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v. 30, n. 1, janeiro a junho de 2022 (publicação contínua), e2230106


Recebido: 13.10.2021   •   Aceito: 03.03.2022   •   Publicado: 30.03.2022

Artigo original / Revisão por pares cega / Acesso aberto

 

 

Quando as regras da morada geraram revolta: uma reinterpretação da emergência das Ligas Camponesas (1955-1964)

When the rules of the morada led to revolt: reinterpreting the Ligas Camponesas emergency (1955–1964)


orcid_id.png  Eduardo Guandalini Genaro [1]    •    orcid_id.png  Ramonildes Alves Gomes [2]



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n1-6



Resumo: Este artigo problematiza a mudança na relação entre moradores e grandes proprietários, observando que os valores da morada são ressignificados pelos moradores no processo de mobilização das Ligas Camponesas na Paraíba nas décadas de 1950 e 1960, de maneira a constituir traços de continuidade e descontinuidade entre os símbolos, o repertório do movimento e a moralidade desses agentes. O artigo analisa este processo a partir da relação entre moralidade e revolta, com destaque para a questão de como os foreiros, que eram os agentes que mais partilhavam as regras morais da morada, foram os que mais se mobilizaram nas Ligas. A pesquisa se utilizou da análise hermenêutica sobre as narrativas dos participantes do movimento, obtidas a partir de relatos orais registrados por outros pesquisadores.

Palavras-chave: Ligas Camponesas; morada; movimentos sociais; moralidade.

 

Abstract: This article discusses how the relationship between large landowners and those who lived on these properties changed, observing how the values ​​of the morada were resignified by residents during the mobilization of the Ligas Camponesas in Paraíba to determine traces of continuity and discontinuity between symbols, the repertoire of the movement, and the morality of these actors. We analyze this process from the relationship between morality and revolt, focusing on the question of how the foreiros, who were most responsible for disseminating the moral rules of the morada, were mobilized the most in the Ligas. This is accomplished by hermeneutic analysis of second-hand oral reports of narratives by participants in the movement.

Keywords: Ligas Camponesas; morada; social movements; morality.

 

 

Introdução

O período pós Segunda Guerra Mundial marca o início da crise das relações de morada na região canavieira dos estados da Paraíba e de Pernambuco. Este contexto é caracterizado por um intenso processo de expulsão dos trabalhadores do campo. O morador era um trabalhador que chegava ao engenho e pedia moradia e trabalho ao grande proprietário. Este concedia a casa juntamente com um pedaço de terra – o roçado – onde o futuro morador podia plantar. Os moradores idealizavam um passado em que todos recebiam um sítio, que consistia em um pedaço de terra para além do roçado. Isso dava ao morador a condição de foreiro, um tipo de arrendatário, assim chamado pela obrigação de pagar o foro (quantia em dinheiro, que lhes permitia usar o sítio). Apenas alguns moradores se tornavam foreiros, sendo que essa possibilidade passa a ser fechada com o aumento da monocultura da cana, na década de 1950, e contribui para intensificar o processo de expulsão dos moradores (PALMEIRA, 2009). O acesso a um sítio possibilitava uma condição de vida mais autônoma na relação com o grande proprietário, tendo em vista que podiam plantar alimentos (macaxeira, feijão, milho, batata doce) em seus sítios, os quais eram usados para consumo próprio ou para vender nas feiras locais. Os foreiros dependiam menos dos pagamentos feitos pelos grandes proprietários em função do trabalho na lavoura de cana-de-açúcar do que os moradores de condição, assim como dedicavam menos tempo de trabalho às lavouras de cana em relação aos últimos. A melhor situação de que gozavam os foreiros não significava que não mantivessem fortes relações de dependência para com o grande proprietário, considerando as obrigações econômicas e morais que assumiam. Entretanto, mesmo podendo desfrutar de uma independência apenas relativa, o acesso a um sítio era bastante valorizado pelos moradores, conformando uma moralidade de autonomia do trabalho.

A morada era a forma de organização social que abrangia essa relação entre moradores, grandes proprietários e trabalhadores rurais que não residiam na grande propriedade.[3] As relações da morada eram permeadas por regras, isto é, costumes constituídos a partir de obrigações mútuas entre o grande proprietário e seus dependentes. O grande proprietário portava a simbologia de um provedor de segurança (dispondo de seus capangas para proteger seus interesses econômicos e políticos, assim como para demonstrar, por meio da presença destes capangas, capacidade de proteção e dependência dos moradores), moradia, trabalho, apoio financeiro, auxílio médico e de outras naturezas. Por sua vez, os moradores eram simbolizados como aqueles que deviam obediência e dedicação ao trabalho na lavoura do grande proprietário. Estas regras – que se afirmavam como um contrato não formalizado e escrito – eram permeadas por valores ligados à religião, principalmente a católica. Afrânio Garcia Jr. (1989) afirma que o grande proprietário concentrava sob sua figura todos os benefícios econômicos, políticos, escolares e religiosos. Desta maneira, a relação entre grande proprietário e morador sempre fazia este último ficar em dívida – econômica e simbólica – para com o primeiro.

Os valores que permeavam a morada tendiam a fortalecer a dominação do grande proprietário sobre seus dependentes, mas, como veremos no decorrer do artigo, os moradores também elaboravam significações acerca destes valores que se contrapunham aos latifundiários e que, no contexto das Ligas, ajudaram a fomentar um enfrentamento da autoridade dos senhores de terra e usineiros.

A expulsão do campo que ocorre neste contexto é explicada por Francisco de Oliveira (2008) a partir da imposição do padrão de acumulação industrial do Centro-Sul aos grandes proprietários da economia canavieira que, conjuntamente à alta dos preços do açúcar e ao apoio estatal, favorecia a dissolução da morada e o emprego de trabalho mais próximo à mão de obra assalariada. Este período foi marcado por tensionamentos entre trabalhadores rurais e camponeses[4] contra grandes proprietários, em uma amplitude e intensidade antes jamais vistas, de modo que estes conflitos se somaram às tensões nacionais entre setores mais progressistas em contraposição a grupos mais conservadores, que se desdobraram em ampla repressão contra sindicatos e associações, tanto urbanos quanto rurais, e no golpe militar de 1964.

As Ligas Camponesas constituíram associações e sindicatos[5] que se mobilizaram contrariamente ao processo de expulsão do campo, entre 1955 e 1964, predominantemente no Nordeste, com destaque para os estados de Pernambuco e da Paraíba. As Ligas eram atravessadas por diversas demandas vindas do campesinato e por tensionamentos entre lideranças políticas que disputavam o controle do movimento, destacando-se nesta disputa o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Francisco Julião, advogado e político ligado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), que acabou se tornando a liderança mais influente na mobilização das Ligas.

Essa organização utilizou o que Charles Tilly (1993, 2005, 2010) caracteriza como um repertório de ação coletiva,[6] sendo este composto pelas seguintes ações: reuniões; comícios; passeatas; apoio a trabalhadores ameaçados de expulsão; negociações entre proprietários e membros das Ligas, assim como negociações entre estes com participação do governo estadual, no caso da luta contra o cambão na Paraíba;[7] assistência jurídica aos camponeses; disponibilização de serviços de saúde; combate ao analfabetismo; reivindicações pela reforma agrária; criação de associações e sindicatos; procura de apoios externos de grupos e movimentos sociais da cidade; mutirões no campo e nas cidades: os camponeses se dirigiam à população urbana para realizar trabalhos, como construções de casas, buscando apoio para o movimento; greves; marchas; uso de jornais para divulgar textos de lideranças e acontecimentos relativos ao movimento; ocupações e tomadas de terra[8] (BASTOS, 1984; SOUZA, 1996; VAN HAM et al., 2006; MENEZES; MOREIRA; TARGINO, 2011).

Analisar as ações coletivas e demandas articuladas ajuda a entender as motivações dos moradores em participar das Ligas mas, para isso, é valido observar tanto as experiências que estes agentes vivenciaram antes quanto durante a mobilização. Desta maneira, observar as resistências cotidianas, como pensadas por James Scott (2000),[9] acionadas pelos moradores, assim como observar as narrativas destes a respeito das regras morais que mobilizavam nas relações com os grandes proprietários na morada, foi um caminho que possibilitou compreender que a emergência das Ligas Camponesas não se explica apenas pela precarização das condições de vida dos moradores, mas também pela ruptura nas relações de obrigação mútua que constituíam a morada.

O presente artigo objetiva refletir sobre a relação entre a mobilização das regras da morada pelos moradores e a ressignificação de valores a respeito do trabalho na terra e da relação com o grande proprietário no contexto de articulação das Ligas Camponesas. A análise dos relatos que embasaram a escrita deste artigo aponta que os foreiros constituíam camadas intermediárias[10] e eram os que mais compartilhavam os valores da morada, tendo sido os agentes que mais se mobilizaram nas Ligas, fato que manteve relação direta com a ressignificação das regras morais da morada no contexto da mobilização. A relação entre moralidade e revolta é o pano de fundo da discussão.

A pesquisa que possibilitou a escrita deste artigo acessou as narrativas dos participantes do movimento por meio de fontes orais de segunda mão, ou seja, através de recortes de entrevistas apresentadas nos trabalhos das pesquisadoras Maria do Socorro Rangel (2000), Regina Novaes (1997), e de entrevistas completas que integram a obra organizada pela religiosa Irmã Tonny Van Ham (VAN HAM et al., 2006). A pesquisa adotou uma abordagem hermenêutica, pautada em John B. Thompson (2011), para analisar as narrativas destes agentes, tendo o fito de reinterpretar estas a partir do recorte analítico e dos problemas sociológicos colocados por esta investigação, tendo destaque questões como reciprocidade entre grandes proprietários e moradores, ruptura de autoridade, resistência cotidiana, moralidade e mobilização em forma de movimento social.

