de “ficcionalização” que justapõe tradições culturais nativas e colonizadas.

Convém assinalar que a literatura, segundo Eagleton, não pode ser definida objetivamente, pois está disposta sobre a leitura dela feita: “a definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (1997, p. 11, grifo do autor). Em resumo, não podemos esquecer que os efeitos das obras de Rulfo incidem na composição da própria complexidade que foi percebida. O discurso, da mesma forma, não pode ser vinculado de maneira específica e unitária, pois é sempre amplo e dependente das relações tecidas na leitura e não apenas na escrita. “O discurso, em si, não tem um significado definido, o que não quer dizer que não encerre pressupostos: é antes uma rede de significantes capaz de envolver todo um campo de significados, objetos e práticas” (EAGLETON, 1997, p. 277).

Outro ponto é a dificuldade de separar, nos escritos de Rulfo, o que é história e o que é ficção. Obviamente que seus enredos são fictícios, porém amalgamados numa realidade muito sensível. Podemos dizer que se Rulfo não está escrevendo uma História do México rural de meados do século XX, ele produz, por meio da literatura, uma contribuição histórica sobre elementos sociais da ruralidade mexicana de meados do século XX. Como afirma Peter Gay: “a verdade é um instrumento opcional da ficção, não sua finalidade essencial” (1990, p. 172), e acrescenta que “por mais que possamos apreciar as histórias de ficção pelas verdades que revelam, apreciamo-las ainda mais pelas mentiras que contam” (1990, p. 175). Rulfo é, portanto, um agregador discursivo generalista e não um especialista disciplinar.

Dentre os muitos fatores que influenciam seus textos, a terra, a sociedade pós-Revolução, o pecado, a religião, o isolamento, a solidão, a violência, a morte e o pessimismo são recorrentemente permanentes. A expressividade dos textos figura na forma de manejar tantos temas com uma perspectiva essencialmente inovadora que congregava o enigma, a simplicidade e uma ironia trágica. Nepomuceno (2014, p. 12) resume que Rulfo “escreveu e revelou o mundo de seus fantasmas e esperanças, e assim, nos revelou o mundo de todos nós”. Talvez sua maior virtude seja a capacidade recorrente de atingir o leitor de formas variadas em poucas linhas. Assim também destaca Fell, “hay en Rulfo todo un juego de tropos destinado a plasmar las implicaciones de lo real y a trasponer un personaje, un hecho, una acción, un tiempo, a otra realidad sensorial o afectiva desprovista de cualquier contacto con el contexto original” (1997, p. 31). Ocupou-se, como ninguém, de escrever sobre existências trágicas, seja na vida ou na morte. Distinção, aliás, que subverteu.

Enfim, Rulfo se mostra tão encantador quanto desafiador. Suas obras não são de leitura fácil, embora encantadoras. Como adverte Sebestyen, “la brevedad de los textos, la complejidad del lenguaje y la carencia de un narrador omnisciente exigen un lector activo para descifrar las historias” (SEBESTYEN, 2011, p. 3). Todo arcabouço de recursos fragmentários e incógnitos que lança mão desnorteiam seus admiradores. É imperativo questionar se essa fragmentação e quebra discursiva não seria uma forma de representar a própria existência humana. Parece muito claro que há nisso um indicativo crítico de que a vida, num complexo conjunto, é feita mesmo dessas rupturas sistêmicas e donde o sentido é uma árdua construção simbólica do cotidiano. Isso, em síntese, é Rulfo: um escritor simples, narrador de si e em si um narrador da humanidade.

 

Pedro Páramo: um enredo enigmático porque trágico

“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo” (RULFO, 2014, p. 25). Essas são as palavras iniciais do livro de Juan Rulfo. Nelas despontam a primeira impressão de que a obra caminha para um monólogo narrativo e aparentemente previsível: a história de um filho, Juan Preciado, em busca de um pai, Pedro Páramo. Tão logo novas laudas são galgadas, o leitor é tomado de assalto por uma confusão intermitente entre os caminhos e sobressaltos da história. Tanto isso é verdade que se torna uma tarefa árdua acompanhar a trajetória e os enredos propostos pelo autor. É nisso que, sinteticamente, consiste Pedro Páramo, um livro que, baseado no cotidiano simplório, serve-nos para complexificar as pré-noções sociais e as bases pressupostas da humanidade.

A própria localidade de Comala, onde o romance se desenvolve, apresenta-se como um espaço misterioso e que oscila entre a realidade e o sobrenatural. A pergunta que transparece é se aquele local existe ou é uma divagação do narrador somada ao processo imaginário do leitor. Rulfo não a apresenta com maiores detalhes, o que aguça uma composição representativa mais acurada que depende do interlocutor, não do texto em si. E não há preocupação em defini-la, do início ao fim continua como um espaço pendular entre o real e o fantasmagórico. Como alerta Germán Dehesa (1997), o povoado de Comala não tem presente nem futuro, apenas passado. Para ele, a temporalidade de Pedro Páramo não é histórica, é mítica. Um mito como uma metáfora persistente, como uma elaboração do imaginário coletivo.

