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v. 30, n. 2, julho a dezembro de 2022 (publicação contínua), e2230210


Recebido: 10.jul.2022   •   Aceito: 17.out.2022   •   Publicado: 7.dez.2022

Seção Temática / Artigo original /  Revisão por pares duplo-cego / Acesso aberto




Seção Temática
Os usos da teoria de Pierre Bourdieu nos estudos rurais brasileiros

 

Colonos italianos no Sul do Brasil: reflexões partindo da obra de Bourdieu

Italian settlers in southern Brazil: reflections based on Bourdieu's work


orcid_id.png  Maria Catarina Chitolina Zanini[1]

orcid_id.png  Miriam de Oliveira Santos[2]



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_st04


 

Resumo: Este artigo tem por objetivo refletir acerca da utilização de algumas noções importantes da obra de Pierre Bourdieu (1930-2002) na análise do campesinato de origem italiana no Sul do Brasil. A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica e as notas de pesquisas históricas e etnográficas realizadas pelas autoras em duas regiões de colonização italiana no Rio Grande do Sul. Nesses estudos, observamos o quanto a teoria e as perspectivas metodológicas de Pierre Bourdieu são relevantes para se pensar questões do mundo do trabalho e da família, bem como os diversos elementos que interferem na vida cotidiana e nos processos identitários desses homens e mulheres.

Palavras-chave: Pierre Bourdieu; colonos; imigração italiana.

 

Abstract: This article reflects on the use of some important notions from the work of Pierre Bourdieu (1930-2002) in analyzing peasantry of Italian origin in southern Brazil. The methodology includes literature review and notes from ethnographic research conducted in regions of Italian colonies in Rio Grande do Sul. The theory and methodological perspectives of Bourdieu are seen to be relevant in considering issues related to the world of work and gender, as well as the various elements that affect the everyday lives and identity processes of these men and women.

Keywords: Pierre Bourdieu; settlers; Italian immigration.

 

 

 

Introdução

 O objetivo deste artigo foi analisar a maneira como a obra de Pierre Bourdieu (1930-2002) foi apropriada pelos estudos sobre o campesinato brasileiro, dedicando especial atenção ao campesinato etnicamente diferenciado do Rio Grande do Sul, sobretudo os descendentes de imigrantes italianos. Selecionamos trabalhos e pesquisas, tanto da história quanto das ciências sociais, que tivessem como tema esse campesinato que se formou pela migração e colonização iniciadas na segunda metade do século XIX.   Ambas as autoras desenvolveram pesquisas em regiões de colonização italiana no Rio Grande do Sul e, por meio de suas inserções nesses espaços, apresentamos reflexões cruzadas com a obra de Pierre Bourdieu. O artigo está dividido em introdução, quatro seções e considerações finais. Inicialmente, mostramos a repercussão da obra de Bourdieu no Brasil e, a seguir, o nosso objeto empírico, que salienta a formação de um campesinato de origem italiana no Sul do Brasil. Procuramos fazer dialogar teoria e prática no segmento seguinte ao analisar os textos de Bourdieu sobre o campesinato e encerramos com o exame de uma questão importante para os estudos de campesinato e bastante cara para Bourdieu: as questões de gênero e a reprodução camponesa.

 

A repercussão da obra de Pierre Bourdieu no Brasil

Pierre Bourdieu tornou-se bastante popular nos meios acadêmicos brasileiros, sobretudo nas últimas décadas do século XX, tendo a inserção por meio de cientistas sociais importantes, como Renato Ortiz (1947-), leitor extremamente sensível às ideias do autor francês. Livros como A reprodução (1975) e A distinção (2007) tiveram repercussão imediata na época do lançamento e sucessivas edições e reimpressões, marcando gerações de pesquisadores pela relevância de noções como habitus, hexis, gosto e campo. Além disso, o autor aponta para uma perspectiva em que as questões econômicas são inseridas em diálogo com outras esferas da vida social. Para Bourdieu, essas questões devem ser observadas na prática, considerando as formas como as pessoas se apropriam dessas lógicas. Contudo, os textos nos quais Bourdieu examina os temas do campesinato ainda são pouco traduzidos e, por isso, possuem uma circulação mais restrita e se concentram em questões pertinentes à França e à Argélia, mas que podem ser inspiração para reflexões acerca do campesinato brasileiro também.  Le Déracinement (1964), por exemplo, nunca foi traduzido para o português. Mesmo assim, dada a sua relevância, foi rapidamente incorporado aos estudos brasileiros sobre o rural, tanto na Antropologia como na Sociologia.

O autor alertava também para o cuidado que se necessitava ter quanto à relativização da racionalidade econômica tanto no uso de categorias de análise como na observação das situações apresentadas. Um uso mais formalista de cenários e de campos deveria ser revisado.[3] Observa-se que Bourdieu trabalha também as questões acerca da terra, da honra, da reciprocidade, quando se necessita estar atento a como esses temas são experimentados in loco. O excedente, por exemplo, entre os Kabile[4] não fazia sentido, uma vez que a ideia de um futuro abstrato estaria pouco presente no grupo. Assim, pensar sociedades “tradicionais” ou outras requer conhecê-las num sentido mais amplo do que o econômico. Por conseguinte, uma leitura universalista do capitalismo não é frutífera. Há que se olhar as lógicas da “tradição” e da transformação, questões sempre muito problematizadas pelo autor. Em alguns contextos camponeses, a lógica predominante não é a do excedente ou do lucro imediato e absoluto, mas sim a da reciprocidade, da honra, da lealdade (especialmente quando discorre sobre a dádiva e a contradádiva). Pode-se perder, em termos de capital, ao se vender a um parente, vizinho ou afim, mas isso não necessariamente é compreendido como perda, mas um negócio que faz sentido no conjunto dos valores locais dos campesinatos.