A análise perpassa os debates sobre a história oral, cabendo observar a indicação de Paul Thompson (1992) sobre a possibilidade de fazer uso das narrativas dos agentes para produzir uma reconstituição de uma forma de organização social ou para percorrer uma série de eventos com o objetivo de reconstituí-los mediante a comparação com outras fontes. Esta pesquisa não visou estes objetivos, tendo em vista que as narrativas em questão não seriam suficientes para gerar uma análise da morada como um todo e que as falas dos participantes do movimento a respeito dos eventos que vivenciaram foram, no máximo, cruzadas com escritos de lideranças do movimento e com outras pesquisas sobre as Ligas e a morada, ou sobre o contexto político do período analisado.[11] O que realizamos foi a separação das narrativas por temáticas, tendo como centralidade a moralidade mobilizada pelos moradores e a relação de autoridade estabelecida com o grande proprietário de terras.[12] Neste artigo, a temática mais importante foi a moralidade acionada pelos moradores a respeito de sua decisão em participar do movimento. A pesquisa se beneficiou do fato de a morada já ter sido amplamente pesquisada por Palmeira (2009), Sigaud (1979a, 1979b),[13] Garcia Jr. (1989), Heredia (1979), Dabat (2007), entre outros, e pela riqueza de elementos elencados pelos participantes do movimento nas entrevistas mencionadas e pelas lideranças das Ligas, entre as quais destacamos Francisco Julião (1962, 2009), Assis Lemos de Souza (1996) e Clodomir Santos de Morais (1965).

A análise das narrativas permitiu que fossem observadas as ambiguidades dos moradores a respeito de sua contraposição aos grandes proprietários, sendo que os participantes das Ligas por vezes indicavam uma valorização da relação que já haviam tido com os latifundiários, ao mesmo tempo em que questionavam a autoridade destes e valorizavam a mobilização das Ligas. O entendimento destas narrativas em meio a um processo histórico mais amplo, que gerava uma crise na morada na região canavieira, traz o desafio de pesquisa que Paul Thompson (1992) indica como sendo a tensão entre a biografia e a generalização, entre o decorrer da história em geral e a vida real dos moradores. Alberti (1998) também assinala o desafio da história oral em utilizar-se dos fragmentos da vivência concreta para gerar uma análise hermenêutica e totalizante. Desta maneira, a pesquisa sobre as concepções morais dos moradores acionadas em relação a sua participação nas Ligas permite entender características tanto do movimento quanto da morada.

O artigo se divide em três seções. A primeira revisa as pesquisas sobre as Ligas Camponesas, enfatizando as que recorreram a entrevistas com participantes do movimento. Também destacamos entrevistas que foram realizadas por iniciativa da Irmã Tonny Van Ham (VAN HAM et al., 2006). Ao final da primeira seção apontamos como as narrativas revelam com mais profundidade a relação entre moralidade e revolta, tendo destaque o papel da ruptura das regras de obrigação mútua como um dos principais motivadores da revolta dos moradores. A segunda seção discute a ressignificação de valores no contexto de crise da morada e a valorização de uma autonomia do trabalho na terra pelos moradores, a qual fundamentou formas de contraposição aos grandes proprietários. A terceira seção realiza uma comparação entre as narrativas dos moradores de condição e os foreiros, com o fito de esclarecer como agentes de posições sociais que eram portadores de diferentes significações das regras da morada expressaram suas motivações para se revoltarem contra os grandes proprietários e participarem das Ligas. Aqui cabe ressaltar que esta comparação possibilita observar a perspectiva de mais de uma posição social, o que Paul Thompson (1992) indica como algo fundamental à pesquisa para que não tome o viés de apenas uma das visões a respeito dos eventos analisados. Nas considerações finais, buscamos dialogar com Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973) sobre como as camadas intermediárias constituiriam um bloqueio à revolta contra os grandes proprietários, tendo em vista a relevância da mobilização dos foreiros nas Ligas Camponesas.

 

As narrativas dos participantes das Ligas e a questão da moralidade

As pesquisas realizadas sobre as Ligas Camponesas inicialmente direcionaram o foco para as disputas políticas das organizações que buscavam organizar os trabalhadores rurais, tendo destaque o PCB e Francisco Julião. As primeiras pesquisas sobre o movimento foram a de Aspásia Camargo (1973), que defendeu sua tese em 1973, trabalhando a organização das Ligas e dos sindicatos no contexto do Estado populista e da crise das oligarquias açucareiras; a de Fernando Antônio Azevedo (1982), que defendeu a sua dissertação em 1980 e a publicou em livro em 1982; a de Bernadete Aued (1986), que defendeu sua dissertação em 1981, a qual foi publicada em livro em 1986; e a de Elide Rugai Bastos (1984), que defende a sua dissertação em 1981 e a publicou em 1984. A pesquisa de Bastos se destaca por ter realizado entrevistas com participantes do movimento e tê-las utilizado para contrastar com a perspectiva das lideranças das Ligas. O foco da maior parte destas pesquisas – Bastos sendo a exceção – sobre a organização do movimento, deixa em segundo plano as narrativas dos moradores que dele participaram, o que acaba por não aprofundar o entendimento da relação entre a revolta dos moradores contra os latifundiários e a reciprocidade envolvida nas regras morais da morada.[14]

A ausência, nas pesquisas da década de 1970 e início da de 1980, de um maior aprofundamento sobre as entrevistas com participantes das Ligas decorre tanto do foco analítico destas pesquisas quanto do silenciamento destes agentes em decorrência do medo da repressão praticada em todo o período da ditadura militar no Brasil. Pesquisadoras que realizaram entrevistas posteriormente, como Novaes (1997) e Rangel (2000), relatam as dificuldades em conseguir encontrar pessoas dispostas a falar sobre suas memórias, assim como a desconfiança delas em conceder relatos. O fato de conseguirem realizar entrevistas em um momento de menor repressão durante a ditadura – caso de Novaes (1997) e também de Bastos (1984) –, ou posteriormente à redemocratização – caso de Rangel – esclarece como a conjuntura política influenciou a disposição destes agentes em falarem ou não sobre suas experiências de vida.

No início da década de 1980, Regina Novaes recolheu relatos e defendeu sua tese de doutorado em 1988, a qual foi publicada em livro em 1997 (NOVAES, 1997). Mas a autora não apresentou as entrevistas completas, apenas trechos, o que impossibilitou identificar quais eram as perguntas respondidas nos trechos recortados, assim como não permite que o leitor precise o restante das falas e a própria trajetória de vida do entrevistado. As datas e locais das entrevistas também estão, muitas vezes, ausentes. Novaes teve como foco as experiências religiosas dos moradores na formação de uma identidade política camponesa. O presente artigo não cita nenhum dos trechos de entrevistas contidos na obra da autora, mas as narrativas apresentadas por ela foram relevantes para as análises aqui desenvolvidas.

Em 1983, Antônia M. Van Ham (VAN HAM et al., 2006), também conhecida como Irmã Tonny, religiosa que participou de movimentos sociais rurais desde a década de 1970, entrevistou participantes das Ligas. Irmã Tonny juntamente com outras pessoas que também participavam de movimentos sociais rurais, efetuou novas conversas com participantes do movimento de 2001 a 2006 com a finalidade de organizar um livro em homenagem a João Pedro Teixeira, principal liderança camponesa da Paraíba, assassinado em 1962, como forma de resgatar a repressão às mobilizações lideradas por ele.[15] A obra apresenta entrevistas temáticas completas que, em geral, são identificadas por datas, nomes dos entrevistados, local da entrevista e nome do entrevistador, na maior parte das vezes a própria Irmã Tonny. As entrevistas apresentam relatos bastante completos sobre formas de ação das Ligas, momentos de conflito com latifundiários e de como eram as falas de João Pedro Teixeira e outras lideranças. Também estão presentes narrativas sobre as motivações dos moradores para participarem das Ligas, formas de repressão e o temor de certos moradores em relação às mobilizações promovidas. As entrevistas, por terem tido foco na figura de João Pedro Teixeira, acabam por não revelar com tanta profundidade a trajetória de vida dos entrevistados e suas percepções quanto à mudança nas relações de obrigações mútuas entre grandes proprietários e moradores.

No final da década de 1980, Roberval Véras de Oliveira (1989) fez entrevistas com participantes das Ligas. Estas foram usadas por Maria do Socorro Rangel (2000), que realizou outras histórias de vida no ano de 1991. Trechos são citados em sua dissertação, defendida em 2000. A autora utilizou-se de nomes fictícios e não revelou os locais dos relatos, assim como não identificou onde os entrevistados viveram ao longo de sua trajetória, para protegê-los contra possíveis repressões. As datas também não são identificadas. Os trechos de entrevistas, assim como a descrição indireta feita pela autora, relatam a trajetória dos moradores que eram prejudicados ou expulsos pelos grandes proprietários, perpassando formas de resistência às opressões praticadas por estes últimos, assim como as descrições das motivações dos moradores para participarem das Ligas. A pesquisa da autora mobilizou as entrevistas para entender como as experiências dos moradores que antecedem a mobilização das Ligas influíram sobre as motivações destes em participar do movimento. Ela também distinguiu as experiências de agentes em diferentes posições sociais neste processo.

As pesquisas de Novaes (1997) e Rangel (2000) possibilitam inferir como a quebra da reciprocidade entre grandes proprietários e moradores foi um elemento central para a mobilização das Ligas, algo que não era possível de aprofundar nas pesquisas que tiveram maior foco na organização política do movimento. A perda de condição econômica e a organização de grupos políticos no campo foram fundamentais para que a mobilização fosse possível. Entretanto, cabe observar que o sentimento de injustiça diante do rompimento de regras morais envolveu, conjuntamente à percepção de perdas de condição material, as motivações dos moradores em aderirem ao movimento. Desta maneira, a noção de ira moral, como entendida por Barrington Moore Jr. (1987), explicita características da revolta dos moradores contra os grandes proprietários.

