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v. 30, n. 2, julho a dezembro de 2022 (publicação contínua), e2230213


Recebido: 11.jun.2022   •   Aceito: 21.nov.2022   •   Publicado: 13.dez.2022

Artigo original / Revisão por pares duplo-cego / Acesso aberto

 

 

Reprodução social das pescadoras e pescadores artesanais

Social reproduction of artisanal fishermen and fisherwomen


orcid_id.png  Cristiano Wellington Noberto Ramalho[1]   



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_06


Resumo: Este texto discute o que é ser pescador e pescadora artesanal a partir da categoria reprodução social. Do ponto de vista dos procedimentos metodológicos, entrevistas e observações diretas do cotidiano desses sujeitos sociais localizados nos estados de Pernambuco e Sergipe foram realizadas. Pode-se destacar que, nas diversas formas de ser e de fazer-se pescador e pescadora, a reprodução social expressa dinâmicas ecológicas, formas de trabalho, elementos históricos, culturais e inserção na totalidade social.

Palavras-chave: pescador(a) artesanal; reprodução social; Socioantropologia da Pesca.

 

Abstract: This paper discusses what it means to be an artisanal fisherman or fisherwoman via the category of social reproduction. In terms of methodology, interviews and direct observations of the daily life of these individuals in the states of Pernambuco and Sergipe were conducted. Notable among the different ways of being and creating oneself as a fishermen or fisherwomen was the way social reproduction expresses ecological dynamics, forms of work, historical and cultural elements, and insertion into the social totality.

Keywords: artisanal fishers; social reproduction; socioanthropology of fishing.

 

 

Introdução


“Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:

quando cheias de areia de formiga e musgo –

elas podem um dia milagrar em flores.”

 (Manoel de Barros)

 

“Sê sempre o mesmo.

Sempre outro. Mas sempre alto.

Sempre longe. E dentro de tudo.”

 (Cecília Meireles)

 

 

Uma assertiva ilumina este escrito, a de que “ser pescador artesanal é ser uma multidão de coisas num camarada só, que leva ele... ele leva isso pela vida pra ficar vivendo” (Pescador, Goiana-PE, 48 anos).[2]

Tal enunciado, além do que observei e pesquisei em campo, fez-me pensar que há muitas expressões, tipos e processos fundantes da pesca artesanal, que possuem características regionais e universais, podendo, também, apresentar-se em uma mesma localidade no tempo e no espaço (pesca de caranguejo, de marisco, embarcada em alto-mar etc.).

Tudo isso a depender de questões históricas, das possibilidades de respostas dos sujeitos e das condições naturais disponíveis, cujos elementos combinados projetam-se em pluralidades nas formas de fazer-se pescador e pescadora[3] artesanal no Brasil. Pluralidades contidas em aproximadamente 1 milhão de pessoas que vivem diretamente da pesca artesanal no país, segundo dados oficiais (MPA, 2012), que também carregam universalidades.

Apoiando-me mais no argumento do pescador, para não prender-me aos marcos legais contidos na Lei de no 11.959, de 29/6/2009 que classifica a pesca artesanal como uma atividade “praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte”, pretendo guiar-me, ao longo deste artigo, pela seguinte interrogante: O que “é ser uma multidão de coisas num camarada só [o pescador e pescadora artesanal]?”

Para dar conta da mencionada indagação e tendo como base as realidades pesquisadas de pescadores e pescadoras artesanais de localidades dos estados de Pernambuco e Sergipe, utilizarei o conceito de reprodução social (será discutido adiante).

Nesse percurso a história oral foi essencial, no intuito de recuperar memórias coletivas numa íntima relação com a própria memória pessoal dos pescadores e pescadoras artesanais, de acordo com as experiências, representações sobre o passado e o presente e suas visões de mundo, onde “a memória, na verdade, não é um mero depósito de informações, mas um processo contínuo de elaboração e reconstrução de significado” (PORTELLI, 2016, p. 18). Assim, a história oral buscou resgatar, por meio dos relatos dos setores populares, histórias das vivências cotidianas ou de certos acontecimentos (AMADO; FERREIRA, 2006; MONTENEGRO, 2003), lembrando que, “em última instância, a história oral diz respeito ao significado histórico da experiência pessoal, por um lado, e ao impacto pessoal das questões históricas, por outro” (PORTELLI, 2016, p. 16).

A história oral aliou-se à observação direta, ao nos levar a ter um contato próximo com as realidades pesquisadas. É nesse cenário, do saber-fazer etnográfico, que o olhar e o ouvir expressam escolhas teórico-metodológicas e as provocam permanentemente, apresentando na escrita do etnógrafo quando este vai à memória do vivido in loco, seja para entender a realidade estudada, seja para conferir uma estrutura mais consistente ao seu próprio discurso científico. “Nesse sentido, os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de observação muito peculiar [...], por meio da qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender – a sociedade e a cultura do outro ‘de dentro’, em sua verdadeira interioridade” (OLIVEIRA, 2006, p. 34, grifos meus). Não esquecer que “nas pesquisas de campo é que a observação direta das ocorrências, formas de atuação social e situações de vida encontram larga aplicação. Contudo, mesmo nessa fase, a observação direta não se confunde com mera ‘verificação’ passiva do que ocorre no mundo ambiente” (FERNANDES, 2004, p. 132-133). 

Com base nisso, os procedimentos metodológicos estruturaram-se da seguinte maneira: 1) entrevistas feitas com 40 profissionais da pesca, sendo 20 de Pernambuco e os demais de Sergipe. Respeitou-se o recorte de gênero (50% dos depoimentos) e geracional, indo dos 19 aos 80 anos. Esses diálogos ocorreram em mais de uma oportunidade, visto que acompanhei esses trabalhadores e trabalhadoras ao longo da duração dos estudos feitos. Por exemplo, em Sergipe, esse período foi de março de 2011 a fevereiro de 2013 e, em Pernambuco, deu-se de junho de 2017 a dezembro de 2019;[4] 2) a escolha das(s) entrevistadas(os) fundamentou-se nos distintos tipos de pesca (em rios, manguezais, marítima etc.) de localidades diferentes. Em Sergipe ocorreu nos municípios de Aracaju, Barra dos Coqueiros, Estância, Pirambu, Santa Luzia do Itanhy; e em Pernambuco ocorreu em Goiana, Ilha de Itamaracá, Itapissuma, Olinda, Recife, Rio Formoso e São José da Coroa Grande; e 3) observação direta do dia a dia das pescadoras e dos pescadores artesanais (comércio, trabalho, lazer, reuniões nas Colônias e Associações de Pesca).

Vale dizer que, no último levantamento feito com os associados e associadas das Colônias de Pesca situadas apenas nos 16 municípios que compõem a faixa costeira de Pernambuco, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado (Semas-PE) constatou, em 2019, o número de 12.556 pescadores e pescadoras. Em Sergipe, segundo o Governo Federal (MPA, 2012), 20.086 pessoas viviam diretamente da pesca artesanal, sendo 56% pescadoras.

 

Ciências Sociais, pesca artesanal e reprodução social

No universo dos estudos das Ciências Sociais no Brasil sobre as sociedades pesqueiras, a questão da reprodução social apresentou-se – mesmo que não mencionada diretamente – como tema importante para se entender o trabalho, o modo de vida dos Povos das Águas,[5] particularmente diante das fortes mudanças vividas pelas regiões litorâneas do país nas últimas cinco décadas. Isso se deveu a um conjunto amplo e significativo de impactos gerados por inúmeros fatores, a saber, pesca industrial, crescimento urbano desordenado, aumento da poluição dos rios e mar, o turismo, a especulação imobiliária, o avanço da economia de mercado e a instalação de grandes empreendimentos públicos e privados.

