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v. 30, n. 2, julho a dezembro de 2022 (publicação contínua), e2230211


Recebido: 8.jul.2022   •   Aceito: 21.out.2022   •   Publicado: 7.dez.2022

Seção Temática / Artigo original /  Revisão por pares duplo-cego / Acesso aberto




Seção Temática
Os usos da teoria de Pierre Bourdieu nos estudos rurais brasileiros

 

Bourdieu no campo: habitus, representações e ‘di-visão’ na luta pela terra no Brasil

Bourdieu in the field: habitus, representations and ‘di-vision’ in the struggle for land in Brazil


orcid_id.png  Sérgio Sauer[1]   



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_st05


 

Resumo: Este texto é um retorno à tese e às pesquisas realizadas em assentamentos e acampamentos no estado de Goiás, no início de 2000. O objetivo foi entender por que as pessoas lutam por terra ou o “sentido da terra”, analisando práticas sociais, representações, re-apropriação de valores, ou seja, a construção de habitus na luta pela terra, em meio às transformações sociais, econômicas, políticas e culturais da modernidade ocidental. Com base em noções de Pierre Bourdieu, as reflexões desvelaram habitus, representações e práticas sociais, forjadas nos acampamentos e assentamentos. A participação nas lutas e a terra (sonhada ou conquistada) produzem novas representações, ressignificações da identidade social, constituindo processos sociais e agentes na “recriação” do mundo e “reinvenção” da sociedade no campo brasileiro.

Palavras-chave: habitus; terra; campo; práticas sociais; representações.

 

Abstract: This text returns to the thesis and research carried out in settlements and encampments in the state of Goiás in the early 2000s to understand why people struggle for land or “the meaning of land,” analyzing social practices, representations, and re-appropriation of values and the construction of habitus in the struggle for land, within the context of social, economic, political, and cultural transformations of western modernity. These reflections were founded in the ideas advanced by Pierre Bourdieu, and revealed habitus, representations, and social practices forged in these encampments and settlements. Participation in struggles and the land (whether dreamed about or attained) produce new representations and resignifications of social identity, constituting social processes and agents to “recreate” the world and “reinvent” society in the Brazilian countryside.

Keywords: habitus; land; countryside; social practices; representation.

 

 

Introdução

 Segundo Bourdieu (1996), as ciências sociais lidam com realidades nomeadas e classificadas, portanto, devem estudar as operações sociais de nomeação, interação e exteriorização dos sistemas incorporados, frutos de processos e lutas pelo poder de classificar. A interpretação da realidade inclui também as representações dessa realidade (BOURDIEU, 1998a), portanto, as ciências sociais precisam examinar “[...] a parte que cabe às palavras na construção das coisas sociais” (BOURDIEU, 1996, p. 81), estudando práticas sociais e ‘reconstruções’ históricas e da própria realidade, a partir das vivências concretas, das perspectivas e dos sonhos dos agentes sociais.

Buscando entender por que as pessoas lutam por terra, a pesquisa foi baseada na pergunta: as práticas sociais possibilitam releituras e re-apropriação de noções de espacialidade e territorialidade na modernidade, criando perspectivas de vida que se diferenciam do “modo de vida moderno”? Com base em noções de Pierre Bourdieu (1996, 1998a, 1998b) – em diálogo com a noção de representações de Henri Lefebvre (1983, 1991a, 1991b) –, as reflexões sobre a luta pela terra em Goiás, no início dos anos 2000, procurou desvelar representações e habitus, forjados nas práticas sociais (SAUER, 2002).

Procurando reduzir ao máximo o que Bourdieu (1997) denominou de “violência simbólica” nos processos de interação e investigação social, a pesquisa de campo foi um diálogo, ou um exercício intelectual baseado em uma “[...] escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não intervenção da entrevista não dirigida, quanto do dirigismo do questionário” (BOURDIEU, 1997, p. 695). Ainda, procurando amenizar diferenças no capital simbólico, a interação se deu por autosseleção, ou seja, as pessoas fizeram escolhas, criando familiaridade, proximidade social, interação e uma “permutabilidade na comunicação” (BOURDIEU, 1997). Os diálogos com mais de oitenta (80) pessoas em dois acampamentos (Palmeira, em Juçara, e Dom Helder, em Itaguarí) e em dois assentamentos (Chê, em Itaberaí, e São Carlos, município de Goiás) possibilitaram entender práticas sociais, mas especialmente representações e habitus que tornam agentes, que (re)constroem o mundo (GIDDENS, 1995) e dão sentido às lutas e à própria existência como sujeitos históricos. A participação nas lutas, desejos e sonhos e o acesso a terra produzem representações nas pessoas acampadas e assentadas, provocando a ressignificação da identidade social e a reconstrução de agentes, baseadas na conquista do direito ao trabalho e no significado (simbólico) da terra e da produção.

A luta pela terra é, portanto, parte de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, mas em perspectivas diferentes da hegemônica modernidade ocidental, como a não separação entre tempo e espaço (GIDDENS, 1991) e construção social de territórios (FERNANDES; WELCH, 2019). A pesquisa nos acampamentos e assentamentos possibilitou entender essa luta como processos de recriação do mundo e reinvenção da sociedade (MARTINS, 2000). A luta e a conquista da terra não representam um retorno ao passado para preservar “resquícios bucólicos” ou de construir a “utopia da comunidade agrária” (CARVALHO, 2002), mas a superação de uma “ruralidade de espaços vazios” (WANDERLEY, 2001). Como um processo moderno de constituição de agentes sociais, abre perspectivas para novas bases produtivas, culturais e organizacionais no meio rural, gestando novos territórios e ruralidades (FERNANDES; WELCH, 2019).

 

Exercício do “poder de di-visão”: acampamentos e assentamentos como lugares e unidades de análise

No processo de construção do universo de pesquisa, a noção bourdiana de “poder de di-visão”, em suas reflexões sobre a constituição de região, ou espaço geograficamente estabelecidos, foi fundamental na compreensão teórica dos assentamentos e acampamentos como territórios geográfica e sociologicamente delimitados e lugares de agentes sociais ou de sujeitos históricos.

Especialmente entre críticos dos programas governamentais de reforma agrária à época (GUANZIROLI, 1994; FRANCO, 1996; CARDOSO, 1997; GRAZIANO NETO, 1998; TEÓFILO, 2000; JUNGMANN, 2000),[2] a tendência era, política e teoricamente, ‘agrupar’ as famílias assentadas como ‘pequena agricultura’ ou ao então emergente conceito de agricultura familiar. Defendendo a necessidade de manter os assentamentos como “objetos de estudos peculiares”, Leite (2000, p. 40) afirma que “[...] de um ponto de vista mais estritamente sociológico, identificá-los, por suas características formais, à pequena produção, implica perder de vista os processos de conflito, geração de utopias, peculiaridades da ação governamental etc., que os caracterizam”.

O assentamento é um espaço geograficamente delimitado, que abarca um grupo de famílias beneficiadas pelos programas governamentais de reforma agrária (FERNANDES; WELCH, 2019). A constituição do projeto de assentamento é resultado de um decreto administrativo, que limita o território, seleciona as famílias, cria infraestrutura. É artificial ou externamente constituído, formalizando novo espaço geográfico que forja uma nova organização social (CARVALHO, 1999). Além da definição burocrática-estatal, no entanto, a criação do assentamento é produto de conflitos, lutas e demandas sociais pelo direito de acesso a terra (SAUER, 2008b). A mobilização e organização sociais, enfrentamentos com os poderes políticos, disputas com o latifúndio e com o Estado, questionamentos à propriedade caracterizam o que Bourdieu (1998a) definiu como “as lutas pelo poder de di-visão”, poder capaz de estabelecer territórios, delimitar regiões, criar fronteiras, estabelecer limites geográficos, reconhecidos por outros agentes.[3]

O estabelecimento de fronteiras – como uma definição legítima e resultado das lutas pelo “poder de ver e fazer crer” – é “[...] produto de uma divisão a que se atribuirá maior ou menor fundamento na ‘realidade’” (BOURDIEU, 1998a, p. 114). Essa fronteira produz e é resultado de diferenças culturais (BOURDIEU, 1998a), sociais e políticas, dando características próprias a um território, aos projetos de assentamentos e acampamentos. Esse poder estabelece divisões do mundo social e gera identidades (BOURDIEU, 1996), permitindo tratar os assentamentos, do ponto de vista sociológico, como unidade de análise, território peculiar (FERNANDES, WELCH, 2019); uma “di-visão” ou classificação que estabelece um olhar sobre a realidade social, que não significa isolamento das relações sociais, econômicas e políticas locais e regionais (LEITE, 2000).

A luta social pela terra e a criação de assentamentos geram nova organização social e política. Segundo Martins (2000, p. 46), os assentamentos são “uma verdadeira reinvenção da sociedade”, como “uma clara reação aos efeitos perversos do desenvolvimento excludente e da própria modernidade”.[4] Nessa mesma perspectiva, Carvalho (1999, p. 7) tratou os assentamentos como “um processo social inteiramente novo”, pois nesse território rural, “...plasmar-se-á uma nova organização social, um microcosmo social [...]. Esse espaço físico transforma-se, mais uma vez na sua história, num espaço econômico, político e social”.

