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v. 30, n. 2, julho a dezembro de 2022 (publicação contínua), e2230204


Recebido: 30.abr.2022   •   Aceito: 16.set.2022   •   Publicado: 6.out.2022

Artigo original / Revisão por pares cega / Acesso aberto

 

 

Dimensões diferenciadas do engajamento camponês no extrativismo do babaçu

Differential dimensions of peasant engagement in babassu palm nut extraction


orcid_id.png  Roberto Porro[1]   



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_04


Resumo: Resumo: Estatísticas oficiais recentes indicam drástica redução na produção de amêndoas de babaçu e no envolvimento na atividade pelas denominadas quebradeiras de coco, responsáveis por fornecer um dos principais produtos da sociobiodiversidade brasileira para uma indústria em pronunciada crise. Dimensionar corretamente a população afetada por esta crise é fundamental para avaliar impactos econômicos e sociais. Visando subsidiar políticas que fortaleçam a economia regional e meios de vida locais, e a atuação dos movimentos sociais, o artigo discorre sobre dimensões diferenciadas do engajamento no extrativismo do babaçu, discute hipóteses complementares para compreender a redução na atividade e delineia metodologia para estimar a sua participação. Simulação que integra dados dos censos agropecuários e demográfico indica que cerca de 62 mil pessoas em 50 mil domicílios praticam a atividade em 356 municípios. Desse total, cerca de 40 mil extrativistas em 32 mil domicílios comercializam amêndoas, resultado obtido pela projeção ajustada dos índices de dedicação na atividade levantados em campo no território de maior produção de amêndoas, o Médio Mearim, Maranhão.

Palavras-chave: Censo Agropecuário; comunidades tradicionais; gênero; sociobiodiversidade.

 

Abstract: Recent official statistics reveal drastic reductions in the production of babassu palm nuts and in the numbers of the workers known as babassu nut breakers, who supply one of Brazil’s most important products of sociobiodiversity to an industry that currently faces a pronounced crisis. Accurate estimates of the population affected by this crisis are key for assessing economic and social impacts. This article examines different dimensions of engagement in babassu extractivism, discusses complementary hypotheses to understand the decrease in this activity, and outlines methodology to estimate current levels in order to improve policies for strengthening the regional economy, local livelihoods, and activities by social movements. Some 62,000 people in 50,000 households break babassu palm nuts in 356 municipalities; of these, approximately 40,000 extractivists in 32,000 households sell the resulting nut kernels, a figure obtained by projecting adjusted rates of engagement in this activity determined through field surveys in Maranhão’s Mearim Valley, the region of Brazil with the highest babassu palm production.

Keywords: agricultural census; traditional communities; gender; sociobiodiversity.

 

 

Introdução

O extrativismo da palmeira babaçu (Attalea speciosa Mart. ex Spreng) é atividade econômica de grande relevância para meios de vida de comunidades tradicionais extrativistas em condições de vulnerabilidade, principalmente no estado do Maranhão, que concentra mais de 90% do total das amêndoas desta oleaginosa produzidas e comercializadas no país. O Censo Agropecuário de 2006 indicava que o extrativismo do babaçu era praticado em 68.741 estabelecimentos agropecuários no Brasil, sendo 85% no Maranhão. Naquele ano, a extração de amêndoas de babaçu alcançara volume próximo a 163 mil toneladas (t), das quais 158 mil t (96%) no Maranhão. Passados 11 anos, o Censo Agropecuário de 2017, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicou uma redução superior a 70% no número de estabelecimentos onde a atividade era praticada. Estes haviam sido reduzidos a 15.491 no Maranhão e 19.333 no país como um todo, correspondendo, respectivamente, a 26% e 28% dos totais registrados em 2006. O volume comercializado decresceu em proporção ainda mais drástica, limitando-se a 16.964 t no Maranhão e 19.183 t no país, indicando redução próxima a 90% dos volumes registrados no censo anterior.

Desde a década de 1990, uma progressiva redução na coleta e quebra do babaçu tem sido observada, repercutindo no volume comercializado e número de estabelecimentos agropecuários que declaram atuar na atividade. A queda indicada pelo censo de 2017, contudo, chama a atenção por ser desproporcionalmente alta quando comparada à tendência vigente na série histórica, disponível desde 1940. Contrastando com a situação vigente para os frutos de açaí, produto de maior destaque do extrativismo nacional na última década, a cadeia produtiva do babaçu apresenta sinais inequívocos de uma crise que restringe a demanda do setor industrial pelo produto, e que já resulta em impactos negativos nas condições de vida de um dos mais expressivos campesinatos do país. O dimensionamento correto do contingente de famílias afetadas por esta crise é fundamental para a avaliação destes e de futuros impactos.

Com efeito, as centenas de comunidades nas quais o extrativismo de babaçu é tradicionalmente praticado se caracterizam pelo destaque e protagonismo das denominadas quebradeiras de coco. A partir da década de 1990, esta categoria adquiriu visibilidade como unidade de mobilização social (ALMEIDA, 2004). Organizadas por meio do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (Miqcb), além de diversas associações e grupos informais, as “quebradeiras” têm sua identidade vinculada à ocupação econômica que exercem, com forte ênfase para reivindicações de direito de acesso e de conservação dos babaçuais, seja em florestas secundárias de palmeiras, ou integrados em pastagens. Após alcançarem destaque no cenário nacional e internacional, devido a seu engajamento por políticas sociais e ambientais, nestes últimos anos as lideranças do movimento das quebradeiras de coco se deparam com o desafio concreto da manutenção do protagonismo e visibilidade do grupo social, dado o processo de renovação geracional, mas em contextos econômico e político que lhes são marcadamente desfavoráveis.