Dessa maneira, continuidades e rupturas no mundo da pesca artesanal tornaram-se a base de inúmeras reflexões socioantropológicas nesse período, seja para discutir a modernização capitalista na pesca e o tipo de inserção dos pescadores nesse processo (DIEGUES, 1983, 1995; DIAS DUARTE, 1999; PESSANHA, 2003; KNOX, 2009), seja para desvelar situações de agravamento das condições ecológicas – dentre as quais a tragédia do petróleo de 2019 – e de vida dos trabalhadores da pesca (DIEGUES, 1983; LOUREIRO, 1985; RAMALHO, 2006; RAMALHO; SANTOS, 2021), seja para discutir as formas de “cercamentos” provocadas pela ação do Estado, turismo, aquicultura e algumas ações dos órgãos/leis ambientais em relação ao modo de vida e trabalho dos Povos das Águas (MILLER, 2012; DIAS NETO, 2015; RAMALHO, 2015), seja para identificar ações de resistências (políticas ou não) dos pescadores e pescadoras na defesa de seus territórios de morada e trabalho ou as maneiras de reprodução simbólica e material da vida (MALDONADO, 1993; DIEGUES, 2000, 2004; CUNHA, 2007; CALLOU, 2013; RAMALHO, 2017; ESTUMANO, 2020; RAMALHO; SANTOS, 2021; TARGINO, 2021).

Em que pese às tradições socioantropológicas distintas desses autores e autoras, pode-se destacar que a noção de reprodução social não emerge neles de modo estático, ou melhor, “frise-se que a ‘reprodução’ não implica repetição pura e simples, mas, pelo contrário, a adoção das modificações indispensáveis para assegurar a continuidade da vida social” (LIMA, 1997, p. 129), podendo, também, em certas situações, enfrentar barreiras para sua permanência.

Nos aspectos abordados pelos escritos destacados anteriormente (muitos deles ligados à Socioantropologia da Pesca ou que subsidiam esse campo de análise), vários elementos apareceram como relações intrínsecas à produção e à reprodução social das comunidades pesqueiras artesanais. Eles são importantes e revelam conexões entre si, que se alimentam mutuamente, dentre as quais se situa, como um dos temas mais expressivos, o trabalho e sua organização social.

A pesca artesanal é um tipo de organização do trabalho que “se funda na cooperação, sem a qual, nas condições técnicas dadas, o resultado pretendido, em face da envergadura e da complexidade das tarefas que envolvem, dificilmente poderia ser alcançado” (BRITTO, 1999, p. 89). Essa cooperação cumpre função valiosa para reprodução da pesca, com sua lógica de campanha:

[...] nota-se que o cálculo dessa repartição do produto reedita a noção de sociedade no trabalho, anteriormente mencionada indicando que os instrumentos de trabalho estão de tal modo integrados ao corpo social da campanha e da pescaria que acabam se confundindo com os próprios camaradas, adquirindo eles próprios, por extensão, os mesmos “direitos”, participando juntos de sua reprodução social. [grifos da autora]. (BRITTO, 1999, p. 125)

 Segundo Mourão, o próprio avanço de dinâmicas mais mercantis em determinadas regiões levaram o trabalho pesqueiro a ocupar papel de maior destaque que o da agricultura, a exemplo do que se deu com os caiçaras em São Paulo. Eles passaram a empregar maior parte de seus tempos nas pescarias, o que cobrou e foi resultado do desenvolvimento de uma nova racionalidade produtiva, no sentido weberiano do termo. Assim, “a pesca tende a especializar a população ribeirinha no sistema lagunar de Cananéia e, à medida que se desenvolve a comercialização e a tecnologia, o caiçara torna-se cada vez mais um pescador, distanciando-se da agricultura de subsistência” (MOURÃO, 2003, p. 127).

De modo geral, essa transformação no universo do trabalho e na dinâmica de reprodução pesqueira, especialmente por suas maiores incorporações ao mercado, realizou mudanças significativas. De fato, “cada vez mais, as chamadas pescas tradicionais artesanais foram incorporadas ao mercado e uma das consequências desse processo foi uma maior especialização numa só atividade e o abandono de outras” (DIEGUES, 2004, p. 37), buscando atender – em maior medida – os desejos do comércio e fazendo com que se passe mais tempo trabalhando nas águas. Ademais, “a poluição, que afeta a reprodução das espécies, também é fonte de sobrecarga de trabalho que, em vários casos, não permite rentabilidade ao investimento” (PLANTE; BRETON, 2005, p. 53), elevando a pressão sobre os estoques pesqueiros com base na precarização do trabalho do pescador, da pescadora.

Contudo, alguns grupos de pescadores e pescadoras, embora sintam os efeitos das mudanças mercantis, conseguiram manter maneiras plurais de apropriação da natureza, dos pescados, de inserção diferenciada, como estratégia para preservar, minimamente, certa autonomia socioeconômica, cultural e alimentar (MALDONADO, 1986; RAMALHO, 2021).

Nesse cenário, subsistir tem fina relação com a ideia de reprodução social, especialmente por apontar a importância da categoria trabalho, a saber:

[...] abrange todas atividades pelas quais os coletivos humanos obtêm seus meios de reprodução física. Trata-se do trabalho como tarefa funcional dedicada à satisfação de necessidades, mas também como atividade coletiva coordenada e distribuída entre os diferentes membros de um determinado grupo. A subsistência diz respeito, portanto, à relação com os recursos vitais, revelando que se trata sempre de uma relação coletiva. (CHARBONNIER, 2021, p. 30)

Reprodução social que não acontece circunscrita apenas ao mundo objetivo por conta da força da dimensão cultural, simbólica, porque é impossível pensar uma sem a outra, inclusive no âmbito da pesca artesanal. Na reprodução também se apresenta questões particulares e universais, singularidades e totalidade (FURTADO, 1993; MALDONADO, 1993; DIEGUES, 2000; KNOX, 2009; RAMALHO, 2017), ou seja, todo ser humano – mesmo em sua singularidade – “é necessariamente uma totalidade” (LUKÁCS, 1979, p. 85). Para Godelier (1984), as interpretações, visões, ideologias e valores de mundo dos grupos sociais acerca, por exemplo, da natureza combinam-se com os meios objetivos, materiais, atuando de forma integrada sobre parte do ambiente para fins da reprodução biológica e social.

Assim, o plano material é fertilizado de elementos culturais, de desejos de mundo, dotando de especificidades os sujeitos sociais. Compreender as águas como entes vivos, dotados de personalidades, de significados simbólicos e religiosos – e não apenas como um lugar de apropriação econômica – é componente expressivo do modo de vida, do trabalho, da reprodução social das comunidades pesqueiras artesanais (RAMALHO, 2017). A partir daí é possível entender que “a apropriação do espaço marítimo e de seus recursos é culturalmente construída, implicando a detenção de todo um código de saber-fazer ritualizado no universo pesqueiro ao longo do tempo que permite extrair da natureza a reprodução social dos pescadores artesanais” (CUNHA, 2007, p. 90).