Barrington Moore Jr. afirma sobre a ira moral: “Em essência, é a ira diante da ofensa que uma pessoa sente quando outra viola uma norma social” (1987, p. 21). O conceito remete a um sentido de injustiça percebido por uma das partes em uma relação de obrigações mútuas quando ocorre a violação de um código moral. As obrigações mútuas se referem aos governantes proverem segurança contra ataques externos (outro Estado, por exemplo), conflitos internos e segurança material aos súditos. Por parte dos súditos, as obrigações remetem à obediência e à contribuição material para com os governantes. O autor indica que existe um limite para o que governantes e súditos podem fazer em uma sociedade, sendo que há um conjunto de obrigações mútuas que os mantém unidos por meio de um contrato social implícito. Mas estas obrigações não são estáticas, pois sempre existe a tentativa por parte de grupos dominantes e dominados de testar os limites da obediência e da desobediência. Tanto dominantes quanto dominados percebem um valor em sua contribuição nas obrigações mútuas, existindo uma tendência de que estes agentes percebam as suas contribuições como tendo uma equivalência aproximada, o que jamais significa uma equivalência real (um camponês pode justificar sua relação com um senhor de terras como sendo justa por mais que exista imensa desigualdade entre ambos). Por isso os dominados carregam uma ambivalência perante os códigos morais, tendo em vista que estes atendem a interesses contraditórios. Assim, em certos momentos, estes grupos tendem a justificar uma relação desigual e, em outros, dão a essa mesma relação um sentido de injustiça.

Os momentos de crise e de abertura à mudança social são marcados por maior possibilidade de tensão sobre os imperativos morais vigentes e as obrigações mútuas entre dominantes e dominados. Barrington Moore Jr. (1987) indica que a percepção de injustiça remete diretamente à violação da reciprocidade, principalmente nos casos em que a autoridade – entendida como uma relação em que existe um sentimento de dever moral de obediência – do dominante (ou governante nas palavras do autor) gera danos a grupos sem nenhuma justificativa em termos de retorno à sociedade. Uma abertura para a ira moral também ocorre quando os grupos dominantes colocam uma série de privações materiais que não são aceitas pela população. O autor assinala que a coordenação social envolve três partes: a autoridade, a divisão do trabalho e a alocação de recursos disponíveis. Estas se configuram em imperativos sociais que, para o autor, se apresentam como necessidades às quais cada grupo (dominados e dominantes) tentará atribuir um significado próprio, gerando imperativos morais – ou seja, como a autoridade, a alocação de recursos e a divisão do trabalho, devem ou não ser realizadas. A percepção da injustiça, por diversas vezes, remete tanto a danos na reciprocidade de costumes tradicionais quanto a prejuízos materiais, de maneira que existe profunda relação entre as condições materiais e a percepção moral. Mas, para Barrington Moore Jr., não há uma predeterminação de nenhuma das esferas de coordenação social sobre as demais.

 

Das experiências da morada à revolta: sonhos, terra e liberdade

As experiências vivenciadas nas relações da morada foram fundamentais para determinar a vinculação dos trabalhadores rurais e camponeses às Ligas Camponesas. As experiências de “libertos” e “sujeitos”[16] diferenciavam esta participação, assim como diferenciavam as percepções destes acercados grandes proprietários e sobre a busca por autonomia do trabalho. O trecho da entrevista, concedida a Rangel (2000), por Antônio Joaquim, morador foreiro expulso e que participou das Ligas, expressa a relação entre esta vivência anterior e a vinculação com as Ligas:

Por essa experiência eu posso lhe dizer que aquele tempo do sítio foi o tempo melhor que eu vivi na vida, porque o grande benefício pra humanidade é a pobreza ter assim um sitiozinho pra morar, trabaiá e ter sossego. Uma rocinha que seja, é benefício, grande, num sabe? Num tem coisa mais melhor não.

Por isso, eu entrei na Liga né, que era pra ter terra assim pra trabaiá e viver nela. Ser liberto é lutar pelo que é da gente e não viver assim jogado num canto pro outro, na incerteza. Sei disso, porque já tinha sido livre né, meio livre e perdi tudo, acabou-se tudo, e a Liga deu esperança em nós. Mas também acabou-se tudo. (ANTÔNIO JOAQUIM, entrevista, 1991 apud RANGEL, 2000, p. 270)

A fala de Antônio Joaquim expressa uma ambiguidade sobre ser liberto ou “quase liberto”, de modo que, ao associar a posição de foreiro com a liberdade e ao indicar sua condição como a de “quase liberto”, coloca-se como tendo enfrentado limitações nesta vivência de liberdade tão valorizada por ele. A motivação para se filiar às Ligas está associada, como em muitas outras falas, à expectativa de alcançar a liberdade do trabalho autônomo na terra, sendo marcante o entrevistado indicar que o motivo para lutar por esta liberdade é o fato de já tê-la vivenciado, ou “quase vivenciado”. Essa fala ajuda a explicar os motivos dos foreiros serem os agentes que mais participaram das Ligas, visto que as experiências destes eram, dentro da relação de moradia na grande propriedade, as que mais se aproximavam desta liberdade idealizada por estes agentes.

A existência dentro do campesinato brasileiro de grupos mais autônomos em relação aos grandes proprietários é estudada por Queiroz (1973), que foca sua empiria mais sobre os sitiantes independentes, que eram pequenos proprietários marginais à grande propriedade, mas não ignora que, dentro do campesinato, havia grupos que viviam no interior das fazendas e que parte destes tinha pedaços de terra nos quais exerciam trabalho familiar autônomo, sendo, portanto, sitiantes. O caso das Ligas remete justamente ao último tipo de situação, ou seja, o sitiante vinculado à grande unidade produtiva, o que implica uma autonomia sempre limitada pelo vínculo direto ao proprietário. Assim, cabe pensar que a vivência de uma situação de “liberdade” por estes moradores sempre dependia da relação destes com o grande proprietário de terra, o que explica o fato de que os períodos de crise desta relação tenham sido vivenciados como a ruptura de um instante em que se podia alcançar a situação de “liberto”.

As narrativas dos moradores contrastam uma época em que a vivência desta “liberdade” era possível comum momento em que esta é fechada pelos grandes proprietários.[17] A ruptura é marcada por mudanças nas relações entre moradores e senhores de engenho, visto que os últimos passam a retirar terras dos sítios dos foreiros e a intensificar o trabalho dos moradores nas plantações de cana. Este processo é colocado pelos moradores gerador de frustração e revolta contra os fazendeiros, como podemos constatar nas falas de Isabel, que era moradora em uma fazenda no município de Sapé-PB:

Isabel: Os morador. Eles eram rendeiros, tinham seus sítios, pagavam os direitos deles, né? Eles plantavam cana, plantava verdura, toda semana saía dois, três carros de verdura, só dessa família Fernando, que botava lá os carros e pegavam para ir vender, lá em João Pessoa; verdura. Aí começou João Gomes o administrador, aí, foi tomando o terreno do pessoal. Tomando o terreno do pessoal, porque o pessoal estava ficando rico, mais rico do que o proprietário. E isso causou a história das Ligas Camponesas, eles tomando o terreno do povo. O povo pagava os direitos e ele deixando o povo apenas com o terreninho da casa e uma pouca coisinha para trabalhar. (...) Aí, como ele fez isso com o povo, o povo disse: - Agora vamos fazer um direito. O povo agora vai ter direito nos terrenos deles. (ISABEL, entrevista apud VAN HAM et al., 2006, p. 223)

Tonny: Quem dizia?

Isabel: O pessoal de João Pedro,[18] né. Vamos recuperar os terrenos de vocês e vocês pagam os direitos de vocês. Tem direito à moradia. Vocês pagam o direito de vocês. (...) (ISABEL, entrevista, 12/9/2005 apud VAN HAM et al., 2006, p. 224)

A narrativa associa um direito[19] pago pelo foreiro ao grande proprietário – o foro, pelo qual o foreiro tinha direito de usar o sítio – a um direito pago às Ligas – o pagamento da associação ou sindicato das Ligas, pelo qual o morador se tornava membro das Ligas e acessava os serviços prestados por esta –, de modo a demonstrar uma relação entre o direito de usara terra pelas regras da morada e a forma de acesso a ela pela mobilização nas Ligas, em contraposição ao grande proprietário.[20] Estes dois momentos são marcados pela ruptura da prática de concessão de terras pelo senhor de engenho. Assim, é comum nas narrativas apresentadas por Van Ham et al. (2006) que este passe a ser representado como alguém ambicioso, que queria plantar cana nas terras dos moradores. Desta maneira, a mudança da dinâmica da relação entre dono da terra e morador é marcada pelo rompimento das obrigações mútuas, sendo que quem inicia a processo são os grandes proprietários, no momento em que impedem o acesso a terra e aumentam o tempo de trabalho na lavoura de cana.Assim, as obrigações do fazendeiro para com seus moradores, que iam da concessão de terras à prestação de serviços – médico, dentista, entre outros – e segurança, são interrompidas, o que coloca em questão a imagem do latifundiário perante seus moradores como “bom patrão”, como uma autoridade e um provedor para os que dele dependiam.

Novaes (1997) ressalta que uma condição social que determinava a entrada de trabalhadores e camponeses nas Ligas era terem vivenciado situações de crises nas quais as relações tradicionais se rompiam. Esta leitura corrobora os apontamentos já feitos sobre como a quebra das obrigações mútuas das relações de morada, por parte dos grandes proprietários, significava o não atendimento de diversas demandas dos moradores, como serviços e proteção. A concessão de sítios é uma destas atividades que deixa de ser efetivada no período da expansão da cana, de modo que significava uma mudança em relação às formas costumeiras que viabilizavam o acesso à terra e que eram partilhadas pelos moradores. A concessão de sítios passava a ser fechada, o que rompeu com as expectativas destes agentes, que visavam um dia se tornarem foreiros, ou esperavam manter uma condição de trabalhadores mais autônomos. Rangel (2000), ao falar sobre a relevância de analisar as experiências dos participantes das Ligas para o entendimento da relação entre experiências vivenciadas na morada e a reelaboração da demanda por terra na mobilização política, afirma que as expectativas dos moradores foram reelaboradas no contexto da expulsão do campo, de modo a permitir diversos enfrentamentos com os grandes proprietários, tensionando as relações vigentes na morada, mas produzindo narrativas que oscilam na ambiguidade de enfrentar estas relações do passado e,ao mesmo tempo, desejando, de certa maneira, recriá-las. A pesquisadora ressalta que o fato de certa idealização do passado– tema trabalhado por Sigaud (1979a, 1979b) – marcar o discurso destes agentes não significa que suas experiências na demanda por terra não tenham sido reelaboradas no contexto de mobilização das Ligas.