Além das dificuldades impostas por um segmento econômico que historicamente não recebe apoio governamental e pela prática da atividade ser sistematicamente prejudicada pelas restrições de acesso ao recurso natural, a progressiva redução no número de mulheres que atuam na quebra do babaçu, e no tempo que estas dedicam à atividade, paradoxalmente se deve, em parte, ao acesso a políticas sociais e compensatórias. Tal acesso passou a ocorrer no início da década de 1990, com a aplicação do dispositivo constitucional de 1988 instituindo a aposentadoria rural, e foi reforçado em 2003 com o lançamento do programa Bolsa Família, que viabilizou uma renda mínima, contemplando necessidades básicas para famílias que, antes, dependiam fortemente do extrativismo para sua subsistência. Uma vez disponíveis tais alternativas de renda mínima, a penosidade da quebra do coco, combinada com o ainda baixo retorno econômico da atividade, colaborou para o desestímulo e desinteresse, sobretudo por parte das jovens, em se dedicar a uma atividade que, para as gerações de suas mães e avós, era primordial para a sobrevivência familiar (PORRO, 2019). Os fatores anteriormente mencionados contribuem decisivamente para a redução no número efetivo de mulheres engajadas no extrativismo do coco babaçu, combinada a progressivas transformações no setor industrial, o que resultou na substituição do óleo desta espécie oleaginosa por outras matérias-primas e pela crescente – embora ainda limitada – utilização de equipamentos para processamento integral do babaçu, que buscam substituir o trabalho manual da quebradeira de coco.

O contraste de narrativas sobre o envolvimento atual na atividade é, contudo, evidente, quando estatísticas oficiais recentes do número de estabelecimentos agropecuários onde a atividade é praticada são comparadas com informações provenientes das organizações de representação do próprio segmento social, que anunciam em seus veículos a existência de 400 mil quebradeiras de coco (MIQCB, 2020). Por um lado, é notório que tal narrativa extrapola a atual participação no extrativismo como atividade geradora de renda monetária, sendo a temporalidade da referência estendida a um passado cada vez mais distante. Por outro lado, surgem indagações sobre perspectivas futuras da autoidentificação das mulheres como quebradeiras de coco, levando em consideração o gradual deslocamento econômico do setor.

Tendo como ponto de partida as reflexões anteriormente citadas, e levando em consideração o desencontro de dados oficiais – pois o próprio IBGE divulga nas recentes estimativas anuais da Produção da Extração Vegetal e Silvicultura (Pevs), volume de amêndoas de babaçu três vezes superior ao reportado no último Censo Agropecuário –, procuramos neste estudo elucidar discrepâncias encontradas no dimensionamento do segmento social das extrativistas do babaçu. Inicialmente, tecemos considerações para melhor compreender tais divergências, analisando a plausibilidade de hipóteses explicativas complementares. Em seguida, apresentamos metodologia para estimar de forma mais criteriosa o engajamento atual no extrativismo do coco babaçu, assim como aqueles que comercializam esta produção. Os resultados da aplicação da metodologia são posteriormente apresentados e discutidos. Com base na integração de abordagens analíticas qualitativas e quantitativas, este trabalho visa subsidiar o delineamento de instrumentos e políticas públicas que fortaleçam tanto a economia regional como a atuação contextualizada dos movimentos sociais e, sobretudo, proporcionem incrementos positivos em qualidade de vida e bem-estar das famílias camponesas agroextrativistas.

 

Examinando o contraste entre autoidentificação e estatísticas oficiais sobre extrativistas do babaçu

Desde o início de sua organização, os movimentos sociais que agregam as quebradeiras de coco babaçu enfatizam o discurso da grande abrangência do segmento, com centenas de milhares de extrativistas e suas famílias. Tal discurso é reforçado em publicações científicas que analisam a trajetória deste movimento social (ANDERSON; MAY; BALICK, 1991; ANDRADE, 2005; FIGUEIREDO, 2005; ALMEIDA, 2006; AYRES JUNIOR, 2007; BARBOSA, 2008; VEIGA; PORRO, MOTA, 2011).    

Estas narrativas, contudo, contrastam com estatísticas oficiais contemporâneas. A Figura 1 apresenta, a partir de dados dos censos agropecuários, o volume de amêndoas produzidas desde 1940 no país, no estado do Maranhão, e em 27 municípios do Médio Mearim maranhense, sendo que dados desagregados para municípios estão disponíveis apenas a partir de 1970. O gráfico indica uma forte expansão no volume produzido entre 1940, que era de cerca 45 mil t, e 1985, quando superou 170 mil t, um acréscimo de 283%. Nos últimos três recenseamentos, a produção nacional de babaçu oscilou negativamente para 127 mil t em 1995, voltou a superar as 160 mil t em 2006, para enfim limitar-se às mencionadas 19 mil t em 2017. 

 

Figura 1 – Produção de amêndoas de babaçu no Brasil, Maranhão e Médio Mearim

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Fonte: IBGE, Censos Agropecuários (2006, 2017).

 

A tendência se mostra mais evidente ao examinarmos, a partir de 1975, a curva descendente do número de estabelecimentos agropecuários nos quais é exercida a atividade (Figura 2). O final do período de expansão, que se iniciara na década de 1940, é registrado pelo censo de 1975, segundo o qual mais de 225 mil estabelecimentos indicavam o extrativismo do babaçu. Em contraste, progressiva redução no número de estabelecimentos na atividade ocorre nas quatro décadas seguintes, até que em 2017 este se limita a menos de 10% daquele total. Nesse período, os censos agropecuários indicam que a quantidade média anual produzida por estabelecimento oscilou entre 677 kg e 995 kg de amêndoas, exceto para o censo de 2006, quando esta média alcançou 2.377 kg, chegando próximo a 2.700 kg no estado do Maranhão, o que provavelmente se deveu a incorreções metodológicas.[2]

 

Figura 2 – Estabelecimentos rurais na produção de amêndoas de babaçu

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Fonte: IBGE (2006, 2017).

 

Para estimar corretamente o número de quebradeiras de coco envolvidas na atividade, é preciso compreender certas particularidades do extrativismo do babaçu, e de como seus dados são registrados pelo IBGE. Com este objetivo, discutiremos a seguir quatro aspectos que contribuem para a elucidação de eventuais discrepâncias.

