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v. 30, n. 2, julho a dezembro de 2022 (publicação contínua), e2230201


Recebido: 17.fev.2022   •   Aceito: 20.jun.2022   •   Publicado: 7.jul.2022

Artigo original / Revisão por pares cega / Acesso aberto

 

 

Terra, Estado e movimentos: declínio da reforma agrária a partir de uma etnografia na Amazônia Oriental

Land, state and movements: the fall of agrarian reform seen from an ethnography in the Eastern Amazon


orcid_id.png  Igor Rolemberg[1]   



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_01


Resumo: A partir de uma cena que materializa a relação de cooperação e conflito que movimentos e ‘Estado’ mantiveram durante décadas para a implementação da reforma agrária, o artigo investiga como esta entrou em declínio no sul e sudeste paraense. Para isso, retoma as classificações locais dos períodos da luta pela terra feitas pelos atores da mobilização, descrevendo especialmente o que alguns chamam de fragilização. O desmonte das políticas e das agências estatais responsáveis pela questão agrária, intensificado desde 2016, provocou um rompimento nessa relação. Com isso, as demandas dos movimentos se tornaram menos audíveis. A etnografia aponta, no entanto, que o declínio da reforma agrária passa não só pela impermeabilidade do ‘Estado’, mas, dada a queda contínua do número de ocupações, pelas dificuldades dos próprios movimentos em comporem coletivos que vocalizem reivindicações. Isso exige levar em consideração os impedimentos colocados pelo cotidiano atual de incerteza e sofrimento em muitas ocupações.

Palavras-chave: reforma agrária; interação socioestatal; desmonte; desmobilização.

 

Abstract: Starting from a scenario that embodies the relationship of cooperation and conflict that movements and “the State” maintained for decades to implement agrarian reform, this article investigates how reform declined in southern and southeastern Pará, Brazil. This is done by returning to local classifications made by the actors in this mobilization during the struggle for land, especially describing what some call fragilization. The dismantling of state policies and agencies responsible for the agrarian issue (which has intensified since 2016) caused a rupture in the government’s relationship with the movements, making their demands less audible. The ethnography, however, shows that the decline of agrarian reform involves not only the impermeability of “the State” but also (considering the steadily decreasing number of occupations) difficulties faced by the movements inassembling the collectives that voice demands. As a result, the impediments created by the uncertainty and suffering currently experienced daily in many occupations must be taken into account.

Keywords: land reform; state-movements interaction; dismantling; demobilization.

 

 

Uma cena com os movimentos e o ‘Estado’:[2] 17 de abril de 2015

“Mas não podemos deixar de dizer que algumas razões nos trazem aqui hoje. A primeira delas, que já foi dita por muitas pessoas que me antecederam, é fazer memória aos 19 companheiros que foram brutalmente assassinados 19 anos atrás.”

Assim o agente[3] e advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) introduziu sua fala durante o ato que reuniu milhares de pessoas no trecho da BR-155, conhecido como “curva do S”, local onde se deu o Massacre de Eldorado dos Carajás. Trata-se de uma ação que acontece regularmente todos os anos, em memória aos 19 trabalhadores rurais que lá foram assassinados por policiais militares do estado do Pará em 17 de abril de 1996. Faz parte de um conjunto mais amplo de eventos com periodicidade anual e dedicados à memória de mártires da luta pela terra na região, tais como a Romaria dos Mártires da Floresta em Nova Ipixuna e o ato-memória às vítimas do Massacre de Pau d’Arco, para citar apenas dois.

Desde os anos 2000, esse momento do calendário costuma ser marcado por uma maior intensidade das ações reivindicatórias em torno do acesso e redistribuição de terras, não só no Pará, mas em diferentes locais do Brasil, quando se multiplicam jornadas, marchas, ocupações, celebrações, atos-memória, bloqueios de estrada, organizados tanto pelo MST quanto por outros atores da mobilização por reforma agrária, a exemplo dos sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais e suas federações, Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf). Trata-se portanto de imersão em um tempo cíclico da mobilização, que ficou conhecido como “abril vermelho”, havendo um incremento da ação contestatória diante das agências estatais – do Poder Executivo ou Judiciário, estaduais ou federais – responsáveis pela implementação da política de reforma agrária e de outras que lhe são conexas, relativas à produção agrícola ou ao combate ao trabalho escravo em áreas rurais, por exemplo.

Da mesma forma que, em anos anteriores, antecederam ao ato político: (i) uma celebração ecumênica, com a participação do bispo de Marabá e de um pastor da Assembleia de Deus, membro de um dos acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); e (ii) uma mística[4] realizada no asfalto da rodovia que, para esse fim, foi bloqueada durante 30 minutos aproximadamente. Particularmente nesse ano de 2015, no entanto, a infraestrutura montada à beira da estrada foi maior.

Pela primeira vez um ministro do Desenvolvimento Agrário participou do ato, o que acarretou a ampliação do palco para receber os convidados. A primeira fileira tinha seis cadeiras. Lado a lado, da esquerda para direita, sentaram-se: o presidente da Fetagri, o presidente da Fetraf, um coordenador do MST, a então recém-nomeada presidenta do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o ministro do Desenvolvimento Agrário e o superintendente regional do Incra em Marabá. Atrás, uma outra fileira de cadeiras era ocupada por uma dezena de parlamentares dos legislativos estadual e federal, filiados em sua maior parte ao Partido dos Trabalhadores (PT), acompanhados de assessores que entretêm uma interlocução com representantes desses ‘movimentos’. Em pé, nas laterais do palco, integrantes das equipes de comunicação do MST, do Incra e jornalistas de veículos da imprensa – com sede em Marabá, Belém, e São Paulo, pelo que repertoriei – faziam registros.

