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v. 30, n. 2, julho a dezembro de 2022 (publicação contínua), e2230212


Recebido: 10.jul.2022   •   Aceito: 19.out.2022   •   Publicado: 7.dez.2022

Seção Temática / Artigo original /  Revisão por pares duplo-cego / Acesso aberto




Seção Temática
Os usos da teoria de Pierre Bourdieu nos estudos rurais brasileiros

 

A aplicação da teoria de Bourdieu aos estudos rurais no Brasil

Applying Bourdieu's theory to rural studies in Brazil


orcid_id.png  Ana Louise de Carvalho Fiúza[1]   



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_st06


 

Resumo: A fim de ilustrar a diversidade do campo de possibilidades de análise da teoria de Bourdieu aos estudos rurais no Brasil, selecionamos, no Banco de Dissertações e Teses da Capes, três dissertações e duas teses, com temáticas diferentes, elaboradas em universidades de cada uma das cinco regiões brasileiras, no período compreendido entre 2002 e 2022, o qual marca os 20 anos da morte de Bourdieu. A análise das dissertações e teses selecionadas foi realizada buscando identificar os conceitos nelas utilizados e a forma como os eles foram aplicados em face dos objetivos propostos em cada pesquisa. Realizamos, então, uma análise de conteúdo do corpus formado pelo resumo, introdução, marco teórico, metodologia e resultados finais das teses e dissertações, utilizando o software Iramuteq. Os resultados reforçaram o destaque para o uso do conceito de habitus e “campo”. Constatamos, a partir das dissertações e teses analisadas, o vasto campo de aplicação da teoria de Bourdieu e a sua atualidade para compreender os processos de transformação das sociedades “rurais” no Brasil. Marcado por permanências e “especificidades”, mas, também, pelo acolhimento a novos valores, os quais variam conforme o grupo social, as condições materiais de existência e a historicidade construída.

Palavras-chave: Bourdieu; habitus; campo; regra e estratégia.

 

Abstract: In homage to Bourdieu 20 years after his death and illustrate the diversity of possibilities offered by his research, we selected three theses and two dissertations on different topics from 2002 to 2022 conducted at universities in each of Brazil’s five geographic regions in order to identify the concepts they incorporated from Bourdieu and how these concepts were applied to pursue the objectives of each study. This content analysis examined the abstracts, introductions, theoretical references, methodology, and final results using Iramuteq software. The results show that the concepts of habitus and “country” were most frequently utilized. We witnessed the vast applications of Bourdieu’s theory and its contemporary relevance to understand the processes of transformation in “rural” Brazilian societies which are marked by permanences  and “specificities,” as well as by the acceptance of new values that vary according to social group, material living conditions, and the constructed historicity.

Keywords: Bourdieu; habitus; field; rule and strategy.

 

 

Introdução

 A contribuição da obra de Bourdieu para os estudos rurais tanto no Brasil como no mundo é extremamente valorosa e multifacetada. A sua teoria está presente nos estudos sobre “as sexualidades camponesas” (FERREIRA, 2006), bem como no “campo de disputa nas campanhas publicitárias com cunho ambientalista versus as da agricultura familiar na Amazônia” (COSTA, 2004). Neste rol temático multifacetado enquadram-se, ainda, estudos sobre novos habitus tecnológicos introjetados na reestruturação do campo social da pecuária leiteira (BUTLER; HOLLOWAY, 2016), ou mesmo de um novo habitus previdenciário que se interiorizaria a partir do recebimento da aposentadoria rural (BARROS, 2014). O objetivo deste estudo foi analisar o campo de empregabilidade dos pressupostos teóricos de Bourdieu em teses e dissertações com temáticas relacionadas ao “rural” e à “agricultura”, presentes no banco da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes.

Os conceitos de habitus e campo são, sem dúvida, centrais no âmbito de aplicabilidade da teoria de Bourdieu (1996). A afirmação do autor de que as experiências passadas estariam presentes em cada “agente social”, em seu “esquema de percepção”, de pensamento e de ação, o qual tenderia mais que todas as “regras” e “normas formais” garantir a conformidade com as “práticas” e o seu “grau de uniformidade no tempo”, nos leva ao cerne dos pressupostos do seu “estruturalismo construtivista” (THIRY-CHERQUES, 2006). Para o autor, o “agente” não é um “ator” que age individualmente. A concepção de “agente” em Bourdieu apontaria para o fato de que as suas ações são referenciadas pelas orientações, valores e costumes advindos do mundo social. Ou seja, o seu agir se constrói a partir de disposições inculcadas com base nas condições sociais em que são geradas. Segundo o autor, há necessidade de se buscar na “estrutura social vigente” os referenciais para se compreender a gênese das ideias e da ação social. Daí poderia decorrer, para Bourdieu (1996), a orientação metodológica para que um pesquisador examinasse atentamente as características do lugar onde o fenômeno que está estudando ocorre, procurando dar centralidade às práticas das pessoas que nele vivem, considerando as condições objetivas nas quais estas práticas se desenrolam. Assim, o testemunho dos indivíduos, os seus sentimentos, as suas explicações e reações deveriam ser interpretados a partir do sentido presente no mundo social, na “estrutura historicizada”, a qual se imporia sobre eles. 

Neste sentido, a concepção de “prática social” é central na obra de Bourdieu (1996). Esta não pode ser compreendida como simples execução, mas, antes, como “disposição para agir” com base em fundamentos, valores e costumes, instituídos socialmente. Ou seja, a análise das práticas sociais implicaria a consideração das “disposições” que orientam o agir dos agentes sociais, encontrando-se imersas em um ambiente social marcado por um “mundo de objetos” e de “condições materiais de existência”, específicas, perpassadas por valores, normas, crenças e costumes socialmente construídos (BOURDIEU, 1996). Assim, as “disposições para agir” se caracterizariam, de certa forma, como um esteio, um “suporte coletivo” para a “geração” e “legitimação” dos referenciais norteadores do agir social. Por se firmarem como costumes instalados na prática corrente dos agentes sociais, as práticas sociais evidenciariam uma dimensão inconsciente.