 

Restrição do Censo Agropecuário a estabelecimentos rurais

A quebra do coco babaçu é realizada por segmentos sociais vulneráveis no campo, e embora o Censo Agropecuário inclua posseiros e meeiros entre as categorias entrevistadas, e até mesmo produtores sem área, o instrumento é dificilmente aplicado para aqueles que, seja residindo em povoados rurais, ou na periferia de pequenas cidades, não exercem atividade agrícola própria. Em áreas de ocorrência de babaçu, domicílios nesta condição, cujas responsáveis são mulheres, muitas vezes têm no extrativismo uma das principais alternativas de subsistência. Tal fato certamente contribuiu para dados divergentes da produção total de babaçu nas estimativas anualmente divulgadas, que nos últimos anos, embora decrescentes, significativamente superaram o montante do Censo Agropecuário de 2017. A Figura 3 contrasta a produção de amêndoas a partir de 1986, quando passaram a ser divulgadas as estimativas da Pevs, e os resultados dos últimos quatro recenseamentos: 1985, 1996, 2006 e 2017.

 

Figura 3 Produção estimada de amêndoas de babaçu no Brasil, Maranhão e Mearim, em contraste com dados do Censo Agropecuário

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Fonte: IBGE (2006, 2017, 2020b).

 

Exclusão social e expropriação no campo seguem sendo observadas na área de ocorrência do babaçu, ao longo destas últimas décadas, principalmente no Maranhão. Embora em alguns municípios tenham surgido situações que não seguiram a tendência geral, tal exclusão tem se acentuado na área de ocorrência de babaçu. Comparando os censos de 1985 e 2017, o número de estabelecimentos agropecuários nesta área sofre drástica redução. A Figura 4 indica que, no Maranhão, apenas 41% dos 531 mil estabelecimentos existentes em 1985 são registrados em 2017 (220 mil). Tal redução é observada nos extratos de maior vulnerabilidade: enquanto o número daqueles com mais de 10 ha permanece praticamente constante ao longo do período (cerca de 82 mil), mais de 320 mil estabelecimentos com menos de 10 ha deixaram de ser contabilizados entre 1985 e 2017.

 

Figura 4 – Número de estabelecimentos agropecuários no Maranhão por classe de tamanho (1970-2017)

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Fonte: IBGE (2006, 2017).

 

Quanto à condição do produtor em relação às terras, entre 1985 e 2017, o número de proprietários cresceu de 102 mil para 139 mil, enquanto o total agregado de ocupantes, arrendatários, parceiros e comodatários caiu 87%, de 428 mil para 57 mil (Figura 5).

 

 

Figura 5 Número de estabelecimentos agropecuários no Maranhão por condição do produtor em relação às terras (1985-2017)

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Fonte: IBGE (2006, 2017).

 

A análise indica, portanto, uma massiva exclusão de domicílios que, a partir de 1985, deixaram de ser alvo do Censo Agropecuário no estado do Maranhão. Em sua maioria, os domicílios excluídos têm o perfil daqueles engajados no extrativismo do babaçu. Embora seja admissível que uma parcela destas famílias tenha migrado para as capitais ou centros urbanos e deixado a atividade rural, é provável que parte destas permaneça no campo ou na periferia das cidades, desprovida de terra, mas praticando o extrativismo do babaçu, mesmo que de forma limitada, não sendo esta produção registrada pelo censo. 

 

Engajamento de múltiplos membros da unidade familiar na atividade

Em domicílios nos quais o extrativismo do babaçu é praticado, é ainda frequente o envolvimento de mais de um membro da família na atividade. Em estudo realizado em 1025 domicílios rurais no Médio Mearim, em 2017, identificamos que 60% produziam amêndoas de babaçu, sendo verificada nestes uma média de 1,4 pessoa/domicílio que pratica a quebra do coco. Além disso, 80% dos 1.025 entrevistados registraram a produção de carvão para uso doméstico a partir do coco babaçu (PORRO, 2019). Embora a participação de jovens tenha apresentado significativa redução nas últimas duas décadas, é, portanto, plausível considerar que seja observada uma relação atual de 1,25 pessoa praticando a atividade, em sua maior parte mulheres, para cada domicílio no qual ocorra o extrativismo do babaçu.

Considerando os 356 municípios compreendidos na área de extração comercial de babaçu nos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará e Ceará (critérios para a definição destes municípios serão detalhados adiante) e projetando nestes a taxa de urbanização observada no censo demográfico de 2010 para a estimativa populacional de 2020, resultariam cerca de 753 mil domicílios rurais, com uma média de quatro pessoas residentes por domicílio. Se considerássemos que o extrativismo do coco babaçu fosse atividade realizada por 10% destes domicílios, exercido por uma média de 1,25 pessoa/domicílio, uma estimativa preliminar do número de extrativistas seria de 94.000 pessoas.

 

Babaçu coco e babaçu amêndoa

Até 1985, o IBGE incluía o babaçu dentre os produtos da extração vegetal, sem especificar o termo “amêndoa de babaçu”, que efetivamente era o objeto da informação. A partir do Censo Agropecuário de 1995-96, o questionário aplicado passou a incluir um produto adicional obtido com base no extrativismo do babaçu. Naquele ano, o “babaçu coco”[3] foi informado por apenas 705 estabelecimentos, ou 0,5% dos que reportaram “babaçu amêndoa”. Em 2006, foram 5.356 estabelecimentos, total que triplicou em 2017. Assim, segundo o Censo Agropecuário de 2017, o número de estabelecimentos agropecuários que indicaram como produto o “babaçu coco” era apenas 12% inferior ao dos que informaram produzir amêndoas de babaçu (Tabela 1). Exceto no Maranhão, nos demais estados foi reportado número maior de estabelecimentos produzindo coco inteiro do que amêndoas. Estes dados, contudo, demandam interpretação detalhada para sua efetiva compreensão.

O “coco inteiro” tem, de fato, apresentado relevância crescente no mercado, sendo utilizado por indústrias que optam pelo método de processamento integral do babaçu. Nestas, o fruto é adquirido, ao invés das amêndoas, sendo a quebra realizada por máquinas de médio a grande porte, que separam seus diversos componentes: a fibra (epicarpo), o amido (mesocarpo) e a parte lenhosa (endocarpo), utilizada na fabricação de carvão, além das sementes, ou amêndoas. Algumas empresas optam inclusive por não obter toda esta variedade de produtos, produzindo apenas carvão, a partir da combustão do fruto. Contudo, a expansão do uso do coco inteiro por tais indústrias não justifica a dimensão de estabelecimentos que reportaram produzir “babaçu coco” no último censo.