Banners e bandeiras dos três movimentos preenchiam toda a parte de baixo na frente do palco, assim como seus nomes e símbolos encontravam-se reproduzidos em muitas camisetas e bonés do público – também mais numeroso naquele ano pelo que pude comparar com edições anteriores e posteriores – que assistia, sob as tendas instaladas em frente ao palco, e à margem da rodovia, às falas dos participantes chamados ao microfone, a partir de uma lista em mãos da anfitriã do evento, uma jovem militante negra e membro da coordenação estadual do MST.

As tendas situavam-se exatamente na faixa de terra entre o palco e o imponente memorial em homenagem às vítimas do massacre, feito a partir de imensos troncos de castanheiras queimadas, com dezenas de metros de altura (restavam sete dos 19 instalados no início). Na margem direita da estrada em direção a Belém, encontravam-se estacionados os ônibus e caminhões que transportaram os participantes, em contingente maior naquele ano, na grande maioria membros de ocupações e acampamentos coordenados pelo MST, Fetagri e Fetraf. Tomando conhecimento, dias antes, da vinda dos representantes de Brasília, as federações intensificaram os convites e as arrecadações para fretar mais veículos para quem pudesse estar lá presente. Algumas pessoas, apesar de estarem em uma ocupação de terra há quase 10 anos, participavam pela primeira vez – a exemplo dos trabalhadores da fazenda Campos do Norte,[5] que conheci em visitas da CPT – de um bloqueio de estrada e de um ato-memória importante como aquele para a comunidade de militantes em torno da reforma agrária.

Voltando para o palco onde está o agente de pastoral e advogado, de pé e com o microfone na mão, ele completa sua fala, e lembra ao ministro e à presidenta do Incra a quantidade de trabalhadores e lideranças assassinados na região: segundo os dados da pastoral da terra, mais de 600 nos últimos anos [de 1985 a 2015]. A gente costuma dizer, ministro – e não é força de expressão –, que em cada assentamento criado na região tem sangue de trabalhador derramado. E é verdade. E às vezes de mais um trabalhador. Destaca a demora na criação de assentamentos em áreas de ocupação como catalisadora de conflitos. A média tem sido de aproximadamente 500 famílias assentadas por ano. Se a gente mantiver assim, levaremos 24 anos pra resolver só a demanda que já existe atualmente, sem contar que o quadro possa se agravar.

Não há nada de anódino na composição dessa cena. Ao modo de Gluckman (2010[1940]), gostaria de, a partir dela, expandir a descrição e a análise sobre as mudanças por que passou e passa a mobilização por reforma agrária na região e seus impasses. Nela aparece o idioma militante que os ativistas por acesso e redistribuição de terras utilizam para suas reivindicações – o modo como definem um problema e o endereçam ao ‘Estado’ ali pessoalizado pelos representantes do Incra –, referências aos tipos de ações coletivas que costumam privilegiar no cotidiano (as ocupações e acampamentos), além da própria modalidade de interação, denominada parceria (PENNA, 2013, 2018), que movimentos e ‘Estado’ cultivaram nos últimos anos em torno da questão agrária. Trata-se de uma relação marcada por cooperação e conflito, combinando protesto e negociação, quando os movimentos puderam participar da execução da política de criação de assentamentos rurais.

Neste artigo começo descrevendo os movimentos por reforma agrária e o mundo das ocupações e acampamentos no sul e sudeste do Pará, para tratar em seguida da ascensão e queda da parceria. Para isso, redireciono a atenção para o modo como os atores da mobilização, notadamente os agentes da CPT com quem mais convivi durante o trabalho de campo, periodizam a luta pela terra. Essa historicidade local sinaliza diferenças relevantes quanto aos modos de agir presentes tanto na contestação e formulação de demandas, por um lado, como na recepção dessas por agências estatais, por outro. Estabelecer a focal de descrição e análise a partir da CPT é bastante pertinente, na medida em que a Pastoral é o único ator da mobilização local que acompanha – e circula por – uma diversidade de ocupações de terras ligadas a diferentes movimentos, o que a torna também o locus de maior documentação de casos.

O material empírico aqui trabalhado resulta, em grande parte, das observações do trabalho cotidiano dos agentes na interação com os movimentos, seguindo uma regra metodológica de estudar a mobilização não pelos seus momentos mais espetaculares, que costumam atrair mais atenção, como as grandes manifestações do 17 de abril, mas pelo que acontece no seu interregno (PALMEIRA, 1979; SIGAUD, 1986). A essas observações juntam-se as entrevistas e a consulta a arquivos institucionais, inclusive os que dizem respeito à quantificação das ações coletivas empreendidas na última década.

Se o desmonte da política de reforma agrária, com a queda acentuada de assentamentos na década 2011-2020, tem impacto na capacidade reivindicatória da mobilização, ele não explica por si só o arrefecimento dela nos últimos anos, com a queda igualmente constatada do número de ocupações de terra. Defendo que para entender como uma ação coletiva, outrora intensa, entra em ocaso, é preciso olhar  o impacto causado nos movimentos pelas mudanças estatais, como habitualmente tem sido feito, e o modo como entraves à mobilização na escala das ocupações, e para além delas, passaram a existir, o que tem recebido menos atenção dos estudos empíricos. É o que os agentes chamam de fragilização: as demandas por reforma agrária tornam-se cada vez menos audíveis e ao mesmo tempo menos vocalizáveis, alterando a configuração de relações de protesto e participação que pôde assumir a interação entre movimentos e ‘Estado’.