Todavia, esta concepção de “prática social” não eliminaria a “escolha estratégica” e a “deliberação” como possível modalidade de ação do “agente social”. Mas, antes, conferiria o sentido da ação dos agentes sociais às referências socialmente construídas. Por isto, para Bourdieu, o habitus não é imutável, evoluindo com a experiência social dos agentes. Estas se orientariam pela existência de “estruturas objetivas”, portanto, independendo da consciência e da vontade dos agentes. Embora estes construam a realidade social, o fazem sob a égide de “constrangimentos estruturais”. O habitus permitiria, assim, entender a razoabilidade das condutas sem a necessidade de postular a existência de um ator “racional”. Todavia, se, por um lado, o habitus, para o autor, não se caracterizaria como fruto de uma escolha livre e racional, por outro, ele não poderia ser concebido, também, como derivando da mera determinação biológica, cultural ou econômica que atuaria sobre os agentes socais (BOURDIEU, 1996).

A noção de “estrutura-estruturada-estruturante” apontaria, justamente, para o entrelaçamento entre os agentes sociais e as instituições, no constante processo de construção social da história, articulado a partir das posições por eles ocupadas nos seus campos de pertencimento. Estes se caracterizariam por uma “rede de configurações objetivas” estabelecidas entre as posições que os distintos agentes (sujeitos ou instituições) ocupam na estrutura de distribuição dos diferentes capitais (econômico, cultural, social e simbólico). Cada agente possuiria uma determinada cota destes poderes ou capitais, o que implicaria acessos diversos aos ganhos em jogo e a existência de tipos de relações de poder diferenciados, caracterizados seja pela dominação, subordinação ou homologia.

 

Metodologia

A fim de analisar a intensidade da presença dos pressupostos teóricos de Bourdieu em teses e dissertações com temáticas relacionadas ao “rural”, no período posterior a sua morte (2002 a 2022), realizamos uma busca no Banco de Dissertações e Teses da Capes, utilizando como descritores as palavras habitus e “rural”, identificando-se 119.909 dissertações e teses. Filtrando-se por “Grande Área de Conhecimento” (Ciências Agrárias, Multidisciplinar e Ciências Sociais Aplicadas) e por “Área de Avaliação” (Ciências Agrárias I e Interdisciplinar) obtivemos 11.021 dissertações e teses, evidenciando-se, assim, que mesmo após a sua morte a sua teoria se renova por meio dos estudos rurais brasileiros. Em função de ser objetivo deste artigo apenas ilustrar a diversidade do campo de possibilidades de análise da teoria de Bourdieu aos estudos rurais no Brasil, não procedemos a uma amostragem representativa da população, mas sim a uma amostragem intencional, sendo selecionadas no Banco de Dissertações e Teses da Capes, dissertações e teses que apresentassem temáticas diferentes e que fossem elaboradas em universidades de cada uma das cinco regiões brasileiras (Norte, Nodeste, Centro-Oeste. Sudeste e Sul), no período compreendido entre 2002 e 2022, o qual marca os 20 anos da morte de Bourdieu. Foram, então, selecionadas, de forma intencional, levando em conta, principalmente, a originalidade temática e o marco teórico elaborado, as seguintes dissertações e teses:

 

Quadro 1 – Relação de dissertações e teses analisadas

Ano

Regiões
brasileiras

Dissertação/Tese –
Universidade

Autor

Título

2004

Norte

Tese – Universidade
Federal do Pará

Luciana Miranda Costa

Sob o Fogo Cruzado das Campanhas: ambientalismo, comunicação e agricultura familiar na prevenção ao fogo acidental na Amazônia.

2006

Centro-Oeste

Dissertação – Universidade de Brasília

Paulo Ferreira Ferreira

Os Afetos Malditos: o indizível nas sexualidades camponesas.

2013

Sul

Tese – Universidade Federal de Santa Maria

Rodrigo da Silva Lisboa

A Construção Social do Mercado de Acácia Negra no estado do Rio Grande do Sul.

2014

Sudeste

Dissertação – Universidade Federal de Viçosa

Vanessa Aparecida Moreira de Barros

A Aposentadoria Rural e as Mudanças nos Modos de Vida dos Idosos que Vivem no Campo.

2020

Nordeste

Dissertação – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Marcos Aurélio Freire da Silva Júnior

As Estruturas Simbólicas e as Relações de Poder que perpassam a Juventude em Comunidades Rurais.

Fonte: Dados da pesquisa (2022).

 

As dissertações e teses selecionadas foram analisadas com o auxílio do software Iramteq, o qual utiliza os princípios de Bardin (2011) de análise de conteúdo. Foi composto um único corpus a partir das teses e dissertações selecionadas. Nele constava: o resumo, a introdução, o marco teórico, a metodologia e as considerações finais. Utilizamos dois tipos de análise de conteúdo efetuada pelo software: a Classificação Hierárquica Descendente e a Análise Fatorial de Correspondência (AFC). A primeira contabiliza as palavras pela frequência de coocorrência, tendo como base as classes gramaticais carregadas de significados cognitivos passíveis de exame. Ela faz sucessivas divisões do corpus, por pares de oposição, até que as classes compostas deixem de se diferenciar. O objetivo é conseguir uma divisão das classes em duas, de tal modo que ambas contenham diferentes vocabulários e, no caso ideal, não contenham nenhuma palavra sobreposta. O procedimento é continuamente efetuado até que não resulte em novas classes (CAMARGO, 2005). Já a Análise Fatorial de Correspondência (AFC) permite examinara trajetória dos vocábulos dentro de um texto e a variação da estrutura léxica e semântica das palavras dentro do material transcrito (FALLERY; RODHAIN, 2007). 

 

Resultados e análises

A aplicação da Análise Hierárquica Descendente, realizada pelo software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), resultou em um dendrograma, uma espécie de árvore com galhos (classes de palavras). O corpus formado pelas dissertações e teses foi dividido em cinco classes, as quais foram posteriormente nomeadas, segundo a análise de conteúdo e o agrupamento dos segmentos de texto realizados pelo Iramuteq.