Para Bourdieu (1980a), há uma ligação muito íntima entre capital econômico e capital simbólico. É possível dizer que, para o autor, usa-se o capital econômico para se formar capital simbólico. No cenário contemporâneo, por exemplo, do agronegócio e suas construções, esse capital pode gerar violências, endividamentos e exclusões. Ou seja, a acumulação de riquezas materiais seria um meio de permitir a acumulação de capital simbólico. Nesse sentido, Bourdieu apresenta-nos uma leitura acerca da sociedade capitalista ocidental de uma forma mais expandida, em que diferentes lógicas e racionalidades podem se tensionar em campos específicos. Seu diálogo com o pensamento de Abdelmalek Sayad (1933-1998) acerca do mundo argelino trouxe sofisticadas reflexões sobre o encontro entre lógicas capitalistas e de poder ocidentais com outras possibilidades. Nesse sentido, tensionamentos e reproduções levam os agentes dentro do campo a serem vistos em suas disputas em termos históricos, observáveis e dinâmicos.

 

A imigração italiana para o Rio Grande do Sul e a formação de um campesinato étnico de origem italiana

De início, é necessário destacar que aquilo que genericamente chamamos de “Imigração Italiana” para o Brasil não é, de modo algum, um fenômeno homogêneo, apresentando diversas especificidades e dinâmicas nos processos de imigração e de colonização, que estavam vinculadas a distintas circunstâncias históricas, seja no Brasil Império, seja no Brasil República (TRUZZI; ZANINI, 2018). Nesse sentido, podem-se pensar as diferentes origens regionais italianas, os diversos dialetos, os processos identitários, bem como as diferenças que aconteceram no contato com as distintas populações da sociedade brasileira. Há muitas especificidades que devem ser observadas nos processos de inserção e fixação em terras brasileiras e também no diálogo entre os governos brasileiro e italiano e seus momentos políticos, em que, demograficamente, aumentar ou diminuir a população era algo relevante e, em alguns momentos, fundamental para diminuir tensões políticas ou garantir a posse do território.

No Rio Grande do Sul, por exemplo, há inúmeras diferenças entre os descendentes de imigrantes italianos que se fixaram na serra gaúcha, considerada próspera, rica e exemplar, e aqueles que se deslocaram para a Quarta Colônia de Imigração Italiana, considerada “fracassada” no âmbito local e constantemente comparada àquela. A Quarta Colônia de Imigração Italiana teve seu processo colonizador iniciado em 1877 e está situada na região central do estado, tendo sido denominada de Colônia Silveira Martins. Dialogando com a historiografia do poder no Rio Grande do Sul, observa-se que essa colônia foi enfraquecida e desmembrada territorialmente, o que fez com que suas lideranças políticas e econômicas tivessem dificuldade nas articulações e reivindicações, como acontecia na região da serra, por exemplo.

Contemporaneamente, os descendentes de italianos buscam a legitimação e a manutenção da sua distintividade afirmando-se como italianos, ítalo-gaúchos ou ainda ítalo-brasileiros. Eles ressaltam valores, hábitos, costumes e sinais diacríticos (BARTH, 2000) que consideram atributos de sua identificação distintiva em relação aos “brasileiros”. 

Não são apenas as reflexões de Bourdieu sobre campesinato que são utilizadas nos estudos brasileiros sobre o tema. Seus trabalhos sobre relações de poder e a ideia de região também são bastante pertinentes para a análise do campesinato brasileiro, especialmente no cenário que estamos aqui analisando, no Rio Grande do Sul. Trata-se de uma construção que, compartilhada, exerce sua classificação com regras de inclusão e exclusão que se fazem e desfazem historicamente. Nesse sentido, pode-se pensar a identificação como gaúcho, seus diálogos com o pertencimento ao mundo italiano e às italianidades (ZANINI; SANTOS, 2017) e toda uma construção identitária e simbólica que envolve o mundo gaúcho e os diversos grupos imigrantes que lá chegaram.

Em um texto que tem como objetivo compreender a gênese do conceito de região e as representações que são a ele associadas, o autor assinala a disputa existente em torno do monopólio da definição do termo entre geógrafos, historiadores, etnólogos, economistas e sociólogos. Todavia, ele não deixa de chamar a atenção para o senso comum e para o fato de que existe a região, tal como concebida pelos geógrafos, e existe a região na prática. E essa região na prática é palco e promotora de distintas dinâmicas interativas e de construções simbólicas ou não. Sendo as estruturas internalizadas e externalizadas, os pertencimentos às regiões exercem sobre os indivíduos vínculos de pertencimento e também de exclusão. Assim, a ideia de ítalo-gaúchos e de uma italianidade que se apresenta como mesclada com uma territorialidade (do Rio Grande do Sul) passam a exercer força simbólica e evocativa nos processos de identificação (ZANINI; SANTOS, 2017). Embora não seja nosso objetivo nesse artigo, é possível salientar que, juntamente com essas construções, apoiam-se noções de masculinidade, racialidade e ruralidade.

Para Bourdieu, a luta pela definição da identidade regional é uma batalha de classificações e é preciso não perder de vista que a representação do real faz parte da realidade (BOURDIEU, 2006a). Bourdieu afirma que:

As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e dos sinais duradouros que lhe são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas de classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos. (2006a, p. 113)      

Ou seja, a visão do mundo social e os princípios de divisão contribuem para criar identidade e unidade, bem como processos de distinção e de classificação. Nesse cenário de disputas, os ítalo-gaúchos criam em torno de si construções simbólicas importantes, tais como invocação da família como instituição primordial, força, determinação, apego ao trabalho, coragem, audácia, “garra”, entre outros.