 

Ocupações e acampamentos

Nove dias antes do Ato, em 8 de abril de 2015, portanto, representantes dos três movimentos (Fetagri, Fetraf e MST) se reuniram para discutir a pauta de reivindicações a ser apresentada ao ministro e à presidenta do Incra-Sede. Convidaram agentes da CPT a participarem. Na ocasião, um dos agentes sugeriu que fosse feito um levantamento do número de ocupações em curso, aquelas que cada movimento representava. O objetivo era formular uma lista mais completa, ao cruzar as respostas das lideranças ali presentes com o número de acampamentos cadastrados na Ouvidoria do Incra para o recebimento de cestas básicas, base de dados em que costumeiramente se baseavam os atores estatais para apreender a demanda por terra, numa determinada região.

Após realizar o cruzamento de fontes, essa ação permitiu aferir inicialmente um universo de 139 imóveis ocupados e 137 ocupações/acampamentos – havia dois casos de uma mesma ocupação acontecer em mais de um imóvel contíguo. Essas 137 ocupações de terra estavam distribuídas em 35 municípios do sul e sudeste paraenses, dos 39 abrangidos pela Superintendência Regional do Incra em Marabá (SR-27). Estavam também ligadas a quatro movimentos, pois foram levadas em consideração não só as áreas representadas pelos três movimentos presentes, mas também aquelas ligadas à Liga dos Camponeses Pobres (LCP).[6]

O número total, que não era exaustivo, dada a ausência de informações vindas de alguns municípios, deixava claro, no entanto, que a maior parte das ocupações não é representada pelo MST, que coordenava à época apenas seis ocupações/acampamentos, mas pelas federações sindicais: a Fetagri com 83 áreas, e a Fetraf, com 33. A LCP representava cinco ocupações. O número de famílias em ocupações de terra, que sofre muitas oscilações no tempo, não foi completamente computado naquele momento. Mas, segundo o relatório de gestão da própria SR-27, elas eram 8.279 em 2015,[7] tendo por base o cadastro de acampamentos realizado pela Ouvidoria.

Algumas observações podem ser extraídas do que acaba de ser descrito. Em primeiro lugar, sem-terra é uma categoria que designa um público de ocupantes e acampados que não coincide com os integrantes do MST, mas abrange outros movimentos.[8] Depois, vemos que ocupação e acampamento são termos intercambiáveis em algumas situações, mas podem designar objetos diferentes em outras. Neste último caso, acampamento passa a se referir a uma ‘ocupação de terra’ em que há instalação de diversos barracos, próximos entre si, à beira da estrada ou dentro da fazenda reivindicada. Caracteriza-se por uma maior densidade da população de ocupantes em um espaço, que, por ser menor, limita as possibilidades de se cultivar uma roça, com implicações nos modos pelos quais seus participantes podem obter trabalho e renda.

Já a ocupação, num sentido estrito, refere-se a quando o povo vai pra dentro e corta os lotes. As distintas ecologias impactam a sociabilidade cotidiana: em ocupações, com a maior dispersão de seus integrantes no espaço, a comunicação e os encontros entre o maior número de pessoas e famílias se reduzem, tornam-se menos frequentes em relação aos que um acampamento torna possível. Isso tende a se agravar à medida que uma ocupação se prolonga no tempo – o que é cada vez mais o caso na região – dadas as mudanças que se tornam mais recorrentes na sua composição, com entrada e saída de integrantes, após a venda de direitos.[9]

Em diversas ocupações de terra (o termo abrange ocupações em sentido estrito e acampamentos), tanto de sindicatos quanto do MST, era comum se iniciar com um acampamento para depois passar a uma ocupação. Os agentes observam, no entanto, que a fase do acampamento vem sendo, há alguns anos, encurtada ou mesmo suprimida (sobretudo nas ocupações de terra representadas por sindicatos), passando a existir apenas a vila, com espaços de sociabilidade comuns: mercado, bar, escola, igrejas e barracão (local de reuniões).

Familiarizando-se nesse universo, é possível apreender certas características distintivas entre ocupações de terra do MST e as do sindicato. Comecemos pelas do MST. Elas costumam acontecer por iniciativa da coordenação local do movimento, através de uma escolha prévia do dia, da hora e do imóvel a ser ocupado, e de um trabalho de base preparatório com famílias (das periferias urbanas ou da zona rural) que participam da ação. A essas famílias se juntam acampados mais experientes de outras áreas do MST, para ajudar na montagem inicial dos barracos e na organização da vida coletiva, segundo comissões criadas por temas – educação, saúde, disciplina, segurança, outros – e núcleos de base, que agrupam famílias e barracos de uma mesma rua (no caso de acampamentos) ou estrada vicinal (para assentamentos). Trata-se de uma tecnologia de mobilização muito conhecida, retratada em inúmeros trabalhos acadêmicos – para uma síntese: Sigaud, Rosa e Macedo (2008) – e que difere pouco de uma região para outra do país, devido à nacionalização dessas técnicas empreendidas pelo movimento.