O significativo incremento observado nesta última década pode ter sido resultado de uma dificuldade de compreensão no meio rural da diferença semântica entre os termos “babaçu coco” e “babaçu amêndoa”. Com efeito, “coco” é o termo tradicionalmente utilizado pelas extrativistas quando se referem ao produto final de sua atividade. Amêndoa é uma palavra pouco empregada nesses domicílios rurais. Assim, embora deva ser levado em consideração o cuidado e treinamento recebido pelos recenseadores, é plausível que tenham ocorrido equívocos na compreensão, seja por parte dos entrevistados quanto à pergunta, seja por parte da interpretação das respostas obtidas.

 

Tabela 1 – Produção e venda de babaçu (coco e amêndoa), 2017

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Fonte: IBGE, 2017.

 

As cerca de 17 mil informantes que reportaram a “produção” de coco inteiro se enquadram em duas situações distintas: aquelas que informaram ter vendido a produção deste coco, e as que utilizaram os frutos do babaçu para consumo próprio, neste caso provavelmente para carvão, sem extrair amêndoas. Os dados indicam que ocorreu venda de apenas 15% do total de “babaçu coco” produzido. No Maranhão, este índice não alcança 10%. Ao aplicarmos tal proporção, resultaria que em cerca de 2.500 estabelecimentos o coco inteiro teria sido coletado para venda do fruto. Nos demais 14.500 estabelecimentos, caso o registro esteja correto, o coco inteiro teria sido coletado não para extrair amêndoas, mas para produção de carvão.

É plausível que tenha ocorrido, contudo, imprecisão na coleta ou registro do dado, nas situações em que o entrevistado tenha, eventualmente, compreendido que a pergunta sobre o “babaçu coco” se referia à amêndoa que, nesse caso, seria destinada ao consumo. Os dados são ainda mais intrigantes ao analisarmos o valor atribuído à produção total e à produção vendida. É importante registrar que as amêndoas representam cerca de 6% a 7% do peso do coco babaçu (1 t de coco babaçu contém 60 kg a 70 kg de amêndoas). Levando em conta que, como indicam os dados do próprio censo, no período pesquisado o valor médio da amêndoa de babaçu era próximo a R$ 2/kg, causa estranheza verificar que o valor médio considerado para a tonelada de “babaçu coco” foi superior a 50% do valor médio atribuído à tonelada de amêndoas. Mesmo considerando a agregação de valor devido a outros produtos derivados do coco inteiro (amido ou mesocarpo e casca ou carvão), uma tonelada deste produto dificilmente alcançaria valor superior a 20% do imputado à tonelada de amêndoas. É, assim, bastante provável que parte dos informantes entrevistados tenha respondido a estas questões se referindo à produção não de coco inteiro, mas sim de amêndoas. Observações de campo no âmbito deste estudo indicam estarem incorretos os registros do Censo Agropecuário relacionando municípios com expressivo número de estabelecimentos que produzem babaçu coco. Esse é o caso de Igarapé Grande, no Médio Mearim, ao qual estão associados 327 estabelecimentos na produção de coco inteiro, e apenas 15 que produzem amêndoas. O efeito prático desta situação, para uma quantificação mais realista do contingente de extrativistas do babaçu, seria, por precaução, considerar a soma dos estabelecimentos que registraram produção de coco e amêndoa, o que resultaria, em 2017, num total superior a 36 mil estabelecimentos.

 

O apego ao discurso institucional

Em 1991, com o apoio de organizações não governamentais atuantes no Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará, as extrativistas do babaçu articularam o primeiro Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, em São Luís, capital do Maranhão, do qual resultou o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – Miqcb, que passou a pautar reivindicações de acesso a terra e demais direitos das mulheres agricultoras, e de conservação dos babaçuais, com um forte componente de gênero (MIQCB, 2020). Naquele momento, é de se destacar que os dados oficiais sobre o número de extrativistas se resumiam ao Censo Agropecuário de 1985, que registrou mais de 200 mil estabelecimentos agropecuários atuantes no extrativismo do babaçu, para uma produção de cerca 175 mil t de amêndoas. Os dados da Produção da Extração Vegetal e Silvicultura (Pevs), embora não apresentassem estimativas do número de extrativistas envolvidos na atividade, reportavam até 1991 uma produção anual de amêndoas superior a 180 mil t, tendo chegado a 200 mil t em 1988.

Assim, é compreensível que, no período de formação do movimento social, o discurso adotado tenha assimilado e reproduzido estatísticas oficiais que indicavam mais de 200 mil estabelecimentos agropecuários no extrativismo do babaçu. Ao considerar a atividade de mais de uma pessoa por domicílio na extração, num período em que a participação das jovens mulheres na quebra do coco era muito maior do que atualmente, e incluir neste cômputo os domicílios rurais marginalizados que não eram objeto de entrevistas do Censo Agropecuário, a referência a 400 mil quebradeiras de coco não era de forma alguma equivocada.

O grande número de quebradeiras de coco é, sem dúvida, um dos mais expressivos aspectos da visibilidade do segmento social e relevância econômica da atividade. O Censo Agropecuário de 1985, cujos dados eram recentes no período do surgimento do Miqcb, registrava, para aquele ano, 202.196 estabelecimentos no extrativismo do babaçu, total superior à soma dos que indicaram a extração de borracha (95.015), castanha-do-brasil (39.552), erva-mate (33.077) e açaí (22.617), os quatro produtos da extração vegetal não madeireira que seguiam o babaçu em termos de envolvimento na extração. Passadas mais de três décadas, o Censo Agropecuário de 2017 indicou que o açaí é o produto extrativo ao qual está associado não apenas o maior número de estabelecimentos agropecuários, mas também o maior valor da produção, sendo que nesse aspecto o babaçu foi igualmente superado pela castanha-do-brasil (Figura 6 e Tabela 2).

 

Figura 6 – Estabelecimentos agropecuários na extração de produtos não madeireiros (1985-2017)

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Fonte: IBGE (2006, 2017).

 

 

Tabela 2 – Valor da produção de produtos não madeireiros (1995-2017)

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Fonte: IBGE (2006, 2017).