Nos debates e formulações sobre a luta pela terra e pela reforma agrária, os assentamentos têm sido tratados como espaços peculiares e diferenciados (MEDEIROS et al., 1994; PALMEIRA; LEITE, 1998; SILVA, 1998; CARVALHO, 1999; LEITE, 2000). Os acampamentos não têm recebido, no entanto, o mesmo tratamento teórico, sendo considerados apenas como transição ou passagem (TURATTI, 2001), uma simples etapa ou fase anterior ao acesso a terra (PEREIRA, 2000), ou ainda uma estratégia política de acúmulo de forças nas lutas pela posse da terra (CARVALHO, 1999; BORRAS; EDELMAN; KAY, 2008). O acampamento é visto, portanto, como um vir-a-ser, que combina o “[...] ethos do tempo pregresso e convive com as transformações preparatórias rumo ao tempo futuro” (TURATTI, 2001, p. 23).

Tomando o acampamento como um momento intersticial de ressignificação de valores, Turatti (2001) afirma que é um lugar de indefinição identitária, expressão da situação de liminaridade e transitoriedade. Apesar de reconhecer como um lugar de construção de sociabilidade, Turatti (2001, p. 24) afirma que os acampamentos, provisoriamente, “[...] fazem uso da condição de sem-terra, contentando-se em reconhecerem-se como parte de um grupo, estranho aos seus valores subjetivos, mas plenamente aceitável frente ao estado de marginalidade em que vivem”. O acampamento configuraria uma realidade de liminaridade, mais marcada por ausências do que por elementos de identificação positiva (TURATTI, 2001), portanto, seria um lugar ausente de identidade ou um “não lugar” (AUGÉ, 1994, 1997).

Os acampamentos, assim como os assentamentos, devem ser compreendidos como uma “encruzilhada social” (CARVALHO, 1999, p. 10), fundamental nos processos de luta pela terra. Martins (2000, p. 47) entende como espaços de “sociabilidade instável”, pois “[...] nos acampamentos, na fase da luta pela terra, acabam se ressocializando por força do convívio e dos enfrentamentos conjuntos com estranhos. Há aí, pois, um alargamento de horizontes e de convivência”, gestando representações e habitus (BOURDIEU, 1998b). O acampamento é o lugar onde diferentes biografias – “migrantes inveterados” (TURATTI, 2001), ou “nômades sociais e geográficos” (CARVALHO, 1999) – se encontram e iniciam processos de interação e identidade sociais, os quais ganham diferentes contornos nos assentamentos. Os acampamentos se transformaram em lugares de construção da identidade da pessoa sem-terra (agentes), forjando representações e espacializando habitus (BOURDIEU, 1998a).[5]

Martins (2000, p. 47) afirma que o convívio e os enfrentamentos conjuntos criam uma situação de “sociabilidade instável”, mas também provocam uma abertura para “o de fora”. Isso permite processos de ressocialização que, ao mesmo tempo, alargam horizontes de convivência, mas também abrem espaço para um retorno “[...] às estruturas fundamentais do familismo e da vizinhança rural” (MARTINS, 2000, p. 47). Esse processo permite uma recriação, uma reinvenção da sociedade e do mundo como resultado das experiências, vivência e representações nas lutas e na conquista da terra.

Estranhamentos, disputas, consensos e dissensos, formas e motivos de coesão social, construção de identidades são constitutivos das “encruzilhadas sociais” e dos lugares. Como lugares de sociabilidade e identidades, acampamentos e assentamentos não se configuram apenas como passagem, marcada pela ausência de significação (TURATTI, 2001). As relações sociais, a construção de identidade, a produção simbólica de ‘sem-terra’ não são resultados apenas de “relações de sentido, mas também de relações de poder” (DOMINGOS SOBRINHO, 2000, p. 118).

Segundo Bourdieu (1996), a construção da realidade social, inclusive das representações e interpretações dessa realidade, é fruto de lutas por classificação. Essa construção impõe ou resulta em definições, divisões, identidades, interpretações e representações ou habitus. Segundo Bourdieu (1996, p. 108):

O móvel de todas essas lutas é o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de di-visão que, tão logo se impõem ao conjunto de um grupo, estabelecem o sentido e o consenso sobre o sentido, em particular sobre a identidade e a unidade do grupo, que está na raiz da realidade da unidade e da identidade do grupo. (ênfases adicionadas)

Esse poder de di-visão – ou seja, o exercício do “poder de fazer ver”, como ação política de agentes históricos – pressupõe definições geográficas, limites espaciais e/ou estabelecimento de fronteiras (limites e divisas).[6] Essa “di-visão” estabelece interrupções geográficas, limites espaciais, fronteiras, constituindo território intimamente relacionado com o exercício de poder. Caracterizando e dando singularidade ao lugar, define concepções, práticas e representações (BOURDIEU, 1998a, p. 115). Diferente de muitas leituras sociológicas contemporâneas – separação entre espaço e lugar na modernidade (GIDDENS, 1991); constituição de “não lugares” na supermodernidade (AUGÉ, 1994, 1997) –, a luta pela terra recoloca a centralidade da dimensão espacial, localizando e reterritorializando (FERNANDES, 2013) a vida cotidiana e as relações sociais.[7]

A leitura sociológica de Bourdieu (1996, 1998a) permite estabelecer uma diferença interpretativa entre e com base nos lugares. Acampamentos e assentamentos se diferenciam de outros lugares e entre si, sendo a diferença entre a perspectiva de acesso e a posse da terra. Associada à localização geográfica, a posse da terra (e a condição de famílias assentadas) transforma a realidade social, cria lugares, gerando desigualdades espaciais e nas formas de organização, reivindicações e demandas (SAUER, 2002, 2010), constituindo outra socialização (MARTINS, 2000) e localização com significado (BOURDIEU, 1996).

De acordo com Porto (1989), a terra é um valor simbólico, portanto, um espaço geográfico e identitário. O acesso ou a posse da terra possibilitam a invocação da condição de “produtor autônomo, de sujeito liberto” (PORTO, 1989, p. 275), dando novos contornos à identidade social a pessoas e famílias sem-terra. Seja nos acampamentos (espaço de desejo de terra), seja nos assentamentos, “[...a posse d]a terra se apresenta como uma categoria que, intervindo como mediadora do processo de constituição da identidade social [...] revela, ao mesmo tempo que vela, as reais condições sob as quais estes se constituem como sujeitos do conhecimento, sujeitos do processo produtivo e sujeitos políticos” (PORTO, 1989, p. 275).

Consequentemente, a terra não é representada apenas como um meio ou instrumento de trabalho ou de produção (SAUER, 2002, 2010). Lutas, conflitos, representações e habitus forjam práticas sociais e construções simbólicas (SAUER, 2008b), colocando a terra também como um lugar de vida, uma moradia, capaz de acolher e dar sentido à existência.[8] Diferentemente dos processos de deslocamento do espaço do lugar ou da desterritorialização (FERNANDES, 2013; FERNANDES; WELCH, 2019), a terra é representada como um espaço, geograficamente localizado, que possibilita trabalho e moradia, materializando um lugar identitário, relacional e histórico (AUGÉ, 1997).

A luta pela terra, como práticas sociais e processos políticos de agentes, abarca diferentes transformações no meio rural, redirecionando e democratizando a participação e a redefinição identitária (ser agente ou sujeito). Essa luta – além de garantir bem-estar social e melhoria das condições de vida – é impulsionadora de transformações simbólicas e representacionais. Cria novas representações e perspectivas para o mundo rural, permitindo transformações nas relações com a terra e meio ambiente (gestando territórios), com o lugar (processo de reterritorialização) e entre as pessoas (nova sociabilidade), abrindo perspectivas para novas ruralidades (WANDERLEY, 2000).

 

Habitus  e representações: prática social e produção de sentido

Segundo Bourdieu (1998a), a interpretação da realidade passa pela análise dos processos sociais de interação e exteriorização dos sistemas incorporados por grupos e/ou classes. É fundamental incluir na interpretação as representações da realidade, portanto, entender as representações mentais (atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento), as representações “objetais” (emblemas, bandeiras, insígnias e outros objetos simbólicos) e os atos e estratégias que buscam, por meio da construção simbólica, determinar tais representações (BOURDIEU, 1998a). Levar em conta essas representações significa ainda considerar as lutas entre diferentes representações que buscam poder para estabelecer uma determinada visão de mundo (BOURDIEU, 1998a, p. 113) e uma determinada interpretação da realidade.

Durkheim (1978) foi o primeiro a trabalhar com a noção de representação do ponto de vista sociológico, definindo as representações coletivas como categorias de pensamento por meio das quais determinada sociedade elabora e expressa sua realidade. Essas representações coletivas não são dadas a priori e não são universais na consciência, como afirmava Kant, mas surgem vinculadas aos fatos sociais como propriedades mais universais das coisas. Essas representações coletivas transformam-se, elas próprias, em fatos sociais, passíveis de observação, estudo e interpretação (DURKHEIM, 1996). As representações coletivas se constituem, portanto, em “[...] objeto de estudo tanto quanto as estruturas e as instituições: são todas elas maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhes impõe” (DURKHEIM, 1978, p. 88).