Como vimos, as áreas do MST são em muito menor número, comparadas às do sindicato, mas têm visibilidade muito maior, porque no sul e sudeste do Pará esse movimento privilegiou realizar ocupações em fazendas valorizadas às margens das grandes rodovias (a exemplo da BR-155), e que pertencessem a grandes proprietários (empresas ou fazendeiros), sobre cujas terras houvesse suspeitas de grilagem (e portanto que a terra em questão seja pública) ou indícios de descumprimento da função social da propriedade. Por consequência, quem circula pelas principais estradas não deixará de notar as ocupações do MST, enquanto as do sindicato passarão despercebidas, por serem mais internalizadas, em imóveis situados nos ramais dos eixos principais.

Some-se a isso o fato de o MST deixar visíveis os sinais diacríticos de sua presença, tais como a instalação do mastro e da bandeira, da guarita e de uma grande placa/painel com o símbolo do movimento e o nome do acampamento, que, em geral, homenageia personalidades (incluindo mártires da luta pela terra), datas e eventos importantes para a história do movimento. “João Canuto”, “Dalcídio Jurandir”, “Helenira Rezende”, “Frei Henri”, “Hugo Chávez”, “Lourival Santana” eram nomes dos acampamentos em curso. Outra é a configuração em áreas dos sindicatos, onde geralmente não há ou é precária (e não uniformizada) a sinalização da existência de uma ocupação, cujo batismo se dá geralmente – pode haver exceções, é claro – com nomes do universo cristão, católico ou evangélico, a exemplo das ocupações “Nossa Senhora Aparecida”, “Deus é Fiel”, “Raio de Luz” e “Jesus é Rei”.

Além disso, ocupações representadas pelos sindicatos, como as da Fetagri, costumam acontecer pela entrada em um imóvel de um grupo de famílias constituído pelas relações existentes de parentesco, amizade e vizinhança. Após o ato de ocupação, essas famílias criam uma associação e vão buscar apoio de algum movimento. Geralmente são os sindicatos ligados à Fetagri ou à Fetraf que aceitam realizar a representação dessas áreas no ‘Estado’/Incra. Essa modalidade de relação entre grupos de famílias e sindicatos, com busca a posteriori de apoio, é uma característica que remete a um método já praticado por posseiros nos anos 1980 (GUERRA, 2013, p. 85). Muito embora o público de ocupações do MST seja formado também por redes pré-constituídas (e em constante elaboração) de parentesco, amizade e vizinhança, há, por exemplo, uma necessidade de pedir vaga, para quem deseja ingressar num acampamento (não basta o convite do parente/amigo/vizinho). A admissão é analisada pela coordenação, algo mais raro de acontecer em ocupações dos sindicatos, onde é mais fraca a presença do movimento no dia a dia, e, portanto, de instâncias de organização e controle outras que as do parentesco/amizade/vizinhança.

 

Historicidade da mobilização

Por mobilização, entendo o conjunto de ações postas em andamento por diferentes atores visando à publicização de situações experimentadas como um problema – precariedade no acesso à terra, para o caso que estamos tratando – por meio de processos de comunicação e associação que constituem coletivos (DEWEY, 2001). Localmente ela é chamada de luta pela terra.

Antigamente, a gente batia palma e colocava 7 mil, 8 mil, na porta do Incra para mobilização. Hoje é difícil. Assim Lúcio, agente desde 2005, reagiu quando lhe perguntei, em 2014 ainda, sobre a quantidade de acampamentos realizados nos últimos anos. Poucos, ele concordaria. Os do sindicato, só os mais antigos mesmo, e do MST teve um este ano. Percebi, então, que não poderia negligenciar a especificidade do momento em que se desenvolvia o trabalho de campo, que remetia a uma questão latente: como uma ação coletiva que foi durante anos a principal forma de reivindicação no acesso e redistribuição de terras em diversas regiões no Brasil, e que ganhou especial destaque na Amazônia Oriental, pela quantidade e notoriedade de casos de conflitos agrários na região, veio a entrar (ao menos na década 2011-2020) em declínio?

Oferecer uma resposta passa, antes, por entender como ocupações e acampamentos vieram a se tornar a “forma apropriada para reivindicar reforma agrária no Brasil” (SIGAUD, 2005, p. 255). Para isso, vou percorrer muito brevemente algumas periodizações da luta pela terra que me foram apresentadas, em diversas ocasiões, ao longo de 28 meses em que se desenvolveu a etnografia.[10] Essas classificações eram utilizadas não só pelos agentes, mas por atores dos diferentes movimentos, indicando uma certa estabilização dos critérios de nomeação desses recortes no tempo. Assim, eram frequentes as referências: (i) ao tempo da 20 ou tempo em que se fazia a luta atrás do toco,[11] que corresponde aos anos 1970 e 1980; (ii) à chegada do MST no início dos anos 1990; (iii) às transformações decorrentes do Massacre de Eldorado dos Carajás em 1996; e (iv) à fragilização, a partir dos anos 2010.

No início de 2015, havia, no sul e sudeste paraenses, 503 assentamentos rurais, tornando a Superintendência do Incra em Marabá a agência fundiária com maior número de projetos sob sua responsabilidade, na região Norte do país. Isso significava a gestão de um território de aproximadamente 4,2 milhões de hectares, com capacidade para 92.054 famílias.[12] Alguns municípios, como o de Eldorado dos Carajás, têm mais de 60 por cento de suas terras constituídas por assentamentos. Como gosta de lembrar Mano, ex-agente, os números colocam uma questão inescapável: como isso foi possível? Afinal, levando-se em consideração as políticas fundiárias presentes nos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND), e depois nos planos plurianuais (PPA), vê-se a ênfase em colonização e regularização fundiária – esta última, aliás, não deixou de ser objeto de renovados investimentos em diferentes governos pós-redemocratização – mas não em reforma agrária por via da desapropriação. Por isso, ainda segundo Mano, não é exagerado dizer que a atual configuração foi conquistada, na medida em que não estava prevista.