Pedro Páramo aborda um tema sensível da ruralidade camponesa: o êxodo, a decaída, o esvaziamento de gentes, a ausência de energias, o fim de comunidades. Não é um fim qualquer, é o fim melancólico de memórias, histórias e de paisagens. Nesses lugares desolados resta o silêncio de casas inabitadas e de cemitérios esquecidos. O golpe mais drástico na humanidade é o esquecimento. É o complemento trágico da morte. Como sentencia Luis Carlos Borges: “Manuel Flores va a morir / Eso es moneda corriente / Morir es una costumbre / Que sabe tener la gente. [...] Vendrán los cuatro balazos; Y con los cuatro el olvido / Lo dijo el sabio Merlín / morir es haber nacido” (1984, p. 970). Na obra de Rulfo, este se torna um tema crucial na representação da morte. A ausência de vidas, de gentes que o tempo tratará de fazer esquecer.

É uma obra feita de vários enredos, múltiplos narradores e muitas histórias. Não é um livro único. Não há uma sequência lógica. Não há expectativa que resista ao emaranhado de memórias que são tão realistas quanto míticas, ao mesmo tempo. O campo mexicano está retratado nele, mas não como campo físico. É uma crônica das existências naquele espaço, não uma resenha de lugares, como aponta Nepomuceno.

Pedro Páramo se move entre diferentes tempos, em distintos planos narrativos, e em suas páginas rompem-se todas as fronteiras entre vivos e mortos. Há vários livros dentre deste romance conciso e contido. Uma história de amor desmesurado, desesperado e belo; também uma história da injustiça; outra, de vingança; e mais um painel depurado e amargo da realidade social nos campos do México de uma época imprecisa, e por isso mesmo, permanente; e também a história de um filho à procura do pai; e de um povoado habitado por mortos fantasmas. (2014, p. 17)

Embora Nepomuceno (2014) se esforce para definir a obra como um mosaico que acaba alcançando a perfeição e o encaixamento, pareceu-nos um pouco difícil acompanhar tal raciocínio. Em nossa percepção, Rulfo não se preocupa em fechar seus argumentos. É justamente o contrário, ele abandona o raciocínio para manter o leitor reflexivo sempre. É essa capacidade de manter um horizonte aberto e inconcluso que faz seu texto tornar-se tão intenso e paradigmático.

Logo, é uma obra exemplar da revolução literária latino-americana, pois transgride normas e expõe novas abordagens da questão cultural. Cumpre o papel da recriação de um passado histórico que se reveste de atualidade no contexto latino-americano. É a literalização do passado para compreensão do presente – que é moderno –, mas reproduz e intensifica problemas antigos (PEDROSO, 2009b).

Referencia Pedroso (2009b), que a forma de escrever, compilando várias áreas do conhecimento, serviu para que autores latino-americanos como Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier, Jorge Luis Borges e Juan Rulfo reinventassem o discurso e reconstruíssem as narrativas que apresentavam de maneira passiva à realidade de seu povo. Essa forma é definida como Realismo Fantástico. Segundo a autora, essa vertente literária confere uma percepção oblíqua quanto ao local e o universal. Além disso, a história dos povos que está tratando Rulfo exigiria uma imersão nos elementos “sobrenaturais” e essencialmente no mistério: “o componente mítico, a cultura da superstição e da fé, está na base da formação dos povos latino-americanos, e o elemento fantástico é condição essencial ao escritor nesse contexto” (PEDROSO, 2009b, p. 9).

Chandra Choubey (2004), por outro lado, aponta que a narrativa de Rulfo não é baseada no realismo mágico, mas apenas no realismo, pois apresenta a condição de vida dos camponeses mexicanos. “Rulfo no pretendió mostrar, como en el realismo mágico, sucesos extraños o improbables, sino la realidad de los pueblos de México” (CHOUBEY, 2004, p. 15). Teria sido, como afirma a autora, uma vítima do realismo mágico pela associação apressada a que foi exposto no momento de ascensão dessa forma de escrita.

Considerando essa espécie de disputa estilística, há que se considerar a percepção de que a literatura latino-americana, em geral, se alterna num conflito entre o local e o universal. Há uma presença muito forte na noção de dependência, que se coloca como uma espécie de depreciação do conteúdo produzido em terras incultas, em relação a um mundo ocidental letrado. Esse conflito é contrastado pela passagem do regionalismo para um super-regionalismo, donde a oralidade assume papel preponderante, pois, como destacam Bastos e Brunaci (2005), os dominados se expressam pela oralidade, enquanto os dominantes pela escrita. Quando escritores se utilizam da oralidade e a legitimam no texto escrito, há, sem dúvida, algo de diferente em curso nas relações de classe. É uma faceta do pensamento decolonial.

Considerando os aspectos específicos da obra, é notório que as falas em Pedro Páramo são oriundas de uma vida camponesa, porém é uma “linguagem popular depurada e rigorosa” (PEDROSO, 2009a, p. 152). Significa que, embora detalhe modos de vida muito peculiares, Rulfo utiliza uma linguagem objetiva e que prima pela essência comunicativa (perfeccionismo).

Seu perfeccionismo linguístico é contrastado com um discurso ambíguo. Veja-se que, logo que Juan Preciado estabelece relação com Dona Eduviges, a narrativa passa a se fragmentar e o leitor é efetivamente tolhido pela relação multidimensional da história. Ele tende a ficar confuso, tanto quanto parece estar o narrador ao chegar a Comala, e se vê numa complexa gama de histórias inconclusas. Esse artifício faz com que o leitor se mantenha em dúvida e oscilante. Essa intenção estaria ligada a uma perspectiva de crítica à história do México, permitindo uma reflexão que se estende para quaisquer outros contextos mundiais (PEDROSO, 2009a).