Nas relações que compunham a morada, o acesso à terra era constituído pela internalização das regras da morada (PALMEIRA, 2009). Os foreiros eram os agentes que mais partilhavam os valores dessas regras, o que denotava uma aproximação com os valores dos grandes proprietários, no sentido do reconhecimento da prestação de serviços, demonstração de obediência – o que não significa que não havia resistências por parte dos foreiros – e respeito à autoridade dos latifundiários. No contexto de mobilização das Ligas, o acesso à terra começa a ser marcado pelo enfrentamento com o fazendeiro e não pela proximidade para com este, de modo que romper com a autoridade do latifundiário se tornou um elemento que se destaca na trajetória do morador que se vinculava às Ligas. Entretanto, as narrativas sobre as reivindicações por terra não são marcadas apenas por descontinuidades em relação aos valores da morada, visto que as motivações dos moradores para participarem das Ligas remetem à ideia de reconstituir o “direito” de acesso aterra, como podemos observar na fala de Isabel (VAN HAM et al., 2006), mencionada em outro momento deste artigo. Assim, é possível perceber que se o repertório, as narrativas e os símbolos mobilizados pelos moradores participantes das Ligas contrastam com as experiências da morada, estes mantêm traços de continuidade com a vivência dessa relação, sendo que significam a reconfiguração[21] da expectativa de trabalho autônomo na terra pelos moradores a partir de outra percepção.

A apreensão desta reconfiguração da expectativa por terra permite discordar de apontamentos como o de Novaes (1997), a qual indica que a identidade política camponesa foi construída no processo contrastivo com os latifundiários, sem ter relação direta com valores partilhados anteriormente. Os moradores que participavam das Ligas acionavam uma identidade política camponesa[22] para se diferenciar dos moradores que permaneciam “encabrestados”, assim como de sua própria vivência passada, e para se opor aos latifundiários. Este contraste foi fundamental para a emergência de uma identidade política que rompia com características determinantes da morada, mas este não foi o único elemento constitutivo desta identidade. Tendo em vista que as experiências vivenciadas na morada pelos moradores, principalmente a expectativa de alcançar uma posição social na qual fosse possível realizar um trabalho autônomo – sendo que esta expectativa envolvia diversos valores –, motivaram, no contexto de expulsão do campo, inúmeras ressignificações que permitiram o enfrentamento aos grandes proprietários. A própria Regina Novaes (1997) corrobora estes indicativos ao apontar como diversos valores do catolicismo popular foram ressignificados nesta mobilização. Portanto, a conclusão de que a identidade política camponesa era principalmente uma ruptura com a vivência anterior à mobilização é equivocada,[23] na medida em que os valores desta experiência como morador – a expectativa de ter um sítio e menor dependência para com o grande proprietário, assim como a valorização moral e religiosa de conseguir esta autonomia relativa – foram fundamentais para a forma como ocorreu a mobilização e as ressignificações dos valores e símbolos apresentados pelos moradores.

Rangel (2000) afirma que pesquisas como as de Celso Furtado (1964) e Manoel Correia de Andrade (1986) tendem a analisar a morada como um espaço de dominação no qual o camponês é isolado politicamente e não tem espaço para resistência. Ela afirma que estes autores tinham a pretensão de realizar uma denúncia política sobre as condições destes camponeses e trabalhadores rurais, mas que a análise acaba por não atentar para as diversas formas de resistência e enfrentamentos que ocorriam dentro das grandes propriedades. A não observação destes processos permite, segundo a autora, entender o porquê de as Ligas terem sido abordadas em diferentes obras como experiências inusitadas e incontroláveis.

Na morada, a expectativa pelo trabalho autônomo estava ligada a uma maneira de interpretar a realidade, na qual distintos valores constituíam uma moralidade a respeito de um tipo de relação que permitia ter acesso à posse de um sítio. Esses valores eram ideológicos na medida em que justificavam a perspectiva dos grandes proprietários a respeito das relações de poder, como se percebe no fato de que os moradores tinham que internalizar as regras da morada e demonstrar obediência para serem valorizados a ponto de conseguirem a permissão para ter um sítio. Mannheim (1982), em sua sociologia do conhecimento, ressalta como as ideologias dos diversos grupos dominantes se apoiam em elementos utópicos e ideológicos, sendo que o mesmo ocorre com as utopias[24] dos grupos dominados. Neste sentido, a ideologia não se resume à constituição de valores que visam conservar o equilíbrio de poder existente, mas contém também elementos utópicos (no sentido de serem elementos que representam possibilidades de mudança no equilíbrio de poder que tornem a configuração menos desigual). O que o autor destaca é que estas visões de mundo, que podem se constituir em ideologias ou em utopias, não são tão fixas em suas tendências, mas compõem formas de valorização e significação que compartilham elementos entre as visões de mundo dos grupos dominados e dominantes, de modo que uma ideologia pode ser ressignificada pelos dominados em contraposição ao grupo dominante.

A busca por um sítio, na narrativa de um morador, compartilhava diversos valores ideológicos da perspectiva dos grandes proprietários, mas também apresentava significações diferentes das representadas pelos latifundiários, como podemos perceber nas narrativas de moradores concedidas a Van Ham et al. (2006)[25] e também nos recortes de entrevista apresentados por Rangel (2000), em que estes se apoiam na religião para indicar que a terra deveria ser de todos,[26] assim como em falas nas quais os roçados e sítios aparecem associados ao trabalho dos moradores e não como um prêmio concedido pelos fazendeiros.[27] Estas narrativas relacionadas à busca de um trabalho autônomo produziam uma contraideologia que poderia ou não se desdobrar em uma utopia. Neste sentido, ela se apoia na cosmovisão ideológica dos dominantes – compartilhando com esta diversos valores, entre os quais se destacam ideias como a de que o grande proprietário é um provedor de bens e serviços, ou a de que o morador deve pagar um direito, no caso o pagamento do foro, para acessar um sítio – mas que são ressignificados pelos dominados, de modo a se diferenciar da cosmovisão e do ethos dos grandes proprietários. As diversas formas de resistência cotidiana apresentadas pelos moradores se baseavam em valores que se contrapunham aos dos grandes proprietários, o que possibilita entender como estas contraideologias permitiam um enfrentamento – que, justamente por se sustentar nas regras morais da morada, sempre apresentavam diversas ambiguidades – com os grandes proprietários.

Como James Scott (2000) ressalta, as formas de resistência cotidiana constituem enfrentamentos às concepções hegemônicas[28] a partir das transcrições dos dominados, de maneira a realizarem um confronto político, se tomarmos este termo de maneira a abranger as relações cotidianas que envolvem posições de decisão – isto é, alguma autoridade –, e não apenas os conflitos abertos que envolvem o Estado. A mobilização das Ligas, ao ressignificar os valores das regras da morada em demandas políticas – agora no sentido de demandas abertas –, permite a interpretação de que as contraideologias dos moradores, que fomentavam suas formas de resistência cotidiana, fundamentaram concepções utópicas a respeito da possibilidade da posse da terra a partir da bandeira – colocada por agentes como o PCB e Julião – da reforma agrária.

 

As categorias que mais internalizaram as regras da morada foram as que mais se revoltaram

O entendimento de como ocorreu a passagem de uma concepção ideológica sobre o acesso aos sítios pelos moradores para uma perspectiva de que este acesso envolvia a contraposição aos grandes proprietários exige a análise de quais eram os fatores determinantes da participação destes agentes na mobilização das Ligas. Os moradores que não se mobilizavam eram aqueles para quem a expansão da cana não atingia diretamente sua posição, ou atingia com menor intensidade, e que receberam mais influência das falas dos grandes proprietários sobre o movimento, antes que as disputas chegassem às propriedades em que moravam.[29] As categorias que mais se mobilizaram foram as que tinham posições mais autônomas, os foreiros, que já tinham vivenciado uma experiência de “liberdade”, ou “quase liberdade”. As narrativas concedidas a Van Ham et al. (2006) indicam que as áreas de usina – que têm menos foreiros que os engenhos – apresentaram menor participação de moradores nas Ligas, o que permite entender que as áreas mobilizadas não eram as que apresentavam maior concentração de grupos com piores condições de vida, ou que decaíam para uma condição de vida pior em relação às outras, mas sim as áreas com mais foreiros, que tinham uma perda de posição social que muitas vezes os igualavam a outras posições sociais mais dependentes – como os moradores de condição, no caso da perda do sítio –, ou até os deixavam em posições próximas a estes, mas ainda em condições de vida superiores, em virtude do pagamento de benfeitorias e da condição favorável anterior, que poderia permitir melhores condições de vida após a perda do sítio,do que as vivenciadas pelos grupos mais dependentes dos grandes proprietários. Assim, o que explica a mobilização dos foreiros não era simplesmente a degradação das suas condições de vida, mas a quebra do horizonte de expectativas,[30] marcado principalmente pela busca de uma condição mais autônoma por meio do acesso a um sítio. Os foreiros eram os agentes que mais vivenciaram a realização de um trabalho autônomo, o que explica o porquê de, neste contexto de expulsão do campo, eles serem os que mais tiveram suas expectativas frustradas.

 O relato de Vicente, que era morador da fazenda São Salvador, em Sapé, indica uma relação entre a quebra de expectativas com relação à posse da terra e a participação na mobilização das Ligas:

Vicente: Em São Salvador, nós tínhamos um companheiro, que tinha uma vargem, que era plantada de cana.[31] Antes de haver agitação mesmo, aí, o proprietário, o administrador, o tal de João Gomes, administrador de Antonio Meireles, foi, tomou esta vargem do morador. Plantou de cana pra Usina. E lá vai, e depois começou a agitação das Ligas, dos trabalhadores mesmo, né, querendo tomar aquilo que era dele, porque ia pagando o direito daquilo. E então, ele [o camponês][32] tinha o movimento dele e plantava a caninha caiana dele, um pé de verdura, umas coisas assim, que foi tomado pela fazenda. E queria que voltasse para a mão dele. Então, através da Liga de João Pedro Teixeira, aí foi construído um grupo de homens para na 2a feira ir arrancar cana da Fazenda. Todo mundo de enxadeco para arrancar a cepa da cana.[33] (...) (VICENTE, entrevista, 1983 apud VAN HAM et al., 2006, p. 386)

A fala de Vicente mostra que os trabalhadores queriam o que era deles e, logo após, aponta que o morador que teve o plantio arrancado queria que a terra “voltasse para a mão dele”. Essa expressão ganha muito significado para o entendimento da relação entre a mobilização das Ligas e a participação dos foreiros, visto que ela remete à possibilidade de ter acesso à terra, assim como expressa uma experiência passada em que a terra estava “nas mãos” deste morador. Essa vivência passada, de um trabalho autônomo, era permeada por diversos valores a respeito da relação com a terra e com os grandes proprietários, os quais foram mobilizados em distintos momentos para permitir o acesso ao sítio e à permanência neste. Os foreiros eram os que mais tinham acesso aos acordos cotidianos[34] com os grandes proprietários por terem mais proximidade com estes, pelo fato de serem reconhecidos por expressarem os valores ideológicos da morada.