 

Quadro 2 Nomeação das classes resultantes da Análise Hierárquica Descendente

Classes

Nomeação das Classes

Classe 1

A aposentadoria rural e a instituição de um habitus previdenciário na vida dos idosos.

Classe 2

A teoria da prática de Bourdieu: o conceito de habitus, campo e de agente social.

Classe 3

A concepção de regra, estratégia e jogo aplicada à noção de “família”, em Bourdieu e Lévi-Strauss.

Classe 4

Procedimentos metodológicos adotados nos estudos com fundamentação teórica bourdieusiana.

Classe 5

O corpo do camponês no “Texto Brasileiro” e em Bourdieu.

Fonte: Dados da Pesquisa (2022).

 

O software repartiu o corpus em cinco classes. A primeira repartição diferenciou e separou o conteúdo da Classe 1 (A aposentadoria rural e a instituição de um habitus previdenciário na vida dos idosos) daquele referente à Classe 5 (O corpo do camponês no “Texto Brasileiro” e em Bourdieu). Já o conteúdo da Classe 5 foi diferenciado e separado do conteúdo da Classe 4 (Procedimentos metodológicos adotados nos estudos com fundamentação teórica bourdieusiana). Por sua vez, o conteúdo da Classe 4 foi diferenciado do conteúdo da Classes 3 (A concepção de regra, estratégia e jogo aplicada à noção de “família”, em Bourdieu e Lévi-Strauss.) e da Classe 2 (A teoria da prática de Bourdieu: o conceito de habitus, campo e de agente social). As Classes 2 e 3 se diferenciam e se opõem em relação à Classe 4, mas apresentam entre si um conteúdo comum que as torna diferentes da Classe 4. Contudo, elas também se distinguem em relação a si mesmas.

 

Figura 1 Dendograma resultante da Classificação Hierárquica Descendente

Fonte: Dados da pesquisa analisados pela Classificação Hierárquica Descendente do Iramuteq.

 

Por meio da Análise Fatorial de Correspondência, que dispõe as cinco classes no eixo X/Y, é possível observar de forma mais clara, tanto as diferenciações de conteúdo entre as classes, dispostas em lados opostos, direito e esquerdo, quanto as oposições existentes entre elas, dispostas na parte superior e inferior do eixo. O conteúdo da Classe 1 (A aposentadoria rural e a instituição de um habitus previdenciário na vida dos idosos), em vermelho na Figura 1, aparece no quadrante superior direito, se diferenciando do conteúdo que compõe a Classe 5 (A teoria da prática de Bourdieu: o conceito de habitus, campo e de agente social), em lilás; e se opõe à Classe 4 (Procedimentos metodológicos adotados nos estudos com fundamentação teórica bourdesiana), em azul, localizada no quadrante inferior esquerdo. A Classe 1 trata do habitus previdenciário dos idosos, enquanto a Classe 4 versa sobre o discurso coletivo dos jovens que vivem no campo. Interessante observar que a Classe 2 (A teoria da prática de Bourdieu: o conceito de habitus, campo e de agente social) e a Classe 3 (A concepção de regra, estratégia e jogo aplicada à noção de “família”, em Bourdieu e Lévi-Strauss) apresentam uma confluência em termos do tratamento da concepção teórica de Bourdieu, mas opondo perspectivas diferentes.

 

Figura 2 Análise Fatorial de Correspondência

 Fonte: Dados da pesquisa analisados pela Análise Fatorial de Correspondência do Iramuteq.

 

A fim de compreender de forma mais clara o conteúdo e o diálogo possível entre as dissertações e teses analisadas, serão apresentados, a seguir, os segmentos de texto que compõem o conteúdo dos textos, agrupados nas cinco classes e considerados como mais relevantes pelo software.

 

A aposentadoria rural e a instituição de um habitus previdenciário na vida dos idosos

Apresentamos aqui os segmentos de texto contidos na Classe 1. Este conteúdo faz referência, sobretudo, à dissertação de Barros (2014), que trata das mudanças nos modos de vida dos idosos a partir da incorporação da aposentadoria rural como um recebimento mensal, regular. A autora utiliza o conceito de habitus a fim de analisar as predisposições para agir e as práticas que se regularizam a partir da institucionalização da aposentadoria rural. O recebimento mensal da aposentadoria materializou um habitus previdenciário marcado pelo horizonte do futuro planejado. O medo da fome e a incerteza em relação ao amanhã ficaram para trás. O “dinheiro certo” afastou o medo de gastar, pois doravante não precisam mais se arriscar endividando-se no banco.

Com a institucionalização do recebimento mensal da aposentadoria rural, os idosos saíram da condição de um habitus precário e incorporaram um habitus secundário (SOUZA, 2003). A segurança do recebimento do benefício previdenciário, mês após mês, introduziu o horizonte do futuro em suas vidas. Os idosos incorporaram uma perspectiva de planejamento para a realização de projetos da família: melhoramento na casa, construção de uma nova casa, aquisição de bens, pagamento de cursinho para os netos, auxílio aos filhos. Passaram a investir na poupança, a fazer financiamento nas lojas de materiais de construção, a andar de táxi, além de incorporarem outras práticas de consumo relativas ao vestuário, à alimentação e ao lazer. Com a aposentadoria rural, os idosos passaram de dependentes a autônomos, decidindo sobre a forma de usar o dinheiro que recebiam. A mulher rural que não era remunerada pelo seu trabalho, com o recebimento do benefício previdenciário, passou a cuidar do próprio dinheiro, decidindo o que comprar, quando e como aplicar o dinheiro da aposentadoria.

O trabalho na agricultura ganhou a conotação de escolha, não sendo mais uma necessidade voltada para a sobrevivência. As referências de moradia das casas da cidade se incorporaram na reforma das casas ou mesmo na construção de novas moradias. Os idosos rurais aposentados passaram a encarar o trabalho na propriedade não mais como necessidade. Investiam o dinheiro da aposentadoria na produção, substituindo empréstimos como o do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf. A aposentadoria rural, sobretudo dos homens, tornou-se um seguro agrícola. Enfim, o habitus previdenciário funcionaria como um habitus secundário, conforme Souza (2003), em função do reconhecimento social das pessoas, seja por meio do acesso aos seus direitos sociais e econômicos, seja passando pelo processo que Bourdieu (1996) trata como distinção, que tende para a homogeneização de acesso às oportunidades.