         

Figura 1 – Mapa do Rio Grande do Sul com colônias e ex-colônias em destaque –1891

Fonte: Biblioteca Nacional.

Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart530286/ cart530286.html. Acesso em: 14 maio 2021.

 

Conde d’Eu e Dona Isabel foram as primeiras colônias no Rio Grande do Sul, criadas pela presidência da província no ano de 1870. Importante ressaltar que o processo colonizador mais “massivo” ocorreu depois de 1875, ainda no Brasil Império. Olhar para essa data é muito relevante, pois aponta para o movimento de uma política de Estado de povoamento que tinha como objetivo preencher o que era considerado um “vazio demográfico”. Na maior parte dos casos, eram terras indígenas ou de outras populações. Lembrando também que a Lei de Terras de 1850 é que possibilitou a execução legitimada de uma política de distribuição de terras para as famílias de origem italiana que se deslocariam para o Rio Grande do Sul.

As primeiras levas de imigrantes vieram do Norte da Itália, do Piemonte, da Lombardia e, depois, do Vêneto e de outras regiões (FRANZINA, 2006). Tratava-se de uma migração familiar, de católicos, camponeses e pobres em sua maioria, com algum letramento e dominando técnicas de agricultura diversas daquelas que teriam que desenvolver inicialmente no Rio Grande do Sul, como se observa nas memórias do migrante Julio Lorenzoni (LORENZONI, 1975). Franzina (2006) aponta que algumas localidades do Vêneto (Nordeste da Itália), por exemplo, viram-se desabitadas, uma vez que populações inteiras deslocaram-se para “A América” e para o sonho de se tornarem proprietários. Não sem motivos. Na Itália, havia um quadro de escassez, de falta de direitos e de subjugação do trabalho camponês, além de um cenário decorrente da unificação política de 1870, que imporia uma perspectiva de Estado nacional que não era consensual. A imigração da Itália para o Brasil foi também um acordo entre ambos os governos com objetivos que ainda merecem ser melhor estudados.

Importante ressaltar também que nessa migração, além de agricultores, vieram artesãos, artífices, comerciantes e trabalhadores diversos que, seja em contexto urbano seja em rural, procuraram reproduzir e acumular capital por meio de suas diversas habilidades. O governo brasileiro no período da grande migração selecionava os imigrantes por meio de suas qualificações e, quanto à migração italiana, desejava famílias de agricultores. Ou seja, indivíduos solteiros não eram bem-vindos, como aconteceu com a migração italiana para outros países, entre eles os Estados Unidos e a Argentina. Para o Brasil, migrava-se em família. As mulheres eram sempre filhas de alguém, esposas de alguém, irmãs ou com outros vínculos. Raras foram as mulheres que fizeram a travessia isoladamente.

Tratando-se de um processo colonizador considerado geopolítica e economicamente como um preenchimento de áreas não ocupadas (“espaços vazios”), observa-se a média de 25 hectares de propriedades sendo entregues ao homem do núcleo familiar. Para Roche, as colônias tinham uma função exemplar, além de preencher os vazios demográficos e econômicos (ROCHE, 1969, p. 112). Tratava-se de uma unidade produtiva regida pela lógica patriarcal, do “pai-patrão”, em que o homem responsável assumia publicamente o gerenciamento da propriedade e da dívida perante a aquisição da terra e de algum outro benefício. Essa formação produtiva baseada na família e no trabalho gerenciado pelas regras de autoridade camponesas possibilitou o acúmulo de capital e aquisição de novas terras para as gerações mais novas (de homens).

Esse processo migratório, gerador de uma proposta colonizadora, forma um novo tipo de campesinato no Brasil, ativado pelas novas perspectivas trazidas pelos europeus.  Observa-se a construção dos núcleos urbanos, do comércio regional nas colônias, como os bolichos, as bodegas e as vendas, e dos “mercados” entre os interiores das colônias e as áreas de economia mais ativas, como da região da serra para Porto Alegre. Pode-se pensar que o objetivo dos agentes de colonização era trazer para o Brasil famílias de agricultores, produzindo farmers que seriam mais diretamente vinculados ao mercado (SEYFERTH, 2011, p. 408). Cabe destacar, contudo, que:

[...] esses ditos descendentes de italianos que emigraram para o Rio Grande do Sul não podem ser catalogados como uma unidade formativa homogênea, pois mesmo com elementos comunicantes não eram partes de uma mesma matriz formativa e construíram experiências culturais diferentes ainda em sua terra de partida. (BENEDUZI, 2011, p. 34)

 

Os trabalhos de Bourdieu sobre campesinato

Bourdieu se preocupa com as dimensões sociais do mundo rural e, em seus trabalhos, analisa a transformação social – seja ela provocada pela guerra, como em Le derracinement, seja por questões econômicas, como em Un class-objet (1977). Ele também se dedica à análise das festas e da reatualização dos seus significados. Em um texto etnográfico dos anos 1960, o autor demonstra como os condicionamentos culturais de classe refletem-se na hexis corporal e no modo de vida, destacando ainda as técnicas de corpo, os modelos culturais e as sanções que fazem com que o corpo seja um símbolo social e que influenciam nas trocas matrimoniais. Salienta o autor que:

“Os camponeses de antigamente”, dizia um idoso da cidadezinha, “andavam sempre com as pernas arqueadas, como se tivessem os joelhos virados para dentro, com os braços curvados.” Para explicar essa atitude, ele alude à postura do ceifeiro. A observação crítica dos moradores da cidade, hábeis para perceber o habitus do camponês como uma verdadeira unidade sintética, dá ênfase à lentidão e ao peso do andar; o homem da brane [região das montanhas] é, para o habitante do bourg, aquele que sempre caminha em um solo irregular, acidentado e lamacento, mesmo quando anda no asfalto da carrère [rua principal]; é aquele que arrasta galochas enormes ou botas pesadas, mesmo calçando seus sapatos de domingo; é quem sempre avança com passos lentos e largos, como quando anda com uma vara no ombro, virando-se às vezes para chamar o gado que o segue. Sem dúvida, não se trata de uma descrição verdadeiramente antropológica (...); mas, por um lado, essa etnografia espontânea dos moradores da cidade apreende as técnicas corporais como elemento de um sistema e postula implicitamente a existência de uma correlação, no nível do sentido, entre o peso do andar, o mau corte da roupa e a falta de jeito na expressão; por outro lado, essa  etnografia indica que é, sem dúvida, no nível dos ritmos que se encontraria o princípio unificador (apreendido de maneira confusa pela intuição) do sistema das atitudes corporais características do camponês. (BOURDIEU, 2006b, p. 85)

No Rio Grande do Sul, os camponeses costumam ser identificados como colonos, o que assinala uma dupla identidade: étnica e regional. Colonos porque eram habitantes das colônias, divididas em área urbana e rural. Nas áreas rurais, havia a divisão dos lotes por meio de linhas, que organizavam o espaço geográfico e o de interações. Observa-se, quanto à colonização italiana no Sul do Brasil, a organização das linhas por meio de vínculos de parentesco, de dialetos semelhantes e de ascendência de regiões italianas compartilhadas. No processo de povoamento, a identificação como “italianos” e “colonos” se desenvolveu e sedimentou genericamente. Se quando migraram para o Brasil, eles se percebiam como vênetos, trentinos, beluneses, mantovanos, friulanos, entre outros, no processo de inserção na sociedade brasileira, a identidade genérica de “italianos” prevaleceu (ZANINI, 2002). E esses italianos residentes nas colônias foram classificados como trabalhadores rudes, que lidavam com animais e terra e que não estavam inseridos nos contextos da modernidade e do “urbano”, que preponderou no Brasil do século XX. O seu corpo, a sua gestualidade, vestimenta e modos, marcados pela socialização no trabalho com a terra, faziam com que esses “colonos” se tornassem visíveis nas interações mais amplas. Como assinalado por Bourdieu em seu texto, o que encontramos aqui é uma estigmatização daqueles que vinham das regiões rurais e uma percepção de superioridade da cultura urbana. Trata-se de uma “objetivação” por meio de uma leitura imposta de sua localização social, de sua subjetividade, gostos, hexis e capacidades.

Seyferth (2011), em seus relevantes estudos sobre o campesinato brasileiro do Sul do Brasil, faz referências ao trabalho de Bourdieu chamando a atenção para a subordinação dos camponeses, que estão sujeitos à dominação política, econômica e cultural. Para Bourdieu (1977), os camponeses constituem-se como uma classe objeto porque são membros de uma classe despojada do poder e, inclusive, do poder de definir a sua própria identidade. São definidos por outrem, em sua diferença. E a estigmatização historicamente construída em torno da ideia de “colono(a) italiano” destaca essa condição. Eles eram os trabalhadores da terra, considerados rudes, de fala misturada, pouco letrados e associados também a um Brasil rural e distante da civilidade urbana desejada como símbolo de modernidade.

Para Azevedo (1982, p. 269), esse estigma começou com a urbanização e a industrialização que “(...) produzem a clássica dicotomia entre o citadino e o camponês. O urbanita diferencia-se e se distancia gradualmente do colono que passa a uma categoria social própria, inferior à daquele”. De acordo com Seyferth (1993, p. 38): “No seu significado mais geral, a categoria colono é usada como sinônimo de agricultor de origem europeia, e sua gênese remonta ao processo histórico de colonização (...)” e, ainda, “a categoria colono foi construída, historicamente como uma identidade coletiva com múltiplas dimensões sociais e étnicas (SEYFERTH, 1993, p. 60)”. Ou seja, o colono é aquele agricultor que reivindica para si uma origem étnica diferenciada, que se reconhece e é reconhecido nessa construção de pertencimento; no caso aqui apresentado, da colonização italiana. Contudo, não se pode esquecer que o Rio Grande do Sul formou campesinatos de origens étnicas diversas, como alemães, russos, poloneses, afrodescendentes, pomeranos, franceses, suíços, entre outros. E, em algumas colônias mistas, esses diferentes campesinatos conviviam em vizinhança e proximidade. Pode-se também apontar o importante papel desempenhado pela religiosidade que se tornava, em alguns contextos, uma linguagem compartilhada, especialmente entre os católicos e que, por meio dela, geravam-se identificações e capital social, como “redes duradouras de relacionamentos” (BOURDIEU, 1980a, p. 1). Estabeleciam-se, assim, conexões que possibilitavam negócios, casamentos, entre outros.

Observamos atualmente uma disputa de significados em que ora o termo “colono” é visto como emblema, associado aos pioneiros que chegaram ao Brasil sem nada, progrediram e enriqueceram, ora é um estigma, utilizado pejorativamente para se referir à população rural, num sinal de “atraso”. Essa dicotomia de significados deve ser observada no cenário das questões agrárias brasileiras também. E os colonos do Sul do Brasil expandiram-se para o Centro-Oeste, Norte e Nordeste, levando consigo as forças simbólicas das construções de colono, de pioneiro, de imigrante. Nessa mobilidade, a terra e a família sempre foram motores impulsionadores.