 Muito disso também se liga à tradição de certos grupos de pescadores e de marisqueiras, sendo fundamental para explicar o que é “uma multidão de coisas num camarada só”, inclusive a tradição pesqueira. Tradição possível de entender como “[...] reprodução em ação” (WILLIAMS, 2008, p. 184), em que cultura é, também, desejo, projeto, devir. Para Lukács:

Tudo que a cultura humana criou até hoje nasceu não de misteriosas motivações internas espirituais (ou coisa que o valha), mas do fato de que, desde o começo, os homens se esforçaram por resolver questões emergentes da existência social. É a série de respostas formuladas para tais questões que damos o nome de cultura humana. (1969, p. 170)

E isso ainda guarda relação com a questão do conhecimento que o pescador e a pescadora possui da natureza, que não está desconectado das mudanças mais gerais da sociedade. De acordo com Furtado:

O conhecimento do ambiente em que vivem e a habilidade para fazer as coisas para utilizar esse ambiente, à medida que vão sendo transmitidos e absorvidos pelas gerações, transformam práticas, hábitos de vida, modos de apreensão e apropriação da natureza com traços característicos do povo no seio do qual são desenvolvidos. Ambos são apreendidos de modo empírico, pelo contato íntimo com a natureza (terra, água, floresta) e com o próprio homem. Mas, em sendo traços característicos, não implicam perenidade. O ritmo acelerado do processo de mudança no contexto da sociedade abrangente traz (e já está trazendo) efeitos modificadores para esses patrimônios culturais e/ou mesmo para redefinição nesses campos. (1993, p. 199)

A reprodução social, de fato, anuncia, ademais, a interação de sujeitos particulares com contextos sócio-históricos gerais, estruturas sociais, suas condicionantes e influências objetivas e simbólicas, que se somam àquelas de ordem ecológica. A reprodução social é o encontro de condições gerais e ações particulares, sendo marcada por mediações várias (culturais, religiosas, políticas, jurídicas, científicas, ambientais).

Sobre isso a dimensão histórica é relevante, especialmente ao mostrar o papel estratégico que as sociedades pesqueiras ocuparam no Brasil Colônia e Império para a (re)produção do sistema econômico hegemônico da época, a saber, segundo Silva:

[...] os pescadores, aos poucos, constituíram um grupo fundamental e imprescindível para a reprodução da sociedade colonial. A maioria da população – os escravos – bem como os demais grupos dominantes, não tendo meios para obter seu próprio alimento, precisavam tanto dos pequenos agricultores como dos pescadores. Estes últimos constituíram uma categoria sócio-profissional em separado, sobretudo a partir do século XVII, à medida que se expandiu a produção e o consumo do pescado (mesmo que muitos fossem pescadores e escravos ao mesmo tempo). Foi, portanto, desde a formação do escravismo colonial, que se desenvolveu uma categoria sócio-profissional específica no Brasil – os pescadores – que, a despeito de ser  extremamente explorada, adquiriu um caráter econômico autônomo e específico no conjunto da sociedade escravista colonial. (1988, p. 49-50)

Ademais, para Freyre:

Os engenhos antigos do Nordeste viviam muito do mar e dos rios: dos peixes, dos caranguejos, dos pitus, dos camarões, dos siris, que a dona de casa mandava os moleques apanhar pelos mangues, pela água, pelos arrecifes. Esses pescadores a serviço da casa patriarcal tornaram-se jangadeiros iguais aos caboclos; tão peritos quanto eles no traquejo das jangadas, das canoas e da rede de tucum, na caça aos jacarés, às emas e aos veados das margens dos rios. [...] O negro que a princípio só trabalhou no “verde-mar dos canaviais” depois tornou-se também operário do outro mar. (2004, p. 67)

Assim, mais do que uma mera vontade individual e/ou fruto exclusivo dos desejos de um determinado grupo social, a reprodução social significa uma permanente dialética entre totalidade societária e particularidades socioculturais, com suas possibilidades, alternativas, realizações, (des)continuidades, mudanças, rupturas que daí emergem. Sem dúvida, “a própria reprodução social global resulta da articulação de vários ciclos de reprodução correspondentes, às vezes, as lógicas sociais distintas” (DIEGUES, 1995, p. 35), fazendo com que, por exemplo, o capitalismo aproprie-se da pesca artesanal sem que isso represente desorganizar necessariamente sua produção e reprodução social por subordiná-la ao próprio marco do capital (LOUREIRO, 1985).

Contudo, o processo de reprodução de certos grupos, povos, etnias e/ou frações de classes sociais podem encontrar bloqueios, limites intransponíveis para a permanência de suas existências, em decorrência de contextos políticos, econômicos e sociais bastante adversos; e isso já ocorreu em vários momentos históricos com camponeses, indígenas, artesãos, algumas sociedades pesqueiras. No caso das questões ambientais, aspectos econômicos interferiram (e interferem) fortemente nisso, ao eliminar (ou negar) os meios físicos e ecológicos para a reprodução de alguns grupos sociais, ganhando amparo político e jurídico para tal finalidade.

As possibilidades e disponibilidades de condições naturais favoráveis são decisivas para a permanência da pesca. Para Diegues (2004, p. 91), “a crescente degradação dos ecossistemas costeiros, em particular dos estuários e lagunas, parece ser, no entanto, o fator que mais coloca em risco a reprodução social dos pescadores que operam dentro dos quadros da pequena produção mercantil”. Também tais contextos podem impor situações precárias de continuidade, criando ou agravando as condições de vida de coletivos sociais. Muito disso pode ser definido como quadros históricos de injustiça e racismo ambiental aos quais as comunidades pesqueiras estão submetidas, como aconteceu com a tragédia do petróleo que atingiu o Nordeste brasileiro a partir de agosto de 2019 (RAMALHO; SANTOS, 2021).

Em larga medida, a produção e a reprodução socioeconômica do modo de produção capitalista impõem, como totalidade social em seu movimento de expansão, seus ritmos, condições, formas de inserções, restrições a determinados grupos, comunidades e/ou classes sociais, trazendo as suas vidas “vários problemas ecológicos devido ao seu desejo insaciável de acumular capital” (SAITO, 2021, p. 130).

No caso das sociedades pesqueiras e por serem produtores primários, seus destinos caminham de mãos dadas com os das possibilidades ecológicas encontradas, o das possíveis alternativas de respostas via seu trabalho.

Decerto que:

[…] podemos legitimamente pensar que a dimensão “substancial” da ação coletiva, sobretudo na medida em que esta se orienta para o mundo dos recursos materiais, não pode ser reduzida ao simples jogo dos interesses individuais. Com ele se joga a reprodução do coletivo e de seu meio de vida, assim como das condições gerais de existência. (CHARBONNIER, 2021, p. 30-31)

Tais questões fundam-se no cotidiano, sendo estabelecidas a partir do lugar e das condições socioeconômicas, culturais e ecológicas encontradas pelos indivíduos na esfera societária da qual fazem parte, na sua interação e integração à totalidade social, nas ações coletivas orquestradas. Dentro desse cenário, os pescadores e pescadoras buscam construir, individual e coletivamente, alternativas materiais para sua reprodução ao longo dos anos, de acordo com contextos socioculturais determinados e as possibilidades ambientais que encontram, em que elementos locais e gerais entrelaçam-se nas dinâmicas de reprodução social. Por isso, ser pescador e pescadora é ter em si, também, uma “multidão de coisas”.

