v. 30, n. 2, julho a dezembro de 2022 (publicação contínua), e2230205
Recebido: 4.ago.2022 • Aceito: 23.set.2022 • Publicado: 7.out.2022
Resenha /
Acesso aberto
Migração, militância e modernidade
Migration, militancy and modernity
Marcos Paulo Campos [1] |
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https://doi.org/10.36920/esa-v30n2-r1
Resumo: Resenha do livro MST: como um movimento de "gaúchos" se enraizou no Nordeste, de Débora Franco Lerrer.
Palavras-chave: resenha; MST; migração; movimentos sociais..
Abstract: Review of the book MST: como um movimento de "gaúchos" se enraizou no Nordeste, by Débora Franco Lerrer.
Keywords: review; MST; migration; social movements.
LERRER, Débora Franco. MST: como um movimento de "gaúchos" se enraizou no Nordeste. Curitiba: Appris, 2021. 315 p.
A obra de Débora Franco Lerrer chega às nossas mãos quando o Movimento Sem Terra (MST) caminha para celebrar 40 anos de organização política e mudança social no campo. Esse processo foi acompanhado de reformulações nos estudos rurais que deixaram de ser centrais para as ciências sociais no Brasil, mas mantiveram importância significativa em razão da produção agrícola voltada ao mercado externo seguir desenhando os limites e as possibilidades do agrorreformismo e da industrialização na sociedade brasileira. Os estudos sobre o MST são um campo importante de reflexão intelectual, situado na intercessão entre as análises sobre movimentos sociais e as pesquisas a respeito da questão agrária nacional. Débora Lerrer, ao apresentar um trabalho sobre a chegada do MST no Nordeste como um processo de migração militante, contribui enormemente para a compreensão da nacionalização do Movimento e para o aprofundamento de perspectivas que consideram o fazer dos movimentos sociais pelas ações de seus integrantes (THOMPSON, 1987). Isso se torna ainda mais relevante quando os conflitos dessa construção política são escolhidos pela autora como o fio condutor do entendimento das contingências próprias ao cotidiano dos agentes da transformação social, desmontando olhares encantados ou a atitude engajada que nubla os conflitos em favor de uma imagem idealizada da ação política.
Os deslocamentos de militantes sulistas do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) em direção aos sertões da Bahia, do Piauí, de Sergipe e da Paraíba constituem o percurso analítico de Débora Lerrer na obra em foco. Essa migração militante permite à autora investigar o trânsito social moderno em uma nação da periferia do capitalismo. Nesse sentido, os resultados da tese de doutorado de Lerrer colocam em plano principal as diferenças regionais brasileiras, os processos desiguais e combinados de crescimento econômico e exclusão social e a possibilidade de dirigir esses mesmos processos em favor da democratização política. O caráter provocativo do livro está na reflexão sobre o papel modernizante próprio à migração dos militantes do MST e no questionamento da atribuição de moderno como algo exclusivo ao deslocamento dos sojicultores sulistas em direção ao Nordeste.
Os conceitos de Alain Touraine estruturam as discussões da obra e impulsionam a autora para perceber a ação coletiva do MST como capaz de colocar em questão concepções hegemônicas. Nesse agir coletivo, os laços de apoiamento e colaboração ganham relevo, com destaque para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Pastoral da Juventude (PJ) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Débora Lerrer captura trajetórias de militantes que nasceram em um terreno de intersecção entre vida religiosa e engajamento político. A autora admite que muitos dirigentes e membros do MST, em algum momento, romperam com um caminho pessoal que desembocaria em sacerdócio ou vida religiosa no interior da Igreja Católica. No entanto, ao construírem o MST, esses militantes acabaram se valendo dos métodos de organização e ação pastoral do setor progressista do catolicismo.
O catolicismo progressista, como demonstra a autora, propôs um trabalho de organização política voltado às bases empobrecidas da sociedade e obteve forte respaldo popular em razão disso. O sindicalismo rural da década de 1970 foi questionado pelos católicos progressistas que o apontavam como assistencialista, burocratizado e exageradamente institucional. O MST, portanto, também surgiu como um modo alternativo de organização para as populações pobres do campo, sobretudo pela atuação menos verticalizada e mais comunitária. Essa proposta alternativa, muitas vezes, foi apresentada e construída entre os empobrecidos do meio rural a partir da liderança de agentes da pastoral católica ou ex-membros dessa mesma corrente de ação política. A relação do MST com o Estado é uma dimensão que também se apresenta em corte diferenciado da relação entre o sindicalismo rural e as instituições do poder. O Movimento possui maior elasticidade de formas de organização, com destaque para a ocupação de fazendas improdutivas, apresenta uma demanda de acesso à terra por meio de ações no limiar da ordem legal e se propõe a seguir estruturando as comunidades rurais depois de iniciados os projetos de assentamento. Débora Lerrer demonstra que os assentamentos oriundos da luta do MST experimentam novas formas de organicidade, implicando vínculos duradouros com o Movimento para além do momento específico da ocupação de terra.