Segundo Teixeira:

Disto resultou a frequente utilização do termo colono como instrumento de ofensa, em especial contra os descendentes de colonos. Registrei inclusive um caso de ação judicial provocada por este tipo de ofensa, movida por um influente industrial, neto de imigrantes italianos, em Caxias do Sul, na década de 1960. (1988, p. 54)

Em entrevista realizada por Zanini na região de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, um descendente de terceira geração define o colono: “(...) é aquele que tem pouca cultura, anda sujo, de chinelo, pé no chão, está sempre sujo de pó, de coisa, trabalha com boi, com vaca (...)” (ZANINI, 2002, p. 295).  Bourdieu (1999) afirma que o outro objetiva o camponês e, por meio dessa objetividade, o camponês constrói a sua subjetivação. Talvez seja esta a razão pela qual os entrevistados de Zanini preferem se definir como agricultores e não como colonos. Além disso, há que se observar que, nas terminologias trazidas pelas políticas públicas e pela garantia dos direitos, a autoidentificação como agricultor(a) familiar tem se mostrado publicamente mais usada e reforçada, porque legitimada e reconhecida pelo Estado. Denominam-se colonos entre si, por meio das origens étnicas e dos processos memorialistas em que a história dos pioneiros e primeiros colonizados ocupa um papel muito importante nas sagas familiares.

          Sobre isso, destacamos a afirmação de Bourdieu:

(…) a ciência social deve levar em conta o fato da eficácia simbólica dos ritos de instituição, ou seja, o poder que lhes é próprio de agir sobre o real ao agir sobre a representação do real. (1996, p. 99)

Ou seja, as narrações, rememorações e compartilhamentos das histórias sobre os pioneiros, a travessia e os primeiros anos no Brasil constituem-se como elementos eficazes para fomentar o sentimento de pertencimento e compartilhamento no grupo de descendentes daqueles primeiros imigrantes. São também capital simbólico e social gerador de distinções num mercado de bens simbólicos, em que a ascendência italiana gera descrição e valoração.

         

Gênero, família e terra entre ‘italianos’ no Brasil

Algumas questões importantes que podem ser observadas entre imigrantes italianos e seus descendentes no Sul do Brasil estão vinculadas à família como valor e suas lógicas de reprodução, bem como às práticas consentidas e consideradas aceitáveis no mundo camponês majoritariamente católico. Zanini (2004) observa que, do ponto de vista da subjetivação, a família pode ser compreendida como um patrimônio ao agregar valor ao indivíduo que invoca sua origem. Nesse sentido, pode-se pensar a família, como nos alerta Bourdieu (1980b), como uma “ficção” bem fundamentada, mas uma ficção que faz sentido e que orienta práticas. É a família que organiza o trabalho, baseado na sua divisão sexual e na autoridade paterna; é ela que dita a herança da terra, que ainda tende a excluir as mulheres e alguns filhos; é ela que gerencia a distribuição do excedente e do capital acumulado, baseando-se ainda em lógicas patriarcais; é ela que dita as lógicas de casamento e de escolha de parceiros, privilegiando a endogamia; é ela que gerencia a vivência e a socialização no mundo do trabalho camponês e a aprendizagem de suas habilidades; a transmissão do gosto e do capital cultural; a organização do cuidado, que privilegia as mulheres, entre tantas outras práticas que são conduzidas pela família como instituição socializadora. Como salienta Bourdieu (1962), no mundo camponês, sexo e ordem de nascimento são cruciais. Não se pode pensar o mundo camponês como um mundo igualitário. Poderíamos dizer que, nessa desigualdade, há regras patrilineares e patriarcais, honra, patrimônio, autoridade e lealdade.

Da mesma forma, os textos de Bourdieu (1962, 1972) sobre celibato e estratégias matrimoniais vão gerar inúmeras reflexões e utilizações nos estudos sobre populações camponesas no Brasil. Embora incomum no processo de colonização histórico, contemporaneamente se observa que o celibato, a masculinização e o envelhecimento da população de origem italiana têm se acentuado. Como constado por Carneiro (2001), as estratégias para a herança e a reprodução da condição camponesa têm se transformado na região de colonização italiana da serra gaúcha nas últimas décadas. Contudo, o peso e a importância da família como algo a ser preservado e considerado é presente. Arranjos esses também observados por Zanini (2002) em seus estudos com famílias de descendentes na região central do Rio Grande do Sul.

Klaas Woortmann (2004), analisando os trabalhos etnográficos de Bourdieu, destaca questões como a diferença entre o parentesco genealógico (e, portanto, oficial) e o parentesco prático. O autor assinala ainda que as normas e as regras enunciadas pelo grupo nem sempre correspondem às práticas e que as estratégias matrimoniais também estão submetidas à eficácia simbólica. São transformações que se tornam possíveis nos diálogos entre questões estruturais e relativas aos processos de transformação e possibilidades de reprodução da condição camponesa. Além disso, entre os descendentes de imigrantes italianos no Sul do Brasil, o número de filhos e de herdeiros tem se transformado. Se, no passado, a religiosidade católica incentivava a prole extensa, no presente, observa-se que é comum os casais terem somente de dois a três filhos, o que possibilita negociações e arranjos na sucessão. O casamento, como salienta Bourdieu (1962), é também um momento de redefinição dos meios de produção. Nesse sentido, embora possa se pensar que seja uma decisão individual, muitas vezes não é. Trata-se de uma decisão coletiva. Dessa forma, a historiografia pode auxiliar o pesquisador, bem como os dados documentais que possibilitam compreender como os casamentos e as transmissões de propriedades se dão na prática. O casamento envolve, no mundo camponês, um nome (patrilinear), patrimônio, honra e alguma desigualdade.