Novaes (1997) ressalta como os foreiros, que eram os que mais internalizavam as regras da morada, foram os primeiros a se mobilizar nas Ligas, no momento em que sua posição anterior começa a ser ameaçada, utilizando de sua posição mais privilegiada – em relação aos outros moradores – para demandar a terra em novos moldes, sem o cambão e a partir de outra perspectiva no que concerne aos grandes proprietários. A explicação desta tomada de posição dos foreiros pode ser entendida a partir da comparação de suas narrativas com a dos moradores de condição.

As entrevistas concedidas a Van Ham et al. (2006), Novaes (1997) e Rangel (2000) indicam que os moradores de condição também nutriam expectativas em ascender para posições mais autônomas – como a de foreiro –, sendo que a distinção desta expectativa em relação a que era alimentada pelos foreiros remete às significações que estas diferentes categorias mantinham no que se refere ao acesso à terra e aos grandes proprietários. Rangel (2000) apresenta os relatos de Antônio Joaquim e de Severino, ambos foreiros. O primeiro expressa o modo pelo qual respeitava as regras da morada, tendo um sítio na terra do patrão que sentia como se fosse seu. Entretanto, em determinado momento, o proprietário afirma que precisava daquela terra e desloca o morador (Antônio Joaquim) para um sítio em que as condições de plantio não eram favoráveis. Ele segue relatando como eram sempre crescentes as suas obrigações para com o proprietário e, ao mesmo tempo, como essa nova relação era considerada por ele como uma injustiça. Ao final, nesta situação exemplar, como morador foreiro, ele acaba perdendo as condições de pagar o foro e decide desistir deste outro sítio. Em seu relato, Antônio Joaquim expressa suas contraposições, associando a injustiça às ações do grande proprietário, e explica que sua participação nas Ligas Camponesas estava relacionada à expectativa de viver “liberto” novamente (visto que ele já tinha sido “quase liberto”[35] antes).

No caso de Severino, este expõe como considerava o proprietário um “bom homem” e afirma que tinha proximidade com ele, mas indica que a entrada de um administrador e a saída do patrão para a cidade coincidem com o período em que a cana começa a tomar conta dos sítios, e ele perde parte de seu sítio por não conseguir trabalhar em todo o terreno, visto que era “bem grande” (o que evidencia a proximidade entre o morador e o grande proprietário), além de não poder contar com a ajuda de seus filhos, que estavam sendo obrigados a trabalhar na cana. Assim, Severino tenta negociar para que seus filhos pudessem trabalhar no sítio, o que é negado pelo administrador, sendo este fato por ele interpretado como uma grande injustiça. O aumento do cambão e a dificuldade de trabalhar no sítio sozinho pioram ainda mais as condições de vida da família e, em seguida, vem a ordem do administrador para que ele cedesse o resto do seu sítio, o que é recusado por Severino, como podemos observar:

Foi quando veio a lapada final. Ele pediu o resto do sítio para plantar cana. A terra era muito boa, como eu lhe disse no começo pra senhora, e a ambição dele cresceu para cima do meu canto. Aí não teve outro jeito se não enfrentar aquela desgraça todinha. E começou a peleja, que dali eu não podia sair, não senhora, que eu tinha nascido e me criado naquelas terra, criado meus filho tudo e não podia sair, não senhora. Foi aí que um clarão alumiou o meu juízo e eu pensei, era tudo ou nada, era guerra mesmo. Fiquei ali até o fim. É isso que eu posso lhe dizer. (SEVERINO, entrevista, 1991 apud RANGEL, 2000, p. 277)

Ao se recusar a sair, Severino é reprimido pelo administrador, que sequer o deixa colher o que plantou e, sem piedade, destrói a plantação na presença dele. Este foreiro também associa essa expansão da cana à falta de liberdade e à ambição do administrador e do patrão. Rangel (2000), ao comparar estas duas narrativas, explicita como Antônio Joaquim demonstra maior distanciamento para com o grande proprietário e toma decisões de negociar pequenos acordos para ir mantendo certa condição, enquanto Severino, que era mais próximo do grande proprietário, após ter tentado sem sucesso fazer um acordo, decide se opor e enfrentar o administrador, o que resultou em uma repressão direta. Por mais que as trajetórias destes dois foreiros apresentem diferenças, cabe observar que ambas relacionam um “tempo bom”, em que valorizavam positivamente as regras da morada, compartilhando assim diversos valores com os grandes proprietários, os quais cumpriam suas obrigações quanto a estes valores partilhados, e um “tempo ruim”, em que ressignificam a figura do grande proprietário como uma figura ambiciosa à qual se contrapõem. Por fim, ambos interpretam a proibição de ter o sítio como uma injustiça e associam essa imposição à falta de liberdade, sendo que Antônio Joaquim chega a reconhecer explicitamente que sua participação nas Ligas era motivada por essa procura pela liberdade do trabalho autônomo.

Outras três narrativas apresentadas por Rangel (2000),[36] referentes a moradores de condição, permitem um contraste relevante para a pesquisa. Ao narrar sua trajetória, Nilo indica contraposição a seu patrão no momento que revela sentir uma sensação de injustiça por não poder plantar e expressa que almejava uma posição mais “liberta”. A trajetória de Raimundo é marcada pela constante troca de fazendas onde morou, de modo que ele expressa um desencanto quanto à possibilidade de ter um roçado e interpreta essa impossibilidade como uma injustiça, mas não a associando diretamente a um grande proprietário em particular. Mas, em certo momento, demonstra intensa revolta contra um administrador. Damião, segundo Rangel, não diferencia, em seu discurso, um “tempo bom” e um “tempo ruim”. Afirma que via o acordo da condição como “justo”, mas expressa que não era uma relação que o agradava. Ele demonstra uma sensação de injustiça no momento que os sítios vão sendo tomados pela cana e que a condição (trabalho não pago na plantação do grande proprietário) vai aumentando, e afirma que a terra se “fechou como aço”. Ele também exprime revolta contra o patrão e associa a sua entrada nas Ligas à busca por liberdade.

As semelhanças com as narrativas dos foreiros são evidentes, visto que revelam um sentimento de injustiça, de falta de consideração e de quebra de obrigações por não poderem mais plantar e pela perda da possibilidade de ter um sítio. Algumas delas compartilham a busca por “liberdade”, remetendo à possibilidade de ter um trabalho autônomo sobre a terra. Outra semelhança está no fato de que alguns demonstram certa revolta contra o grande proprietário. A diferença aparece nesse ponto: quando os moradores de condição manifestam seu descontentamento, eles não mencionam a existência de um “tempo bom” que fosse por eles valorizado como tendo regras e relações justas para com o latifundiário, enquanto as narrativas dos foreiros são marcadas por este contraste entre um momento em que o patrão é visto como “bom” e um momento de revolta, no qual este retira os sítios e afeta a liberdade desses agentes.

As narrativas de ambas as posições sociais apresentavam traços em comum quanto à perda da expectativa de ter um sítio, mas o faziam com intensidades distintas, visto que, se os moradores de condição citam este período, como faz Damião, como um momento em que a terra se “fecha como aço”, em que o mundo parece “de cabeça para baixo”, outros agentes expressam um sentimento de revolta e de muito sofrimento por terem perdido seus sítios. Assim, os moradores de condição viviam esta quebra no horizonte de expectativa como a perda de um “sonho” de um dia ter sua terra, enquanto os foreiros a viviam como a experiência de perder a terra por eles valorizadas. Esta perda evidencia como estes agentes tinham mais disposição para, no momento em que os proprietários quebram as regras da morada, demonstrarem uma ira moral[37] mais intensa. Entretanto, se esta diferença entre as posições sociais é relevante, cabe ressaltar que narrativas como a de Damião também expressam uma forte associação entre perda de expectativa por terra e busca de liberdade, o que é uma característica marcante das motivações dos agentes que participaram das Ligas e indica que diversos moradores de condição também manifestavam grande revolta contra os grandes proprietários e valorizavam a busca por uma posição mais autônoma.