A formação de vínculos de solidariedade comunitária nos assentamentos do MST, quando colocada em perspectiva histórica, significa uma espécie de novo momento do campesinato brasileiro. Isso fica nítido na reconstrução histórica do problema agrário no país pela qual a autora situa a persistência da concentração fundiária, desde a colônia ao período imperial, e da mobilização social no campo. Débora Lerrer reconhece o nascimento da República como processo não inclusivo para os pobres rurais e analisa o papel do Exército como elemento constitutivo do Estado nacional, mais ou menos em substituição ao rei na defesa da unidade nacional contra a ordem privada. Em seguida, a autora apresenta o período liderado por Getúlio Vargas como assentado em uma flagrante contradição porque o líder gaúcho não queria contendas com os donos de terras e, ao mesmo tempo, preferia não estimular o êxodo dos trabalhadores do campo para a cidade. O Estado Novo (1937-1945), nascido das fraturas que levaram à ruína o acordo oligárquico que sustentou a República Velha, foi o responsável por modernizar e industrializar o país em um ambiente de fortes restrições à participação política.
Os anos de 1950 e 1960 aparecem na obra de Lerrer tal como consolidados na literatura da sociologia rural brasileira, ou seja, como um período de efervescente mobilização política no campo (MEDEIROS, 2003). Entre tantas propostas de mudança agrária, o reordenamento fundiário se torna um tema central do debate nacional, recebendo trágica resposta com a militarização geral do ambiente social e político do país a partir do golpe de 1964. A efervescência pré-golpe é violentamente desmontada, reaparecendo nova agitação em favor da democratização da propriedade de terra e das relações políticas no campo no final dos anos 1970. É nesse contexto que as ocorrências da Encruzilhada Natalino no Rio Grande do Sul concorrem para a formação do MST.
Os anos de 1980 assistem à constituição do MST como movimento de massas em favor da reforma agrária no contexto da redemocratização. O processo de enraizamento do Movimento se deu por meio da realização de ocupações de terra nos 12 estados representados no I Congresso do MST. Ali ficou estabelecido, segundo a autora, uma tarefa comum aos coordenadores nacionais do Movimento, boa parte oriundos do movimento sindical ou da CPT, que seria retornar aos seus estados e organizar ocupações de terra para fincar a nova organização. Santa Catarina e Rio Grande do Sul testemunharam vigorosamente esse processo, chegando a ter 12 mil catarinenses ocupando terras simultaneamente. Isso ocorreu em paralelo à reconstrução da dimensão institucional da democracia no país que contou com um acordo de elites no qual o agrorreformismo foi escanteado (MARTINS, 1986). Não por acaso, o MST figurou entre as forças sociais de oposição ao governo Sarney (1985-1990).
A percepção de que as ocupações de terra não estavam acontecendo nos estados do Nordeste é o ponto central para a decisão de enviar militantes sulistas para a Bahia. Na terra de Jorge Amado, ocorreu uma espécie de laboratório de mobilização social no qual foi organizada a primeira ocupação de terra do MST no Nordeste. Antes disso, o Jornal dos Trabalhadores Sem Terra registrava orgulhosamente a organização do Movimento nos estados do Piauí e de Alagoas em trabalhos de formação militante que contavam com o apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT). A ocupação pioneira e o período de acampamento colocam em questão a construção da identidade sem-terra a partir do encontro entre sulistas e nordestinos no interior do Movimento. A autora registra o estranhamento inicial na convivência entre catarinenses e baianos que se dava por choques culturais, sotaques e modos diferentes de encarar a produção agrícola.
O intercâmbio de experiências e saberes entre sulistas e nordestinos foi fundamental para o desenvolvimento das soluções para o cotidiano dos acampamentos e para os processos produtivos e organizativos dos projetos de assentamento obtidos com a luta do MST. Nesse contexto, ganha relevância a relação entre religião e política e as diferenças geracionais, melhor dizendo, de gerações militantes dentro do Movimento. Débora Lerrer afirma que a primeira geração de militantes do MST trazia um componente religioso muito forte em razão da formação recebida na CPT e nas CEBs. A segunda geração também possuía forte componente religioso, mas além disso trazia algumas trajetórias sindicais.
As tensões entre sulistas e nordestinos assumem maior relevância quando se trata da organização da produção. A autora realizou entrevistas nas quais militantes sulistas questionam uma presentificação em excesso por parte dos nordestinos. Segundo os entrevistados, os nordestinos teriam menor preocupação com o futuro, estando mais focados no hoje, na sobrevivência, na garantia de alimento para os filhos. Esse foco nas demandas do presente e no núcleo familiar mais imediato seria responsável pela dificuldade de estruturação de cooperativas e grupos coletivos nos assentamentos do MST na Bahia e nos demais estados do Nordeste.