 

 

Ecologia, trabalho e pesca artesanal

Historicamente os pescadores e as pescadoras artesanais pertencem às camadas populares no Brasil. No primeiro momento do período colonial, populações indígenas e, depois, etnias africanas (e seus descendentes alforriados ou não) e pobres portugueses ocuparam a condição de pescadores(as) artesanais, de norte a sul, nos rios, mangues, estuários e nas águas marinhas, trazendo, na maior parte dos casos, antigas tradições e costumes de seus lugares  na lida com as águas, mesclando-se numa simbiose renovada no Brasil.

Uma das expressões materiais e imateriais mais conhecidas disso é a jangada. Embarcação de construção indígena que foi, no decorrer dos dois séculos iniciais de colonização portuguesa, incorporando técnicas e tecnologias lusitanas, como também africanas em seu fabrico e manuseio, que deram conta das especificidades da natureza marinha do litoral nordestino para realização de pescarias (CASCUDO, 1957, 2002; RAMALHO, 2021).

Como são diferentes os ambientes aquáticos, distintos são os tipos de pescados, bem como são múltiplos seus estados de preservação e/ou de impactos sofridos, fatores que exigiram (e exigem) de homens e mulheres a construção de conhecimentos marcados de singularidades, de simbologias, que foram capazes de permitir-lhes viver dos recursos naturais. Sem dúvida, “o trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível [grifos do autor]” (MARX, 2004, p. 81).

No caso da pesca artesanal, além dos instrumentos produtivos (barco e armadilhas), o conhecimento é o elemento mais decisivo, especialmente em virtude das próprias características do ambiente em que esse tipo de trabalho ocorre: oceano, rios, estuários. Esses ambientes estão sempre em movimento, são os meios vitais da pesca e forças vivas que cobram daqueles(as) que trabalham nas águas habilidades complexas, capacidades de integração aos ritmos da natureza, no intuito de decifrá-la para melhor se apropriar das suas potencialidades. Assim, as águas não são objetos passivos do trabalho pesqueiro, porque ela influencia o modo de vida, o ato produtivo.

Tudo isso acontece e ganha sofisticação devido aos equipamentos utilizados nas pescarias, que são artesanais e, em larga medida dos casos, tecnologias ancestrais de capturas. Por isso, o saber-fazer torna-se elo decisivo para a produção e reprodução das comunidades pesqueiras (DIEGUES, 1983; CUNHA, 2007; RAMALHO, 2020; TARGINO, 2021). O elenco dessas questões aviva-se em alguns depoimentos:

Dependemos da natureza, desse rio, mas o cara deve entender do que tá acontecendo nele. Precisa saber das coisas das águas, dos peixes, ventos, porque não utilizamos esses trecos modernos, equipamentos de tecnologia. E isso vem lá das antigas... da época de meu avó, que também pescava por essas bandas. (Pescador, Pirambu-SE, 26 anos)

É simples assim: pescador é pela sabedoria mesmo. Ele deve saber de tudo no mar. (Pescador, Ilha de Itamaracá-PE, 33 anos)

Vou com a maré. A gente conversa com ela. Por isso, a gente pesca... a gente é pescadora. E a gente pesca com esses instrumentos que mesmo fazemos... também pescamos assim com a mão. Acho que devido a isso chamam a gente.... a gente se chama disso também... de marisqueira.... de pescadora artesanal. Acho que devido ao fato de pescar com coisas simples é que precisamos conhecer bem essa maré.  (Pescadora, Santa Luzia do Itanhy-SE, 51 anos)

Ademais, cada ambiente de pesca, cada singularidade do pescado exige tipos de pescarias, formas específicas de ser pescador e pescadora, o que permite a existência de vários profissionais de pesca, conhecimentos próprios e modos de ser num mesmo ofício:

Pescaria de caranguejo é uma coisa, o sistema... o conhecimento é outro. De alto mar, lá no barco, pra passar dez, quinze, vinte dias, são outras habilidades, por conta do fato de ser outro lugar. Tudo é pescador, mas é pescador diferente. (Pescador, São José da Coroa Grande-PE 50 anos)

O cara é bom, por exemplo, na pesca de camarão, de peixe grande, mas, por ser uma prática dali, sabe, ele não pode desenrolar do mesmo jeito em ser pescador de mangue, de rio. A natureza é diferente mesmo. (Pescador, Estância-SE, 37 anos)

O trabalho de mariscagem das mulheres... é uma sabedoria delas... daquele ambiente mesmo, sobre aquele tipo de pescado. Ela vai ser diferente. Agora, olha o cara pegando tainha, manjuba... é outra forma de pesca. E se a pessoa, o cara pesca no mar aí é pescador diferente mesmo. (Pescadora, Itapissuma-PE, 45 anos)

De fato, as características ecológicas do oceano, rios e estuários impõem a quem nele realiza a sua pescaria a necessidade de um agudo saber-fazer, que congrega em si o controle do processo produtivo, pequena divisão social do trabalho, habilidades acerca das técnicas pesqueiras e, antes de qualquer aspecto, profunda compreensão da funcionalidade ecológica e de seu próprio trabalho. Acima de tudo, as características de seu principal objeto e meio de produção acabam sendo, em várias situações, aliadas para que os pescadores e pescadoras não percam, em forte medida, o controle das decisões socioeconômicas de seu trabalho, dos seus meios de vida. Nunca é demais lembrar que “a natureza como a ‘mãe’ da riqueza material fornece não apenas objetos de trabalho, mas trabalha ativamente junto com os produtores durante o processo de trabalho” (SAITO, 2021, p. 132). Então, o peixe é, ao mesmo tempo, objeto e meio de produção da pesca, pois ele é uma condição material necessária à feitura do trabalho, e, assim como o mar que tem seu acesso livre, exige, principalmente, o comando e controle de um saber-fazer para transformá-lo em objeto e meio de produção.

Dessa maneira, os pescados, que vivem e migram nos espaços aquáticos (lagostas, camarões, peixes, mariscos, caranguejos, aratus etc.) em diversas fases de suas vidas, não se encontram subordinados à posse privatista da ordem sociometabólica do capital, embora nunca deixem de ser atingidos pelo mercado, pela destruição ambiental dos mares e rios e, em várias partes do globo, pela concorrência com a pesca industrial e a ocupação territorial efetivada pela aquicultura.

É certo que barcos e redes compõem o universo dos meios de produção, porém o pescado é muito valioso nisso, por funcionar como meio e objeto produtivo, graças ao perfil extrativista da atividade pesqueira artesanal. Para dar conta desse caráter extrativista, é o saber-fazer do pescador e da pescadora que atua, compreende as condições concretas, confere sentido e valores humanos (simbólicos, materiais, de uso e de troca) aos mares, rios e, principalmente, aos peixes, sendo o “instrumento produtivo” mais forte da pesca.

Mesmo guardando especificidades, particularidades socioculturais, a pesca artesanal encontra-se inserida nos marcos do mundo da mercadoria e sente o processo de estranhamento que decorre de sua subordinação à mediação totalizante do capital. Por isso, o circuito de comercialização emerge também incompreensível para a grande maioria dos pescadores e pescadoras. O pescado ganha, dessa maneira, uma espécie de vida própria que não pertence aos homens e mulheres, mas a uma dinâmica que eles não sabem bem o que é.  “Na terra, é complicado, difícil mesmo de entender” (Pescador, Recife, PE, 39 anos) ou “sei pescar, mas não entendo como o mercado faz essas coisas do preço, como os comerciantes cobram isso ou aquilo com tal... por tal valor” (Pescadora, Santa Luzia do Itanhy, SE, 27 anos).