Nesse caso, não é exatamente uma história vista de baixo, mas uma história vigilante e questionadora. Como destaca Choubey, sua preocupação não é com uma história cronológica: “refleja una realidad social vivida por los personajes, narrada por ellos, con una visión colectiva. Son ellos los que narran desde su interior. Tampoco le importa que la historia sea lineal, ni se preocupa por el tiempo cronológico” (2004, p. 18).

Verifica-se, que os protagonistas da narrativa Pedro Páramo se dedicam a recordar ou revelar um passado sob uma perspectiva ambígua, sendo que a rotina da vida quotidiana se mistura ao misterioso mundo fantástico, levando o leitor a hesitar frente a uma situação em que paira a dúvida se o que está acontecendo é real ou é obra da imaginação. (PEDROSO, 2009b, p. 10)

Todavia, Bastos (2005) questiona essa capacidade de Rulfo de produzir uma literatura ambígua, pois ao mesmo tempo estaria desqualificando o mundo representado. Segundo ele, há uma narrativa comentada, na qual as interpolações se sobrepõem à narrativa. Isso significa que Rulfo estaria fugindo do ideal de escrever como se fala quando ficcionaliza a oralidade. Essa questão pode revelar um ideal rulfiano que intensifica a própria noção de literatura, donde está intrinsecamente ligada à história e aos problemas sociais mexicanos. Os problemas vividos pelo autor seriam uma expressão da visceralidade e mortalidade com a qual encara e personifica o texto.

López-Quiñones (2013), por seu turno, insiste no predicativo da utilização do silêncio como um dos principais recursos de Rulfo. O silêncio funciona em seu texto como um mecanismo para melhor ouvir e melhor dizer sobre o México pós-revolucionário: “el silencio así es un símbolo de la tensión entre la violencia exterior y la lentitud de la vida interior en el México postrevolucionario” (LÓPEZ-QUIÑONES, 2013, p. 81). Não é um vazio vago, mas um ambiente frutífero de muitas formas de dizer. Nisso é ressaltado o papel dos murmúrios – aliás, título provisório da obra posteriormente definida como Pedro Páramo.

Ademais, como destaca López-Quiñones, o silêncio não representa, apenas “é”, em sentido estrito e autônomo. Isso confere autenticidade aos personagens e suas formas complexas de narrar. Vivem num “presente eterno, denso e onírico” (2013, p. 87), sempre oscilando numa temporalidade específica, não linear ou datável. São corporificados num espaço suspenso, ao mesmo tempo local-real e universal-abstrato.

 

Los personajes de Juan Rulfo hablan muy poco. De ahí que sus obras estén presididas por un ritmo lento y una quietud enormemente densa. Esta quietud ayuda a los personajes a retrotraerse a su mundo interior, de manera que en ocasiones las palabras no surgen del diálogo, ni de los personajes, ni tan siquiera de una entidad corporal, sino que parecen surgir de una nada suspendida en el tiempo y el espacio. (LÓPEZ-QUIÑONES, 2013, p. 80)

 

Há um mundo interior e anterior evocado pelos personagens rulfianos. Eles constituem um tecido de memórias, conexas ou não, donde a reflexão parece ditar fragmentos saudosos e mais fortemente lamurientos. Nessa conjuntura, o silêncio não é apenas um recurso narrativo, é parte essencial do narrado – paradoxalmente como algo não narrado e que se dilui como um murmúrio. O murmúrio silencioso cumpre uma função essencial na obra, porque permite a imersão no misterioso. Concordando com Pedroso (2009a), há que se afirmar: o mistério de Rulfo não é narrado explicitamente, é o não compreendido, todo suspeição e hesitação.

El silencio en Rulfo no se identifica con una paz relajada y sin conflictos. Justo al contrario, el silencio supone el origen de todas las tensiones. Es la mejor plataforma para percibir los ruidos más imperceptibles de la existencia. Los sonidos son tantos y tan agudos, las voces son tan numerosas y tan confusas que el silencio llega a volverse ensordecedor, insufrible para el oído humano. Algunos de estos sonidos que el silencio deja oír son el arroyo, los pasos de los personajes, el chirriar de los dientes, el sudor al caer por la frente de un personaje, el viento, la respiración de un hombre agotado, el llanto, el sonido de las lenguas que chasquean en una boca reseca y sedienta de agua, etc.  (LÓPEZ-QUIÑONES, 2013, p. 82-83)

Os fantasmas são, como aponta Pedroso (2009a), a voz dos excluídos, dos marginalizados, daqueles que expressam na obra a crueza e a desgraça de suas existências. De forma análoga, o narrador, em Rulfo, é geralmente um dos personagens, embora a primazia narrativa não permaneça em um deles e é diluída entre vários. Isso significa que, em geral, não há um protagonista específico, até porque muitas são as justaposições de pontos de vista e o entrelaçamento de histórias pessoais a um suposto enredo universal (CHOUBEY, 2004).

Exemplar é sinalizar que em Pedro Páramo, o narrador, Juan Preciado, abandona o leitor no meio da obra. Deste momento em diante não há clareza específica sobre quem está narrando, ou seja, todos narram de forma metaforicamente parcial.

As memórias acionadas pelos mortos são trazidas como flashbacks cinematográficos que são manejados entre várias idas e vindas da narração (NÚÑEZ, 2012). No entanto, não parece claro que se trata de mortos. O leitor tende a demorar para perceber que o cenário, até então confuso, torna-se lógico na medida em que é lido no sentido mágico-fantasmagórico. São dois mundos, mas não é simples definir em cada qual estamos navegando, como destaca Pedroso: “esta capacidade de confundir o leitor, mergulhando-o em dois mundos totalmente diferentes ao mesmo tempo, o mundo da razão e o mundo da ilusão, faz do escritor, muitas vezes incorporado ao narrador, um mágico” (2009b, p. 5).