Em outro texto, Klaas e Ellen Woortmann comparam casamentos camponeses de diferentes sociedades utilizando as reflexões de Bourdieu (1962, 1972) e encerram o trabalho discutindo as estratégias matrimoniais de descendentes de alemães nas áreas rurais do Rio Grande do Sul (WOORTMANN; WOORTMANN, 1990). Casamento, família, terra e trabalho costumam estar em sintonia. O amor romântico, embora presente nas narrativas acerca das escolhas matrimoniais, é negociado com outras lógicas presentes no mundo camponês de origem italiana, como as aptidões para o trabalho camponês, a religiosidade e outras “virtudes” esperadas dos cônjuges. De maneira análoga, Seyferth (1985) destaca as estratégias matrimoniais dos descendentes de imigrantes alemães em Santa Catarina, ressaltando que os casamentos endogâmicos se dão como uma forma de manutenção de uma identidade camponesa e, sobretudo, da propriedade da terra. Contudo, eles acontecem “[…] por razões de ordem étnica, religiosa, e também por considerações acerca dos valores camponeses. No primeiro caso, são admitidos os casamentos entre colonos de origem italiana e alemã” (SEYFERTH, 1985, p. 23).

Como observado anteriormente, muitas das reflexões sobre o comportamento dos descendentes de imigrantes alemães são bastante semelhantes às dos descendentes de imigrantes italianos, basicamente porque não são costumes “italianos” ou” alemães”, mas camponeses, especialmente os de origem europeia. Nesse sentido, é importante destacar a importância do cristianismo e das lógicas patriarcais. Percebemos, nos dois grupos, a constituição de famílias extensas que são também força de trabalho para a lavoura familiar. Para Beneduzi:

A família era a expressão da continuidade da ordem moral. Ela constituía-se ao mesmo tempo em peso a carregar e força de trabalho, que, unida, trazia a esperança. Quando os filhos eram pequenos, em uma estrutura voltada para o trabalho braçal, vinculado à terra, as muitas bocas a alimentar e os poucos braços a labutar sinalizavam um grande esforço de sobrevivência, um grande fardo. Entretanto, a partir do momento em que a prole começa a adquirir força para o trabalho, esses novos braços indicam o porvir de uma fase de maior produção e abundância. (2011, p. 100)

Elucidando algumas perspectivas de Bourdieu acerca do tema, destacamos as reflexões de Brumer e Anjos (2008), quando observam que:

Nas ciências sociais francesas, a discussão que Bourdieu estabelece com o estruturalismo a respeito da instituição das práticas sociais deu origem à noção de sistema de estratégias de reprodução (BOURDIEU, 1994, p. 3). Rompendo com uma perspectiva na qual a reprodução social é ditada por regras externas aos agentes sociais, este autor propõe o estudo das estratégias pelas quais diferentes categorias sociais reproduzem sua posição no espaço social a partir de uma socialização que engendra determinadas disposições (BOURDIEU, 1994, p. 5). Ao contrário das perspectivas de Edholm, Harris e Young, e de Jelin, tais estratégias contemplam domínios referentes à fecundidade e à profilaxia (ligadas à reprodução biológica), as estratégias educacionais, matrimoniais, econômicas (orientadas para aumentar ou conservar os capitais disponíveis), simbólicas e de sucessão (BOURDIEU, 1994, p. 5-6), e se engendram nas famílias. Tais estratégias estão sistematicamente relacionadas, ou seja, são empregadas conjuntamente ou de forma articulada em diferentes pontos do tempo (BOURDIEU, 1994, p. 6). A implementação de tais estratégias se dá de acordo com o estado dos mecanismos socialmente objetivados de reprodução social (tais como os “mercados” econômico, escolar, matrimonial, de trabalho e as regras jurídicas e as chances diferenciais de ganho que estes oferecem para os indivíduos e/ou famílias (BOURDIEU, 1994, p. 7). Esta concepção é retomada aqui para analisar diferentes formas pelas quais os membros de famílias inseridas na agricultura familiar em diferentes contextos sociais reproduzem-se socialmente e dão continuidade a esta atividade social.

As estratégias matrimoniais são fundamentais para a manutenção do grupo, não só pela reprodução física, mas também pela social. Nas políticas de identificação, a produção, a manutenção e o aprofundamento de distintividades tornam-se práticas importantes, produzindo sinais diacríticos e marcadores sociais das diferenças. Segundo Seyferth:

Às mulheres – mãe e avó – é atribuído o papel de educar filhos e netos nos princípios da cultura trazida da nação originária. A origem comum é apenas um qualificador incompleto da identidade étnica, pois esta presume, igualmente, a prática cultural compartilhada pelos membros da comunidade. Os argumentos a favor da endogamia são relacionados à função da família como transmissora da língua e dos costumes para os descendentes. (2000, p. 166)

Como também observado por Brumer e Anjos (2008, p. 11), “(...) a ‘sucessão’ pode ser diferenciada da ‘herança’, já que, em diferentes contextos, a partilha da terra é uma possibilidade que não se realiza, sendo contornada pela substituição de outras formas de dotação do patrimônio (…)”. Ou seja, há apenas um sucessor, mas pode haver vários herdeiros. O que vai determinar a partilha ou não da terra é o tamanho do lote a ser dividido e a possibilidade do chefe da família de comprar terras para os outros herdeiros ou de indenizá-los de formas substitutivas. Entre as famílias de origem italiana, era comum dar de presente para a noiva, em seu matrimônio, um bem, algum animal ou valor monetário. No enxoval, era comum presentear o casal com utensílios que lhe possibilitassem o início de um novo núcleo familiar. No passado, a residência poderia ser na casa dos pais do noivo, especialmente se fosse o filho menor que, nas regras do minorato, seria o herdeiro preferencial. Hoje a regra de residência predominante é a neolocal, mesmo que, por vezes, faça-se uma residência no mesmo lote em que residem os pais de algum dos cônjuges.