Entre as narrativas apresentadas por Rangel (2000), está a de José Luiz, que já havia sido foreiro, mas acabou virando morador de condição e depois foi expulso, tendo entrado nas Ligas quando já morava na cidade. José Luiz assinala que sua filiação às Ligas foi motivada pela busca por liberdade e por um mundo em que os moradores não fossem “agredidos” – tanto no sentido de uma violência simbólica quanto física – pelos latifundiários. Esta relação nítida entre contraposição ao grande proprietário e busca por uma posição mais autônoma também é apresentada por outro morador de condição, Inácio, sendo que este afirma já ter morado alguns anos em São Paulo e retornado a uma fazenda por intermédio de um primo seu, que era foreiro. A revolta de Inácio ocorre após a morte de um filho, associada por ele à falta de auxílio do grande proprietário. A filiação às Ligas foi justificada, por este morador, pela procura por terra e por uma máxima religiosa de que “Deus havia feito a terra liberta”. Estes dois casos que, como a narrativa de Damião, expressam grande intensidade quanto à expectativa por autonomia do trabalho e quanto à revolta contra o grande proprietário, trazem a especificidade de apresentarem vivências distintas em relação às dos demais moradores de condição, tendo José Luiz já experenciado a situação de ser foreiro anteriormente ao período das Ligas, enquanto Inácio teve a experiência de trabalhar em São Paulo. Essas experiências faziam com que estes agentes pudessem ter mais expectativas de conseguir um sítio, seja por já terem vivenciado esta condição, seja por terem observado situações de vida distintas das dos moradores de condição. Assim, podemos levantar a hipótese de que a intensidade da ira moral contrária aos grandes proprietários e a valorização positiva com relação à expectativa por trabalho autônomo variam conforme estes agentes se viam mais próximos desta posição social mais autônoma, o que explica porque, entre os moradores de condição, existia significativa variação quanto à revolta contra os grandes proprietários e a narrativa da busca por ser “liberto”, sendo esta diferenciação significativa para as motivações destes agentes em participarem, ou não, das Ligas. A variável comum entre as motivações de participação nas Ligas, a partir de uma forte ira moral,[38] estava na contraposição da expectativa por uma vivência “liberta” e a percepção de que esta possibilidade social se fechava historicamente em razão da ação dos grandes proprietários:

O certo é que o home precisa da terra como a terra precisa da chuva, do sol, do ar, que é pra mode frutificar. O certo é que a terra tem o poder de distribuir, e, prender a terra é inflamável para a humanidade. (SEVERINO, entrevista, 1991 apud RANGEL, 2000, p. 280)

A narrativa de Severino expressa como a “prisão” da terra é percebida como uma afronta ao que seria uma tendência “natural” desta, como se a terra carregasse em sua “essência” a característica de ser distribuída aos moradores, a qual foi negada pelos grandes proprietários. A naturalização da concessão de sítios aos moradores, como uma tendência que pertencia à “essência” da terra, revela uma forte interiorização da moralidade que envolvia a morada, uma vez que a concessão de terras era vista como um dever a ser realizado pelos latifundiários. O momento em que estes resolvem romper com esta obrigação é tomado como a ruptura de uma “lei natural”, de modo a gerar uma grande revolta, uma experiência que tem o poder de “inflamar a humanidade”. Esta narrativa deixa nítido como as posições que nutriam mais expectativas com relação à possibilidade de terem ou manterem seus sítios, e que eram as mesmas que mais tendiam a internalizar as regras da morada, foram as que mais se revoltaram contra os grandes proprietários neste contexto histórico.

 

Considerações finais

Este artigo buscou relacionar as vivências dos agentes da morada à mobilização destes nas Ligas Camponesas a partir das narrativas de seus participantes. As relações da morada eram permeadas de valores que compunham uma moralidade que tensionava as interdependências em um sentido que tendia a favorecer a dominação do grande proprietário. Entretanto, a morada não era composta apenas por dominação, sendo as relações de poder permeadas por ambiguidades que permitiam a existência de formas de resistência cotidiana. O momento de crise da morada na área canavieira paraibana marca a expulsão de diversos moradores e a mobilização destes em sindicatos e associações. Esta mobilização não pode ser explicada apenas pela precarização das condições de vida dos moradores – por mais que esta variável seja muito relevante –, e as Ligas Camponesas compõem um caso histórico que possibilita um melhor entendimento desta questão.

O fato de os agentes que tinham as regras da morada mais internalizadas em seu entendimento moral do mundo serem os que mais se mobilizaram nas Ligas demonstra que a emergência destas, de seu repertório e de seus símbolos, não condiz apenas com diretrizes das lideranças das Ligas, mas remete também aos valores expressados e ressignificados pelos agentes que delas participaram, com destaque aos foreiros. Isso permite uma via de entendimento mais claro para a emergência das Ligas: a revolta não pode ser explicada apenas por meio da precarização, sendo a ira moral – gerada pela ruptura de obrigações morais dos grandes proprietários – fundamental para o entendimento das formas e símbolos mobilizados pelos moradores em contraposição aos grandes proprietários.

Os foreiros constituíam o que Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973) define como camadas intermediárias, isto é, um grupo de sitiantes autônomos que ocupava uma posição intermediária entre os grandes proprietários e os trabalhadores que não tinham terra nem dispunham de qualquer autonomia:[39]

Nossa hipótese é de que esta camada intermediária de sitiantes autônomos teria agido sempre como um tampão amortecendo as arestas demasiado vivas de dois níveis sociais opostos, caracterizados por um equilíbrio socioeconômico brutal; a esperança de ascender a ela agiria como uma motivação contrária à formulação de reclamações e de contestações. Assim, esta camada concorreria de maneira fundamental para a manutenção da estrutura e organização sociais existentes – porta que se julgava aberta para os indivíduos se evadirem do trabalho subordinado. Sua existência explicaria porque uma organização social de grandes desníveis se perpetuou e continuou existindo durante séculos, sem dar lugar a rebeliões, e sim sustentada por um consenso social quase unânime. (p. 40)

As camadas intermediárias seriam responsáveis pela manutenção da estabilidade social, visto que as expectativas por ascensão individual das camadas inferiores agiriam como desmotivadoras para a contestação social. Entretanto, a mobilização das Ligas Camponesas demonstra justamente o caso contrário, quando as camadas intermediárias, principalmente a posição social dos foreiros, se mobilizaram primeiro e com mais intensidade que as outras posições, tendo inclusive gerado canais para que outros grupos sociais também se mobilizassem.[40]

O caso das Ligas Camponesas não permite concluir que a teoria de Queiroz (1973) esteja equivocada, visto que ela mostra tendências históricas a respeito destas posições intermediárias. Os foreiros eram os agentes que mais internalizavam as regras da morada, e isto – indo ao encontro do que Afrânio Garcia Jr. (1989) e Moacir Palmeira (2009) afirmam – tendia a gerar uma desmotivação a qualquer contraposição aos grandes proprietários. Entretanto, como estes imperativos morais abrangiam relações de obrigação mútua, eles necessariamente envolviam uma reciprocidade de expectativas entre estes agentes no que tange às ações da outra parte. De modo que, mesmo sendo os agentes que mais tenderiam a compartilhar os valores dos grandes proprietários, os foreiros eram os que mais tinham condições de negociar sua condição com estes – inclusive por partilharem destes valores. A possibilidade de realizarem demandas quanto à sua posição social – possibilidades que eram sempre muito limitadas – estava relacionada a este maior envolvimento com as regras da morada e com as expectativas que estas envolviam. Esta relação tendia a favorecer os grandes proprietários de modo a evitar confrontos com estes agentes – que, em relação às outras posições da morada, eram os que mais tinham expectativas quanto aos grandes proprietários cumprirem suas obrigações – pela concessão de sítios e auxílios. No entanto, esta situação se modifica a partir do contexto da competição com o padrão de acumulação da região Centro-Sul, no qual a posição social dos grandes proprietários estava ameaçada, de modo a necessitar aumentar seus ganhos, o que motivou a expulsão do campo e o fechamento da possibilidade de os moradores terem sítios.

No contexto da expulsão do campo, os foreiros, que eram os que mais tinham expectativas com relação às obrigações mútuas para com os grandes proprietários, foram os que mais sentiram esta mudança social, sendo, portanto, os que despertaram maior ira moral contra os latifundiários e os que mais se utilizavam das relações de interdependência que sua posição assegurava – no caso, relações para além das mantidas dentro da grande propriedade – para enfrentar os grandes proprietários a partir da forma de movimento social. Isto permite afirmar que, se há uma tendência de estes grupos compartilharem valores e regras morais com grandes proprietários, isto não implica que não houvesse a possibilidade da efetivação de contestações por parte destes grupos. Esta conclusão permite elaborar como um eixo de pesquisa a questão de quando estas camadas intermediárias se contrapõem à elaboração de contestações aos grandes proprietários e de quando elas fomentam tal preparação.[41]

 

 

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Como citar

GENARO, Eduardo Guandalini; GOMES, Ramonildes Alves. Quando as regras da morada geraram revolta: uma reinterpretação da emergência das Ligas Camponesas (1955-1964). Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, e2230106, p. 1-33, 4 mar. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n1-6.

 

 

Eduardo Guandalini Genaro

Doutorando em Ciências Sociais no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Bolsista CNPq.

edugenaro@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-3229-4085
http://lattes.cnpq.br/9109947317033501

 


Ramonildes Alves Gomes

Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-doutora pela École des hautes études en sciences sociales (EHESS) e pela Université Paris Ouest Nanterre La Défense, França.

rnildes@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-5009-9625
http://lattes.cnpq.br/7709505914296073

 

 

                                   

 

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[1] Doutorando em Ciências Sociais no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Bolsista CNPq. E-mail: edugenaro@gmail.com.

[2] Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-doutora pela École des hautes études en sciences sociales (EHESS) e pela Université Paris Ouest Nanterre La Défense, França. E-mail: rnildes@hotmail.com.

[3] Os trabalhadores rurais que não residiam na grande propriedade podiam ser contratados temporariamente. A respeito das diferentes formas de trabalho na grande propriedade, ver Palmeira (2009). Diversos moradores se tornaram trabalhadores de “ponta de rua” – como eram chamados os que não moravam na grande propriedade –, sendo relevante observar que, em diversas situações, as formas de conceber as relações da morada permaneceram como parte do horizonte de expectativas destes agentes que tinham sido expulsos. As narrativas apresentadas no presente artigo incluem casos de ex-moradores que se revoltaram e participaram das Ligas.

[4] Os termos trabalhador rural e camponês remetem a tipos distintos de agentes que trabalhavam e, na maioria das vezes, residiam no campo. Lideranças das Ligas Camponesas, como Julião (1962), diferenciam os termos associando camponeses à posição dos moradores e trabalhadores rurais às posições assalariadas. Esta concepção mantém relação com algumas discussões acadêmicas – no sentido de haver influência mútua entre como lideranças de movimentos e partidos, de um lado, e pesquisadores de outro, concebiam as posições sociais existentes no campo –, o que explica que pesquisas sobre o sistema de morada (SIGAUD, 1979a; GARCIA JR., 1989; PALMEIRA, 2009) e sobre as Ligas (BASTOS, 1984) também diferenciavam estas categorias a partir da relação de trabalho. Entretanto estes diversos autores usam essas categorias de maneira diversa – e não são todos que as definem especificamente pela relação de trabalho –, embora alguns as usem como sinônimos. Para o presente estudo, atenta-se ao fato de que as diversas posições sociais – como os moradores de condição e os foreiros – estavam envolvidas nas relações da morada, de modo que a moralidade que as permeia permite a construção de uma campesinidade – termo trabalhado por Klass Woortmann (1988) – de “morador”. Mas esta não necessariamente ocorre. O termo camponês também pode remeter a uma identidade política. Neste texto será usado o termo camponês como identidade política para se referir ao último caso, o termo morador para os agentes que vivem na grande propriedade, e os termos trabalhadores rurais e camponeses para remeter a todas as posições sociais que estavam presentes na grande propriedade.