Barros (2014) constatou, por fim, que o tempo de introjeção do habitus previdenciário não foi determinante para a mudança nas práticas cotidianas ancoradas nos novos padrões de consumo. A autora afirma que, independentemente do tempo de recebimento da aposentadoria, os novos habitus se incorporaram à vida dos idosos. Os utensílios antigos, usados para cozinhar, diminuíram a sua diversidade e o seu número, sendo substituídos por outros modernos. A presença do fogão à lenha, dos fornos de barro, colheres de pau, panelas de ferro, dentre outros utensílios, embora ainda se mantenham presentes, passaram a ocupar o lugar do gosto e não da necessidade. Passam a conviver, doravante, com novos utensílios, eletrodomésticos e novas práticas associadas ao padrão de vida urbano.

 

A teoria da prática de Bourdieu: o conceito de habitus, campo e de agente social

O conteúdo relativo à concepção teórica de Bourdieu foi agrupado pelo Iramuteq na Classe 2, o qual apresentou de forma mais expressiva os marcos teóricos elaborados por Costa (2004), Ferreira (2006) e Lisboa (2013). Os autores destacam na definição de habitus a dimensão de comando que ele exerce sobre as diversas partes da ação do agente, nos vários campos em que ele se insere. Trata-se de um “sistema de disposições” estruturadas e estruturantes. Duráveis e aplicáveis às diferentes situações. Constituem-se na prática e são sempre orientados em seu sentido prático. As práticas identificam e ordenam nossas interações na sociedade. Influenciam nossas ações individuais e moldam a maneira de perceber o mundo. As “estruturas” ou “disposições duráveis” constituem as maneiras como compreendemos o mundo social no qual estamos inseridos. A predisposição para agir implica uma forma de conceber a realidade.

A noção de “prática social” em Bourdieu (1996) é interpretada por Costa (2004), Ferreira (2006) e Lisboa (2013) como distinta da simples execução de normas sociais coletivas ou reflexos das estruturas sociais geradoras. A prática seria o resultado de relações de poder que impõem visões do mundo social. A trajetória diferenciada de cada agente produzirá sua percepção do mundo, seu habitus. Ferreira (2006) destaca que Bourdieu buscou romper com a noção levistraussiana de inconsciente, a qual reduziria a noção do agente ao papel de suporte da estrutura. Assim, o habitus constitui uma mediação entre a estrutura e a produção social. Uma predisposição para agir de acordo com os pensamentos, as percepções e as ações que caracterizam uma cultura. O agente teria, assim, uma disposição para agir dentro de uma estrutura-estruturante, mas a qual seria, também, estruturada. O fundamento da ação gerada pelo habitus seria ainda contemporâneo da ação. O habitus se constituiria em um conjunto sistemático de princípios simples e parcialmente substituíveis. E a partir deste conjunto poderiam ser inventadas uma infinidade de soluções que não derivariam diretamente de suas condições de produção.

O conjunto de “esquemas de classificação” do mundo interiorizado ao longo de uma trajetória social singular provocaria comportamentos sem cálculo. A prática vivida geraria um agir decorrente do conhecimento e do domínio da situação. O agente seria um “operador prático” na construção social. Mas não na mesma perspectiva da filosofia do sujeito ou da consciência. Esse conjunto de “disposições” agiria como um princípio gerador e estruturador de práticas, dando-lhes um caráter quase automático, característico de um agente histórico prático. Não significa que o saber prático voltado para a ação excluiria de forma absoluta o cálculo e a reflexão consciente, mas nem sempre esse cálculo seria necessário. Segundo a interpretação de Ferreira (2006) do sentido da prática em Bourdieu (1996), situações análogas poderiam produzir no agente social uma reação espontânea, não refletida, originada a partir do saber prático, permanentemente atualizado. No entanto, quanto mais a situação se afastasse de experiências anteriores, menos as soluções prontas do habitus aprendido seriam incorporadas e definiria o comportamento a ser tomado. O habitus apontaria, assim, para o caráter integrativo de todas as experiências passadas que se atualizariam a cada momento. Essa incorporação progressiva das práticas faria com que elas perdessem a sua condição de “práticas estruturadas” e começassem a se assemelhar a práticas naturais. O caráter arbitrário do processo de aprendizagem se diluiria, dando lugar a uma ilusão de naturalidade da ação.

Como destaca Costa (2004), o habitus dependeria na forma e no conteúdo do poder material ou do poder simbólico acumulado pelos agentes ou pelas instituições envolvidas em determinadas relações. O espaço social de construção destas relações de poder revelaria os constrangimentos que agiriam sobre a maneira de pensar e atuar dos agentes nele existentes. A legitimidade social dos agentes para efetivar as suas práticas pode ser observada pela posição que estes ocupam no seu “campo” de atuação. Todo campo delimitaria um espaço de luta pela definição dos princípios legítimos de divisão do campo. Um agente ou uma instituição faria parte de um campo na medida em que sofresse os seus efeitos ou os produzisse. Segundo Silva Júnior (2020), ao desenvolver o conceito de campo, Bourdieu (1996) o teria feito por discordar da ideia de que as sociedades avançadas seriam formadas por um cosmo unificado. O autor as via como entidades diferenciadas, parcialmente totalizadas, compostas por um conjunto de campos, os quais seriam caracterizados por marcadores sociais próprios, com vestimentas, falas, costumes e comportamentos particulares. Segundo Costa (2004), o conceito de campo de Bourdieu remeteria à ideia de um sistema no qual as instituições e os agentes, assim como seus atos e discursos, adquiririam sentido, apenas relacionalmente, através do jogo das oposições e das distinções. Como destaca Silva Júnior (2020), as relações de poder entre os agentes seriam determinadas pela forma como os dispositivos de enunciação tornar-se-iam reconhecidos e consumidos neste campo de forças, no qual o posicionamento dos agentes sociais não seria estático.