Tempo da 20, em referência à arma utilizada por posseiros – muitos deles personagens das frentes de expansão intensificadas nos anos 1970[13] na Amazônia Oriental –, indica a recorrência de situações de enfrentamento direto e baixo grau de institucionalização dos conflitos contra fazendeiros e a grande empresa.[14] De fato, nessa época, havia poucos sindicatos de trabalhadores rurais, se compararmos ao número existente no Nordeste; e os que existiam estavam sob intervenção federal e voltados ao assistencialismo. Ainda assim, já se desenvolvia uma mobilização para fazer das expropriações e da falta de acesso à terra um problema público, graças ao trabalho de mediação (ALMEIDA, 1993; NOVAES, 1994), notadamente da Igreja (os agentes), que fazia circular, por diferentes escalas e canais, denúncias de casos de conflitos, ao mesmo tempo que investia num trabalho de assessoria a oposições sindicais, em áreas de CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) ou não.[15]

A consulta aos arquivos da CPT combinada aos relatos de agentes mais antigos permite repertoriar uma série de ações coletivas que, tendo se tornado mais conhecidas a partir dos anos 1990 e 2000, pela maior divulgação, já eram desenvolvidas nos anos 1980: romarias e manifestações realizadas durante enterros de lideranças, em que a marcha ao cemitério poderia mudar de enquadramento e tornar-se ‘marcha política’, e, além de ocupações, acampamentos em órgãos públicos, e criação de comitês para casos criminais envolvendo militantes e lideranças, especialmente quando assassinados. Esse último tipo de ação desapareceu do repertório militante nos anos 2010.

A partir de 1980, a agência do Incra, que havia sido criada em 1970, foi substituída pelo Getat (Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins), órgão diretamente vinculado ao Conselho de Segurança Nacional da Presidência da República, dotado de elevado orçamento. Houve maior verticalização do processo decisório quanto à regulação fundiária para posseiros – assentamentos de reforma agrária estavam fora de escopo – priorizando a ação em áreas de “tensão social”, conforme linguagem do Estatuto da Terra. O diálogo entre ‘Estado’ e movimentos era impensável. O quadro se altera com a redemocratização, a partir de 1985, quando a própria participação de sindicatos na implementação da política de reforma agrária vem recomendada no I PNRA. É quando, igualmente, são realizadas as primeiras desapropriações coincidindo com áreas de ocupação.[16] Apesar de essas mudanças institucionais em âmbito federal não terem reflexo automático na escala local, é possível afirmar que o engendramento de práticas de diálogo e cooperação entre ‘Estado’ e movimentos (à época, mais os sindicatos) começaram a se desenvolver já em 1985, o que é verificável em documentos do Incra de Marabá (PENNA, 2018, p. 132).

A chegada do MST na região, na virada para os anos 1990, traz consigo a ‘forma acampamento’ (SIGAUD, 2000) que não deixou de provocar estranheza entre os militantes locais. Isso não tem como dar certo, um ex-agente me confessou ter pensado, quando soube da proposta de fazer as pessoas montarem barracos na beira da estrada ou perto da sede da fazenda, estando bem visíveis e juntas. Diante de um histórico em que a luta pela terra se dava no centro da mata dos imóveis, contra pistoleiros, a impressão foi que isso tornaria as famílias vulneráveis, e impediria a permanência delas em uma ocupação (já que facilmente expulsáveis). No entanto, após o Massacre, essa forma reivindicatória ganhou em inteligibilidade, eficácia, e sobretudo legitimidade. Ela se difundiu entre os diversos movimentos, estabilizando a emergência de um novo sujeito, o sem-terra, enquanto entrava em declínio o posseiro (ONDETTI; WAMBERGUE; AFONSO, 2010; PEREIRA, 2015).

Ressalte-se: a novidade era o acampamento, e não a ocupação. O Massacre, por sua vez, gerou profundas transformações no ambiente institucional. Depois dele foram criadas: uma superintendência do Incra apenas para a região sul e sudeste do Pará (SR-27), uma vara da justiça federal, uma vara especializada em questão agrária na justiça estadual, uma procuradoria do Ministério Público Federal (AFONSO, 2016). Também cresceu vertiginosamente o número de assentamentos criados na região e os anos seguintes são descritos como o período de uma mobilização social mais intensa, tempo dos grandes acampamentos, quando os movimentos obtiveram o direito de deliberar a programação oraçamentária do Incra (ASSIS, 2007). Houve multiplicação de fazendas ocupadas, e realização de acampamentos na sede da agência fundiária em Marabá com sete ou oito mil pessoas, com integrantes tanto do MST como dos sindicatos (à época filiados a Fetagri apenas), como afirmou Lúcio anteriormente. Vale dizer que esse fenômeno foi observado não apenas na Amazônia Oriental, mas em todo o país.