[5] As Ligas inicialmente se organizavam como associações devido à dificuldade oferecida pelo Estado em criar sindicatos rurais. Neste contexto, e especialmente a partir de 1962, ocorre um forte incentivo do Estado à criação de sindicatos rurais, sendo que diversas associações das Ligas se tornaram sindicatos, mas outras não, permanecendo como associação civil, que realizavam reuniões, muitas vezes disputando a organização dos trabalhadores rurais com um sindicato fundado na cidade pelo PCB ou pela Igreja. A respeito da sindicalização rural, ver Alves (2015).

[6] O repertório de ação coletiva remete ao conjunto limitado de formas de ação desempenhadas por pares de atores. É o caso da greve, uma ação que ocorre na confrontação entre capitalistas e proletários (TILLY, 2005, 2010). Uma análise sobre o desenvolvimento do conceito de Tilly é feita por Alonso (2012).

[7] O cambão constituía a obrigação dos moradores de realizar dias de trabalho não remunerado na grande propriedade, muitas vezes nas lavouras de cana.

[8] O termo ocupação costuma ser usado para descrever ações que Sigaud, Rosa e Macedo (2008) entendem a partir da “forma acampamento”, ações que costumam se realizar em grandes propriedades improdutivas e que incluem uma série de símbolos e demandas dirigidas ao Estado. O contexto em que as Ligas se mobilizam é bastante distinto, principalmente pelo fato de as mobilizações das décadas de 1950 e 1960 terem sido realizadas por trabalhadores rurais e camponeses que ainda residiam nas grandes propriedades e não por trabalhadores rurais sem terra. Ações semelhantes às ocupações de terras improdutivas foram chamadas por Bastos (1984) de “tomadas de terra”, as quais eram realizadas pelas Ligas em engenhos abandonados ou terras devolutas. A autora usa o termo ocupação para remeter à ação em que os trabalhadores rurais e camponeses entram nas grandes propriedades de engenhos e usinas que ainda funcionavam e que tinham moradores em suas terras. Esta ação é descrita por Assis Lemos de Souza (1996), o qual destaca que os moradores vinculados às Ligas cercavam as casas grandes e pressionavam por uma negociação entre as lideranças do movimento e o grande proprietário. Esta ação é melhor analisada em Genaro (2019c, 2021).

[9] As formas de resistência cotidiana consistem em práticas e discursos difusos e fragmentários que sempre envolvem alguma forma de interesse pessoal do agente em sua realização. Elas podem ser coletivas e organizadas, como no caso de saques por parte de grupos dos dominados, entretanto, quando são desta forma, as práticas não são públicas, ou seja, não são colocadas na relação direta com os dominadores, de maneira a evitar a identificação daqueles que promoveram tais ações. Ou seja, um saque é organizado e coletivo, mas ocorre sem que seus participantes assumam publicamente que realizaram tal ação, de modo a evitar que sejam identificados e reprimidos. No caso de serem públicas, como em situações de boatos, as práticas sempre usam do anonimato e da dissimulação para não iniciarem um conflito direto. Um confronto direto e aberto (que costuma ser pouco comum), tende a ser individual (SCOTT, 2000). A relação entre as formas de resistência cotidiana usadas pelos moradores e as ações coletivas das Ligas são trabalhadas com detalhes em Genaro (2019a).

[10] Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973), analisando as camadas que compõem o meio rural brasileiro, afirma que as camadas intermediárias correspondem a grupos de sitiantes autônomos que ocupam uma posição intermediária, entre os grandes proprietários e os trabalhadores rurais sem acesso à terra. O conceito será melhor descrito e evidenciado no final do artigo.

[11] Cabe destacar que, como as entrevistas foram acessadas de segunda mão, não se teve controle sobre como era feita a abordagem aos entrevistados e, no caso dos recortes de entrevistas – como apresentados nas pesquisas de Novaes (1997) e Rangel (2000) –, o próprio contexto em que estas entrevistas foram realizadas não fica completamente explicitado por não se ter acesso às entrevistas inteiras. Outro fator relevante é que estas entrevistas foram feitas com objetivos diferentes dos da pesquisa que produziu este artigo, de modo que aspectos centrais para a análise aqui colocada podem, em diversos momentos, ter sido menos abordados nas entrevistas, o que de forma alguma diminui o trabalho elaborado pelas pesquisadoras mencionadas, apenas explicita outros objetivos de pesquisa.

[12] A pesquisa não trabalhou com a narrativa dos grandes proprietários. Acessou as falas destes ao se dirigirem aos moradores, por meio dos seus relatos (fossem de foreiros ou moradores de condição) e os das lideranças, de modo a perceber diferenciações entre a perspectiva entre esses dois grupos e entre os próprios moradores, sendo esta última distinção a que iremos destacar.

[13] Sigaud (2004) também debate sobre como a relação grande proprietário-morador era permeada por uma moralidade, de modo que um morador que se contrapunha ao proprietário da terra poderia gerar mágoa neste e acabar tendo um ressentimento a respeito de sua oposição ao latifundiário. Ao mesmo tempo este grande proprietário poderia ter um sentimento de dever para com os moradores que o impedisse de expulsá-los da terra, mesmo que isto fizesse sentido economicamente, algo pouco comum no período estudado, mas trabalhado pela autora em Armadilhas da honra e do perdão. Neste texto nos baseamos mais na discussão sobre a idealização do passado estudado pela autora em A Nação dos homens (1979a) e Os clandestinos e os direitos (1979b).

[14] Todas estas pesquisas fazem referência à relação entre a mobilização e as relações tradicionais. O que estamos afirmando é que este não foi o foco destes estudos e não que eles desconsideraram esta relação.

[15] Após a morte de João Pedro Teixeira, sua esposa Elizabeth Teixeira assume a liderança da Liga de Sapé, tornando-se a principal liderança camponesa na Paraíba e, até hoje, uma porta-voz da memória do movimento. A trajetória de Elizabeth Teixeira pode ser observada em entrevista publicada por Bandeira, Miele e Godoy (1997), assim como na feita por Rocha (2009).

[16] Afrânio Garcia Jr. (1989) indica que os termos “sujeito” e “encabrestados” eram usados para se referir aos agentes em posição de maior dependência para com o grande proprietário, em contraste com os agentes “libertos”, que eram os com condição mais autônoma.

[17] Sigaud (1979a) demonstra como mesmo o acesso a um sítio sendo concedido a um número pequeno de moradores, ocorre uma valorização de um passado em que era possível se tornar foreiro, contrastando com uma situação em que esta possibilidade é fechada. O primeiro momento histórico é valorizado mesmo que não apresentasse – ou não apresentasse da mesma maneira – elementos valorizados no segundo, como são os direitos trabalhistas. A idealização do passado valoriza ambiguamente tanto a experiência de um momento em que as relações entre grandes proprietários e moradores eram entendidas como “boas” – sendo entendidas também como menos conflituosas, no sentido de conflitos políticos mais explícitos como os de sindicatos e associações – quanto a vivência de direitos trabalhistas, que emergem enquanto demanda justamente em um período de maiores conflitos e expulsão do campo.

[18] João Pedro Teixeira, liderança que fundou a Liga de Sapé e foi assassinado em 1962. Sua esposa, Elizabeth Teixeira, assume a liderança desta posteriormente.

[19] O termo “direito” é usado, pelos moradores, tanto para se referenciar a direitos trabalhistas quanto para remeter às relações regidas por costumes dentro da grande propriedade. A concessão de um sítio era vista como uma regra costumeira das relações da morada, de forma a ser denominada de “direito” na fala de moradores, por mais que não remetesse a nenhum direito trabalhista no que se refere à legislação. O uso do termo “direitos” é analisado por Sigaud (1979a), que observa que ele remete ao período em que os direitos trabalhistas entram em pauta nas mobilizações de ações coletivas no campo. Existe uma ambiguidade na narrativa dos moradores a respeito dos direitos, de modo que estes são entendidos como algo que sempre existiu, mas que não era aplicado pela falta de conhecimento dos moradores. Assim, há uma narrativa de que os “direitos” existiam mesmo antes da legislação específica aos trabalhadores rurais, o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) de 1963. Cabe ressaltar que a exclusão dos trabalhadores rurais da legislação trabalhista não ocorreu pela formalidade jurídica, mas pelas contradições do modelo de desenvolvimento brasileiro. O termo não se limitava aos direitos assegurados pela legislação, de maneira que relações costumeiras foram associadas à noção de “direito”.

[20] Existe uma relação entre o que se concebia como os direitos da morada e os direitos associados às Ligas, de maneira que, nas narrativas apresentadas por Van Ham et al. (2006), há menção a uma Lei das Ligas, que pode ser sintetizada como “terra livre e trabalho”. Isso é analisado em mais profundidade em Genaro (2019b).

[21] Sobre a noção de figuração e interdependência, este artigo está baseado em Elias (1999).

[22] Novaes (1997) cita falas de participantes das Ligas nas quais estes diferenciam quem era e quem não era camponês. Assim, o termo camponês tomava um contorno de identidade política associada a quem participava e apoiava as Ligas e os sindicatos, em contraste com os outros moradores que não participavam, pois tinham medo. Desse modo, “medo” e “coragem” eram termos diferenciadores no uso desta identidade.