 

A concepção de regra, estratégia e jogo aplicada à noção de ‘família’, em Bourdieu e Lévi-Strauss

O conteúdo agrupado pelo Iramuteq na Classe 3 fazia referência, basicamente, à interpretação realizada por Ferreira (2006) quanto à contraposição das concepções de “regra” e “estratégia” em Lévi-Strauss e Bourdieu. Segundo a interpretação que este autor faz de Bourdieu, a localização dos agentes em um campo delimitado dentro do espaço social propiciaria a eles a socialização de regras, normas, valores e práticas, exigindo deles, no entanto, habilidades para nele se situarem. De acordo com o autor, Bourdieu faz uma crítica ao estruturalismo levistraussiano, no que tange à força inconteste que seria dada à “regra”. Conforme a interpretação de Ferreira, a estratégia e a regra para Lévi-Strauss caracterizariam escolhas conscientes, enquanto para Bourdieu estas funcionariam aquém da consciência e não obedeceriam de forma cega às regras. Bourdieu (1996) teria substituído a noção de “regra” por “estratégia”, num sentido análogo ao que os esportistas chamam de “sentido do jogo”. A “estratégia” funcionaria como um “domínio prático” da lógica ou da necessidade imanente em um jogo. Seria adquirida pela experiência de jogo, na qual se internalizaria o sentido do jogo. Consoante a avaliação de Ferreira (2006), haveria não uma separação radical, mas, antes, uma complementação da concepção de regra de Lévi-Strauss à concepção de estratégia de Bourdieu.

Ferreira (2006) traz a concepção de escolha matrimonial a fim de ilustrar a concepção de estratégia proposta por Bourdieu. O bom jogador levaria em conta, em cada escolha matrimonial, o conjunto das propriedades da estrutura a ser reproduzida. O verdadeiro sujeito das estratégias matrimoniais, no contexto de um campesinato tradicional, seria a manutenção das alianças e a terra. Neste campo com valoração patrimonial, os camponeses operariam estratégias matrimoniais a partir de um senso prático de parentesco, mas cujo sentido do jogo não seria exatamente idêntico em lugares diferentes. No contexto estudado por Bourdieu, os herdeiros ricos se casavam regularmente com caçulas ricas, mas isto não significaria afirmar que esta fosse a regra para os herdeiros ricos. Enquanto para Lévi-Strauss o celibato marginalizaria o indivíduo, pois este não teria lugar na teoria da aliança, para Bourdieu o celibatário seria uma peça importante do jogo para a manutenção da herança, do patrimônio-terra (BOURDIEU, 2006).

A estratégia matrimonial funcionaria como um jogo social marcado pela regularidade das práticas, mas cujo conhecimento do campo permitiria aos jogadores adotar estratégias de ação típicas de um conhecedor do funcionamento da unidade doméstica como campo. Mas as estratégias engendradas pelos camponeses revelariam o seu capital cultural e o seu poder simbólico de manusear cartas, jogando-as estrategicamente no tabuleiro, que são os valores camponeses. As estratégias matrimoniais nada teriam a ver com um camponês classe-objeto, mas agente, que lidaria com segredos relativos à sua sexualidade, inclusive, em termos de relações extraconjugais.

 

O corpo camponês no ‘texto brasileiro’ e em Bourdieu

O conteúdo apresentado neste tópico foi agrupado pelo Iramuteq na Classe 5, mas em função de uma organização mais didática e concatenada do texto, ele segue em sequência às interpretações anteriormente apresentadas sobre a concepção de estratégia matrimonial de Bourdieu. Esta interpretação se fundamenta, novamente, na discussão estabelecida por Ferreira (2006). O autor denomina de “texto brasileiro” as concepções de “corpo camponês” e “família camponesa” formuladas pela sociologia e antropologia rural brasileira. A “persona do camponês” o transformaria em objeto científico por parte dos sociólogos e dos antropólogos que não se atentam para as contradições envoltas no homem do campo e em seu corpo.

Ferreira (2006) se utiliza, justamente, da concepção de “família” e “corpo camponês” para interpretar tais contradições e o caráter estratégico das ações dos camponeses para lidar com elas. Para ele, o texto brasileiro trataria o “ser camponês” como “classe objeto”, se esquecendo das contradições provenientes das práticas corpóreas e incorpóreas do homem do campo. O “ser camponês” seria legitimado por uma identidade cultural que retiraria dele as suas pulsões e vibrações. Segundo o autor, o texto brasileiro teria diluído o corpo do camponês na moralidade. De acordo com Ferreira (2006), Bourdieu teria concebido um “camponês agente” e não agido. O autor contrapõe a perspectiva do texto brasileiro que analisa o corpo do camponês sempre ligado à reprodução, com a perspectiva de Bourdieu (1996) de um homem do campo com subjetividade, contraditório, dúbio, estratégico. Já o texto brasileiro sobre o rural teria a reciprocidade como engrenagem. A reciprocidade organizaria os arranjos parentais como troca obrigatória.

Desta forma, a reciprocidade se transformaria em um ideário mutilador. Conforme o autor, o texto brasileiro apresentaria resquícios de um ideário cristão em que o prazer seria extirpado em função da reprodução da espécie. Para Ferreira (2006), as sexualidades camponesas não podem ser concebidas como relações “troquistas”, marcadas pela ideia de retribuição. Os encontros noturnos no meio da caatinga nada mais seriam que dádivas sem contraprestação, afastando-se da concepção de dádiva do texto brasileiro, que a conceberia como relações de troca quase que exclusivamente alicerçadas no parentesco.