O tipo de pescaria realizada em cada lugar também resplandece a divisão sexual do trabalho. Por exemplo, as mulheres realizam seus trabalhos dentro dos mangues, nas croas (bancos de areia) dos rios e praias ou nas margens das águas (rios e mar), pescando aratu, marisco, siri, ostras. Aproveitam-se dos fluxos das marés, especialmente no seu período de baixa. É nesse momento que elas executam sua ação produtiva, ficando, em boa parte dos casos, de cócoras e/ou com parte de seus corpos submersa nas águas ou nas lamas dos manguezais. Aqui seus corpos são instrumentos valiosos de trabalho, explicitando um saber-fazer peculiar.

No caso do trabalho masculino, ele se utiliza, fortemente, das embarcações (canoas, jangadas, botes – barcos motorizados) para pescar dentro das águas. Nos rios e estuários de Pernambuco e Sergipe, esse trabalho pode alcançar várias horas, mas não passa de um (1) dia, o que é distinto das de mar alto, em que pescadores podem passar, em certas situações, vários dias no oceano (3, 4 dias, uma semana ou perto de um mês), a depender da pescaria, das necessidades de venda, das relações de trabalho e/ou das imposições dos atravessadores ou proprietários das embarcações.

Para viver, de acordo com as épocas e variedade de espécies e ofertas, a pesca artesanal caracteriza-se pela captura de uma pluralidade de pescados. Mesmo quando algum(a) trabalhador(a) “especializa-se” na pescaria de determinada espécie (a exemplo da tainha, no Sul e Sudeste do Brasil, e do camarão, lagosta, no Nordeste), em decorrência da época do ano e/ou das necessidades do mercado, esse “tipo de especialidade” com sua racionalidade, não bloqueia a condição plural típica do trabalho pesqueiro artesanal, pois – logo em seguida, com o fim da temporada de certas espécies – volta-se  a capturar outros pescados. E esse é mais um componente que certifica a ligação desses sujeitos com os ritmos da natureza por meio de suas estratégias de reprodução social, que preenchem as fases do ano.

É nesse sentido que:

Na pesca, muita gente daqui, da praia, faz de um tudo. Na época da tainha, somos tainheiros; na do camarão, camaroneiros; na da cioba, pegamos ela; na da lagosta, a gente cai nela também. Tudo depende do ambiente, do período, do peixe, e tudo isso é o pescador. (Pescador, São José da Coroa Grande-PE, 67 anos)

Suas repostas encarnam-se, então, nas formas de reprodução presentes em diversas sociedades pesqueiras, nas suas possibilidades de inserção na totalidade social e nas condições ecológicas que são insuprimíveis para suas existências como Povos das Águas em suas múltiplas expressões (jangadeiros, caiçaras, ribeirinhos, marisqueiras, pescadores de botes, caranguejeiros).

Com isso, as explicações sobre o funcionamento e as características das marés – dos mangues, estuários, rios, oceanos, das variedades de pescados, fases da lua, tipos de ventos, o sistema de marcação – surgiram e foram repassadas de pai para filho ou de mãe para filha por meio de saberes e fazeres produzidos em várias comunidades locais como patrimônio.

Saberes que devem ser validados rotineiramente pelos fazeres produtivos, e fazeres que só se realizam construindo novos e confirmando antigos saberes para que ambos ganhem legitimidade sociocultural, econômica e ambiental. Isso forjou laços de pertencimento (entre o pescador e a natureza e entre o próprio grupo, inclusive na autoridade da pessoa do mestre) e possibilitou que essas populações pudessem reproduzir-se no transcurso dos anos em determinados territórios. No fazer-se pescador artesanal, as tecnologias – mesmo as modernas – foram (e são) incorporadas, de modo subordinado, à principal força produtiva da pesca artesanal: o saber-fazer. Se isso se inverte, o ser da pesca artesanal sucumbe, passando por uma transição ao tornar-se outro. Deixa, com isso, de ocupar a condição do seu lugar social, o de artesão ou o de artesã das águas.

A influência das dinâmicas ecológicas faz com que o tempo social dos pescadores seja embalado pelo tempo da natureza, dos ciclos das marés e dos pescados (moluscos, crustáceos, peixes), das fases da lua, dos tipos de ventos, da presença do sol ou da chuva, criando um tempo ecossocial pesqueiro (RAMALHO, 2016). Na realidade, “natureza e pescador têm um tempo único” (Pescador, Aracaju-SE, 43 anos), pois: “o meu tempo?! A natureza me chama” (Pescador, Olinda-PE, 27 anos).            

Sem dúvida, rios, estuários, oceano, manguezais, açudes, lagos e lagoas colocam condicionantes para o aparecimento e o desenvolvimento de diversas expressões do ser e fazer-se pescador(a) artesanal. Por isso, a pesca é vista como elemento capaz de possibilitar a construção de sociedades (DIEGUES, 1983).

Também as dinâmicas ecológicas são vistas e vividas, em muitas localidades, como um ente regido por forças sagradas, místicas, sobrenaturais, religiosas, em que a ação humana, por mais integrada que esteja ao ambiente, não as subordina, aliás, deve entender que a natureza responde e expressa às vontades de Deus, dos seres sagrados para muitos. Isso ocorre com a devoção a Iemanjá, Nossa Senhora, São Pedro; o respeito ao Velho do Mangue, às histórias sobre o boto e às sereias; a fé nas procissões marítimas, os ex-votos e no fato de não chamar nomes de mortos quando se pesca em alto mar (DIEGUES, 2000; RAMALHO, 2006, 2021).

Ainda no plano da cultura pesqueira, há manifestações como ciranda, o coco, os cantos de trabalho. De fato, são muitas as representações culturais, os patrimônios materiais e imateriais típicos das comunidades que pescam. E eles vivem no dia a dia das pescadoras e pescadores artesanais que habitam os bairros periféricos das grandes cidades (Aracaju, Recife, Olinda, Salvador, Belém, Florianópolis, Fortaleza, Rio de Janeiro, Natal) e, também, em várias áreas rurais do país, fato que faz com que o ser pescador e pescadora não possa ser caracterizado como sujeito urbano ou rural. Na realidade, suas marcas existenciais estão irmanadas aos territórios aquáticos (rios, mar, mangues) mais do que em ser habitante do campo ou da cidade, embora as sociabilidades desses espaços influenciem nos modos de vida das comunidades pesqueiras.

O que é ser pescador? A gente é em tudo diferente dos outros. É diferente no trabalho, na hora de pegar no batente, na fala... a gente fala coisas diferentes mesmo, que é do mar e os outros não sabem. A gente é diferente. (Pescador, Estância-SE, 37 anos)

Sou diferente das outras profissionais, de outras pessoas. Acredito que é por conta da maré. (Pescadora, Rio Formoso-PE, 39 anos)

Embora exista a relevância das questões simbólicas, é essencial frisar que a pescaria é a materialização de um conhecimento objetivado no trabalho, que possibilita homens e mulheres capturar diferentes tipos de pescados, a partir de habilidades inscritas nos usos dos seus corpos e de seus sentidos que deságuam, a depender do que se captura, na utilização criativa de determinados equipamentos (barcos, armadilhas), na sua educação sensitiva (mãos, pernas, olfato, visão, paladar, audição). Tudo isso em consonância com os ritmos das dinâmicas ecológicas (RAMALHO, 2017).