A literatura acadêmica diverge sobre as relações entre repressão e protestos: se estes aumentam ou diminuem em função daquela (COMBES; FILLIEULE, 2011). No caso das contestações por reforma agrária na década de 1990 no Brasil, elas se intensificaram após os massacres de Corumbiara (1995) e Eldorado dos Carajás (1996), com aumento do número de ocupações concomitante ao de assentamentos criados, alterando o campo de oportunidades políticas, uma vez que governos estaduais e federal foram crescentemente pressionados a darem uma resposta para essa agenda,[17] após amplas mobilizações de apoio, nacionais e internacionais, terem sido desencadeadas por ambos os eventos (ONDETTI, 2006, p. 84-87). Isso reforçou a cooperação entre ‘Estado’ e movimentos na implementação da política agrária e o reconhecimento do MST como interlocutor legítimo. Em resumo, 19 anos depois do Massacre na “Curva do S” era encenada ali a relação de parceria[18] que aquele evento histórico contribuiu para fazer existir.

A intensificação das políticas de regularização fundiária e reforma agrária após períodos de conflitos violentos tem uma longa continuidade (ALMEIDA, 1991; ALSTON; LIBECAP; MUELLER, 2000; SCHMINK; WOOD, 2012). Que o conflito precise existir para que haja uma política de assentamentos não é algo instaurado a partir da generalização da ‘forma acampamento’ como meio adequado e legítimo de acessar lotes de reforma agrária, portanto. As agências fundiárias já eram estimuladas por lei a privilegiar “áreas de tensão social”, e, durante os anos 1980, nota-se que as áreas regularizadas eram apenas aquelas em que o conflito se tornava grave em razão dos meios violentos empregados e pela visibilidade pública alcançada (ALMEIDA, 1991), o que confere um substrato empírico verificável à afirmação do advogado da CPT em cena: não é força de expressão [dizer] que em cada assentamento criado há sangue de trabalhador.[19] Esse fenômeno se reproduz até os anos 2000. Observando a curva de assentamentos criados no Pará e no Brasil, percebe-se um aumento consequente durante dois anos a partir de 2005, por exemplo. Neste ano, no mês de fevereiro, outro caso de conflito ganhou grande repercussão: a agente Dorothy Stang foi assassinada. A partir dos anos 2010, entretanto, há um desacoplamento da política de reforma agrária como resposta a conflitos. É um dos indicadores do tempo de fragilização, segundo os agentes.

 

Fragilização: reivindicações menos audíveis (desmonte)

Se Sigaud (2005), contra uma leitura que chamou de “encantada”, afirmava que as ocupações têm suas condições de possibilidade – premissa importante do ferramental bourdieusiano que utilizava –, e que sua eficácia está ligada a um “ato fundador e legitimador”, o de que o Incra “aceitou a legitimidade dos procedimentos e reconheceu os movimentos como representantes autorizados a solicitar desapropriações, e os participantes das ocupações como pretendentes legítimos à terra”, ainda assim o argumento deixa uma lacuna analítica quanto às razões que levaram o Incra a reconhecer tal legitimidade aos movimentos. As pressões resultantes do alcance e da robustez da mobilização por reforma agrária nos anos pós-Massacre, como vimos, pode ser uma delas.

A isso se acrescentaria uma circulação transnacional já em curso de tecnologias de governança que incentivavam a participação da ‘sociedade civil’, indo aliás ao encontro de anseios dos movimentos sociais pós-redemocratização, numa convergência perversa (DAGNINO, 2003) – porque coincidia com a escassez de recursos produzida por políticas neoliberais – dentre outras razões. Seja como for, um ponto não negligenciável é a estrutura do órgão fundiário. É uma das agências historicamente mais mal dotadas em recursos orçamentários diante da quantidade de atribuições que lhe cabem (WOLFORD, 2010, p. 96). Não teria condições de atender à demanda por terra (e mesmo identificar as situações prioritárias) sem interlocução.

Assim, os movimentos tornaram-se atores necessários para: (i) indicar terras onde deveriam ser criados projetos de assentamento; e (ii) pré-selecionar famílias – muitos presidentes de associação em áreas de ocupação realizam cadastro de seus membros – que serão futuramente beneficiadas (em tese) com um lote. Mas os movimentos permaneciam sujeitos a constantes juízos de admissibilidade de suas reivindicações: tem direito de reivindicar quem passa pela lona preta e vive toda tópica do sofrimento que lhe é associada (LOERA, 2010) e/ou quem prova que trabalha a terra, que faz roça, em oposição a quem deixa a terra abandonada, porque nesses casos há sempre suspeita de especulação, que se está aguardando a repartição dos lotes para vender os direitos depois, o que não corresponde ao perfil desejado de um “cliente da reforma agrária”, tal como consta na legislação que orienta o trabalho do Incra. Essas condições, aliás, têm longa duração, pois já eram operantes durante a ditadura civil-militar nos processos avaliativos e decisórios de regularização dos posseiros. Recentemente, entretanto, vêm perdendo poder legitimador.

A cena inicial constituiu uma das múltiplas formas de interação que os movimentos poderiam ter com o Incra, sem prejuízo de outras, como as reuniões com a Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo (CNCVC),[20] e audiências administrativas agendadas com superintendente regional ou com chefes e funcionários de divisões para discutir pautas específicas a uma ocupação, ou a ocupações de um só movimento. A fragilização passa: (i) pela supressão dessas arenas, assim como; (ii) pelos sucessivos cortes orçamentários; e (iii) pelas alterações legislativas que inviabilizam qualquer política de reforma agrária, o que a literatura acadêmica tem chamado de desmonte ou desmantelamento (BAUER et al., 2013). Isso foi acompanhado de um elemento inédito: a legitimidade da parceria, como modalidade de interação socioestatal passou a ser mais ampla e publicamente questionada.