 

De forma compreensível, considerando os embates políticos nos quais toma parte, o movimento social não incorporou em seu discurso a tendência de retração no número de pessoas envolvidas, sobretudo na dimensão comercial da atividade. Compreender a fundo esta retração é, contudo, essencial para a efetividade de uma atuação contextualizada. Para tanto, a próxima seção apresenta a metodologia adotada para estimar duas dimensões diferenciadas do engajamento no extrativismo do babaçu no país.       

 

Metodologia para estimar o engajamento no extrativismo do coco babaçu e comercialização de amêndoas

O pressuposto inicial para estimativas consistentes do número de extrativistas do babaçu reside na compreensão do amplo espectro existente no nível de envolvimento de domicílios rurais em atividades pelas quais se obtém produtos a partir da palmeira. Conforme visto na introdução, há situações em que a atividade extrativa não necessariamente ocorre no âmbito de estabelecimentos agropecuários, podendo ser realizada por famílias não inseridas nas estatísticas oficiais reportadas nos censos agropecuários.

A referência mais adequada ao extrativismo do babaçu é, portanto, o domicílio rural, no qual mais de uma das residentes (geralmente mulheres) coleta e quebra o coco, para extrair amêndoas, cujo principal destino é a venda sistemática em comércios locais. Nesse domicílio, parte das amêndoas pode ser utilizada na fabricação de azeite, enquanto, sobretudo, cascas do coco são destinadas à fabricação de carvão, principal fonte de energia para cocção em cozinhas da região. Folhas, talos e mesmo troncos da palmeira podem ser usados em construções rurais e artesanato utilitário. Mas em contextos diferenciados da realidade rural, há domicílios nos quais ocorre apenas a coleta esporádica do coco inteiro para fabricação de carvão para consumo ou venda a indústrias processadoras. Uma ampla gama de situações intermediárias ocorre, seja em relação aos produtos utilizados, ou a seu destino (consumo ou comercialização). Tal compreensão implica a necessidade de aprimorar a classificação adotada nos recenseamentos oficiais, que considera apenas os estabelecimentos nos quais ocorre a produção (extração) de “babaçu amêndoa” ou a produção (coleta) de “babaçu coco”.

Adicionalmente, observações empíricas de campo indicam ser significativo o número de domicílios nos quais, mesmo que a realização da atividade extrativa já não seja realizada quotidianamente no domicílio, a identificação de mulheres como quebradeiras de coco ainda é forte, associada a um modo de vida no qual as palmeiras de babaçu são componentes fundamentais. Isso ocorre tanto pela idade avançada das extrativistas e das crescentes dificuldades para a sucessão familiar na atividade como pela disponibilidade de outras fontes de renda que substituem o valor que seria auferido pelos produtos do babaçu.

Com base no exposto, resta claro que o “universo amplo de extrativistas do babaçu” deveria considerar uma estimativa do número de famílias e pessoas que praticam o extrativismo, sem se restringir aos frutos e amêndoas, incluindo extrativistas que, mesmo sem comercializarem tais produtos, identificam-se como quebradeiras de coco e utilizam produtos da palmeira. Para tanto, seria necessário esforço metodológico que incorporasse consultas amplas e sistemáticas para obter tais estimativas a partir de levantamentos de campo, a exemplo do realizado na região de maior produção de amêndoas de babaçu do país, o Médio Mearim (PORRO, 2019). Como estratégia complementar visando alcançar tal objetivo, o presente estudo efetuou o cruzamento de dados dos censos demográficos e econômicos dos municípios com ocorrência de babaçu para uma simulação do “engajamento no extrativismo do coco babaçu”, baseada em critérios de verificação. Posteriormente, comparou-se resultados dessa simulação com dados de pesquisa detalhada realizada em campo, nos 24 municípios do Médio Mearim, para estimar o “contingente de extrativistas que comercializam amêndoas de babaçu”.

 

Engajamento no extrativismo do coco babaçu

A análise foi realizada em municípios nos cinco estados nos quais o extrativismo do babaçu apresenta relevância econômica: Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará e Ceará. Inicialmente, para cada município destes cinco estados, o número de domicílios rurais foi projetado para 2020, considerando a prognose da população municipal daquele ano fornecida pelo IBGE. A partir do número de domicílios registrados no censo demográfico de 2010, aplicou-se, entre 2010 e 2020, a mesma redução no índice de população rural observada na década anterior. O diagrama da Figura 7 ilustra os procedimentos adotados para estimar o total de domicílios rurais em 2020, exemplificando com dados agregados para todo o país.

 

 

Figura 7 – Diagrama ilustrativo para estimativa do número de domicílios rurais em 2020

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Fonte: IBGE (2000, 2010, 2020b).

 

 

Uma planilha unificada foi então gerada com o número de domicílios rurais estimado para 2020, o número de estabelecimentos agropecuários conforme o Censo Agropecuário de 2017, e o volume de amêndoas de babaçu para o ano de 2020 informado pela Pevs. A partir dessa integração, foi possível identificar os 356 municípios nos quais foi registrada a atividade extrativa, e que passaram o universo desta análise. Nota-se que 37% dos cerca de 2 milhões de domicílios rurais desses cinco estados estão localizados nesses 356 municípios.

A partir dos dados da Pevs, estimou-se o número de estabelecimentos que praticam a atividade, de forma a compará-lo com os dados do Censo. O parâmetro adotado para tal avaliação foi a divisão da produção municipal de 2020 pelo volume médio de 808 kg produzidos anualmente por estabelecimento, obtido com base na série histórica dos censos agropecuários desde 1970 (excluindo o censo de 2006). Aplicando tal parâmetro, a produção média calculada pela Pevs no período demandaria cerca de 59 mil estabelecimentos agropecuários, total 65% superior ao reportado pelo último censo, mesmo considerando a soma dos estabelecimentos que “produziram” “babaçu coco” e “babaçu amêndoa”. Os resultados desta integração são apresentados na Tabela 3, com dados no âmbito de estado.

 

 

Tabela 3 – Domicílios rurais em municípios com registro de extrativismo de babaçu e estabelecimentos agropecuários engajados na atividade conforme Censo e Pevs

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Fonte: IBGE (2017, 2020a, 2020b).