Se, por um lado, a pescaria é a mediação técnica (habilidade, talento, arte de ser e fazer-se pescador ou pescadora) e tecnológica (equipamentos utilizados no fazer produtivo por mais simples que sejam) entre o ser humano e o pescado (a natureza), por outro, não deixa de ser, também, processo de organização socioprodutiva com seus sistemas de parceria baseados na família, no compadrio e/ou nas relações de vizinhança, que regem a vida comunitária ancestralmente e avivam, no dia a dia, as formas tradicionais de partilha dos ganhos sobre os pescados capturados (a depender da região e do tipo de pesca pode dar-se o nome de banda, quinhão, linha junta ou separada,  pescaria coletiva, dentre outras).

No trabalho feminino, de acordo com uma pescadora de Goiana-PE, 59 anos, “o que cada um captura, normalmente, fica pra você. Você e sua produção”. Todavia, há casos em que, devido “ao dia ruim de pesca”; “por termos combinado antes, mas cada uma deve se empenhar o máximo”; “pra ajudar um companheiro que não pôde pescar, graças à doença sua, de algum filho”; “juntamos e dividimos por igual. No final, tudo que foi pescado pelo grupo naquele dia é divido por igual”.

 No que concerne à pesca masculina, o depoimento de um mestre pescador é didático na explicação desses sistemas de pesca:

Olha, a de linha, o cara marca o seu peixe e não junta tudo... e.. ela é individual [...]. A juntada é quando é dividido pra todo mundo, é um sistema de pesca mais antigo, por exemplo. Vamos dizer assim, nós três aqui, você, meu pai e eu e ela [apontando para a bolsista da pesquisa] somos irmãos. Vamos juntar e dividir, porque nós vamos pescar igual, tudo pra dentro de casa. Isso era feito com a linha, com a rede e o covo. [...] Tem aquele que trabalha no sistema de pesca de quinhão, que é dividido de dois modos : o quinhão das antigas e o quinhão em banda. Os das antigas o produto que se pegou a metade é do barco e a outra metade é dividida entre os pescadores por igual. [...] E tem o quinhão na estrutura da banda, que é assim: você tem uma rede e pegou três peixes: dois é seu e um é meu, da tripulação. Eu já não digo nem meu, digo que um, dos dois que ficou pra mim, é do barco, pra sua manutenção e o outro das armadilhas para consertar. Por exemplo, [o peixe] agulhinha, eu tiro partes iguais: a da rede, a do barco e a dos pescadores. (Pescador, Cabo de Santo Agostinho-PE, 55 anos)

Essa distribuição costumeira do fruto da pescaria não é algo apenas presente no Brasil, mas é algo que caracteriza comunidades pesqueiras artesanais em outros lugares do mundo, como os pescadores chilenos:

En Chile una de las características de los pescadores artesanales, em pequeña escala o de bajura, como quiera que es les quiera llamar, es la particularidad de su subsistema económico denominado “sociedad a la parte”. Este subsistema es un acuerdo entre los pescadores que trabajan en uma embarcación determinada, acuerdo que corresponde a la repartición de las ganancias efectuadas por el trabajo en conjunto. Quizás esta característica no define al pescador artesenal como tal, pero sí lo identifica como parte de un grupo. Aun así, hay diferencias entre una y outra comunidades, aunque, el fondo, la manera de la distribución del producto, se mantiene. Igualmente se repite el factor ancestral del sistema y, en muchos casos sino en todos, los pescadores artesanales no tienen conocimiento de los inicios de esta práctica econômica cultural. (GAC, 2011, p. 88)

Observou-se em campo que, mesmo quando o barco e as armadilhas pertencem a terceiros (comerciantes, por exemplo), não se abre mão, necessariamente, da utilização dos antigos sistemas de partilha e dos processos tradicionais de organização socioprodutiva neles contidos. Todavia, há localidades e/ou tipos de pesca, a exemplo da lagosta, camarão e peixes mais comerciais (dourado, cavala, cioba etc.), que mesmo se mantendo o sistema antigo de divisões dos produtos pescados, ele é utilizado em favor dos proprietários das embarcações, recebendo uma coloração desigual, particularmente por funcionar em benefício de quem não trabalha diretamente na pesca. Assim, preços são fixados, para a tripulação (proeiros e mestres), com valor bastante inferior ao que é vendido pelo proprietário aos atravessadores, o que leva aos pescadores a passar mais tempo nas águas, no intuito de capturar mais pescados para auferir maior renda. Isso aumenta a precarização do trabalho desses homens e impacta mais os recursos naturais.

No caso dos ganhos aí é o seguinte: o dono tem a maior parte, o dono sempre tem a maior parte. O mestre ganha parte e meia, o pescador ganha uma parte e o resto é do dono do barco. Por exemplo, chega no mar, aí digamos que a gente faça R$ 6.000,00 reais aí tira a despesa, tira uma porcentagem de 10% para a embarcação, para a manutenção, e o que fica é divido meio a meio para a tripulação e a metade para o dono e da metade que é divida para a tripulação o mestre ganha parte e meia e o pescador ganha uma parte. (Pescador, Aracaju-SE, 48 anos)

Então, nesses casos em que a desigualdade é acentuada, gesta-se uma divisão social no trabalho pesqueiro baseada numa “estrutura de classes”, que ameaça o modo de vida dos pescadores artesanais. Muitos desses grupos estão, no mínimo, no limar de abandonarem a condição de pescadores artesanais para se tornarem trabalhadores da pesca (a exemplo de alguns lagosteiros), ou seja, a pesca torna-se apenas uma profissão voltada stricto sensu a um negócio, subsumindo o modo de vida em favor do mercado, especialmente por conta da presença dos proprietários de embarcações que são comerciantes de pescas (em certas localidades alguns chegam a ser proprietários de quatro, seis barcos motorizados, como vimos em São José da Coroa Grande e Recife, PE) ou da presença de sujeitos que podem ser classificados de armadores de pesca, a saber, aqueles que são proprietários de vários embarcações de pesca de maior porte voltadas ao alto mar (DIEGUES, 1983; DIAS DUARTE, 1999),  fato que observei no Terminal Pesqueiro de Aracaju, capital de Sergipe.

Sem dúvida, o ser da pesca insere-se numa trama social ampla e complexa, onde cumpre determinado papel na escala socioeconômica enquanto produtor primário, com suas conexões, complementaridades e subordinações. Apesar das mediações cada vez mais sociais e das relações de produção, a natureza joga um peso importante na pesca. Assim, “sua reprodução – biológica – não é só a incontornável condição do ser social, mas também um dos polos do próprio processo de reprodução, cujo outro polo é formado pela própria totalidade da sociedade” (LUKÁCS, 2013, p. 201).

No feixe de relações sociais mais tradicionais e presentes em inúmeras pescarias artesanais, é evidente que existem hierarquias internas à pesca, mas elas se apoiam na autoridade do conhecimento (na pessoa do mestre ou das pescadoras mais sábias na lida das marés – aquelas mais experientes) e no respeito aos direitos costumeiros, e não na mecânica imposição do capital (CORDELL, 1989; MALDONADO, 1993; DIAS NETO, 2015). 

Há princípios de igualdade, de pertencimento familiar, de irmandade, segredos sobre pontos de pesca, formas comunais de usos das águas e valores morais compartilhados acerca do trabalho visto e sentido como arte, liberdade e beleza, enquanto uma cultura de ofício.