Lefebvre (1983, p. 20) critica essas noções de representação coletiva de Durkheim (1978, 1996),[9] pois acabam sendo “[...] impostas de fora ao sujeito e às consciências individuais, existentes como coisas, não são senão um fantasma ou uma pressuposição”. Segundo Lefebvre (1983, p. 20), as representações também “vêm de dentro”, ou seja, são contemporâneas à constituição do sujeito, “[...] tanto na história de cada indivíduo como na gênese do indivíduo na escala social”.

Retomando as representações,[10] Lefebvre (1983, 1991b) recoloca a importância das mediações na construção da realidade social. Segundo ele, as representações se apresentam como mediações, na acepção de Hegel, e se constroem (não como presença nem como ausência; não como observação nem como produção) como objetos do conhecimento, impedindo e possibilitando a presença/ausência da realidade nessas representações (LEFEBVRE, 1983, p. 64). Essas representações não têm o sentido de aparência reificada, mas de fenômeno “socialmente concreto”, por meio da substituição de coisas, produtos, obras, relações. Afirma que, diferente das ideologias, não é possível superar as representações porque sem elas só restam a morte e o nada.[11]

Seguindo a tradição sociológica francesa, Bourdieu (1998a, 1998b) toma os fatos sociais como coisas e representações. Rejeita, no entanto, a teoria da ação como simples reprodução de modelos, recusando-se a tornar o agente social mero “suporte” de estruturas revestidas do poder para determinar outras estruturas. Enfatiza, na análise das relações sociais, que “[...] é preciso conhecer as leis segundo as quais as estruturas tendem a se reproduzir produzindo agentes dotados do sistema de disposições capaz de engendrar práticas adaptadas às estruturas e, portanto, em condições de reproduzir as estruturas” (BOURDIEU, 1998b, p. 296).

Diferentemente da concepção de que os agentes sociais não vivem outra coisa senão suas próprias representações, Bourdieu (1998a) faz uma distinção entre os esquemas geradores das práticas sociais (disposições ou habitus) e as representações que envolvem tais práticas. O mundo social é também representação e vontade, portanto, não é necessário escolher entre a abordagem objetivista (que mede as representações pela realidade) e a subjetivista, “que passa da representação da realidade à realidade da representação” (BOURDIEU, 1998a, p. 118).

Segundo ele, é possível fugir a essa escolha dicotômica tomando a própria realidade como objeto, ou seja, tomando em conta mecanismos e processos que dão a essa “realidade” um caráter de luta permanente para defini-la, inclusive as lutas entre diferentes representações.

Apreender ao mesmo tempo o que é instituído, sem esquecer que se trata somente da resultante, num dado momento, da luta para fazer existir ou “inexistir” o que existe, e as representações, enunciados performativos que pretendem que aconteça aquilo que enunciam, restituir ao mesmo tempo as estruturas objectivas e a relação com estas estruturas, a começar pela pretensão a transformá-las, é munir-se de um meio de explicar mais completamente a “realidade”, logo, de compreender e de prever mais exactamente as potencialidades que ela encerra ou, mais precisamente, as possibilidades que ela oferece às diferentes pretensões subjectivistas. (BOURDIEU, 1998a, p. 118)

Essa perspectiva de “realidade” levou Bourdieu a adotar uma noção de prática social como algo distinto da simples e pura execução de normas sociais coletivas. A prática é resultado de uma interação entre estruturas objetivas e representações – mediadas pelo habitus – como enunciados performativos que buscam tornar realidade o que anunciam (BOURDIEU, 1998a). Essa prática social é resultado também de relações de poder que impõem visões do mundo social, estabelecendo consensos, identidades e unidades (BOURDIEU, 1996).

A adoção da noção de habitus – como uma noção capaz de explicar e mediar as relações entre estruturas objetivas, práticas e representações – permitiu a Bourdieu (1996) manter as capacidades criadoras, ativas e inventivas do agente nas práticas sociais, sem reforçar a ideia de que essas práticas acontecem apenas a partir de registros e mecanismos conscientes dos sujeitos. Segundo Bourdieu:

Os “sujeitos” são, de fato, agentes que atuam e que sabem, dotados de um senso prático [...], de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada. (1997, p. 42)

Na mesma perspectiva das representações coletivas de Durkheim,[12] a noção de habitus de Bourdieu (1998b) relativiza o caráter consciente das ações e práticas, mas não anula o agente social como um operador prático na construção da realidade social. O habitus (como um conjunto de disposições) mantém a noção do agente como operador prático na construção social, mas não na mesma perspectiva da filosofia do sujeito ou da consciência.[13] Esse conjunto de disposições, esse conhecimento, age como um princípio gerador e estruturador de práticas (um modus operandi), possibilitando a realização de tarefas e improvisações objetivamente reguladas e regulares, sem ser uma obediência (consciente) a regras estruturadas.

O princípio unificador e gerador de todas as práticas e, em particular, destas orientações comumente descritas como “escolhas” da “vocação”, e muitas vezes consideradas efeitos da “tomada de consciência”, não é outra coisa senão o habitus, sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação, do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas. (BOURDIEU, 1998b, p. 201s)

Os processos de socialização, especialmente processos de classificação e de divisão, são fundamentais para incorporar princípios, significações, convenções, ações e práticas de um determinado grupo social (MICELI, 1998). É fundamental, portanto, captar o processo pelo qual as estruturas produzem o habitus e as representações, que tenderão a reproduzir essas estruturas, isto é, produzem os agentes dotados de sistemas de disposições capazes de reproduzir o sistema das relações entre grupos e/ou classes. A noção de habitus de Bourdieu (1998b) – como um sistema de disposições duráveis e transferíveis, que integram todas as experiências passadas e funcionam como matriz de preocupações, apreciações e ações – atribui às pessoas a função de elaboradoras do real e não apenas a de reflexos ou determinações de estruturas sociais, econômicas, culturais.[14]

O habitus para Bourdieu (1996, 1998b) é um conhecimento – adquirido e incorporado a partir das estruturas objetivas –, que opera como uma matriz de percepções, ações, apreciações e representações. É um conhecimento adquirido, mas também um haver, um capital, que estrutura e reestrutura as práticas dos agentes em ação (BOURDIEU, 1998a, p. 61). É, portanto, um sistema de estruturas interiorizadas – um sistema de disposições duráveis e transferíveis –, e condição de toda objetivação. O habitus é um sistema de “estruturas estruturadas” que funcionam também como “estruturas estruturantes”, ou seja, geram estruturas e práticas sociais que podem ser “reguladas” e “regulares”, não sendo resultados da obediência consciente a determinadas regras (MICELI, 1998).

O habitus completa o movimento de interiorização de estruturas exteriores e as práticas sociais exteriorizam os sistemas de disposições incorporadas, gerando processos constantes de atualização e adaptação (BOURDIEU, 1998a). As práticas sociais e as ideologias levam em conta possibilidades e impossibilidades objetivas, que definem a dinâmica social de um campo ou classe (MICELI, 1998). Consequentemente, o papel do habitus é modelar o que é dado do exterior nas relações com objetos, atos e situações. No entanto, não é apenas reprodução dos objetos externos, pois implica remanejamentos das estruturas cognitivas, uma reconstrução dos dados no contexto de valores, noções e práticas. Consequentemente, embora restrito aos limites das condições objetivas, a partir das quais se constitui e se expressa, o habitus encerra potencialidades objetivas de inovação e transformação sociais (MICELI, 1998).

A noção de habitus recebeu críticas, especialmente porque estaria ainda excessivamente condicionada às estruturas sociais, ou mesmo por uma certa ‘circularidade’, tanto por uma ausência de elementos contrastantes como por perigos de autorrepresentação e identificação de um determinado grupo social. De acordo com Domingos Sobrinho (2000, p. 118), as críticas ao acento estruturalista do habitus levaram Bourdieu a

[...] dar um caráter mais relacional ao seu conceito e a considerá-lo como um “conjunto sistemático de princípios simples e parcialmente substituíveis, a partir dos quais podem ser inventadas uma infinidade de soluções que não deduzem diretamente de suas condições de produção”.

Segundo Bourdieu (1996, 1997), o habitus constitui um fundamento sólido e dissimulado da integração dos grupos ou das classes. Uma das principais funções “[...] é dar conta da unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes [...]” (BOURDIEU, 1997, p. 21). É, portanto, uma mediação universalizante entre estruturas e práticas que dá sentido, razão e organicidade às ações dos agentes no grupo social. “O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (BOURDIEU, 1997, p. 21).

Bourdieu (1997) afirma que habitus, além de dar organicidade às práticas e às ações de um grupo social, opera como um diferenciador dessas práticas. “Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas [...], mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes” (BOURDIEU, 1997, p. 22). Essas práticas distintivas, frutos de lutas por classificação, geram a identidade e identificação dos grupos nos processos de divisão do mundo social. O habitus não cessa de produzir percepções, representações, opiniões, desejos, gestos, ações, reflexões e toda uma gama de produções simbólicas, não diretamente dedutíveis nem são simples reflexos das estruturas sociais geradoras.