Ainda de acordo com Ferreira (2006), o “dar, receber, retribuir” seriam onipresentes e onipotentes no texto brasileiro. Seria como se nas ambiências rurais tudo pudesse ser passível de retribuição. A sexualidade seria analisada em função da herança, do parentesco, do compadrio. Para o autor, essa perspectiva do texto brasileiro se restringiria ao círculo referente à reprodução da ordem social calcada na concepção de família. Ancorado na noção de família de Bourdieu (1996), ele ressalta o seu caráter de construção social arbitrária, que a situa no polo do natural e do universal. A família apareceria como a mais natural das categorias sociais. A dominação masculina orientaria a família em direção à lógica do corpo heterossexual e “supostamente” monogâmico (BOURDIEU, 1999). Uma das particularidades dos dominantes seria a de possuírem famílias extensas. Os grandes teriam famílias grandes, fortemente integradas e unidas não apenas pela afinidade do habitus, mas, também, pela solidariedade dos interesses.

A família em sua definição legítima seria um privilégio instituído como norma universal. Privilégio que implica ser como se deve dentro da norma para obter um lucro simbólico da normalidade. A noção de casa passaria a ser importante para Bourdieu (1996) porque seria nela que se expressaria a preocupação de perpetuar os bens materiais. A família estaria destinada a fornecer o modelo de todos os corpos sociais. Funcionaria como uma ficção social realizada, um princípio coletivo de construção da realidade coletiva. Ela estaria apoiada em um conjunto de pressupostos cognitivos e de prescrições normativas que estabelecera a maneira correta de viver as relações domésticas, se empenhando em um trabalho de perpetuação das fronteiras. Teria um caráter transcendente, pois sob forma objetivada estaria presente em todos. A família transcenderia seus membros, se constituindo em uma espécie de personagem transpessoal dotada de uma vida, de um espírito coletivo e de uma visão específica do mundo. A família como um conceito classificatório seria ao mesmo tempo uma descrição e uma prescrição. Esse princípio de construção seria ele próprio socialmente construído, atuando como um princípio comum de visão e de divisão.

 

Procedimentos metodológicos adotados nos estudos com fundamentação teórica bourdiuesiana

Neste tópico, o Iramuteq agrupou os segmentos de textos relativos aos procedimentos metodológicos adotados nas dissertações e teses analisadas. Scartezini (2011), ao analisar a perspectiva de Bourdieu acerca da concepção metodológica ideal para ser adotada em uma pesquisa científica, destaca que para o autor não haveria um estabelecimento antecipado de procedimento, mas, antes, seria em razão do “objeto de estudo”, em questão, que se estabeleceria a coerência da construção teórica e metodológica a ele relacionada. Assim, segundo destaca a autora, seria errôneo preestabelecer algum método que se encaixasse a priori em relação a um determinado objeto (SCARTEZINI, 2011, p. 29-30).

Entretanto, de acordo com Scartezini, Bourdieu destacava como ponto importante para o estabelecimento dos procedimentos metodológicos adotados por um determinado estudo, se considerar o princípio da não consciência. Ou seja, seria fundamental para Bourdieu “a apreensão do fenômeno cultural de maneira dependente do sistema das relações históricas e sociais no qual ele está inserido” (SCARTEZINI, 2011, p. 29-30). Desta forma, ele questionaria a psicologia social que conferiria às representações subjetivas dos indivíduos grande importância para se estudar a sociedade, ressaltando a importância de contextualizar as relações objetivas nas quais os indivíduos estão envolvidos. O princípio da não consciência imporia ao pesquisador que ele construísse o sistema de relações objetivas, contextualizando o ambiente econômico e morfológico, no qual os agentes sociais analisados se encontrariam inseridos. Neste sentido, Scartezini (2011, p. 31), faz uma citação de Bourdieu, Chamboredon e Passeron:

Não é a descrição das atitudes, opiniões e aspirações individuais que tem a possibilidade de proporcionar o princípio explicativo do funcionamento de uma organização, mas a apreensão da lógica objetiva da organização é que conduz ao princípio capaz de explicar, por acréscimo, as atitudes, opiniões e aspirações. (1999, p. 29)

Como destaca Scartezini (2011), Bourdieu tem na noção de campo, uma construção que vai orientar as opções práticas da pesquisa. O objeto de estudo estaria imerso em um conjunto de relações das quais ele retiraria o essencial das suas propriedades. A noção de campo imporia que se relacionasse o objeto de estudo com aquilo que há ao seu redor, com as condições objetivas de sua existência, pois ele nada é fora de sua interação com o todo:

É muito mais interessante estudar extensivamente o conjunto de elementos pertinentes e relacionados ao objeto do que estudar intensamente uma pequena parte deste objeto. Neste sentido coloca-se a importância de determinar a extensão do campo do objeto de pesquisa. O limite de um campo diz respeito aos efeitos que dele advêm. (SCARTEZINI, 2011, p. 32)

Assim, o objeto precisaria ser contextualizado, levando-se em conta que entre o objeto e os acontecimentos sociais haveria um universo intermediário, o campo, onde estariam inseridos os agentes e as instituições que produzem.

A estrutura constitutiva do espaço do campo comandaria a forma das relações visíveis de interação e o próprio conteúdo destas. Os campos sociais seriam possuidores de leis relativamente autônomas. As leis que regem a sociedade como um todo seriam “filtradas” pelo campo específico, que formularia suas próprias normas de conduta. Somente se conseguiria compreender o discurso e as proposições de um agente considerando-se a posição que ele ocupa nesse campo, situando “de onde ele fala”. (SCARTEZINI, 2011, p. 33-34)

Assim, circunscrever o objeto em um campo pressupõe levar em conta a relativa autonomia que este possui de filtrar as orientações sociais mais gerais, considerando-se as determinações próprias do campo nas quais as disposições dos agentes sociais para agir são gestadas (SCARTEZINI, 2011, p. 36). A partir da exposição destas considerações metodológicas presentes na obra de Bourdieu, apresentamos a seguir os procedimentos metodológicos adotados nas dissertações e teses selecionadas neste artigo, para ilustrar a aplicação teórica e metodológica de Bourdieu aos estudos rurais brasileiros, no período posterior a sua morte.