Há, também, laços sentimentais em relação aos seus instrumentos de trabalho e aos territórios da pesca.

Dei o nome de minha mulher pro meu barco. Fica mais gostoso navegar com ele. (Pescador, Pirambu-SE, 51 anos).

Tem croa por aqui que ganham nomes devido a acontecimentos, características do lugar... a gente põe, porque tema ver com a história de nós, daqui. (Pescadora, Goiana-PE, 32 anos).

Nas dinâmicas sociais das mulheres e dos homens que vivem da atividade pesqueira artesanal, a natureza (as espécies de pescados, as águas, os rios, mangues, estuários, ventos etc.) é, além de sacralizada, humanizada permanentemente, ganhando adjetivos como esperta, braba, mansa, afoita, endiabrada, delicada, devendo ser entendida e respeitada.

Tem hora que o mar tá arretado, brabo que só. Quem consegue encarar? Homem nenhum. Só Deus (Pescador, Barra dos Coqueiros-SE, 39 anos)

Há ventos bons, amigos mesmo, parceirão, legal. Há outros ruins, que gostam de brigar com a gente. (Pescador, Ilha de Itamaracá-PE, 63 anos)

Tem maré que é tinhosa que só, assim como tem pescado cheio de vontade, de jeito invocado, que adora fazer trela com nós. (Marisqueira, Santa Luzia do Itanhy-SE, 22 anos)

Fica evidente que sem a capacidade de reprodução adequada da natureza  (peixes, crustáceos, moluscos, mariscos, rios, mar etc.) o mundo pesqueiro fica condenado à precariedade, ao possível desaparecimento. Os destinos dos Povos das Águas vinculam-se ao das próprias águas.

Vê o que fizeram aqui em Suape?! Acabaram com natureza, explodiram arrecifes, mudaram os jeitos dos rios. Acabaram com os pesqueiros [pontos, lugares de pesca] próximos à costa. Sabe, esses caras do Porto [de Suape] condenaram os pescadores, as pescadoras. (Pescador, Suape, Cabo de Santo Agostinho-PE, 61 anos)

Poluíram muita coisa nesse rio [Sergipe]. Muita coisa de esgoto, de indústria jogada nessas águas sem tratamento. Coisa da indústria, e é pesado mesmo, além dos esgotos das casas, desses prédios grã-finos. Também desmataram mangues... aterraram. E tem o povo que gosta de andar de lancha, por causa da moda do turismo. Como é que o pescado vai sobreviver? Me diga se tem condições!? Nenhuma! E a gente que é pescadora sofre demais, porque matam quem mata a nossa fome, quem nos ajudou na vida, quem sempre nos ajudou a criar nossos filhos, nossa família. (Pescadora, Aracaju-SE, 67 anos)

Tudo aqui tá sendo destruído pela especulação imobiliária. Tudo que tem a ver com a pesca não tem valor diante do interesse dessa especulação. Se continuar assim acabando com a natureza, tamos ferrados, os pescadores estão ferrados. (Pescador, Barra dos Coqueiros-SE, 38 anos)

Essa bacia [do Pina] e esse mar não tem mais a produção de antes. Esse mundo urbano... muito prédio.... muito esgoto na água dos rios, muito lixo, muito despejo de empresas... e o Poder Público não tá nem aí.... e apoia, viu, esse tipo de desgraça sobre a natureza e a vida das comunidades pesqueiras. Aí pra quebrar a gente também vem esses barcos, essas lanchas... tá muito ruim assim. E isso acontece por sermos pobres e pretos. (Pescadora, Recife-PE, 29 anos)

Os negativos impactos provocados pelas grandes obras públicas e privadas; o desenvolvimento urbano desordenado; o tipo de turismo, inclusive náutico, e seus prejuízos ecológicos; o desmatamento de mangues, mudança nos cursos d’águas e aterramentos de trechos de rios, córregos; a poluição intensa e extensa dos rios causada pelos despejos industriais e domésticos; a opção dos poderes públicos em desvalorizar o modo de vida das comunidades pesqueiras e a importância da conservação dos rios, mar, manguezais; as injustiças sociais e o racismo, dentre os quais o ambiental; são duros golpes para a produção e reprodução das comunidades pesqueiras pesquisadas nessas últimas décadas, revelando a presença de momentos históricos das expansões econômicas conectadas a processos globais, nacionais, regionais e/ou locais.

Aliás, esse não é um fenômeno restrito aos estados do Nordeste do Brasil, mas acontece (e aconteceu), além de outras unidades federativas do país (MALDONADO, 1986), em diversas regiões do mundo, seja em outros países da América Latina (BOIVIN; ROSATO, 2011), seja na África (OWUSU, 2018), seja na Europa (STROKSNES, 2019).

Recentemente, enquanto consequência da tão propagada, pelos interesses do capital, economia azul, o desastre do petróleo,[6] que atingiu a costa nordestina, anunciou os efeitos das dinâmicas econômicas globais e seus modelos de apropriação sobre a natureza, e, em decorrência disso, suas repercussões trágicas no trabalho, na vida dos pescadores e pescadoras artesanais. Nunca é demais lembrar que, por conta do grande valor monetário e da importância econômica e política que tem esse recurso em termos mundiais para a manutenção e ampliação do sistema capitalista, as corporações ligadas ao petróleo impõem suas vontades e interesses sobre nações e as comunidades tradicionais, que sentem – estas últimas - seus despojos negativos sobre seu principal meio de vida, a natureza, chegando a atingir mais negativamente o trabalho das pescadoras artesanais como aconteceu em Pernambuco (RAMALHO; SANTOS, 2021).

Segundo os depoimentos colhidos, muitos foram os impactos:

Esse desastre do petróleo foi um terror. Ele foi um crime! Afetou o ambiente e gerou medo nas pessoas, que não queriam consumir mais nosso pescado, não queriam comprar, achando que ele tava todo contaminado. Foi ruim pra natureza e atingiu nosso bolso. (Pescadora, Rio Formoso-PE, 55 anos)

Tudo ficou difícil com esse óleo todo chegando ao nosso mangue, rio, praia. Prejudicou peixes, corais e a nós, na economia e na saúde. Além de não vender por uns três meses, não tivemos apoio dos poderes públicos pra nada mesmo. Sem falar da reação de saúde. Teve gente com dor de cabeça, vomitou, ficou coçando a pele ao ter contato com esse óleo, petróleo. Você sabe que chegou à natureza, mudou ela... ferrou com nós. (Pescador, Cabo de Santo Agostinho-PE, 41 anos)

Com base nas questões destacadas, a reprodução social das sociedades pesqueiras encontra-se inserida numa determinada relação na estrutura social com seus impactos, cujas tensões são, hoje, mais latentes na natureza e comunidades locais resultantes das necessidades de uma economia cada vez mais globalizada e neoliberal.

É a partir daí que se compreende o pagamento feito em “banda” ou “quinhão”; que se diferenciam os pescadores do mar-alto e do mar interior; que se entende a expansão ou permanência de processos de estranhamento, em alguns casos, diante dos impactos ambientais, da ação empresarial e/ou dos poderes públicos; que se desmistifica o trabalho feminino, seus condicionantes ecossociais e as marcas das relações patriarcais externas e internas ao grupo; que se desvelam possibilidades de continuidades, bloqueios e/ou precarizações das pescadoras e pescadores, onde as dinâmicas ambientais e econômicas são essenciais nisso; que se entendem processos de hierarquias no trabalho, formas de expropriação, igualitarismo heranças históricas, que se expressam elementos de ordem simbólica na lida com as águas, os instrumentos de trabalho e o cotidiano.