Nota: O número de estabelecimentos reportado para os censos agropecuários consiste na soma dos estabelecimentos que indicam a produção de “babaçu amêndoa” e “babaçu coco”.

 

Um modelo de verificação condicional composto por quatro situações foi utilizado para estimar o número de domicílios engajados no extrativismo do coco babaçu (DEB) nos 356 municípios em que se registrou a atividade no Censo Agropecuário de 2017 e/ou na Pevs-2020. A operacionalização do modelo segundo a relação dessas duas bases de dados como número de domicílios rurais, obtido a partir da contagem populacional de 2020, seguiu as condições expostas abaixo:

 

(a)

eCA>ePEV;

eCA< 0,66 DR

èDEB = eCA

(b)

eCA<ePEV;

ePEV< 0,33 DR

èDEB = ePEV

(c)

eCA<ePEV;

ePEV:  0,33-0,66 DR

èDEB = 0,5*(eCA + ePEV)

(d)

eCA<ePEV;

ePEV>0,66 DR

èDEB = (2*eCA/DB)* DB

 

Nota: DEB – estimativa de domicílios no extrativismo do babaçu; eCA – número de estabelecimentos no Censo Agropecuário-2017 que indicam extrativismo do babaçu; ePEV– número de estabelecimentos que produzem amêndoas de babaçu, estimado com base em dados da Pevs-2020; DR – número de domicílios rurais a partir da contagem populacional de 2020.

 

O modelo considera o número de domicílios rurais (DR) do município, como principal parâmetro de referência para verificação do número de domicílios engajados no extrativismo do coco babaçu (DEB). Estabeleceu-se o índice máximo de 66% do DR para validar como DEB o número de estabelecimentos agropecuários informados pelo Censo Agropecuário de 2017 (eCA), e de 33% do DR para validar como DEB o número estimado a partir dos dados de produção da Pevs-2020 (ePEV). Para situações em que a prognose de domicílios extrativistas obtida a partir da Pevs foi superior a 33% do total de DR, o modelo incorporou fatores de correção de forma a atenuar o efeito de dados da Pevs superiores à realidade de campo. Quando o valor de ePEV estiver entre 33% e 66% do DR, a DEB será a média entre o eCA e o ePEV. Por fim, quando a estimativa de domicílios obtida a partir da Pevs superar 66% do número de domicílios rurais (inclusive com casos superiores a 100% dos DR, indicando forte tendência de erro de informação da Pevs), o ePEV é desconsiderado e o modelo define como valor de DEB o valor da multiplicação do número total de domicílios no município por um fator equivalente ao dobro do percentual que resultaria pela divisão do número de estabelecimentos extrativistas registrados pelo Censo Agropecuário e o total de domicílios. 

 

Extrativistas que comercializam amêndoas de babaçu

O quantitativo de domicílios que comercializam amêndoas de babaçu (DCA) foi obtido em campo nos 24 municípios do Médio Mearim, região de maior produção de amêndoas de babaçu no país, a partir de entrevistas realizadas em 2021 diretamente com os responsáveis pelos pontos de compra de babaçu. Tais pontos de compra estão localizados em povoados rurais e periferias de cidades, constituindo o primeiro elo na cadeia de comercialização de amêndoas. Dentre os 24 municípios, 16 localizam-se na microrregião geográfica definida pelo IBGE como Médio Mearim (MG-MM), que inclui um total de 20 municípios. Outros três municípios fazem parte do Território da Cidadania do Médio Mearim (TC-MM), estabelecido em 2009 pelo governo federal, e que compreende 16 municípios, dos quais apenas esses três não fazem parte da MG-MM. São, portanto, 13 os municípios incluídos tanto na MG-MM como no TC-MM. Os demais cinco municípios em que o estudo foi realizado pertencem a microrregiões contíguas (Codó e Pindaré), com forte integração econômica e cultural com os demais. Dois municípios da MG-MM nos quais o estudo não foi realizado (São Raimundo do Doca Bezerra e São Roberto) situam-se em sua porção sul, onde não se observa ocorrência significativa da palmeira e do extrativismo do babaçu.

Duas entrevistas semestrais foram realizadas em 634 estabelecimentos comerciais, que representam o universo de pontos de compra de amêndoas de babaçu nos municípios focalizados. Os questionários foram aplicados nos meses de julho/2021 e janeiro/2022, sendo coletadas informações relativas aos seis meses anteriores. Além dos volumes adquiridos, preços praticados e número de famílias que comercializam naquele local, o questionário contextualizou cada estabelecimento comercial, indicando produtos do babaçu adquiridos, forma de aquisição, anos de atuação na compra e destino das amêndoas. O resultado (DCA) desse levantamento de campo exaustivo em 24 municípios foi comparado à estimativa de domicílios engajados no extrativismo (DEB), e a relação entre os dois índices foi projetada para os demais municípios na área de ocorrência comercial do babaçu, de forma a definir o DCA para os cinco estados focalizados na pesquisa.

 

Resultados e discussão

Estimativa do universo amplo de extrativistas do babaçu em 2020

A aplicação do modelo baseado em cinco regras para verificação de DEB resultou num total calculado de 49.811 domicílios que praticam o extrativismo do babaçu, equivalente a 6,5% do total de domicílios rurais na área de ocorrência do extrativismo do babaçu. Considerando a média de 1,25 pessoa por domicílio, o total de extrativistas seria de cerca 62 mil pessoas.

A primeira regra de verificação (número de estabelecimentos informado pelo Censo Agropecuário de 2017 é superior ao estimado com base nos dados da Pevs e inferior a 66% dos domicílios rurais), segundo a qual o eCA resulta ser o DEB, foi aplicada em 211 dos 356 municípios (59,3%). A segunda situação, pela qual adota-se o ePEV como DEB, ocorreu em 118 municípios (33,1%) nos quais o ePEV é superior ao eCA e inferior a 33% do DR.