O narrador principal – e não o personagem principal – Juan Preciado, só é devidamente apresentado no decorrer da obra. Sua intenção é retomar a cidade e as memórias da mãe. Na localidade de Comala vivia também seu pai, Pedro Páramo, o qual jamais havia conhecido. Tinha prometido a mãe que lhe exigira ir em busca daquilo que era de seu direito.

Em seu deslocamento, viu-se por caminhos ambíguos e estranhos. Ao chegar no povoado, percebeu-se num lugar sem vida, silencioso, triste, questionando as memórias nostálgicas de sua mãe. Daí em diante a narrativa passa a incorporar entes diversos como um desfiar de testemunhos trágicos. A tragicidade, aliás, marca a vida das pessoas de Comala. É um lugar fantasmagórico, cheio de murmúrios e lamentos dos mortos. Mas como dizia a mãe de Preciado, é também um “murmúrio da vida”.

Esta cidade está cheia de ecos. Parece até que estão trancados no oco das paredes ou debaixo das pedras. Quando você caminha, sente que vão pisando seus passos. Ouve rangidos. Risos. Umas risadas já muito velhas, como cansadas de rir. E vozes já desgastadas pelo uso. Você ouve tudo isso. Acho que vai chegar o dia em que esses sons se apagarão. (RULFO, 2014, p. 71)

Os vários personagens da obra não são introduzidos formalmente, aparecem repentinamente, tampouco. Eles narram a si próprios. Como afirma Núñez, “Rulfo presenta a cada personaje en su compleja humanidad. Casi no recurre a la descripción física, más bien nos permite conocer a sus personajes a partir de sus razones, sus sinrazones y sus sentimientos contradictorios” (2012, p. 47). Dentre eles, podemos citar Juan Preciado, Abundio, Dona Eduviges Dyada, Dolores (Doloritas, mãe de Preciado), Bartolomé San Juan, Susana San Juan, Dom Pedro Páramo, Miguel Páramo, Padre Rentería, Anita Rentería, Damiana Cisneros, Toribio Aldrete, Fulgor Sedano e Dorotea Perneta.

A figura de Pedro Páramo, ou Dom Pedro – “a pura maldade” – personifica o poder e os abusos cometidos pelos grandes proprietários de terra mexicanos. As violações, os estupros e o descomedimento eram uma constante na sociedade rural mexicana na época da Revolução e Rulfo congregou todos elas na figura de Pedro Páramo.

Ele abandonou os filhos e manteve subjugada uma cidade. Em seu afã de juntar terra e posses para poder viver seu amor por Susana, Dom Pedro tornou-se um terrível terrateniente.[5] Em sua infância fora muito pobre e, apaixonado por Susana, buscou lograr êxito usando sua ambição e métodos criminosos para enriquecer. Ao herdar a propriedade do pai, passou a modificar as divisas e se apossar das terras vizinhas. Os opositores, camponeses ou outros grandes proprietários, foram subjugados pela violência e pela conivência da justiça. Há nele, porém, um lado cálido, aquele expressado pela paixão que demonstra por Susana. Assim como a obra, o ator principal é também ambíguo.

[...] Pedro Páramo es una historia en la que los vivos callan para que los muertos hablen. Y el testimonio de estos muertos es que el purgatorio y el infierno están aquí, en la propia tierra y dentro de cada uno de los personajes. Pedro Páramo, el déspota dueño de las vidas y destinos de los habitantes de La Media Luna, tiene también un lado sublime: el del hombre enamorado que sufre el rechazo de la mujer a la que amó y deseó durante toda su vida: Susana San Juan. Ella no se resigna a la muerte de su esposo y se mantiene unida a él por fuertes lazos de sensualidad. Ante este amor, el poderío de Pedro Páramo resulta insuficiente. (NÚÑEZ, 2012, p. 46-47)

Como afirma Adelstein (1982), Rulfo é fascinado pela morte e a explora à exaustão. A morte que cerca toda obra é apresentada como um destino mais que inevitável, imediato. Sua antítese, estar vivo, é percebida muitas vezes como uma desvantagem. Por nosso lado, cremos que o autor ironiza a vida. Ela é um calvário em que a morte, tão corriqueira, parece ser uma redenção. Todavia, a implicação da religiosidade faz com que os mortos continuem a sofrer por seus pecados. Em vários momentos o desalento e a religião são acionados para explicar a existência dos personagens que estão ligados aos grandes mitos do mundo rural mexicano: “o pecado, a culpa e a condenação” (FELL, 1997, p. 23).

Que seja tudo por Deus: as coisas nunca saem do jeito que a gente quer. (RULFO, 2014, p. 38)

Tem ar e sol, e tem nuvens. Lá em cima um céu azul e talvez atrás dele existam canções; talvez melhores vozes... Há esperança para nós, contra o nosso penar. (RULFO, 2014, p. 51)

Saiu para fora da casa e olhou o céu. Choviam estrelas. Lamentou aquilo, porque teria gostado de ver um céu quieto. Ouviu o canto dos galos. Sentiu a envoltura da noite cobrindo a terra. A terra, este vale de lágrimas. (RULFO, 2014, p. 59)

– Imagine só. E nós aqui tão sozinhos. A gente se desvivendo por conhecer nem que seja só um tantinho da vida. (RULFO, 2014, p. 83)

A questão religiosa permeia toda a obra, seja no sentido dos pecados e da salvação, num ambiente tão dramático, seja em virtude do poder da Igreja Católica. Destaca-se o papel exercido pelo Padre Rentería. Uma de suas maiores tarefas era encomendar almas. Rulfo problematiza a própria relação da religião com o poder dos terratenientes, conforme dois trechos específicos. O primeiro, quando o Padre Rentería se negou a dar a bênção ao filho de Dom Pedro, Miguel Páramo, que era acusado de abusar de sua sobrinha e um sem-número de outras violações. O segundo, em que o Padre e seu superior discutem sobre a condição social de Comala, principalmente no que se refere ao controle de suas terras:

– Padre, queremos que o abençoe para nós!