Costa (2004), em “Sob o fogo cruzado das campanhas: ambientalismo, comunicação e agricultura familiar na prevenção ao fogo acidental na Amazônia”, teve como objeto de estudo as campanhas de prevenção ao fogo acidental (no âmbito da produção, circulação e recepção das informações) implementadas por órgãos governamentais e não governamentais, principalmente a partir de 1998. Quatro projetos e suas respectivas campanhas foram selecionados para compor o escopo de análise. As campanhas escolhidas para estudo apresentavam muitos elementos convergentes, quer os objetivos, os materiais produzidos ou as áreas geográficas trabalhadas. No âmbito das campanhas, foi analisado como se estabeleceram as relações de poder entre os agentes de instituições ambientais e os agricultores familiares e suas instituições de representação (como os sindicatos de trabalhadores rurais e as associações), que do ponto de vista da recepção, buscaram reconstruir com diferentes sentidos os discursos das campanhas e marcar seu lugar na disputa simbólica.

A pesquisadora analisou: a) os documentos produzidos pelas instituições proponentes dos projetos e de suas respectivas campanhas (como relatórios, avaliações de consultorias externas e atas de reuniões); b) os materiais produzidos pelos projetos voltados para o público externo (folders, livretos e publicações de divulgação dos projetos e suas respectivas campanhas); c) o “material de apoio” produzido e distribuído/veiculado para os destinatários das campanhas (cartilhas, cartazes, calendários, outdoors, bonés, camisetas, peças radiofônicas e peças em vídeo); e d) as entrevistas realizadas com os agentes sociais envolvidos nas esferas da produção, circulação e recepção das informações. Como fontes secundárias foram utilizadas matérias publicadas em jornais e revistas referentes à temática principal da pesquisa, isto é, a ocorrência de fogo acidental na Amazônia, particularmente entre 1988 e 2003, período no qual o assunto foi registrado pela imprensa com mais frequência.

Ferreira, em “Os afectos mal-ditos: o indizível das sexualidades camponesas”, questiona a “naturalização discursiva” do “texto brasileiro” ao discorrer sobre o corpo e a sexualidade camponesa. Defende como metodologia adequada para o seu estudo, o viver e não o interpretar o corpo. O autor problematiza a formal observação – participante, defendendo um experimento-vida. Parte da premissa de que há indizíveis segredos na sexualidade de um casal camponês. Para tanto, utiliza-se do seu “experimento-vida” para apresentar o seu local de estudo, descrevendo-o como:

Povoado endogâmico, católico, o pequeno distrito, distante 20 km da sede do município e 423 km de Fortaleza, não tem pousadas, bancos, hospitais, delegacias etc., apenas uma única praça, um único mercado público, um único motel, duas escolas e aproximadamente oitocentas casas, circundadas por roças por quase todos os lados e cortado, lateralmente, pela BR-230, esta conhecida popularmente por Transamazônica. Os rumores são um dos passatempos prediletos dos habitantes do lugar. Todos os dias ouvem-se boatos e histórias dúbias sobre as condutas dos goiabeirenses. As fofocas tendem a invadir as casas, sacodem o oficial e o oficioso, movimentam os acontecimentos, inauguram a ambiguidade de gestos e ritmos. (2006, Introdução, p. VIII)

Através, portanto, de uma etnografia-experimento-vivo, a dissertação buscou demonstrar como a literatura sobre sociedades camponesas no Brasil tem se mantido fiel a uma identidade camponesa, fixa, naturalizada, limitada, reacionária. Por sua vez, Lisboa (2013), em “A construção social do mercado de acácia-negra no estado do Rio Grande do Sul”, procurou compreender os fatores que concorreram e que condicionaram o formato da estrutura do mercado da acácia-negra no Rio Grande do Sul, bem como entender os distintos papéis dos agentes e das instituições na construção social deste mercado. Para isto selecionou a teoria dos campos e dos capitais de Bourdieu, por entender que a ação dos agentes sociais seria condicionada pela estrutura existente e esta pelos habitus dos agentes. A metodologia utilizada para a realização deste trabalho foi o estudo de caso, sendo que o mercado da acácia-negra foi considerado a atividade a ser analisada. Para a obtenção dos dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, em dez municípios do estado do Rio Grande do Sul,com as principais empresas do setor, com produtores florestais que atuam de distintas formas e com estratégias diferentes, e coma empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural  (Ater). Como fonte secundária, foram utilizados dados do IBGE, da Emater/Ascared e diversos órgãos ligados ao setor.

Barros (2014), em “A aposentadoria rural e as mudanças nos modos de vida dos idosos que vivem no campo”, teve como objetivo, ao mesmo tempo, descrever as características do modo de vida das famílias com idosos aposentados que viviam no campo e explicar as mudanças na sua maneira de viver, a partir da incorporação do habitus previdenciário. A pesquisa caracterizou-se pela abordagem quantitativa e qualitativa. Foram levantados dados que situavam o contexto no qual foi realizada a pesquisa, tais como: dados demográficos (população rural/urbano ao longo das décadas e a naturalidade dos entrevistados), obtidos a partir dos Censos Demográficos do IBGE e das pesquisas da Fundação João Pinheiro; dados econômicos (Produto Interno Bruto dos municípios); e dados relativos ao desenvolvimento humano dos municípios pesquisados. Para a definição da amostra representativa da população buscou-se identificar os idosos que viviam no campo e recebiam a aposentadoria rural. Para tanto, foram utilizados os dados cadastrais fornecidos pelo Programa de Saúde da Família (PSF) da Secretaria de Saúde dos municípios de Piranga e São Miguel do Anta, localizados na Zona da Mata Mineira. Para coletar os dados utilizou-se a entrevista semiestruturada, com perguntas fechadas e abertas. Depois da extração dos dados e da organização das categorias, estes foram inseridos no Excel do software da Microsoft Office a fim de transportá-los para o programa estatístico Statistical Package for Social Sciences – SPSS, versão 20.0, para a realização da Análise Exploratória de Dados – AED, bem como para a realização dos demais testes estatísticos.