A terceira regra, aplicada a 15 municípios (4,2%) nos quais o ePEV está entre 33% e 66% do DR, define como DEB a média entre os dois índices (eCA, ePEV), sendo aplicada a 15 municípios (4,2%). A quarta regra de verificação (ePEV superior a 66% do DR), na qual o DEB resulta da multiplicação de DR por um fator obtido a partir do eCA, foi verificado em 12 municípios (3,6%). Os resultados da simulação para cada um dos cinco estados, assim como nos 12 municípios em que a atividade adquire maior expressão são apresentados na Tabela 4. A Figura 8 mostra os 356 municípios nos cinco estados. A intensidade de cores do mapa indica níveis diferenciados de densidade de presença de domicílios extrativistas por área municipal (número de domicílios por 10.000 ha).

 

Tabela 4 – Estimativa de domicílios engajados no extrativismo do babaçu

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Fonte: IBGE (2017, 2020a, 2020b).

 

 

Figura 8 – Localização dos municípios com indicação de extrativismo de babaçu

1943- figura 08.png

Fonte: IBGE, 2017.
Elaboração: Renan Augusto Miranda Matias.

 

No estado do Pará, a simulação indica que o extrativismo do coco babaçu é realizado em 89 domicílios de 13 municípios, sobretudo próximos ao chamado “Bico do Papagaio”, no vizinho Tocantins. Esses municípios estão localizados nas microrregiões geográficas de Marabá, Redenção e Parauapebas. Os municípios com maior número de extrativistas seriam Parauapebas, Brejo Grande do Araguaia e São Domingos do Araguaia.

No Ceará, estima-se em 406 o número de domicílios, localizados em 26 municípios, a maior parte na área ocidental do estado, próximo ao limite setentrional com o estado do Piauí. Os municípios estão situados nas microrregiões de Ibiapaba, Baturité, Ipu, Sobral, Meruoca, Uruburetama e Sertão de Crateús. No estado, os municípios com maior número de extrativistas seriam Viçosa do Ceará, Barbalha e Ipaoporanga.

No Tocantins, em 55 municípios situados nas porções norte e leste do estado, estima-se 1.088 domicílios com ocorrência de extrativismo do coco babaçu (2,2% do total dos cinco estados). Estão incluídos os 25 municípios da microrregião do Bico do Papagaio, além de outros nas microrregiões de Araguaína, Jalapão, Miracema do Tocantins e Porto Nacional. Os municípios com maiores números absolutos de extrativistas seriam Riachinho, Sítio Novo do Tocantins, Babaçulândia, Carrasco Bonito e São Miguel do Tocantins.

No Piauí, são 81 os municípios identificados com ocorrência do extrativismo do babaçu, sendo estimados 6.810 domicílios, correspondendo a 14% do total. Estes municípios estão distribuídos em 10 das 14 microrregiões, principalmente na porção oeste do estado. Dentre estas, estão incluídos municípios nas microrregiões do Baixo Parnaíba, Médio Parnaíba, Teresina, Campo Maior, Valença do Piauí, Bertolínia, Picos, Alto Médio Gurgueia, Litoral Piauiense, Floriano e Alto Parnaíba. Os municípios com maior número de domicílios envolvidos na atividade, pela simulação realizada, seriam Barras, Miguel Alves, União, Campo Largo do Piauí, Esperantina, Luzilândia e José de Freitas.

No Maranhão, calcula-se o engajamento no extrativismo do babaçu em 40.279 domicílios (83% do total), distribuídos em 181 dos 217 municípios, de todas as 20 microrregiões do estado. Dentre as microrregiões do estado com estimativas mais elevadas para o número de domicílios atuantes no extrativismo do babaçu destacam-se o Médio Mearim (11.345 domicílios), Baixada Ocidental Maranhense (6.281), Pindaré (5.087), Codó (3.138), Chapadinha (2.830), Caxias (2.273), Presidente Dutra (2.581), Itapecuru Mirim (2.337), Chapadas do Alto Itapecuru (1.539) e Alto Mearim e Grajaú (668).

 

Extrativistas que comercializam babaçu

Uma pesquisa de campo realizada ao longo de 2021 caracterizou a cadeia de valor do babaçu no território do Médio Mearim, e será objeto de publicação futura. No presente estudo, foram utilizados os dados relativos ao número de famílias que comercializam amêndoas de babaçu em todos os 634 pontos de compra identificados em 24 municípios, cujos responsáveis foram entrevistados em dois momentos ao longo do ano de 2021, sendo-lhes indagado qual é a produção adquirida e o número de extrativistas que comercializam em cada local.

 

Tabela 5 Engajamento no extrativismo do coco babaçu e comercialização de amêndoas, em relação ao total de domicílios rurais em 24 municípios do Médio Mearim

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Fontes: IBGE, 2017 e pesquisa de campo.

 

A Tabela 5 ilustra que o quantitativo de domicílios que efetivamente comercializaram amêndoas de babaçu nestes municípios (DCA = 8.989) resulta ser muito próximo do dado apresentado pelo Censo Agropecuário de 2017, para a soma do número de estabelecimentos que registraram produção de babaçu amêndoa e babaçu coco (9.101), e 50,4% superior ao número de estabelecimentos que registraram apenas a produção de amêndoas (5.825). Considerando a estimativa de domicílios que praticam o extrativismo do coco babaçu nesses 24 municípios (DEB = 14.213), os dados da pesquisa de campo indicam que 63% desses domicílios comercializam amêndoas. Por outro lado, o total agregado de domicílios que comercializam amêndoas foi de 19% do total de domicílios rurais nestes municípios (DR = 47.943).

Os resultados, quando analisados separadamente por município, indicam não haver um padrão consistente na relação entre o total de domicílios rurais, estabelecimentos agropecuários envolvidos no extrativismo do babaçu (pelo Censo Agropecuário), estimativas DEB geradas no presente estudo e pesquisa direta nos pontos de compra. Correlações variaram conforme apresentado, sendo mais fortes entre a simulação realizada (DEB) e os dados do Censo Agropecuário (CA), como esperado. Tais diferenças se devem a aspectos já apontados quando da realização dos recenseamentos, a discrepâncias frequentes entre limites municipais e a erros associados a exercícios de simulação. Não se deve descartar imprecisões em respostas de comerciantes locais, eventualmente contribuindo para inconsistências observadas. Vale destacar, contudo, que a pesquisa realizada em campo já vinha sendo testada, em número crescente de municípios, desde o ano de 2016, o que resultou em progressivo aperfeiçoamento da metodologia aplicada. A despeito da ausência de um padrão para todos os municípios, foi considerado que os quantitativos gerais para cada abordagem resultam confiáveis e passíveis de comparação.