A noção de habitus de Bourdieu (1996, 1998a) – como esquemas gerados e geradores de percepções, conhecimentos, orientações das práticas sociais, palavras[15] e falas[16]– se constitui em instrumento interpretativo para apreender processos, reais e simbólicos, na construção do mundo e na apreensão da realidade. A utilização dessa noção – como processos de apreensão do real – permite explicitar mecanismos, princípios, estruturas que condicionam e são condicionados pelas práticas sociais e políticas das pessoas que lutam pelo acesso e posse da terra em acampamentos e projetos de assentamentos (SAUER, 2008a, 2008b).

 

Representações:[17] a terra como princípio gerador e unificador de práticas sociais

Os relatos explicitaram que o objetivo de todas as pessoas acampadas é “a conquista da terra própria” (CARVALHO, 1999, p. 15). Essa conquista é representada como a condição sine qua non para realizar o que Godói (1999) denominou de “projeto de autonomia”, com especial destaque para o “trabalhar para si”. Essa possibilidade de trabalho só se transforma em uma realidade com o acesso a terra, dando-lhe diversos sentidos simbólicos. A terra se transforma então em um lugar de segurança e liberdade, resultado da combinação de elementos religiosos e/ou familísticos, da tradição e da visão da terra como um meio e um lugar de trabalho (MARTINS, 1994, 1997).

A identidade de sem-terra – associada às normas e às regras dos acampamentos e à distribuição de tarefas e responsabilidades – se transforma em um habitus ou em uma representação capaz de unificar as ações e interações do grupo (BOURDIEU, 1997). As pessoas acampadas incorporam sistemas de classificação e de divisão – como a clara distinção entre “nós acampados”, “nós sem terra” e a “sociedade” –, que funcionam como matrizes de ações e concepções (BOURDIEU, 1998b). As pessoas passam então a agir e a refletir com a lógica da unidade de grupo e da necessidade de apoio mútuo, como uma forma de superar as dificuldades e hostilidades do mundo exterior, sendo que a classificação ou identificação de sem-terra dá esse caráter de unidade ao grupo.

Bom, o melhor que tem aqui – graças a Deus, tá tudo bão! Tudo bão! – é a paz, o amor, a união! Todo mundo alegre, amoroso uns aos outro! É isso que nóis devemo fazê, né? Que com a paíz, o amor e a união, nóis chega lá! Que desunião não cabe em lugar nenhum! (José – acampamento Dom Helder)

O acesso a terra – como um novo momento e um novo lugar na experiência de vida – é uma dimensão fundamental da construção social da pessoa sem-terra. Segundo Porto (1989, p. 249), a “terra se constitui em importante categoria mediadora do processo” de construção da identidade social, estabelecendo diferenças significativas entre as representações das pessoas acampadas e das assentadas.

Esse processo social, no entanto, é anterior ao acesso a terra, pois as representações e a construção da identidade abarcam também os sonhos, projeções, desejos e representações dessa terra, desse lugar para trabalhar e viver. Esses sonhos e desejos estão, fundamentalmente, voltados para a conquista (acesso) da terra. Os relatos explicitam esta como a razão fundante da própria existência e da autorrepresentação como sujeitos e como seres humanos.

O meu sonho é a gente tê a roça da gente! Tê o gadinho da gente, quando tivé vontade de tomá um leite! Você tê um queijo! Você tê um doce! É uma coisa, é uma fartura! Você chegá na roça e você vê aquilo tudo verdinho e sabê que é um trabalho seu! Então, esse aí é o meu sonho! Tê a minha casa! O meu pomar, a minha fartura! (Iraildes – acampamento Palmeira)

O meu maior sonho hoje é tê o meu pedaço de terra e trabalhá dentro dela! (Cleudes – acampamento Palmeira)

...a esperança é todos os companheiros que se encontra aqui [...] está atraz de adquiri um pedacinho de terra prá plantá, produzi, criá a família, né? Ter uma vida digna! [...] Eu tenho um sonho: é ter um pedacinho de terra, enquanto a gente tiver força prá viver, prá desfrutar a vida como ela é! [...] Então tê uma qualidade de vida pá tê uma família; criá a família ao natural; igual a gente foi criado! (Roberto – acampamento Dom Helder)

A própria identidade de trabalhador(a) se constrói com a perspectiva de realizar o sonho de possuir e trabalhar a terra (PEREIRA, 2000).[18] A possibilidade de transformar a natureza em alimento e fartura cria representações e impulsiona ações e práticas. Além da organização ativa das experiências vividas, representações grupais abarcam também as perspectivas futuras, pois “[...] as versões do passado são instrumentos fundamentais de definição da realidade atual e perspectivas futuras, mas que o contrário não deixa de ser verdadeiro, isto é, as perspectivas de mudanças futuras também podem redefinir versões do passado, de forma a tê-las, até mesmo como instrumento de ação política” (GODOI, 1999, p. 28).

O desejo de “retornar à terra”, de “possuir um pedacinho de chão” impulsiona ações e reforça representações e concepções, especialmente a terra como um lugar que “mana leite e mel”. Esta representação, no entanto, está intimamente relacionada com as representações do trabalho, como uma ação ou intervenção na natureza que dá sentido à existência e cria perspectiva de futuro. A identidade de trabalhador está, portanto, associada não apenas à busca da sobrevivência (ter um salário, ter um emprego), mas também a uma vida com significado.

[...] Hoje sô aposentado! [...] ficô a minha família trabaiando e eu aposentado do serviço... Morava de aluguel. Morei de aluguel 6 anos numa casa! [...] falaram nesse pedacinho de terra, né? e a gente tem vontade de ‘pessuí’ uma terrinha prá gente tê uma morada! Mais sossegada! Tê um sussego na vida da gente! E trabaiá!... (Pedro – acampamento Dom Helder)

A conquista e o acesso a terra, com a constituição do assentamento, transformam esses sonhos, desejos e representações em realidade. A passagem da condição de “sem terra” a de “com terra” dá um novo significado à existência (SAUER, 2008a, 2010). Essa conquista é expressa em termos de renascimento, ou seja, uma realidade completamente nova, qualitativamente diferente da situação anterior. É a materialização da cidadania dando condições de vida e de existência (trabalho e liberdade) em termos qualitativamente novos porque se passa a ser “alguém” (agente ou sujeito).

Mas como a gente já está hoje, bem colocado, em vista de que a gente era um João ninguém. Hoje a gente se sente que renasceu mais uma vez, né? [...] Como que um dia eu ia pensá que ia ‘pessuí’ um tanto de terra desse? Prá mim é muito! Eu acho que é muito que eu não tinha nem o lugar de uma casa e hoje eu tenho onze alqueire de terra, né? Então eu acho que a reforma agrária não pode acabá. Ela tem que continuá porque a única solução que o pobre dá um ‘cunsertozinho’ na vida é através da reforma agrária [...] Eu num tinha nada, nada, nada... Hoje eu tenho de tudo! (Darci – assentamento São Carlos)

O acesso a terra dá sentido à existência, pois deixou de “ser ninguém” e passou a “ser alguém” (agente social). Ocorre uma releitura do passado imediato, estabelecendo uma diferença fundante entre “estar” ou “não estar” na terra. Além da simples sobrevivência, o acesso a terra permite ser – ser gente, ser alguém, ser uma pessoa –, o que dá o direito a sonhar. Sonhar, não mais com a terra já conquistada, mas com reconhecimento social (mediado pelo trabalho produtivo), um vir-a-ser sujeito com visibilidade ou reconhecimento na sociedade (BOURDIEU, 1998b). Essa é a expressão da representação de ser cidadão, ou ser alguém (pessoa) com liberdade para construir a sua própria biografia ou história, sonhar e realizar seus sonhos (SAUER, 2008a).

[...] trabaiá de empregado é coisa subordinada. Ocê nunca tem sonho! [...] Você só trabaia prá comer; ocê não tem direito a sonhá! [...] Aqui eu sou o Pelé; Eu chego lá em Itaberaí; eu chego na loja veterinária e eles sabem que eu produzo tanto leite e eles vende prá mim. [...] Eu não me sentia ninguém e hoje aqui eu me sinto Pelé. Sou Pelé, que todo mundo sabe, da parcela assim e assim, que trabalha, que tem estabilidade! Na cidade não! Na cidade eu era uma pessoa qualquer e ocê se torna uma formiga lá! [...] Aqui não! (Nelson – assentamento Che).

Essa e outras falas estabelecem uma estreita relação entre conquistar a terra e cidadania ou ser sujeito histórico. O acesso a terra transforma uma “não existência”, um “não ser” em “ser”, em possibilidade de “existir para o outro” ou agente social, porque as pessoas passam de “vagabundos, sem terra, desempregados” a trabalhadores e trabalhadoras, que produzem e têm valor. Essa condição materializa a definição de ser sujeito como “a vontade de um indivíduo de agir e de ser reconhecido como ator” (TOURAINE, 1995, p. 220).