– Não! – disse ele mexendo a cabeça e negando. – Não vou fazer isso. Foi um homem ruim, e não entrará o Reino dos Céus. Deus irá me levar a mal se eu interceder por ele. (RULFO, 2014, p. 51)

– E no entanto, padre, dizem que as terras de Comala são boas. Pena que estejam nas mãos de um homem só. Pedro Páramo ainda é o dono, não é?

– Esta é a vontade de Deus.

– Não acho que a vontade de Deus intervenha nesse caso. O senhor também não acha, padre?

– Às vezes, duvidei; mas lá acham e reconhecem.

– E você está entre os que acham e reconhecem?

– Eu sou um pobre homem disposto a se humilhar, cada vez que sinto o impulso para fazer isso. (RULFO, 2014, p. 109)

 

Rulfo demonstra, ainda, que a Revolução constituía muitas variantes em relação à pauta de lutas na qual estava envolvida. Pedro Páramo, por exemplo, negocia com um grupo rebelde e se coloca como um contribuinte da luta. O objetivo era manter uma boa relação e controlar suas ações em sua área de influência. Embora o discurso dos revolucionários fosse inflamado como consta – “nós nos rebelamos contra o governo e contra os senhores porque já estamos fartos de suportá-los. O governo porque é ordinário, e os senhores porque não passam de uns desavergonhados bandidos e ladrões sebentos” (2014, p. 140) –, as relações políticas que implicavam a luta demonstram que, em muitos casos, os sacrificados da Revolução eram os pobres e não os ricos, como o discurso previa.

Pedro Páramo acaba a vida melancolicamente. Sua amada Susana morre e ele definha como se a vida não fizesse sentido. Comala não velou sua amada e ele abandonou o povoado. Paradoxalmente seu definhamento pessoal culminou com o esfacelamento da localidade. O antes poderoso e temido Dom Pedro morreu pelas mãos de um de seus tantos filhos renegados, Abundio. Os golpes fatais que Abundio desferiu foram fortalecidos por todo um conjunto de ódio que nele se centralizou. Foi o golpe da miséria contra a barbárie.

Juan Preciado também acaba morrendo. As causas, no entanto, foram os murmúrios e seus medos: “[...] os murmúrios me mataram. Embora eu trouxesse um medo atrasado. Tinha vindo se juntando, até que não aguentei mais. E quando me encontrei com os murmúrios minhas cordas arrebentaram” (RULFO, 2014, p. 92). A morte tem o poder de pôr fim aos medos, mas não aos murmúrios. Por isso Comala é um mundo em atividade. É este o desfecho da obra, onde mortos e vivos se confundem para representar o real. É um real que diz muito pelo silêncio e pouco pelo dito. É o real de Rulfo, um real da ruralidade e desigualdade mexicana do início do século XX.

 

Chão em Chamas: a polissemia da tragédia camponesa mexicana

O livro de contos Chão em Chamas (El Llano en Lllamas) é, senão tão paradoxal quanto Pedro Páramo, mais perspicaz e igualmente complexo. São dezessete contos que remetem à vida camponesa mexicana e apontam as inúmeras contradições sociais e morais nas quais estão inseridos esses atores.

Segundo Sebestyen (2011), o conjunto de contos é uma mesma obra, ou melhor, constitui-se não como a soma de pequenos fragmentos, mas que se fragmenta para se construir como unidade. Seria uma representação realista da mesma sociedade sob várias perspectivas diferentes. Não se trata de um mundo dito civilizado, mas das vidas pobres, violentas, odiosas e mortíferas. De forma análoga, a descrição do terrível e do repulsivo é efetivada como algo normal no mundo de Rulfo (ADELESTEIN, 1982).

A obra focaliza e articula processos de violência e resistência associados à opressão, pobreza e desigualdade: “[...] la violencia en la sociedad rulfiana es creada por la relación entre poder y resistencia. Los líderes ejercen su poder a través de un sistema opresivo y la población a su vez practica resistencia para recuperar el poder sobre su propia vida” (SEBESTYEN, 2011, p. 4). Os cenários, ainda que diversos, centralizam-se num mesmo espaço: o território rural e campesino mexicano. Trata-se de uma representação trágica da ruralidade mexicana como lugar da vivência mais cruenta das misérias e das desigualdades humanas.

Rulfo constrói cenários e enredos rurais que evocam um pragmatismo que tende a acentuar as mazelas, a crueza e mesmo o desencanto. Não evoca um contexto apenas de limitação, mas demonstra, de maneira tenaz, a crueldade da desigualdade social, ambientada no mundo rural mexicano. Trata-se de explorar e denunciar uma condição trágica, não apenas desfavorável. Nesse sentido, não constrói um enredo comparativo e dicotômico de ruralidade-urbanidade, mas vinculado à questão das desigualdades de classe.