[23] É preciso esclarecer que a crítica a Novaes (1997) é pontual. A autora afirma: “Também não podemos dizer que a matéria-prima para a construção desta identidade pode ser encontrada nos valores comunitários preexistentes. Não havia uma ‘comunidade de valores’ partilhada e prévia, pronta para manifestar o ethos camponês” (NOVAES, 1997, p. 54-55). O objetivo desta afirmação é demonstrar que a identidade política camponesa não era preestabelecida entre os diferentes agentes que trabalhavam no campo, tendo em vista que se desenvolve na alteridade entre os moradores e os grandes proprietários em um momento de crise de relações tradicionais. O que criticamos é que não se observou com mais detalhe como formas de resistência e de vivência dos conflitos entre moradores e grandes proprietários, nas relações da morada, influenciaram a ordenação das experiências do momento de crise dessa forma de organização social. E isto não decorre de um erro analítico de Novaes, tendo em vista seu rico material de pesquisa e os pertinentes apontamentos que servem de base para diversas análises aqui apresentadas, mas de um recorte de pesquisa que aplicamos de modo diferente do da autora. Novaes não ignora que existem relações entre a mobilização política e as experiências vivenciadas na morada, apenas dá outro peso para estas influências do que especificamos aqui.

[24] A utopia é entendida aqui como uma cosmovisão que visa a mudança social no sentido da democratização, sendo contraposta às cosmovisões ideológicas, que visam à manutenção do equilíbrio de poder existente. Em ambos os casos, trata-se de formas simbólicas e, neste sentido, são valorativas, sendo que a perspectiva da pesquisa não considera possível a existência de formas simbólicas não valorativas. A questão é que utopias e ideologias não podem ser vistas apenas como distorção da realidade, como se houvesse alguma forma de pensamento não distorcida e exata da realidade social. Neste sentido, quando se indica a existência de uma utopia, isto não significa que esta seja uma visão irrealizável do mundo social, mas uma maneira de interpretar o mundo que valoriza esta realidade no sentido da mudança social.

[25] A fala de Severino Guilhermino de Souza, apresentada em Van Ham et al. (2006, p. 375), indica que o objetivo das Ligas era que não houvesse mais donos de terras, porque terra era para “trabalhar”, com isso indicando que deveria haver “terras de trabalho”, como eram concebidos os sítios, roçados e pequenas propriedades.

[26] Em uma destas falas, um morador que participou das Ligas afirma para Rangel (2000, p. 325-326) que Deus fez a terra para todos, indicando que ele a fez liberta e que, por isso, o pobre deveria ter terra.

[27] Bastos (1984) também apresenta esta diferenciação realizada pelos moradores.

[28] Como estamos nos baseando em Mannheim (1982) – mesmo que mantendo distanciamento de seu método e de certas concepções teóricas, como sua concepção de estilos de pensamento como tipos ideais e de sua concepção de arquétipos – para falar sobre ideologia, cabe ressaltar que este autor não trabalha o termo hegemonia em sua sociologia do conhecimento, sendo que a utilização do autor remete a como sua concepção de ideologia-utopia consegue abranger as ambivalências entre ambas, algo interessante para entender grupos que partilham valores ideológicos mas, simultaneamente, expressam contraposições a estes valores. A distinção entre hegemonia e ideologia se realiza uma vez que a segunda é sempre uma perspectiva política ligada a um grupo (como os grandes proprietários ou os capitalistas industriais), enquanto a hegemonia remete a valores aceitos por diversos grupos sociais, mesmo que de modo ressignificado por cada um destes, sendo que há forte relação entre ideologia e hegemonia, mas estas não são a mesma coisa. Scott (2000) se baseia no conceito gramsciano de hegemonia, mas critica a ideia de que ocorre uma incorporação hegemônica na qual os dominados assimilam de maneira absoluta – seja de maneira consentida ou por resignação – os valores e ideias das classes dominantes. O autor critica Gramsci ao refutar que as classes dominadas seriam mais limitadas ideologicamente do que na ação, tendo em vista que, para Scott, as ações destas classes são mais limitadas que seu aspecto ideológico uma vez que sempre produziram idealizações nas quais se inverte, ou se nega, a ordem social vigente. O autor indica que as formas de revolta que se baseiam em valores das ideologias dos dominantes não significam uma redução dos conflitos, considerando que em muitos contextos estas são as formas mais possíveis de realizar reivindicações. Os valores hegemônicos legitimam as classes dominantes ao gerarem uma imagem de que elas exercem uma função para a sociedade. Esta construção da legitimidade cria bases sobre as quais os dominados podem exercer críticas. Scott indica que o discurso público e, portanto, as ideias hegemônicas, está aberto a reinterpretações por parte dos dominados de maneira a ser possível que estes usem as brechas destes valores e ideias para realizar formas de resistência. O autor assinala que existe uma infrapolítica, relativa às resistências que recorrem a formas indiretas de expressão, e que esta, como discursos ocultos, fomenta contraposições à tentativa dos grupos dominantes imporem uma visão hegemônica no discurso público. Scott afirma que os grupos que mais acreditavam nas ideologias dominantes podem ser potencialmente mais perigosos para a ordem social vigente do que os que nunca acreditaram nestes valores. Por mais que esta afirmação não possa ser generalizada, cabe observar que se aplica ao caso das Ligas Camponesas.

[29] Os apontamentos são feitos com base nas regiões em que as Ligas foram mais ativas e nas falas de participantes do movimento concedidas a Van Ham et al. (2006), como se observa em Genaro (2019a).

[30] Rangel (2000) também interpreta que a quebra do “sonho” de um dia ter um sítio, ou de permanecer neste, marca profundamente as experiências dos agentes que participaram das Ligas.

[31] Andrade (1986) também mostra que havia pequenos proprietários que plantavam cana-de-açúcar para rapadura e mel. Entretanto, no século XX, como assinalado por Palmeira (2009), o plantio de cana por arrendatários e parceiros é reduzido, predominando o plantio pelo grande proprietário. 

[32] Nota do documento original.

[33] Ele prossegue falando sobre como conseguiram realizar o mutirão e plantar no sítio deste outro morador (VAN HAM et al., 2006).

[34] Trata-se de momentos em que os moradores expressam suas demandas de maneira dissimulada aos grandes proprietários, de modo a caracterizar uma forma de resistência cotidiana como entendida por Scott (2000). Os moradores que conseguiam melhores acordos tinham melhores ganhos ou evitavam mais perdas que os outros. Evidente que não era toda conversa entre morador e grande proprietário que manifestava alguma forma de resistência, se tratando de um tipo de ação específica. Essa forma de resistência cotidiana, assim como sua relação com uma das ações coletivas que compunham o repertório das Ligas – as negociações coletivas ou cercamentos às casas grandes – foi mais trabalhada em Genaro (2019c, 2021).

[35] Trata-se do caso trazido no começo deste artigo.

[36] As entrevistas de Rangel (2000) procuraram estabelecer uma trajetória desde antes da expansão da cana até o momento em que estes agentes se filiam às Ligas. As entrevistas realizadas por Van Ham et al. (2006) se concentraram mais na participação no movimento, o que acabou não permitindo fazer a mesma relação aqui trabalhada com todas as entrevistas.

[37] O fechamento da possibilidade de ter um sítio, assim como a expulsão do campo, eram processos que, na percepção dos moradores, significavam tanto uma perda de condições materiais quanto uma ruptura de regras morais da morada. Barrington Moore Jr. (1987), ao exemplificar a associação entre moralidade e interesses materiais, afirma sobre a ira moral dos pequenos negociantes e cultivadores afetados pela expansão capitalista: “É importante compreender que essa ira tem implicações maiores do que o interesse diretamente material. Essas pessoas estão moralmente indignadas porque sentem que todo o seu modo de vida enfrenta um ataque desleal” (MOORE JR., 1987, p. 62).

[38] A busca por ser “liberto” – vivenciar uma situação de trabalho mais autônomo – se contrapõe a vivenciar a situação de “sujeito” ou “encabrestado” – que envolve maior dependência para com o grande proprietário, assim como piores condições de trabalho e de vida –, como demonstra Afrânio Garcia Jr. (1989). A oposição entre uma percepção de trabalho mais degradante e a de um trabalho com melhores condições – por mais que os foreiros também vivenciassem enorme dependência e condições de vida semelhantes às de diversos outros grupos dominados – pode ser entendida pelo que Barrington Moore Jr. (1987) indica sobre a ira moral relativa à divisão social do trabalho. O autor aponta que ocorre uma desvalorização de formas manuais de trabalho consideradas degradantes, e que a vivência dessa forma de trabalho carrega a possibilidade de uma ira moral. A situação dos foreiros não corresponde exatamente à vivência das condições mais degradantes de trabalho – no caso o trabalho como “sujeito”, “encabrestado” –, mas ao medo, ou a experiência da queda de uma condição melhor de trabalho – a condição de “liberto” – para outra mais degradante, como no caso em que estes se tornam moradores de condição ou são expulsos e vivem situações piores no trabalho rural ou urbano.

[39] Queiroz (1973) deixa claro que as camadas intermediárias não formavam uma classe média rural, ou seja, por mais que tivessem uma condição de vida melhor e mais autonomia, elas continuavam a fazer parte dos grupos “de baixo” da estrutura social.

[40] Eric Wolf (1984) observou diversos casos de revoluções camponesas e, em várias destas, a mobilização de camadas do campesinato menos dependentes dos senhores de terra era um elemento fundamental para o desenrolar dos conflitos políticos. Em certas oportunidades, estes grupos antecediam a mobilização de outros, como no caso da Revolução Mexicana, sendo que esta mobilização podia ter intensidade muito relevante em relação a de outros segmentos do campesinato, como se pode observar na situação mencionada e no dos camponeses médios na Revolução Russa. Uma comparação entre estas revoluções e a mobilização das Ligas pode trazer elementos para entender em que situações as camadas intermediárias do campesinato tomam destaque na confrontação política.

[41] No caso das Ligas Camponesas, toma-se a hipótese de que os foreiros se mobilizaram em virtude das reciprocidades das regras da morada e a mudança de dinâmica das interdependências do período anterior à mobilização das Ligas, o que possibilitou que estes agentes se apoiassem em diversas relações que mantinham, e que não se restringiam à grande propriedade, para se opor aos latifundiários. O tema é melhor trabalhado em Genaro (2019a).