A conquista da terra é também um processo de valoração da pessoa porque o “tornar-se gente” significa obter reconhecimento perante a sociedade. Essa valorização é a negação da representação social segundo a qual “pobre não tem valor”. É algo qualitativamente diverso desta, proporcionado pelo acesso a terra; consequentemente a própria “terra não tem preço”. Os aspectos da “identidade reativa” (não são vagabundos) perdem força simbólica porque há razões de sobra para afirmar uma determinada condição, ou seja, sentir-se uma pessoa com terra e com valor (SAUER, 2010).

É por isso que eu tô aqui [no acampamento...] adquiri um pedacinho de terra [...] Nóis não tem valor não! Pobre não tem valor não! Essas pessoas, fazendeiros, as pessoas que têm um bom emprego [...] às vezes nos chama até de vagabundo! [Mas] nóis tamo no interesse de trabaiá, produzi e ajudá!... (Pedro – acampamento Dom Helder)

A terra prá mim é tudo, né? Eu acho que eu sem a terra eu jamais existiria. Eu gosto de trabaiá a terra, eu gosto de sintí a [...] Semeá a semente e a terra germiná. Ela prá mim é tudo... (Valdevino – assentamento São Carlos)

A posse da terra é central nesse processo de construção do existir, na construção da cidadania e da identidade social. Essa centralidade não é resultado da perspectiva da propriedade privada (ser o dono, possuir o título e a condição de negociar a terra),[19] mas de uma representação em que a terra é o meio ou instrumento do ser ou, em outras palavras, é condição para a constituição do valor, de ser gente perante a sociedade. A posse da terra é vista como condição sine qua non para ser reconhecido, para ter visibilidade. A terra é o princípio gerador e unificador (“objeto”) nas práticas sociais (BOURDIEU, 1997) e nos processos de construção e interpretação do real entre pessoas acampadas e assentadas no estado de Goiás.[20]

Através desse ‘possuído’ que nós temos, que é a terra, nós temos o crédito na cidade, porque nós possui. E se nós vendê essa terra e fomo prá debaixo duma casa na cidade, vivê daquele empreguinho [...] o dono do supermercado vai vendê aquela tabela do seu salário. Ele não deixa passá do limite, que sabe se passá ele num recebe. Então aqui não. A terra oferece o crédito prá gente tê na cidade. E se nóis num tivemo nada, nóis num valemo nada (Darci – assentamento São Carlos)

A reconstrução de uma representação identitária, baseada na cidadania, permite interiorizar a noção de ser alguém, visível na sociedade. Essa visibilidade (alcançada no processo de conquista da terra) possibilita o estabelecimento de uma nova relação com o “outro”, com a sociedade. As relações mudam significativamente (porque não estão mais baseadas no preconceito nem em uma “identidade negativa”), e a discriminação dá lugar à convivência e a relações de “boa vizinhança”. Há o estabelecimento de uma relação de iguais, por meio do reconhecimento social, possibilitando essa “boa vizinhança” e o convívio pacífico.

Assim, com os vizinhos é super bem! [...] eles tratá nós bem, com respeito! Que nós produz, né? [...] Quando falava que nós ia entrar aqui e tinha muito ladrão aqui que ia robá as fazenda deles, coisa e tal. Então, eles detestavam os assentados! Hoje não! Hoje são todos bons vizinhos! [...] nós negociá milho, nós negociá vaca [...] A gente vende ração prá eles [...] Bom demais, o relacionamento! (Nelson – assentamento Che)

Mudou, com certeza. Os cumerciante tudo se fala muito que já se deve muito aosassentamentos; tem muita amizade com os assentamentos. Hoje, a gente percebe que eles acham que se não existir, se deixar de existir os assentamentos, com certeza as vendas deles tamém vai caí e é muito. (Valdevino – assentamento São Carlos)

Essa transformação não se restringe a uma mudança de comportamento e de representações, baseada em relações com o exterior, com o entorno. Essa mudança é reflexo também dos impactos econômicos, sociais e políticos, que o acesso a terra causa em níveis municipal e regional.[21] Essas influências contrariam ou desfazem representações externas do sem-terra, abrindo espaço para outras formas de relacionamento não mais mediado pela discriminação, alterando a percepção das pessoas assentadas em relação a si mesmas e ao mundo circundante (SAUER, 2008a, 2010).

Os assentamentos tendem a promover um rearranjo do processo produtivo nas regiões onde se instalam, muitas vezes caracterizada por uma agricultura com baixo dinamismo. A diversificação da produção agrícola, a introdução de atividades mais lucrativas, mudanças tecnológicas, refletem-se na composição da receita dos assentados afetando o comércio local, a geração de impostos, a movimentação bancária etc., com efeitos sobre a capacidade do assentamento se firmar politicamente como um interlocutor de peso no plano local/regional. (LEITE, 2000, p. 48)

Os relatos das pessoas assentadas explicitam plena consciência dessa mudança, justificando com trabalho, produção e relações comerciais. Deixam de ser vistos como ladrões e vagabundos e passam a produtores (e consumidores), estabelecendo uma relação diferente com a “sociedade”. A produção – como resultado do trabalho – passa a ser o elemento fundante tanto das representações da sociedade como das próprias pessoas assentadas.

Mudaram [de opinião] porque o município de Goiás é o município que mais tem assentamento, né? Então o povo acostumou um pouco, né? [...] Então tem muito assentamento, eles acostumam. Eles viu isso; até prá cidade é bão, porque tem mais renda; dá mais renda prá cidade, né? (João – assentamento São Carlos)

Eles pensava que sem-terra era um povo diferente; eles imaginava que não era trabalhador como eles vê hoje! Hoje, a coisa mudô; pensava que sem terra era sem caráter. Muitas vezes discriminava muito nós [...]hoje, eles mudô! Hoje eles sabe que realmente nós somo trabaiador [...] e ficô tudo amigo! Agora é uma beleza! Eles têm amizade co’nóis aqui dentro e [...] negocia todo unido. (Moacir – assentamento Che)

A centralidade da produção é enfatizada porque, de um lado, as relações de troca (compra e venda) são as mais imediatas no contato com o mundo exterior. O contato se dá por meio das relações comerciais,[22] pois a produção é a materialização de uma situação diferente da realidade de sem-terra, “sem valor e sem trabalho”. A produção representa a “prova” material de que são trabalhadores e trabalhadoras e de que a “reforma agrária dá certo”.[23]

Essa ênfase na produção e na produtividade (ou no trabalho que produz), no entanto, não está alheia aos problemas reais enfrentados, especialmente às dificuldades causadas pela falta de rendas em consequência da crise generalizada da agricultura. A produção é simbolicamente importante porque dá visibilidade e permite medir o sucesso do assentamento. No entanto, essa produção não tem valor comercial (nas relações de troca com o mercado), aumentando as dificuldades para permanecer na terra.

Eu acho que a maior dificuldade aqui é a renda que nóis não temos, né? Muitos não têm. Eu, por exemplo, que tenho meu serviço mais muitos num têm. Acho que a dificuldade maior aqui é essa, não tem alguma coisa prá podê a gente tê uma renda, né? (Eva – assentamento São Carlos).

O comércio não tá muito bão, porque cê vai comprar o adubo lá, sai muito caro, né? Quando ocê coe que sobra um arroz prá vender é barato. Só tem valor dispois que tá na mão deles lá que eles arruma e empacota. Ocê vai vender não tem preço. Então ocê vai comprar um adubo é muito caro [...] (João – assentamento São Carlos).

A dificuldade dos “pequenos agricultores familiares” de obter “renda familiar suficiente para garantirem uma reprodução dos meios de vida que justificasse a permanência na terra” (CARVALHO, 2002, p. 3) apareceu em várias preocupações, especialmente das pessoas assentadas. Problemas e dificuldades geram outras consequências como êxodo, saída da terra e, talvez uma “crise de identidade” (CARVALHO, 2002).

O acentuado êxodo rural de pequenos agricultores familiares pela inviabilidade econômica de seus negócios, a deterioração da qualidade de vida das famílias que ainda permanecem como pequenos agricultores e ou extrativistas familiares, o abandono da terra pelos jovens, seja para estudar e ou trabalhar na cidade, seja para deixar para trás o trabalho duro e a tristeza de uma vida repleta de restrições, a precariedade de acesso às limitadas políticas públicas, em particular àquelas do crédito rural subsidiado, enfim, a perda de perspectiva de melhoria no padrão de vida e de produção levou uma grande quantidade desses agricultores familiares a uma crise de identidade social (CARVALHO, 2002, p. 7 – ênfases adicionadas).

Essas dificuldades estão na base da distinção política entre “luta pela terra” e “luta na terra”, mas os relatos não explicitaram “crise de identidade” (SAUER, 2002). Apesar das adversidades (amplamente reconhecidas nas falas), as representações reafirmam a importância da luta, da conquista e do desejo de permanecer na terra. As dificuldades econômicas não foram capazes de abalar a identidade das pessoas, ao contrário, reforçam representações do ser trabalhador(a) na posse ou acesso a terra. As pessoas assentadas reconheceram os problemas, mas não renegam a luta nem aceitam a possibilidade de “abrir mão da terra” (SAUER, 2002).