Para Choubey (2004), Chão em Chamas “representa a renovação narrativa operada por Rulfo. Dentre o conjunto de contos, destaca que ‘Luvina’ é o melhor e do qual emerge a construção de um ‘mundo fantasmal’, que abrange em toda sua plenitude o posterior enredo de Pedro Páramo”.

Neste conto, Rulfo apresenta uma cidade fantasma, esquecida e isolada que foi tolhida pela pobreza e pela seca. Nela reina o silêncio e a tristeza, que define como: “a imagem do desconsolo... sempre” (2014, p. 304). Os seus moradores se recusam a migrar, pois na cidade estão seus mortos. Não se empenham numa transformação, pois descreem do governo. É o quadro mais característico da melancolia e do fatalismo rulfianos que, embora superlativos, expressam uma faceta pulsante do campo mexicano.

No primeiro conto, “E nos deram terra”, Rulfo ironiza e denuncia o fracasso do projeto revolucionário de estender o direito à terra a todos os camponeses. O governo lhes destina uma terra inculta e árida, a chapada ou planalto. Espera-se que eles tomem posse daquela terra imprópria e a cultivem, porém, a percepção que se forma do local é negativa: “não, a chapada não é coisa que sirva. Não há coelhos nem pássaros. Não há nada. A não ser uns quantos espinheiros mirrados e uma ou outra manchinha de capim amarelado com suas folhas enroscadas; a não ser isso, não há nada” (RULFO, 2014, p. 183).

       Compreendendo que aquela terra não serve para nada, os camponeses protestam. Afinal, como contribuir para o ideal revolucionário se a condição básica da terra não é atendida ou mal atendida? A burocracia responde a seu modo pela voz do representante estatal: “Então façam uma reclamação por escrito. Vocês têm de atacar o latifúndio, não o governo que lhes dá a terra” (RULFO, 2014, p. 184).

A questão que se evidencia é a do significado que assume o ser camponês no planalto. É possível problematizar essa matize do fazer campesino, quando as agruras são potencializadas pelo clima, pelo relevo, pelo solo, pelas guerras, pelas disputas, pelas doenças, entre outras dificuldades. Soma-se a isso a necessidade constante de migrar e vagar em busca de melhores terras, algum trabalho, alguma provisoriedade que os mantenha vivos. A dramaticidade, nesse caso, seria um componente na construção da própria identidade rural.

A perversidade dos terratenientes – mesmo após a divisão das terras pela Revolução – é apresentada em “A colina das comadres”. Dois irmãos, Odilón e Remigio Torico, mantêm sua influência e temeridade ao imputar no povoado toda sorte de roubos e violências. A narrativa reforça que a justiça não alcançava as lonjuras do campo mexicano, onde as relações de reciprocidade, compadrio e as agressões mútuas davam o tom da condição social. A demarcação oficial das terras não podia substituir, de uma cartada, anos de subjugação a que os proprietários estavam acostumados.

Mas é bom lembrar que que na Colina das Comadres os Toricos também não se davam bem com ninguém. As desavenças eram seguidas. E se não for falar demais, lá eles eram donos da terra e das casas que estavam em cima da terra, com tudo, e que quando houve a partição, a maior parte da Colina das Comadres tinha sido repartida entre todos nós da mesma forma, aos sessenta que morávamos lá, e para eles, os Toricos, ficou só um pedaço de monte, com uma plantação de mezcal e nada mais, mas por onde estavam espalhadas quase todas as suas casas. Apesar disso, a Colina das comadres era dos Toricos. (RULFO, 2014, p. 192)

O conto que mais nos chama a atenção e que encarna de forma mais dramática a condição camponesa chama-se “É que somos muito pobres”. Nele, Rulfo caracteriza o fatalismo de forma mais original ao apresentar uma sucessão de tragédias além da própria existência infortunada. A primeira frase destaca a lamúria: “aqui tudo vai de mal a pior”. As queixas fazem parte de um modus operandi da pobreza. Parece que o queixar-se, além de ser um instrumento de denúncia imperativo, contribui em seu enfrentamento/conformação.

A vida de uma família camponesa é narrada através dos infortúnios, como mortes e desgraças climáticas. Nessa perspectiva, o clima e o ambiente adquirem feições peculiares no imaginário social no qual as irregularidades são comuns: a chuva em demasia ou a falta dela, o frio, calor, ventania, deserto, sertão, floresta, banhados, pedregulhos. A noção do espaço se traduz como indutora da vida: “a terra”, e a natureza: “clima”, como um conjunto de noções que incidem sobre o destino. Rulfo, como ninguém, inverte e polemiza essas forças simbólicas, como destaca Adelstein no caso da água.

lgunas imágenes y símbolos aparecen por toda su obra. De éstos, el símbolo del agua es el más importante porque tradicionalmente indica un renacimiento y la vida, pero en los cuentos vemos otra inversión irónica del mundo de Rulfo. La gran fuerza destructiva de Es que somos muy pobres es el río, un río sucio que no trae el nacimiento, sino la muerte; no la purificación moral, sino la certidumbre de la declinación espiritual. A causa del desastre, Tacha se une al río perverso, sus lágrimas son parte de él. (1982, p. 93)

A condição social da família já pobre é agravada porque a enxurrada levou consigo um dos únicos bens: a vaca Serpentina. Comprada com muito custo, ela simbolizava o capital associado à filha Tacha. Suas duas irmãs mais velhas haviam se tornado prostitutas, segundo a explicação, por não terem um capital para utilizarem como dote e contraírem um bom casamento. As irmãs seriam, além de pobres, revoltadas. Isso teria contribuído para se tornarem prostitutas e serem expulsas de casa pelo pai, evidenciando uma moral masculina e patriarcal.