De acordo com Bourdieu:

O trabalho de reprodução esteve garantido, até época recente, por três instâncias principais, a Família, a Igreja e a Escola, que, objetivamente orquestradas, tinham em comum o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes. É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculina; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem. (2002, p. 103)

As relações reprodutivas que ocorrem na esfera doméstica devem ser observadas como tão importantes quanto às de produção, pois são elas que, baseadas nos valores e práticas, promovem a reprodução da esfera produtiva. Woortmann (1987) utiliza a teoria e a terminologia marxista para demonstrar que as atividades femininas são tão econômicas quanto as do marido. Para a autora, as panelas, as frigideiras, o forno e o fogão podem ser considerados “meios de produção”. O alimento cru que elas preparam é a “matéria-prima” utilizada para alimentar os membros da unidade doméstica, possibilitando sua existência. Além disso, os serviços de arrumação e de limpeza são usufruídos por todos na família. Podemos salientar também o cuidado com os idosos e as crianças, que é delegado às mulheres. Não sendo remuneradas, as mulheres geram renda direta ou indiretamente. Em função disso, Woortmann conclui que o papel da mulher, mesmo que não exerça um trabalho remunerado, é tão econômico quanto o do marido, pois a família não poderia criar seus filhos sem o trabalho dos dois. Se as teorias feministas e os estudos de gênero contemporâneos introduzem a possibilidade de observar as mulheres como agentes e protagonistas de processos sociais no mundo camponês de origem italiana, a perspectiva de Bourdieu em A dominação masculina é também pedagógica e apropriada, uma vez que essa dominação se processa por meio da internalização e subjetivação das classificações que colocam as mulheres em posição de subalternidade, especialmente nas decisões que envolvem capital econômico e terra. Não se pode, porém, generalizar. As regras de herança e sucessão, os casamentos preferenciais e outras práticas apontam o quanto as mulheres ainda estão submetidas a condições de trabalho não valorizadas, especialmente o trabalho doméstico e de cuidado. Muitas dessas atividades são consideradas menos importantes e não contabilizadas em suas extenuantes jornadas: da casa para as lavouras, das lavouras para as casas e também em atividades de produção de renda como o turismo, as feiras e as agroindústrias familiares. Além disso, não se pode esquecer que o direito à aposentadoria das mulheres camponesas somente foi conquistado por meio da Constituição de 1988. Essa dominação, seja exercida pelo grupo sobre as mulheres, seja advinda de esferas mais amplas, tem seu teor de violência, de um poder simbólico que circula entre subjetivações e objetivações. Como ressalta Bourdieu (2006a, p. 7-8), esse poder, que é invisível, “o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Ver-se nesses emaranhados de reprodução, legitimação e exercício de poderes nem sempre é fácil, especialmente quando pensamos em relações de gênero no interior da família.

No caso dos descendentes de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul, a importância da organização do trabalho familiar e coletivo, quando relações de gênero, de geração e de poderes internos se tensionam. As mulheres realizam o trabalho de reprodução biológica, mas também social. São elas que, no cotidiano, transmitem, mantêm e negociam as identificações e seus atributos de geração em geração. São elas que preparam os alimentos de acordo com as lógicas grupais, cuidam da casa, dos idosos, das crianças, da horta e dos animais e ainda socializam as novas gerações naquele mundo e estilo de vida.               

Voltando a Bourdieu:

(...) uma parte muito importante do trabalho doméstico que cabe às mulheres tem ainda hoje por finalidade, em diferentes meios, manter a solidariedade e a integração da família, sustentando relações de parentesco e todo capital social com a organização de toda uma série de atividades sociais ordinárias, como as refeições, em que toda a família se encontra, ou extraordinárias, como as cerimônias e as festas destinadas a celebrar ritualmente os laços de parentesco e assegurar a manutenção das relações sociais e da projeção social da família (...). (1999, p. 52)

É interessante notar que existe também um lugar no imaginário social ligado ao cuidado e ao afeto na produção do gênero feminino por meio da elaboração da comida e há, por consequência, uma sobrecarga das mulheres nessa tarefa associada ao espaço doméstico (SANTOS; ZANINI, 2008). As autoras, nesse estudo, assinalam o quanto a comida, sua produção, distribuição e consumo são elementos cruciais na vida cotidiana das famílias de descendentes de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. A comida, além de alimentar os corpos camponeses, que também são objeto de análises de Bourdieu (2006a), possibilita a socialização e a reprodução dos gostos, de hexis e do habitus. É também poder em um sentido de escolhas para a reprodução do grupo doméstico. Afinal, quem pode comer o melhor alimento e quem serve, sendo responsável por essa escolha? Quais valores e construções estão presentes nas regras de comensalidade e de distribuição de alimentos? Isso se torna muito importante, especialmente em cenários de escassez, quando a hierarquia se impõe. Quando os imigrantes italianos saíram da Itália, no final do século XIX e início do século XX, o cenário era de escassez de alimentos, contudo o processo colonizador no Brasil trouxe abundância e novas possibilidades alimentares. Os corpos, acostumados a pouco consumo de proteína e calorias, serão reeducados para a abundância, e a comida se tornará um elemento importante nas construções identitárias da italianidade no Sul do Brasil.