Por fim, Silva Júnior (2020), em “As estruturas simbólicas e as relações de poder que perpassam a juventude em comunidades rurais”, procurou contribuir com os avanços em curso na literatura sobre a juventude rural buscando relacionar a categoria com as relações de poder simbólico, na tentativa de compreender como as relações de poder e dominação simbólica estão presentes na vida dos jovens rurais. O referido autor utilizou a concepção teórica de poder, habitus e campo de Bourdieu e, em termos metodológicos, o Discurso do Sujeito Coletivo. Esta técnica qualitativa possibilita construir um discurso coletivo com base em discursos individuais de uma mesma categoria ou grupo social. Os discursos coletivos se relacionam com os valores, conhecimentos e práticas que direcionam comportamentos e relações sociais, que se expressam por meio de sentimentos, atitudes, palavras e expressões.

 

Considerações finais

Diante da expressividade do uso da teoria de Bourdieu para os estudos rurais brasileiros, é importante se observar com mais rigor a conexão teórico-metodológica proposta pelo autor. Consideramos, portanto, indispensável perceber na aplicação da teoria de Bourdieu aos estudos rurais brasileiros, a centralidade do “princípio da não consciência”, da noção de campo e habitus e suas derivações empíricas. Neste sentido, seria fundamental constatar que para Bourdieu as ações dos agentes sociais se devem mais ao senso prático do que ao cálculo racional. As pessoas não agiriam desassociadas do seu meio social. Este se depositaria nelas, as constrangeriam, solicitando-lhes determinados comportamentos. Este processo não seria consciente, mas tão pouco significaria uma obediência cega às regras. O agente a partir do seu conhecimento prático do campo no qual se situa e “joga”, atualizaria, de forma contínua, as referências apreendidas, em face dos desafios presentes. Portanto, o agente não poderia ser tomado de forma autônoma do seu meio, dado que este agiria sobre ele.

A análise das dissertações e teses apresentadas neste artigo permitiu ilustrar a força explicativa da “teoria da prática” de Bourdieu. A perspectiva de “processos de transformação” que se constroem mediante a tecitura social é o legado maior da teoria de Bourdieu. Abre-se a partir dele a possibilidade de se pensar, por exemplo, as novas predisposições para agir e as novas práticas advindas da universalização do recebimento da aposentadoria rural a partir de 1992. A “renda certeira” decorrente do recebimento do benefício alonga a percepção do tempo, que deixa de ser estreito, presente, imediato e conquista o futuro, o planejamento. Permite a institucionalização da prática do planejamento de projetos a médio e longo prazo. As práticas de consumo e de deslocamento campo-cidade se intensificam e diversificam as suas motivações. Observa-se a coletivização de novas disposições para agir que guiam novas práticas, as quais absorvem padrões urbanos de moradia, consumo, educação, dentre outros, em diferentes campos da vida social das famílias com idosos aposentados.

Também a análise dos constrangimentos sociais enfrentados pelos jovens que vivem no campo encontra na concepção de Bourdieu um forte suporte teórico para a compreensão das barreiras culturais, simbólicas e materiais que enfrentam no processo de integração subordinada à sociedade urbana globalizada. A teoria de Bourdieu possibilita compreender a violência simbólica que experienciam na busca que manifestam de “viver a cidade”, sobretudo, no campo da educação, no qual a subordinação cultural se explicita com maior evidência. O reconhecimento de que as sociedades modernas não são um todo unificado, mas são recortadas por campos, permitiu aos pesquisadores que se amparam na teoria de Bourdieu perceber os enfrentamentos simbólicos travados entre agentes e instituições em um espaço social delimitado.

O campo de forças evidenciado a partir das campanhas para o controle do fogo na Amazônia é um exemplo disto. As visões de mundo de instituições e agentes do campo ambiental e instituições e agentes do campo da agricultura familiar expõem os desafios para a formulação de discursos, de fato, comunicativos. A partir da noção de campo de Bourdieu, constatamos que o fracasso das campanhas de combate ao fogo na Amazônia se vinculava muito mais à imagem pressuposta pelo campo ambiental em relação ao campo da agricultura familiar do que campanhas que conhecessem as disposições para agir e as práticas próprias do campo da agricultura familiar. Situação semelhante mostrou o estudo sobre a formação do mercado de acácias negras no estado do Rio Grande do Sul, quando constatou que o não cumprimento das leis ambientais e trabalhistas se constituíam em vantagens competitivas dos silvicultores e carvoeiros familiares neste campo.

A força e a atualidade da teoria de Bourdieu podem ser observadas, por fim, no estudo da sexualidade camponesa, que ao tratá-la não como uma relação troquista, marcada pela lógica do ciclo da dádiva, do “dar, receber, retribuir”, escancara a noção de jogo e de estratégia de camponeses, que tal como citadinos, também vivem o ilícito em seus casamentos. A concepção do corpo camponês como habitado por desejos indizíveis movimenta a análise da noção de “família” e “casa”, como instituições hegemônicas perante as quais as estratégias de celibato são utilizadas para a aliança com a terra, mas, também, driblada por jogadores que conhecem as práticas reguladas pela norma hegemônica e com ela convivem sem se anularem. Enfim, o campo de aplicabilidade da teoria de Bourdieu parece ter um legado de desdobramentos como toda boa teoria.

 

 

Referências

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Como citar

FIÚZA, Ana Louise de Carvalho. A aplicação da teoria de Bourdieu aos estudos rurais no Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e2230212, 7 dez. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_st06.

 

 

Ana Louise de Carvalho Fiúza

Professora Titular e pesquisadora da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutora em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).  Pós-doutora no Centro de Investigações em Ciências Sociais da Universidade do Minho, Portugal. Coordenadora do Grupo de Estudos Rurais: Agriculturas e Ruralidades (GERAR).

louisefiuza@ufv.br
https://orcid.org/0000-0002-3898-1583
http://lattes.cnpq.br/6980818349328612



                                   

 

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[1] Professora Titular e pesquisadora da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutora em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).  Pós-doutora no Centro de Investigações em Ciências Sociais da Universidade do Minho, Portugal. Coordenadora do Grupo de Estudos Rurais: Agriculturas e Ruralidades (GERAR). E-mail: louisefiuza@ufv.br.