Então, a reprodução social das comunidades pesqueira explicita algumas características socioculturais e econômicas do ser e fazer pescador e pescadora, podendo ser traduzidas da seguinte forma:

(a) a pesca artesanal é exercida com base nos laços e na força de trabalho familiar, dos compadres, comadres, vizinhos(as) e/ou amigos(as). É uma economia familiar, sendo ancestral em seus regimes de trabalho e no exercício de suas técnicas e tecnologias; (b) não existe assalariamento e os ganhos são divididos, na maioria dos casos, por meio do quinhão (dividi-se igualmente com todos da tripulação, separando a parte dos instrumentos de pesca); (c) possibilita baixo acúmulo de capital e é formada, na maioria das localidades do Nordeste brasileiro, por pessoas negras, fundamentalmente pelas classes populares, grupos historicamente excluídos que sofrem com injustiças e racismos ambientais; (d) é desenvolvida diretamente com o corpo (alguns tipos de mariscagem, pesca do caranguejo) e/ou com tecnologias (embarcações e armadilhas) de reduzido impacto sobre a natureza, que são produzidas artesanalmente ou incorporadas – as ‘mais modernas’ – ao conhecimento tradicional; (e) baseia-se num saber-fazer complexo exercido, de modo integrado, por uma equipe (grupo, parceria, companhia), que, no caso do trabalho pesqueiro artesanal embarcado, está sob o comando de um mestre (pessoa que possui a capacidade de articular conhecimentos sobre as marés, fases da lua, clima, sazonalidades e costumes de espécies, locais de pescaria etc., e ter o respeito da tripulação); e, na pesca feminina, as mulheres “mais experientes” são orientadoras dos grupos que pescam nos bancos de areia; (f) é a principal garantia de renda e alimentação para milhares de famílias que moram em lugares próximos às praias, manguezais, rios; (g) há elos de pertencimento com territórios (mangues, rios,  mar, bancos de areia), estabelecendo uma simbiose entre tempos sociais e naturais (ecotempos ou tempos ecossociais), com simbologias e sociabilidades singulares; (h) contribui para a vida de vários municípios brasileiros, ora gerando renda, ora na produção e soberania alimentar, ora preservando a natureza, ora na construção de um patrimônio cultura expressivo (culinária, procissões marítimas, música, dança, rituais, imaginários, direitos costumeiros etc.); e (i) é a base de uma complexa cadeia produtiva, estando subordinado no processo de circulação e acumulação de renda no comércio. 

 

Conclusões

Retornamos aqui a definição inicial feita pelo pescador, a saber, “ser pescador artesanal é ser uma multidão de coisas num camarada só”.

Multidão de coisas que pode ser entendida como um complexo de complexos sociais e ambientais que estão colocadas no cotidiano das sociedades pesqueiras, ora nas questões de ordem ecológica com suas especificidades a depender do ambiente (mar, rio, mangue, lagoa etc.), ora nas tramas econômicas e políticas que as pescadoras e os pescadores estão inseridos e que os envolvem, ora devido aos grandes e negativos impactos que afetam seu mundo do trabalho, suas vidas, a natureza da qual dependem e, com isso, as suas reproduções sociais.

Multidão de coisas reveladoras da complexidade do mundo da pesca artesanal, dos tipos de pescarias, de pescadores e de pescadoras, da influência de cada ecossistema, de histórias regionais, de elementos étnicos, da condição subalterna, do ser classe trabalhadora, das resistências cotidianas, políticas que desenvolvem para existir, reproduzir-se.

Multidão de coisas que muito oferece à sociedade em termos ambientais, culturais, sociais e econômicos sem receber dela e dos poderes públicos (municipal, estadual e federal) o devido reconhecimento por isso. Aliás, as populações pesqueiras são vítimas de extermínios territoriais, físicos, simbólicos, de injustiças e de racismo ambiental praticados cotidianamente por empresas associadas à conivência do Estado no Brasil ou que são realizadas diretamente pelos próprios poderes públicos.

Multidão de coisas que têm a ver com os processos vinculados à reprodução social da pesca, nas suas formas de ser que precisam ser desveladas em suas especificidades e compreendidas em suas universalidades.

Em larga medida, as pescarias significam a própria formação do povo brasileiro, seu caráter plural e miscigenado, porque nelas estão presentes linguagens, técnicas, instrumentos, criatividades, compreensões, cosmologias, organizações, singularidades regionais e étnicas (tradições de trabalho africanas, portuguesas, indígenas), marcando e conferindo características universais à mesma, às suas reproduções sociais.

Assim, uma pescaria reúne várias dimensões, as de ordem econômica, técnica e tecnológica e aquelas ligadas aos aspectos socioculturais e biológicos, bem como históricas e políticas, e a própria divisão sexual do trabalho. Por isso, há inúmeras pescarias por existir, muitas formas de ser e de se fazer pescador(a) artesanal que, independentemente de suas singularidades, encontram na ideia geral do que é ser e fazer-se pescador ou pescadora artesanal local de embarque, sentido, significado.

 

 

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Como citar

RAMALHO, Cristiano Wellington Noberto. Reprodução social das pescadoras e pescadores artesanais. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e2230213, 13 dez. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_06.  

 

 

Cristiano Wellington Noberto Ramalho

Professor Associado do Departamento de Sociologia (DS) e do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisador líder do Núcleo de Estudos Humanidades, Mares e Rios (Nuhumar) da UFPE. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

cristianownramalho@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1648-456X
http://lattes.cnpq.br/1887328149361171

                                   

 

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[1] Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, onde coordena estudos de antropologia rural. Professor permanente do Programa de Pós-graduação em Agriculturas Familiares, do Instituto de Estudos da Agricultura Familiar, Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em Antropologia Cultural pela Universidade da Flórida. E-mail: roberto.porro@embrapa.br

[2] Alguns pescadores pediram que não fossem identificados. Então, adotei o seguinte procedimento: mencionarei se é pescador ou pescadora, destacando o local e a idade de quem deu seu depoimento.

[3] As mulheres que pescam classificam-se de pescadoras ou de marisqueiras, conferindo condição de similitude, sinônimo a esses termos. Neste escrito elas serão chamadas de pescadoras.

[4] Esses períodos de pesquisa resultam de financiamentos recebidos dos seguintes órgãos de fomento à pesquisa: Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (Fapitec), Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

[5] Povos das Águas comporta em si termos como pescadores e pescadoras artesanais, marisqueiras, jangadeiros, caiçaras, ribeirinhos, trabalhadores e trabalhadoras da pesca artesanal.

[6] Fragmentos de petróleo (piches) surgiram na costa nordestina no dia 30/9/2019, precedendo as grandes ondas de óleo que aportaram em rios, praias, estuários e corais em setembro do mesmo ano. A partir daí, mais de 5.000,00 toneladas (t) de petróleo foram retirados do ambiente e cerca de 1.000 localidades em 11 estados (9 localizados no Nordeste mais o Espírito Santos e Rio de Janeiro no Sudeste), tornaram-se alvo dessa tragédia até janeiro de 2020, o que se consubstanciou no maior desastre socioambiental do país em termos de extensão (hoje classificado pelos movimentos sociais da pesca de crime do petróleo).