Assim, a perda do animal significou uma suspeição trágica sobre o futuro de sua detentora, ainda uma adolescente. O capital que a vaca representava poderia determinar sua condição futura. A ameaça que a prostituição manifestava parecia induzir ainda mais uma condição de infortúnio pessoal e familiar.

A morte, mais uma vez, povoa praticamente todos os contos. No conto “O homem”, a morte é tomada como um equívoco, uma perda de controle e crueldade. Já em “Na madrugada”, a morte é associada à necessidade do ato, já que há uma agressão e uma chaga moral a ser vingada. Paradoxalmente, o conto “A noite em que deixaram ele sozinho” apresenta a fuga da morte. Uma história breve de um revoltoso que se desgarra dos companheiros e, depois que eles são capturados, foge de seu destino mortífero.

A questão moral familiar, sexual e matrimonial é destacada em “Talpa”, no qual um triângulo amoroso é associado ao infortúnio de uma doença terminal e à fé que revigora as esperanças. Em “Macario”, Rulfo aborda a deficiência e a segregação que agudiza também a dureza de destinos tão sofríveis. Porém, incita problematizar a forma como a sociedade exclui permanentemente a diferença de forma hostil e violenta.

O conto que nomina o livro, isto é, “Chão em chamas”, apresenta uma crônica da luta da Revolução Mexicana. A noção romanesca da luta revolucionária é questionada ao apresentarem-se as práticas de destruição e saques de povoados. Não se trata de legitimar as ações violentas dos rebeldes, mas problematizar o peso negativo que seus atos tinham diante da luta que, em todo caso, era popular. O ato de incendiar plantações e casas simbolizava o caos que se instalava. Os roubos de animais, de moças e as consequentes violações, subjugar os índios, enfim, causar inúmeros prejuízos em nome da Revolução, evidenciam as contradições em que estavam inseridos.

Um dos contos mais paradoxais é “Diga que não me matem!”. Nele, Rulfo vai ao extremo do drama ao apresentar a morte sob dois ângulos em uma mesma pessoa: o do assassino e o da vítima. O medo da morte e da vontade de viver se torna um drama sufocante, como destaca Adelestein.

En Diles que no me maten, Rulfo nos presenta el temor a la muerte. Él analiza las reacciones que van del miedo por el racionalismo y la esperanza falsa, al pánico completo. El deseo de vivir sobrepasa todos los otros deseos. Así Rulfo, en Diles que no me maten dice: “No tenía ganas de nada. Sólo de vivir”. Lo paradójico de esto es que su vida, si puede llamarse vida, es nada más que la huida y la desgracia. Es muy interesante ver cuánto vale la vida, cualquier vida, cuando la muerte se le acerca. (1982, p. 92-93)

Na história, Juvencio Nava se desentende com Dom Lupe Terreros por questões de divisas e de acesso ao pasto. Acaba assassinando Dom Lupe e passa a vida toda se escondendo. “[...] A única coisa que sobrava para ele cuidar era a vida, e ele iria conservá-la do jeito que fosse. Não podia deixar que o matassem. Não podia. E muito menos agora” (RULFO, 2014, p. 291). Seu temor se faz sentir ainda maior quando o filho de Dom Lupe, agora um coronel, captura-o e o sentencia à morte. A súplica pela vida – “Não me mate! Diga a eles que não me matem!” (2014, p. 296) – não é suficiente e a morte da qual tanto havia fugido acabou lhe encontrando. Esse conto, segundo Arias Urrutia (2002), teria relação com a história pessoal de Rulfo, que perdera o pai muito jovem.

Migrar, uma perspectiva que sempre ronda o imaginário das populações pobres e rurais, é sintetizada de forma também trágica em “Passo do norte”. Um homem jovem decide deixar de cuidar de porcos pela pobreza em que sua família vivia e vai trabalhar nos Estados Unidos. Encarrega seu pai de cuidar da família enquanto estiver fora. No entanto, é atacado na fronteira e tem de retornar ferido. Com isso, descobre que sua mulher o abandonou e seus bens foram vendidos pelo pai.

A memória das tragédias alheias é evocada em “Lembre-se”, que retrata uma família pobre em que muitos filhos morreram. Dos que restaram vivos, Urbano fora sempre discriminado e motivo de chacota. Ao retornar para o povoado já adulto e como policial cheio de ódio, acabou matando seu cunhado e foi enforcado. Essa perspectiva continua com a odisseia de um pai carregando o filho ferido, que é o tema de “Você não escuta os cães latirem”. O filho havia se tornado bandido e o pai o levava pelo respeito que tinha pela mãe do rapaz.

Narrar, como algo complexo, é sintetizado em “O dia do desmoronamento”. Além de apresentar a tragédia de um terremoto, da bajulação e petulância do governador e das brigas provocadas por uma falta de civilidade, emerge a questão de como esses episódios povoam o imaginário social e como a autoridade de quem narra é preponderante para estabelecer um tipo de verdade. Como nos lembra Peter Gay, “grande parte da memória coletiva é uma distorção conveniente ou uma amnésia de idêntica conveniência”, pois a “a cultura quer um passado que possa usar” (1990, p. 186).