Um ano após o ato, em 2016, houve a paralisação de todos os processos de implementação de novos assentamentos, por determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) que investigou ilegalidades nos assentamentos já criados (por exemplo, desmatamento e compra e venda de lotes, que passavam a ser ocupados por terceiros sem “perfil de cliente da reforma agrária”), ao mesmo tempo que questionou os métodos de inscrição e seleção de famílias por meio do diálogo com movimentos. A parceria era retratada como um desvio aos princípios da administração pública, argumento mobilizado também pelo juiz da 1a Vara da Justiça Federal de Marabá, que, no âmbito de uma ação civil pública em curso já havia quatro anos, proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a SR-27 por irregularidades no “levantamento ocupacional”, considerou que os movimentos monopolizavam (sic) a indicação de fazendas para desapropriação (ou compra) e de famílias para assentamento. O juiz determinou, também em 2016, que a inscrição e seleção se dessem por edital público, instrumento considerado mais adequado aos princípios de impessoalidade e publicidade.

Da leitura de ambas as decisões a parceria aparece como relação oficiosa, quando, na verdade, um decreto da Presidência da República (2.250/1997),[21] nunca citado por elas, afirma em seu artigo 1o que “entidades estaduais representativas de trabalhadores rurais e agricultores poderão indicar áreas passíveis de desapropriação para reforma agrária”. O ataque à legalidade e à legitimidade da parceria foi reforçado na CPI Funai-Incra, que também transcorreu em 2016. No depoimento da presidenta do Incra-Sede, na sessão de 5/5/2016, no entanto, restava clara a precariedade estrutural do órgão – em 1985, o Incra geria 67 assentamentos em todo Brasil e tinha um quadro de 9.000 servidores; em 2016, eram 9.332 assentamentos a serem geridos e 4.600 servidores em todas as superintendências –, o que ironicamente mostrava a necessidade da parceria atacada e prenunciava o golpe fatal que maiores restrições orçamentárias causariam nos anos seguintes, se viessem acontecer, como de fato aconteceram.

Destaque-se, por fim, que a parceria com os movimentos é apenas uma das várias conexões que o Incra estabelece, pois a autarquia interage com uma diversidade de atores – partidos políticos, entidades patronais, empresas, fazendeiros, dentre outros – durante seu trabalho (PENNA, 2013). As investigações da CPI, do TCU e da 1a Vara de Justiça Federal de Marabá negligenciaram essas outras conexões. Foge ao escopo deste artigo fazer uma análise de controvérsias que os eventos mencionados anteriormente implicaram. Importa apenas ressaltar que junto ao desmonte de política agrária concorre uma campanha pública de deslegitimação da interação socioestatal que, no caso em tela, envolveu atores governamentais do Executivo (TCU), do Legislativo (CPI) e do Judiciário, em escalas nacionais e locais.

O desmonte da política agrária (ALENTEJANO, 2018; MATTEI, 2018; SAUER, LEITE, TUBINO, 2020) aconteceu principalmente através de desaparecimento de estruturas, alterações normativas, cortes orçamentários. Em relação à primeira: extinção, em 2016, do MDA (Medida Provisória no 726), da CNCVC e das Ouvidorias Agrárias, e em 2020, por meio do Decreto no 10.252/2020 e da Portaria no 531/2020, do setor-chave para a reforma agrária, a Diretoria de Obtenção de Terras, que passa a ser “Divisão de Terras”, com status regimental inferior. De 2016 a 2020, o Incra ficou sob a tutela do Ministério do Desenvolvimento Social, depois da Casa Civil, e por fim do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), acompanhando o desmonte que também aconteceu na política agrícola para agricultura familiar, sobretudo no que concerne a crédito e políticas de desenvolvimento rural.

As principais alterações normativas visaram: (i) dificultar a reforma agrária; e (ii) facilitar a regularização fundiária e titulação dos assentados. Quanto ao primeiro ponto, destaca-se a permissão do pagamento em dinheiro e não em títulos da dívida agrária, para imóveis adquiridos para reforma agrária (Lei no 13.465/2017) e o fim da possibilidade de inscrição coletiva, por meio de entidade representativa, formal ou informal, dos trabalhadores rurais, em futuros projetos, tal como previa o Decreto no 8738/2016, agora revogado pelos Decretos nos 9331/2018 e 10.166/2019, que esvaziaram a eficácia das ocupações e acampamentos. Quanto ao segundo, a Lei no 13.465/2017 facilitou a legalização da grilagem, ampliando o tamanho dos imóveis passíveis de serem regularizados, alterando o marco temporal da ocupação, reduzindo prestações e juros para pagamento da regularização, e anistiando crimes ambientais cometidos.

Por fim, os cortes orçamentários, que remontam a décadas anteriores, tornaram-se mais drásticos após a promulgação da Emenda Constitucional no 95,  do “teto de gastos”. Como a desapropriação vinha sendo cada vez mais inviável (pela falta de revisão nos índices de produtividade e de eficiência na exploração da terra) e porque o Instituto vinha privilegiando a compra (Decreto no 433 de 1992), os cortes orçamentários impossibilitaram de vez essa alternativa.