Eu não sabia o que era a luta pela terra. Não entendia! Eu entrei dando um passo no escuro, né? Sem saber o que eu tava fazendo; indo pela cabeça dos otos. E se toda ida pela cabeça dos otos fosse igual essa era bom demais; que eu num rependo nenhum minuto de tê entrado nessa luta. (Darci – assentamento São Carlos)

Eu mesmo nunca pensei em desfazê do lote da gente! Porque é daqui que a gente vai tirá alimento prós nossos filhos. Apesar tá difícil prá gente. No começo não é fácil! Nóis assentado, né? passa muita dificuldade. Tem muitas pessoas que reclama, mais, em vista que a gente tava antes, eu tô no paraíso! Porque eu não tinha nem uma casa! Hoje eu tenho... (Edvania – assentamento Che)

Essas falas não são resultado do desconhecimento ou do descaso em relação à realidade e às adversidades encontradas após a conquista da terra. Apesar das dificuldades econômicas, materializam uma identidade social baseada na conquista e na posse da terra. Expressam o desejo de lutar para permanecer como agricultores familiares assentados, tomando como referência as experiências anteriores (esforços de sobrevivência, falta de emprego, falta de um lugar para morar etc.). Além do temor de um “possível retorno” a essas dificuldades, as falas expressaram relações entre terra e dignidade, terra e liberdade etc.

A idéia da gente foi sempre em conquistá a terra. E a gente nunca pensou realmente de trocá a terra aqui, pelas dificuldades; por otras coisa na cidade. [...] Sempre resorveu os pobrema da gente aqui, as dificuldades; superou tudo isso e hoje a gente é muito feliz aqui na terra. (Gervásio – assentamento São Carlos)

A terra prá mim hoje ela significa vida! Porque se for prá me tirá daqui eu prefiro a morte! Não quero voltá prá cidade mais não! A terra prá mim é tudo! Não tem outra coisa pra mim! A terra ela é o alimento; ela é liberdade, entendeu? (Nelson – assentamento Che)

Castells (1999, p. 24) afirma que o processo de construção identitária na modernidade só constitui sujeitos ou atores sociais quando da realização do que ele denominou de “identidade de projeto”. Diferentemente da “identidade de resistência”, essa identidade se materializa quando as pessoas, atores sociais coletivos, constroem “[...] uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social” (CASTELLS, 1999, p. 24). Essa construção consiste então em um projeto de vida diferente, “[...] talvez com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido da transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de identidade” (CASTELLS, 1999, p. 26).[24]

A busca de uma certa “transformação da estrutura social”, no entanto, fica evidente nas falas em defesa da reforma agrária. A partir das próprias experiências pessoais e comunais, as pessoas defenderam a reforma da estrutura fundiária para “acabar com a fome e com a miséria’. A explicitação da dimensão de “política social compensatória” não significa uma clara consciência ou juízo crítico, mas apenas a reprodução de um discurso oficial (CARDOSO, 1997) que avaliza as ações e lutas pela terra.

A reforma agrária tá ajudando a probreza demais! Eu acredito que a reforma agrária nem num pode acabar [...] é porque enquanto tiver gente passando trabaio, sem terra, tem que ter ela. (Josias – assentamento São Carlos)

[O governo] não têm interesse em fazer reforma agrária! Você vê! Acho que a reforma agrária é a única coisa que caba com a fome e a miséria, é a reforma agrária. Porque nóis temo um exemplo muito grande aqui. Ocê vê, a nossa produção aqui é muito grande. Então, se existisse a reforma agrária [...], eu acho que cabava com essa miséria e fome das cidades! (Devair – assentamento Che)

Além de “acabar com a fome”, a democratização do acesso a terra é fundamental, segundo as pessoas entrevistadas, para gerar emprego, dar trabalho às pessoas desempregadas. O latifúndio precisa ser dividido para que as terras deixem de ser ociosas, gerando postos de trabalho para muitas pessoas que estão desempregadas e forçadas a viver nas periferias das cidades.

Eu quero dizê que reforma agrária é o objeto mais certo que tem no Brasil. É o projeto que, no Brasil, dá certo! É a cara do Brasil! Então, eu acho que [...] eu vejo a saída prós trabalhadô e pá o desempregado que existe é a reforma agrária. Não tem outro objetivo. Eu, com 48 ano, sempre acompanhei, trabaiando nas fazendas, acompanhei os fazendero trabaiando e tal... movimentando de toda forma, mais verdadeiramente o trabalhadô dá certo, prá ele é a reforma agrária. (Sebastião – assentamento Che)

As pessoas estabelecem uma estreita relação entre a reforma agrária e a geração de postos de trabalho no meio rural, transformando o acesso a terra em uma saída também para o problema da fome e da violência. Reproduzindo os argumentos das mediações (SAUER, 2010), várias pessoas acampadas e assentadas defendem a realização de uma reforma agrária como uma solução importante para dar trabalho às pessoas, inclusive àquelas que vivem nas cidades.

E a maioria das pessoas que tão na cidade hoje, vivendo na cidade com dificuldade de alimentação, com subemprego, desemprego. A reforma agrária é a saída prá isso. É tirá as pessoas da violência, da fome que existe nas grandes cidades. Que, a grande maioria das pessoas que moram nas grandes cidades saíram do campo, e tão hoje na cidade sem emprego, sem nada. [...] Então a reforma agrária é a solução do País: alimentação, a formação das pessoas. Acho que essa é a saída do Brasil; é fazê a reforma agrária [...] dividi o latifúndio; dividi as terras ociosas! (Geraldo – assentamento Che)

Apesar de uma certa visão dos assentamentos como “irradiadores” de uma vida diferente (exemplo de conquista, melhor produção, abastecimento da cidade, aquecimento do comércio local etc.), as falas não revelaram “identidades de projeto”. Carvalho (2002) salienta que é preciso superar velhas concepções a partir de identidades sociais de resistência ativa abrindo caminho para emancipações sociais e para o rompimento com as dependências do capital e do Estado. A construção do novo nos projetos de assentamentos deverá ocorrer com mudanças nas “matrizes de consumo, de produção e na de concepção de mundo” (CARVALHO, 2002, p. 11).[25]

As representações e identidade de sem-terra dão coesão social ao grupo (BOURDIEU, 1997), permitindo uma resistência ao processo de exclusão. As conquistas – ou simplesmente os sonhos em torno dessas conquistas – dão perspectivas às pessoas que lutam pelo acesso ou pela permanência na terra. Fundamentalmente, essa luta cria sujeitos históricos e cidadãos modernos em busca de direitos e qualidade de vida, conforme relatos e representações das pessoas entrevistadas.

As mobilizações, lutas e conquista da terra possibilitam a constituição de sujeitos com identidades intimamente relacionadas ao meio social e geográfico. A conquista, real e simbólica, do acesso a terra se transforma em processos de sujeitos modernos (TOURAINE, 1995), que passam a exercer direitos, como cidadãos que vivem no mundo rural. Esses sujeitos passam a construir alternativas, abrindo perspectivas para mudanças e melhorias (inclusive nas formas de produção), como é o caso da cooperativa no assentamento São Carlos.

O trabalho é o valor, real e simbólico, mais importante no processo de luta pela sobrevivência e resistência à exploração em busca da “terra prometida”. O direito ao trabalho é parte fundante do processo de luta e da construção de representações que explicam e justificam a realidade e as ações dos sem-terra. Essa centralidade do trabalho é a mesma que distinguia (ou distingue) o “posseiro” (aquele que tem acesso a terra) do “trabalhador rural assalariado” (MARTINS, 1993).

[...] o conflito não envolve relações sociais na produção nem envolve direta e imediatamente as relações de produção, nem envolve o produto do trabalho. A luta dos posseiros é uma luta pelo instrumento de produção, que é a terra. Envolve as relações de propriedade e não as relações de trabalho; o problema não é o da exploração, mas o da expropriação. (MARTINS, 1993, p. 130)

Esse desejo de liberdade e autonomia ficou muito explícito em diversos relatos, que estabeleceram uma relação direta entre o acesso a terra e a busca de um trabalho livre (SAUER, 2002). A questão central da luta por um “pedaço de chão” não é a propriedade privada da terra, mas a busca do direito ao trabalho.[26] A terra é entendida e representada como um “meio e um lugar de trabalho”, capaz de proporcionar a sobrevivência e a reprodução familiar (MARTINS, 1988), sendo que a sua posse ou propriedade é a condição necessária para a liberdade e o exercício autônomo de atividades agrícolas (SAUER, 2008b).[27]

A gente tá lutando, batalhando... o que a gente qué é adquiri essa terra agora; e eu não quero mais pensá naquela vida que eu tive antes! Aquela vida de dificuldade. Apesar da gente tê só um filho, mas realmente foi muito difícil essa vida de vivê trabalhando prósotros, né? Assalariado! Hora você ganha bem, hora você ganha muito mal! (...) A gente tem que tê mesmo um pedaço de terra e trabalhá prá gente mesmo; e a vida da gente independentemente, né? Tê as coisa da gente! (Gloraci – acampamento Palmeira).