O índice relativo de 63,2%, obtido nos 24 municípios do Médio Mearim, entre domicílios que comercializam amêndoas (DCA) e domicílios que praticam o extrativismo do coco babaçu (DEB), é então aplicado aos demais 332 municípios. Os 14.213 domicílios engajados na atividade correspondem a 29,6% do total de domicílios rurais dos 24 municípios do Médio Mearim, e a 28,5% do total de domicílios que, de acordo com a simulação, praticam o extrativismo do coco babaçu (49.811). Assim, nos demais 332 municípios, os 35.598 domicílios que praticam o extrativismo do babaçu corresponderiam a 5% dos 705.263 domicílios rurais. Aplicando a proporção de 63,2% a este total, o resultado é de 22.498 domicílios que, somados ao valor identificado nos 24 municípios da pesquisa de campo, mostram uma projeção de 31.487 domicílios, e 39.358 extrativistas que efetivamente comercializam amêndoas nos 356 municípios.

 

Conclusão

Os resultados deste estudo permitem visualizar o contexto atual da participação no extrativismo do babaçu, que aqui é avaliado com base em duas expressões diferenciadas. Adotamos o conceito de universo amplo de extrativistas do babaçu que, pelas simulações realizadas, alcançaria, atualmente, cerca de 62 mil quebradeiras de coco em 50 mil domicílios, total 39% superior ao número de estabelecimentos registrados pelo Censo Agropecuário de 2017, considerando a soma dos estabelecimentos produzindo babaçu coco e babaçu amêndoa. Quando o foco é o quantitativo que comercializa amêndoas, o levantamento realizado no Médio Mearim, se projetado para os 356 municípios, e considerando a proporcionalidade dos índices de engajamento na atividade, resultaria em 40 mil extrativistas em 32 mil domicílios.

Os 356 municípios nos quais ocorre o extrativismo do babaçu perfazem área total superior a 495 mil km2, dos quais estima-se que ao menos 12,5 milhões de hectares tenham babaçuais como principal elemento da paisagem. Uma avaliação conservadora do potencial de produção destes babaçuais resulta que um volume de 1,5 milhão de toneladas de amêndoas poderia ser produzido anualmente.[4]  Mesmo nos anos em que a produção de babaçu atingiu seu pico, na década de 1970 e início dos anos 1980, a produção de amêndoas limitou-se a não mais que 20% deste total. Na atualidade, os dados do IBGE sobre a produção anual de amêndoas oscilam entre 1% e 4% deste volume potencial. Mesmo que fossem quadruplicados os níveis históricos de produção anual de amêndoas por estabelecimento agropecuário, resultado de eventuais avanços tecnológicos, tal potencial permitiria o envolvimento de mais de 460 mil domicílios, ou 575 mil extrativistas, contingente nove vezes superior ao total estimado neste estudo.

Em contraste com o potencial mencionado, a realidade que caracteriza o extrativismo do babaçu é o progressivo desestímulo à atividade. No ano de 2019, em que pesem esforços da sociedade civil visando à ampliação do alcance da Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), acentuou-se uma drástica redução de preços pagos pela amêndoa, com implicações diretas no engajamento na atividade. Com efeito, o preço médio pago pela amêndoa em municípios do Médio Mearim, que ao longo de 2017 e 2018 havia oscilado entre R$ 1,70 e R$ 2,20/kg, a partir de 2019 caiu para menos de R$ 1,20/kg, em virtude, sobretudo, à opção das maiores indústrias consumidoras pelo óleo de palma e à queda do preço internacional dessa commodity. Embora os preços tenham parcialmente se recuperado a partir do segundo semestre de 2020 e ao longo de 2021, as dificuldades que já vinham afetando o setor nas últimas décadas, somadas à constante redução de oportunidades de mercado, tornam cada vez mais incerto o futuro da economia vinculada ao babaçu e, a ela atrelada, dos meios de vida de comunidades agroextrativistas. As análises apresentadas neste estudo evidenciam a necessidade de revisar procedimentos metodológicos adotados para gerar estatísticas oficiais sobre o extrativismo do babaçu, de forma a melhor apoiar políticas públicas voltadas à sociobiodiversidade e, particularmente, às famílias agroextrativistas que dependem do babaçu para seus meios de vida.

 

 

Referências

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Como citar

PORRO, Roberto. Dimensões diferenciadas do engajamento camponês no extrativismo do babaçu. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e2230204, 6 out. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_04.  

 

 

Roberto Porro

Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, onde coordena estudos de antropologia rural. Professor permanente do Programa de Pós-graduação em Agriculturas Familiares, do Instituto de Estudos da Agricultura Familiar, Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em Antropologia Cultural pela Universidade da Flórida.

roberto.porro@embrapa.br
https://orcid.org/0000-0003-4133-0068
http://lattes.cnpq.br/2282097420081043

                                   

 

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[1] Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, onde coordena estudos de antropologia rural. Professor permanente do Programa de Pós-graduação em Agriculturas Familiares, do Instituto de Estudos da Agricultura Familiar, Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em Antropologia Cultural pela Universidade da Flórida. E-mail: roberto.porro@embrapa.br

[2] Segundo relatos de técnicos do IBGE ao autor, dificuldades operacionais ocorreram durante o Censo Agropecuário de 2006, explicando o fato de que esse seja considerado um “ponto fora da curva” para dados do extrativismo do babaçu.

[3] “Babaçu amêndoa” e “babaçu coco” são terminologias utilizadas apenas pelo IBGE e por isso aparecerão ao longo do texto entre aspas. Assim, distinguem-se de coco babaçu e amêndoa de babaçu, que são os termos utilizados na linguagem popular.

[4] Em 1 ha consideram-se 80 palmeiras, sendo 40 palmeiras em produção, produzindo em média 2 cachos/ano. Cada cacho contém em média 25 kg de coco babaçu, do qual as amêndoas representam 6% do peso. Portanto, em cada hectare seria obtido, em média, o total de [40 x 2 x 25 x 0,06] = 120 kg de amêndoas de babaçu.