A percepção sobre a ambição econômica, a capacidade de planejamento a longo prazo e o domínio das técnicas agrícolas são temas que perpassam as análises da autora que identifica trânsitos, trocas e compartilhamentos. Em certo momento, os entrevistados revelam percepções lineares, apontando manejos agrícolas já superados no Sul e vistos como novidades no Nordeste. Entretanto, Débora Lerrer apreende uma espécie de carpe diem dos sem-terra nordestinos, ou seja, sua forma de dedicar o tempo da vida mais a festejos, deixando de lado a preocupação com a conduta da acumulação econômica. Esse contexto sofre as alterações modernizantes, promovidas pelo Movimento e, principalmente, pelas políticas públicas que impulsionam processos produtivos e educacionais nos assentamentos da reforma agrária. A obra revela que os projetos de educação do campo foram capazes de alterar percepções em favor de um maior planejamento do futuro das famílias e comunidades assentadas, mas também trouxe uma valorização excessiva da hierarquia escolar. A migração de militantes do Sul para o Nordeste foi responsável por uma síntese cultural impulsionadora de mudanças em diversos níveis. Isso mudou territórios marcados por terras desocupadas e as vidas de toda uma população anteriormente espremida entre a opção de migrar para o Sudeste ou se contentar a uma pobreza secular.
O trabalho de Débora Lerrer, a despeito de tudo que desvendou, dialogou pouco com a produção intelectual de autores da própria região pesquisada. Teses e dissertações realizadas em programas de pós-graduação dos nove estados do Nordeste colaboraram na constituição de um conjunto significativo de estudos sobre o MST e sua estruturação na segunda região mais populosa do Brasil. Essa lacuna, entretanto, demarca um caminho que pode ser seguido por estudos inspirados no trabalho da autora. Ao final da obra, os leitores podem apreciar um apêndice de reflexões críticas que, segundo Lerrer, foram feitas após a conclusão da pesquisa da tese. Nessas reflexões, a autora aponta limites da reforma agrária nos governos nacionais petistas em tintas tão fortes que dificultam entender por que, na eleição de 2022, o MST optou por lançar candidatos ao parlamento por meio da filiação de líderes sem-terra ao PT. Se os governos petistas impuseram o silenciamento ao tema da reforma agrária, por qual motivo o MST percebeu o PT, no campo dos partidos de esquerda, como um aliado para uma tarefa tão importante? Essa pergunta demandaria aprofundar as intuições do ensaio crítico da autora em uma interessante agenda de pesquisa sistemática.
Outra questão que chama a atenção é a caracterização que a autora faz do governo FHC como involuntariamente mais positivo para a reforma agrária do que o período petista, em razão do foco do presidente sociólogo estar na política de liberalização. Entretanto, Guilherme Delgado (2010, 2013), citado pela autora, oferece pistas em contrário quando expõe em seus tratados a elaboração do pacto de economia política favorável ao agronegócio no contexto da crise cambial de 1999.
Os apontamentos críticos desta resenha não superam o interessante trabalho de Débora Lerrer em pensar o MST como agente da modernização. O MST significou, segundo a autora, um impulso em favor de assentamentos rurais mais eficientes economicamente, constituindo uma luta política centrada em preocupações educacionais e produtivas no estagnado mundo rural nordestino. O Movimento foi ainda mais modernizante por ampliar o horizonte de futuro no cotidiano de uma base social premida ao presente. Essa constatação e a pesquisa que a sustenta fazem da obra de Lerrer uma referência na agenda de estudos sobre movimentos sociais rurais no país.
Referências
DELGADO, Guilherme Costa. Especialização primária como limite ao desenvolvimento. Desenvolvimento em Debate, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 111-125, 2010. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dd/article/view/31914. Acesso em: 13 ago. 2022.
DELGADO, Guilherme Costa. Reestruturação da economia do agronegócio: anos 2000. In: STÉDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil: o debate na década de 2000. São Paulo: Expressão Popular, p. 57-88, 2013.
LERRER, Débora Franco. MST: como um movimento de "gaúchos" se enraizou no Nordeste. Curitiba: Appris, 2021.
MARTINS, José de Souza. A reforma agrária e os limites da democracia na "Nova República". São Paulo: Hucitec, 1986.
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta pela terra. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
Como citar
CAMPOS, Marcos Paulo. Migração, militância e modernidade. Resenha do livro MST: como um movimento de "gaúchos" se enraizou no Nordeste, de Débora Franco Lerrer. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e2230205, 7 out. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n2-r1.
Marcos Paulo Campos
Professor do Mestrado Profissional de Sociologia e da Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Pós-doutor pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) com doutorado-sanduíche no International Institute of Social Studies of Erasmus University Rotterdam (ISS-EUR).
marcospaulo_campos@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-1189-085X
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[1] Professor do Mestrado Profissional de Sociologia e da Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Pós-doutor pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) com doutorado-sanduíche no International Institute of Social Studies of Erasmus University Rotterdam (ISS-EUR). E-mail: marcospaulo_campos@yahoo.com.br.