A terra – e suas representações e sentidos – constitui o eixo central de todo o habitus, ou do sistema identitário social e relações com o mundo. A partir de seus itinerários biográficos e geográficos, as pessoas representam a terra como fundante do ser (ser trabalhador(a), ser alguém) e da existência (SAUER, 2002). A estrutura social, marcada pela dominação, exclusão e desigualdade,empurra para práticas sociais de resistência e lutas, que valorizam direitos e perspectivas de ‘reconstruir o mundo’. Consequentemente, o sentido simbólico da terra justifica o sofrimento (relatos do acampamento como uma etapa no aprendizado), mas também as ações (acampar, ocupar terra) e as lutas pelo acesso a terra como lugar de vida e reconstrução da identidade social.

 

Apontamentos para uma conclusão prospectiva

A representação da terra – forjada nas lutas e interiorizada como princípio gerador – foi vinculada a outras noções, especialmente a representações de trabalho (ação produtiva) e lugar (território de vida e espaço de liberdade). As representações da terra são permeadas por significações existenciais (terra como lugar de ser agente, ser trabalhador ou sujeito histórico, lugar de trabalho produtivo, proteção, liberdade etc.), que transformam a conquista (ser dono), ou o desejo de acesso (viver na) à terra, em um processo simbólico fundante do ser no mundo.

Essas representações estruturam um conjunto de significados e valores, inclusive forjam o habitus, que permite dar sentido às lutas e à própria existência. Portanto, a incorporação de sistemas de habitus nos processos de luta e resistência na terra, para além da percepção ou representação, deve ser desvelada. Novos estudos, com base na ação de agentes que lutam pela terra, especialmente analisando práticas, relações de poder, jogos políticos ajudarão a entendem processos (ou jogos) e o mundo social no campo. 

Retomando o ‘trocadilho’ do título – ‘campo’ como uma noção de Bourdieu, mas também como espaço rural –, a profunda desigualdade da realidade agrária brasileira (concentração da terra, famílias sem terra, pobreza no campo, dificuldades de reprodução social etc.) exige reflexões sociológicas e mudanças políticas. Ampliar as pesquisas e estudos, com base na teoria de campo de Bourdieu, permitirá entender disposições sociais e sistemas de poder no meio rural. Consequentemente, o ‘Bourdieu no campo’ abre possibilidades de desvelar conflitos e disputas de poder entre agentes nas lutas por terra e reafirmação de direitos territoriais.

Como um sistema de disposições inconscientes e socialmente constituídas, o habitus é o produto da interiorização das estruturas objetivas e opera como uma matriz, um princípio de estruturação das experiências e práticas dos agentes. Essa matriz ou sistema de disposições, socialmente constituídas – como estruturas estruturadas e estruturantes –, gera e unifica o “[...] conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 1998b, p. 191), dando organicidade ao grupo social ou a classe. Essa noção de habitus, especialmente o sistema de organicidade ou estruturação, deve desvelar ou ajudar a compreensão dos jogos de poder e as práticas sociais nos territórios e lutas pela terra.

A assimilação ou interiorização de determinadas práticas e de uma linguagem própria (habitus) ficou evidente nas falas e representações das pessoas acampadas e assentadas. A partir da construção de uma identidade de “sem-terra”, que cria a percepção do mundo social, assimilam termos, expressões que possibilitam o processo de identificação como grupo social. A construção da identidade social de “sem-terra” possui componentes fortes (discriminação, exploração, pobreza etc.) de oposição a um outro, a um elemento externo, à sociedade. A realidade de discriminação, a interiorização e a representação dessa realidade dão coesão ao grupo e justificam o processo de luta pela conquista de um direito, o acesso a terra e ao trabalho.

A luta pela terra também como uma luta pelo poder – inclusive pelo poder que possibilita atribuir sentido a terra, ao trabalho e à própria existência – constrói discursos e reflexões de oposição ao latifúndio, e mesmo “contra o governo”, explicitando uma disputa simbólica e política e representações do “inimigo”, do outro, contra o qual se voltam as forças e resistências, levando ao direito à autodeterminação (ser alguém, ser um sujeito ou ator social).

A construção da identidade social sem-terra, e suas representações, incluiu outras noções como a importância da fartura (produção de alimentos) e a luta por um lugar de vida e trabalho, diferente de todos os demais lugares. A terra permite representar a identidade (social) como trabalhadoras e trabalhadores produtivos, contrastando com uma realidade anterior de privação. As circunstâncias e realidade de privações – associadas a um contexto social e político de disputa por reconhecimento (ser trabalhador(a), não ser vagabundo etc.) e “um conjunto unívoco de escolhas e práticas” (BOURDIEU, 1997) – dão um sentido especial a terra – lugar de liberdade – e a sua conquista, constituindo agentes (ou sujeitos políticos), ser alguém, dono do próprio destino.

 

 

 

Referências

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Como citar

SAUER, Sérgio. Bourdieu no campo: habitus, representações e ‘di-visão’ na luta pela terra no Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e2230211, 7 dez. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_st05.

 

 

 

Sérgio Sauer

Professor nos Programas de Pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPG-Mader), Faculdade UnB de Planaltina (FUP/UnB), Centro de Desenvolvimento Sustentável (PPGCDS) e no Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT) da Universidade de Brasília (UnB). Bolsista do CNPq e editor do Journal of Peasant Studies (JPS).

sauer.sergio@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2014-3215
http://lattes.cnpq.br/2783679231462590



                                   

 

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[1] Professor nos Programas de Pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPG-Mader), Faculdade UnB de Planaltina (FUP/UnB), Centro de Desenvolvimento Sustentável (PPGCDS) e no Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT), Universidade de Brasília (UnB). Bolsista do CNPq e editor do Journal of Peasant Studies (JPS). E-mail: sauer.sergio@gmail.com.      

[2] Os projetos não são “ilhas de reforma agrária”, como afirmou Graziano da Silva (1998), apesar dos programas governamentais de instalação, crédito-fomento, assistência técnica, infraestrutura etc. serem específicos para os assentamentos. Os serviços governamentais não se estendem para os demais agricultores familiares, mas os assentamentos, apesar das especificidades, estabelecem relações e impactam o mundo circundante (LEITE, 2000).

[3] Apesar de reconhecer diferenças e embates teóricos entre, por exemplo, Bourdieu (noção de “agente”), Giddens (1995, “sujeito autônomo”, livre das amarras comunitárias e reflexivo) e Touraine (1995, p. 220, “sujeito é a vontade de um indivíduo de agir e de ser reconhecido como ator”), a preocupação política é reafirmar as pessoas do campo como sujeitos políticos ou agentes sociais e não como “classe transitória” (ver BERNSTEIN, 2006; BORRAS; EDELMAN; KAY, 2008).

[4] Segundo Martins (2000, p. 47), o processo de ressocialização modernizadora nos acampamentos resulta que, nos assentamentos, “[...] a sociedade é literalmente reinventada, abrindo-se para concepções mais largas de sociabilidade e, ao mesmo tempo, fortalecendo as concepções ordenadoras da vida social provenientes do familismo antigo”.

[5] Diferente de uma das hipóteses da tese, influenciada por leituras sociológicas modernas (SAUER, 2002), o acampamento é “lugar” para as pessoas acampadas. Mais do que um simples espaço de transição ou um vir-a-ser, é espaço de vínculos identitários; um espaço de interação social e (re)construção de representações e de identidade política – constitui agente ou ‘sujeito político’ –, portanto, não pode ser definido como “não lugar” (AUGÉ, 1994).

[6] Espaço (GIDDENS, 1995), lugar e não lugar (AUGÉ, 1997) ou território (FERNANDES; WELCH, 2019) são fundamentos interpretativos geralmente “esquecidos” na Sociologia, pois “A estrutura espacial tem pouca importância em nossas atuais considerações. Basta indicar que tem também uma dimensão social em virtude do fato da minha zona de manipulação entrar em contato com a dos outros. Mais importante para nossos propósitos atuais é a estrutura temporal da vida cotidiana” (BERGER; LUCKMANN, 1998, p. 44 – ênfases adicionadas).

[7] Concebendo o espaço como produto e produtor de relações sociais, Lefebvre (1991a, p. 26) afirma que o espaço “... além de ser um meio de produção é também um meio de controle e, portanto, de dominação, de poder. Mesmo assim, como tal, escapa em parte daqueles que gostariam de fazer uso dele”.

[8] Segundo Santos (2001, p. 89), entendendo a propriedade não como um negócio para os pequenos agricultores, “mas a sua habitação, o seu lar, a sua fonte de subsistência”, Caio Prado Jr. “[...] apontava para o tema da territorialidade da vida social, realçando as virtualidades da agricultura familiar, almejando ‘uma população densa e estável, capaz de aproveitar todos os recursos da terra e viver uma vida digna da espécie humana. Precisamos encerrar definitivamente a nossa secular e tão onerosa caça ao húmus’” (SANTOS, 2001, p. 90).