Como o corpo é educado para o trabalho? E por quem? O que o corpo camponês diz sobre sua historicidade? Corpos esses que, no mundo camponês de origem italiana, devem ser explorados e domesticados em seus limites, disciplinados e educados para o trabalho árduo e a obediência de filhos para com seus antecessores (pais, avós, irmãos mais velhos, tios). Corpo que, marcado pela condição histórica, gesticula, faz das mãos ferramentas de trabalho e que ainda merece ser objeto de mais análises empíricas, especialmente entre as mulheres. O adoecimento no campesinato é elevado, silenciado, domesticado também. E, nesse sentido, a obra toda de Bourdieu é muito importante porque nos remete às lógicas do poder e suas transversalidades.

         

Considerações finais

Pudemos perceber o quanto a teoria e as perspectivas metodológicas de Pierre Bourdieu são relevantes para se pensarem questões do mundo do trabalho, de gênero e família, bem como os diversos elementos que interferem na vida cotidiana e nos processos identitários de homens e mulheres descendentes de imigrantes italianos no Sul do Brasil. Trata-se de um coletivo que se reconhece e busca ser reconhecido como pertencente a um mundo em que há valores que ainda são muito relevantes, tais como a família como valor e geradora de práticas, o trabalho como virtude étnica e a religiosidade católica como perspectiva de vida e de mundo. Nesse conjunto, deve-se pensar a construção de um campesinato que, como classe objeto, sequer pode construir uma leitura de si mesmo, mas que a recebe imposta, com classificações estigmatizantes e desqualificadoras. Isso pode ser observado, de uma forma pragmática, por vezes, nas classificações que circulam e que findam, por meio de sua instrumentalização, tornando-se legitimadas, como a de agricultor familiar, por exemplo, em detrimento da noção histórica de “colono”. Colono seria, num sentido construído, aquele camponês que reivindica para si uma origem diversificada da nacional. Neste artigo, mostramos o quanto essa noção, no caso dos imigrantes italianos e seus descendentes, foi estigmatizadora e estigmatizante.

Também devemos assinalar a contribuição significativa da obra de Bourdieu para os estudos de campesinato brasileiros, sobretudo aqueles que têm o Rio Grande do Sul e os camponeses de origem europeia como sujeitos. Objetivamos aqui traçar alguns paralelos entre a obra do autor e uma situação histórica específica, observável empiricamente no Sul do Brasil, fruto de uma história agrária particular. A imigração italiana para o Sul do país e o processo colonizador que a envolveu são extremamente ricos, pois nos permitem um diálogo com a perspectiva teórica de Bourdieu quanto às questões de gênero e herança, região, escolhas matrimoniais e outras. Ainda poderíamos ter falado do Estado, de classe, da juventude e das questões geracionais, entre outros temas que estão presentes na vasta obra do intelectual francês.

Apontamos aqui quanto a perspectiva de Bourdieu nos conduz a olhar o campesinato para além do capital econômico é fértil. Olhar para questões como honra, reciprocidade, lealdade, dominação e outros capitais que circulam nas práticas é muito relevante e nos ajuda a compreender determinadas escolhas, arranjos e dinâmicas. Para isso, é necessário um conhecimento das construções de sentido, das lógicas de poder e de trânsito de pertencimentos, como apontamos no artigo ao elaborar esse exercício interpretativo do campesinato de origem italiana com as ferramentas analíticas deixadas por Bourdieu. A historiografia, nesse sentido, é extremamente importante, pois nos possibilita uma análise em que é possível identificar as escolhas, arranjos e tensionamentos que permanecem ao longo do tempo e os que se modificam.

Em suma, a obra de Bourdieu é uma vastidão de possibilidades para se refletir acerca dos campesinatos. Escolhemos neste artigo um recorte situado nas questões históricas e etnográficas por nós constatadas em nossas pesquisas de campo no Rio Grande do Sul, que salientasse como a obra de Bourdieu foi fundamental nas análises e nas escolhas metodológicas que fizemos. Com certeza, ainda há muito que valorizar na obra do autor para se pensarem os campesinatos no Brasil.

 

 

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Como citar

ZANINI, Maria Catarina Chitolina; SANTOS, Miriam de Oliveira. Colonos italianos no Sul do Brasil: reflexões partindo da obra de Bourdieu. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e2230210, 7 dez. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_st04.

 

 

Maria Catarina Chitolina Zanini

Professora Titular no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutora em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutora pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).

cmzanini@ufsm.br
https://orcid.org/0000-0003-4523-9915
http://lattes.cnpq.br/4222381114451307

 

Miriam de Oliveira Santos

Professora Associada dos Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e de Geografia do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (IM-UFRRJ). Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutora no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e na Universidade do Algarve, Portugal.

mirsantos@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0001-9177-2417
http://lattes.cnpq.br/6150444010498123

 



                                   

 

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[1] Professora Titular no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutora em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutora pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). E-mail: cmzanini@ufsm.br.      

[2] Professora Associada dos Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e de Geografia do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (IM-UFRRJ). Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutora no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e na Universidade do Algarve, Portugal. E-mail: mirsantos@uol.com.br.       

[3] Temos que pensar aqui que era a década de 1960.

[4] Grupo argelino estudado por Bourdieu.