O ressentimento é tema de “A herança de Matilde Arcángel”. Matilde, a esposa, morreu numa queda de cavalo ao proteger o filho. O pai culpa o filho pelo acontecido, já que havia ele berrado e assustado o cavalo. O ódio consumiu o pai, que maltratava o filho. Com o movimento revolucionário e as mortes subsequentes, coube ao filho renegado enterrar o pai, demonstrando o apelo às lições morais familiares.

O conto “Anacleto Morones” ironiza as percepções de fé e de heroísmo popular. Apresenta o caso de um suposto profeta e milagreiro, que vagava pelo campo mexicano. A noção de um messianismo camponês é reforçada pela pobreza que se abatia sobre a população. O referido Santo, porém, era um farsante e fora morto em disputa financeira por seu genro. A memória de sua obra, porém, animava beatas e seguidoras, na esperança de vida melhor.

A obra se complementa, enfim, pela sequência variada de dramas e de tragédias abordadas por uma espécie de naturalização. A fina ironia de Rulfo esculpe uma crônica polissêmica da vida camponesa mexicana. Novamente ele aciona um discurso pendular entre o imaginário e o real para pontuar uma crítica ácida. Embora pareça um retrato, o que Rulfo desenvolve é um profundo lamento que denuncia justamente as leituras rasas que tomam aquela condição social como natural, inclusive as revolucionárias.

 

Considerações finais

A obra rulfiana é complexa. Oscila entre literatura historicista ou história literata, acionando uma perspectiva filosófica que relaciona o imaginário e o real como um tipo específico de realidade que congrega a vida rural mexicana da primeira metade do século XX. Esse é o papel preponderante de Rulfo como escritor, produzir uma literatura polissêmica e não ajustada, ou melhor, uma literatura invariavelmente provocativa. Nesse sentido, Rulfo cria, talvez não intencionalmente, um documento para interpretar e analisar a realidade social que retrata. Não são elementos evidentes, mas potenciais, visto que a literatura representa e interpreta simbolicamente a realidade social.

Nessa complexa arquitetura, o “fantástico” do realismo de Rulfo funciona como um catalizador de imaginários. É uma imersão num contexto de aproximação e de distanciamento. O pano de fundo e o tecido em si são, ambos, a realidade. Ao produzir uma sequência de várias transições entre mundos duais, o autor provoca um estranhamento entre eles. O efeito de simbiose entre o mundo dos vivos e dos mortos reflexiona sobre a história mexicana. Lembremo-nos que a dualidade não existe no real, apenas no imaginário. Se considerarmos isso, Rulfo está embaralhando uma dualidade imaginária para tecer uma crítica e uma ironia fina à sociedade na qual se vincula. A sobreposição de cenários, histórias e narrativas seria uma forma de facilitar a construção de um sentido para a obra e uma explicação para a realidade na qual se baseia, embora não a reproduza.

Condição de aflição, de opressão, desgraça, tristeza. Os textos de Rulfo são agudamente tristes. Mais tristes se tornam quando se percebe que representa, poeticamente, uma situação real. É a tristeza sentida, compartilhada e divulgada sob o traço literário. A tragédia literária pode servir para amenizar a crueza de um relato verdadeiro. Trata-se de uma dor que pode ser relativizada.

A ruralidade que Rulfo narra é trágica, porque se expressa pela violência, pela pobreza, pela fome. É um quadro de tristeza e de fatalismo que evoca um sentimento de profunda e aguda dor. Quem lê seus enredos sente cruamente o peso de uma existência angustiante. Desencadeia um choque, uma derrocada, uma sensibilização. Este elemento se aproxima de um dos aspectos do pensamento decolonial, que é a manifestação tácita das desigualdades sociais herdadas de um sistema predatório. A partir dessa percepção mais catastrófica, pode-se reforçar uma identidade latina, camponesa e indígena que se manifesta no contexto de denúncia da exploração e reprodução da dominação estrangeira e das elites locais.

Por isso, o trágico se sobrepõe e a morte é elemento permanente, pois o que questiona vai além da condição social imediata dos mexicanos. Rulfo coloca em dúvida toda a percepção da existência humana. Ao narrar a morte, está, nos parece, falando da vida. O paradoxo e o enigma são suas ferramentas de trabalho. Adicionando fatalismo e melancolia, legou ao mundo uma narrativa do desconcerto cotidiano. Assim que seu texto funciona: desestabiliza e confunde para criticar, aguçar e questionar. Cada página é um golpe que corta fundo nas idealizações e simplificações feitas sobre uma realidade que pensamos conhecer.

 

 

Referências

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Como citar

KUMMER, Rodrigo; LIMA, Eli Napoleão de. Ruralidade trágica em Juan Rulfo: apontamentos entre ficção e realidade. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, e2331102, 31 jan. 2023. DOI: https://doi.org/10.36920/esa31-1_02.   

 

 

 

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[1] Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: kummer2004@yahoo.com.br.  

[2] Professora Associada IV do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). In memoriam.

[3] “Eu nasci definitivamente em Apulco, uma cidade pertencente a San Gabriel e San Gabriel por sua vez, é do distrito de Sayula e é uma cidade que não aparece nos mapas, a maior população sempre é dada como sua origem” (RULFO, 1977).

[4] Como assevera Germán Dehesa (1997), a obra Pedro Páramo é a última grande elaboração mítica da Revolução Mexicana. É o aviso de que a revolução já está morta e que segue emitindo palavras. São os murmúrios que chegam do cemitério.

 

[5] Optamos por utilizar o termo terrateniente, que na língua espanhola significa proprietário de grandes extensões de terra. A tradução para o português é, muitas vezes, utilizada como “coronel”, porém os termos não possuem exatamente o mesmo sentido.