[9] Durkheim (1996) fez uma distinção entre as representações individuais (objeto de estudo da Psicologia) e representações coletivas (objeto de estudo da Sociologia), sendo que as representações individuais não podem ser ampliadas para a coletividade, apenas o inverso. As representações coletivas exprimem conteúdos completamente distintos das representações individuais, portanto, se “[...] as representações coletivas são exteriores com relação às consciências individuais, é porque não derivam dos indivíduos considerados isoladamente, mas de sua cooperação, o que é bastante diferente” (DURKHEIM, 1970, p. 39).

[10] Lefebvre (1983), buscando reconstruir a trajetória desse conceito na filosofia, retoma as ideias e concepções de Kant, Hegel, Marx e Nietzsche sobre representação. Segundo ele, ao tentar delinear e precisar a representação, a filosofia – à exceção de Kant – procura também superá-la ou transcendê-la para chegar à verdade e à essência.

[11] Segundo Lefebvre (1983), diferente da concepção de representação, a ideologia para Marx (como produto ao mesmo tempo da interpretação e da divisão social do trabalho) tem um sentido negativo e deve ser superada pela teoria e pela prática revolucionárias. Lefebvre (1983) retoma o conceito marxista de representação (Vorstellung – o qual Marx foi progressivamente abandonando e substituindo pelo de ideologia), enfatizando a sua importância para a compreensão da realidade.

[12] Segundo Durkheim (1978, 1996), o caráter sui generis da sociedade (coletivo) permite entender as categorias e representações coletivas como frutos de experiências sociais, construídas ao longo do tempo, pelo conjunto (totalidade) de uma determinada sociedade. As categorias que permitem pensar e organizar o real são formas coletivas de conceitos gerais e representações sobre a realidade, portanto, são “[...] coisas sociais, produtos do pensamento coletivo” (DURKHEIM, 1996, p. XVI) e exprimem realidades coletivas, com um conteúdo completamente distinto das representações puramente individuais (DURKHEIM, 1996).

[13] A noção de habitus possibilitou romper com o paradigma estruturalista sem cair na filosofia do sujeito ou na racionalidade da economia clássica. “Retomando a velha noção aristotélica de hexis, convertida pela escolástica em habitus, eu desejava reagir contra o estruturalismo e a sua estranha filosofia da ação que, implícita na noção lévi-straussiana de inconsciente, se exprimia com toda a clareza entre os althusserianos, com o seu agente reduzido ao papel de suporte – Trager – da estrutura; e fazia-o arrancando Panofsky à filosofia neokantiana das ‘formas simbólicas’ em que ele ficara preso [...]” (BOURDIEU, 1998a, p. 61).

[14] O habitus constitui uma mediação, de um lado, entre as estruturas e as condições objetivas e, de outro, entre as situações conjunturais e as práticas por elas exigidas, portanto, se aproximando da noção de representações como meadiação de Lefebvre (1983, 1991a). Como um princípio operador, permite a interação entre estruturas objetivas e práticas sociais, dando um espaço de liberdade à práxis social (BOURDIEU, 1998a).

[15] Bourdieu (1998a) não deposita o poder nas próprias palavras, nem trata “a linguagem como um objeto autônomo”, mas nos processos sociais, especialmente objetivação e oficialização, que dão poder de nomeação, classificação e divisão aos agentes. “A questão ingênua do poder das palavras está logicamente implicada na supressão inicial da questão acerca dos usos da linguagem e, por conseguinte, das condições sociais de utilização das palavras” (BOURDIEU, 1996, p. 85).

[16] Bourdieu (1996) defende que é necessário examinar como as palavras contribuem na construção das coisas sociais, pois a linguagem e as representações possuem uma eficácia simbólica na construção da realidade. Bourdieu (1997) incorpora a noção de representação social por meio da valorização da fala, como símbolo de comunicação por excelência.

[17] Lefebvre (1983) aponta uma contradição ou limitação na teoria das representações, pois não é suficiente para explicar todos os fatos da vida, sendo necessário considerar que existe um saber vivido que é diferente, ou não pode jamais ser abarcado pelo saber concebido. É fundamental, portanto, não fetichizar o saber nem desprezar a sua crítica, pois esse pode ser ideologizado, sendo necessário manter (juntamente com a noção de representação) a noção de ideologia e ter como fundamento a não separação entre vida e conhecimento.

[18] Há, no universo pesquisado, uma distinção entre a noção de proprietário e dono da terra. Segundo Pereira (2000, p. 148), “[...] dono é uma categoria moral que se opõe à de proprietário, porque quem é dono trabalha a terra. Para o proprietário capitalista, a terra é mercadoria”.

[19] A representação de propriedade (possuir um título, ser proprietário com poderes para negociar a terra etc.) apareceu muito pouco no universo das preocupações das pessoas entrevistadas. Sonhos e desejos de “possuir uma terra”, ter um lugar, ser dono de um pedaço de chão dominaram as representações, explicitando uma ausência (LEFEBVRE, 1991a) e disposições socialmente estruturadas (BOURDIEU, 1998a).

[20] Representar significa transformar objetos em marcos referenciais ou em redes de significados, carregadas de normas e valores, portanto, há uma relação intrínseca entre representação e valoração, pois a representação está vinculada a sentimentos e paixões, vontade de potência, pontos de vista. “Toda representação implica um valor, seja quando o sujeito valoriza o que representa, o objeto ausente, seja quando o desvaloriza” (LEFEBVRE, 1983, p. 54). Essa valoração é resultado do “sujeito” que determina seu ponto de vista, sua perspectiva sobre o objeto, “[...] que se torna central e focalizado, serve de apoio e de partida a atos, fruto de paixões – ações suscitadas pela vontade de poder” (LEFEBVRE, 1983, p. 54).

[21] Abramovay (1994, p. 306) afirma em relação às conquistas e limites dos assentamentos “...que uma das características centrais das experiências problemáticas está na sua precária capacidade de articulação com outros atores da região e sua estrita dependência dos poderes públicos federais. Ao contrário, as experiências bem-sucedidas caracterizam-se sistematicamente pela ampliação do círculo de relações sociais dos assentados no plano político, econômico e social”.

[22] Essa constatação reedita o debate sobre o caráter (capitalista ou não) da “pequena produção” ou da “agricultura familiar” no Brasil. Esse debate é histórico (e altamente polêmico) no contexto dos enfoques marxistas da questão agrária e de possíveis diferenciações dessa “agricultura familiar”, especialmente defendidas por Chayanov (GERMER, 2002).

[23] As pessoas expressaram preocupações em relação à “viabilidade econômica” da reforma agrária e à necessidade de gerar renda, mas essas não são expressões de uma busca de inserção competitiva no mercado (lógica da competitividade, eficiência etc.), como enfatiza a racionalidade economicista e de programas governamentais, impondo a “lógica do mercado” e a necessidade de transformar as famílias assentadas em “empreendedoras rurais”, como apontam Teófilo (2000), Jungmann(2000) e Cardoso (1997).

[24] Diferentemente da identidade de resistência, os relatos não explicitaram representações de uma “crise” nem uma “identidade de projeto”. Questionamentos à sociedade e ao sistema capitalista não ficaram tão explícitos nas falas, apesar da expressão de uma “mudança de posição na sociedade” (CASTELLS, 1999, p. 24).

[25] Na defesa da “identidade social camponesa”, Carvalho (2002, p. 4) propôs a criação de “comunidades de resistência e de superação”, como alternativa à “crise de identidade” das famílias assentadas. Isso não significaria um “retorno às comunidades camponesas pré-capitalistas”, mas a um exercício de identidades de resistência ativa a partir de comunas ou comunidades, visando à “[...] emergência subjetiva e objetiva de condições para a superação do atual modelo econômico e social de reprodução da sociedade brasileira” (CARVALHO, 2002, p. 5).

[26] Martins (1988, p. 100) estabeleceu uma distinção entre “terra de negócio” e “terra de trabalho”, retirando da segunda a noção clássica da propriedade privada. Segundo ele, “[...] a luta pela terra não pode levianamente ser confundida com uma luta em defesa da propriedade e da forma atual que o direito de propriedade reveste nesta sociedade. É antes uma clara luta pela terra de trabalho”.

[27] De acordo com Woortmann e Woortmann (1997, p. 12), a atividade laborativa camponesa não faz distinção e separação entre o trabalho e o conhecimento. Isso significa que “[...] o saber-fazer camponês, globalizante, distingue-se radicalmente do processo de trabalho operário sob o capital, fragmentado, em que o trabalhador se assemelha, no dizer de Karl Marx, à abelha. O trabalhador industrial não é apenas separado dos meios de produção. Num processo repetitivo, em que domina apenas uma etapa do processo produtivo, ele é também separado do modelo global referido. Conhecimento e força de trabalho operam separadamente, na medida em que o primeiro é ‘propriedade’ do capital. O trabalhador não é separado apenas dos meios de produção no plano material, mas também do saber que informa a produção. Saber é poder”.