Em resumo, o desmonte afetou as condições de possibilidade e legitimidade das principais ações coletivas em defesa da reforma agrária: as ocupações e os acampamentos. Teve como consequência imediata a redução da participação. Porém, e de uma forma que nos interroga, houve a redução do protesto. Nesse sentido, a fragilização, como categoria êmica, descreve melhor que o ‘desmonte’, como categoria ética, os impasses da reforma agrária e seu declínio, porque ela capta não só as dificuldades crescentes do lado do ‘Estado’, mas também dos movimentos.

 

Fragilização: reivindicações menos vocalizáveis

A ação protestatória é um litígio sobre o sensível (RANCIÈRE, 1991): trata-se de dar a ver e ouvir sujeitos e acontecimentos por meio de reivindicações. O endereçamento destas, em matéria de reforma agrária, tem sido prejudicado pela retração do ‘Estado’, especialmente do Executivo Federal e das agências ligadas a ele, como o Incra. Reivindicações tornam-se menos audíveis porque ali não há quem as receba/ouça. No entanto, os agentes têm notado também um problema de emissão da fala reivindicatória, que ocorre em escalas diferentes: (i) nas ocupações, pela dificuldade de compor coletivos mobilizados; (ii) em públicos mais amplos, pela perda do interesse no tema da reforma agrária.

Como vimos, as ocupações de terra existem há pelo menos cinco décadas na região, desde o tempo da 20. A ação de entrar na terra com um grupo formado por parentes, amigos e vizinhos e buscar apoio do sindicato também teve continuidade até os anos 2011-2020, aqui tratados. Mudou, no entanto, a ecologia da mobilização. Nos anos 1980, em muitas dessas áreas de ocupação, a ação pastoral da Diocese de Marabá reconhecia a legitimidade de algumas pessoas que tinham iniciativa de organizar o culto e de promover atividades para discutir e buscar soluções para problemas cotidianos das famílias, oficializando-os como animadores, e instituindo aquela unidade espacial como comunidade, no sentido de CEB (MAUÉS, 2010). Ao mesmo tempo, quando o sindicato concretizava o apoio, o fazia escolhendo um membro ou porta-voz daquela ocupação para ser delegado(a) sindical, ou seja ser representante do sindicato naquela área. Não raro, era o(a) próprio(a) animador(a). Havia assim uma “comunidade linguística” (NOVAES, 2001, p. 65) que se formava: animadores que participavam de encontros regionais de CEBs interagiam com boa parte das pessoas que reencontravam em reuniões do sindicato, e em outros espaços de mobilização, criando-se ocasiões para o reforço de solidariedades.

Na década de 1990, a política de crédito à agricultura familiar em assentamentos previa que os recursos fossem geridos por uma associação dos assentados. Com o crescimento do número de assentamentos após o Massacre, aumentou vertiginosamente também o número de associações, e esse formato representativo começou a ser adotado antecipadamente pelas ocupações que viriam a ser apoiadas pelos sindicatos, talvez porque muitos ocupantes entendiam que essa era a linguagem que o ‘Estado’/Incra compreenderia, caso pretendessem se comunicar com ele. Ocorre que a Fetagri não tinha meios de acompanhar as centenas de associações que passaram a surgir e solicitar seu apoio enquanto desaparecia a delegacia sindical (AFONSO, 2016). Paralelamente, as CEBs se enfraqueceram por reorientação doutrinária quanto ao que deveria ser o trabalho pastoral e a Igreja (hierarquia eclesial) passou a privilegiar a paróquia – e não a comunidade – como unidade territorial primária.[22] O resultado foi o rápido desfazimento daquela “comunidade linguística”, em que circulava um idioma comum de mobilização. A maior atomização das associações, sem presença cotidiana do sindicato, por outro lado, fazia a representação perder substância. No entanto, presidentes de associações percebiam que participar de relações diádicas com o governo –  leia-se o ‘Estado’/Incra – os enfraqueciam. De fato, ter o apoio (ainda que apenas formal) de um movimento (no caso, federação sindical) é subir em ordem de grandeza e fortalecer a demanda (BOLTANSKI, 1993). Essa fragilidade da representação, que já despontava na virada para os anos 2000, começou a dificultar o sucesso da mobilização.

A média de criação de novos assentamentos ao ano começou a cair continuadamente a partir de 2003, com exceção do período após o assassinato da agente Dorothy Stang (2005-2006). O aumento no tempo de vida das ocupações existentes, sem que se vislumbre uma resposta, com a criação de assentamento, acentua situações de sofrimento e incerteza: sem saída administrativa pelo Incra, as ocupações que são objeto de ações judiciais de reintegração de posse veem aumentadas suas chances de despejo; em consequência, fazer roça torna-se mais arriscado, e cresce a exposição a episódios violentos com a segurança armada das fazendas ocupadas e/ou pistoleiros, ao que se soma a recorrente precariedade de infraestrutura (estradas em más condições; ausência de escola; dentre outros). Isso afeta uma das condições de possibilidade das ocupações: as expectativas depositadas nessa ação pelas pessoas que dela participam (L’ESTOILE, 2001). Tendem a crescer as chances de abandono da terra e as consequentes operações de compra e venda de lotes, provocando uma constante alteração na composição do grupo, com a chegada e saída de integrantes. Isso retroalimenta incertezas, pela abertura ao desconhecido que a venda ocasiona: não se sabe de antemão o perfil de quem compra, nem como o adquirente vai integrar o grupo. Agentes veem o fenômeno como fonte de conflitos entre iguais e responsabilizam as agências estatais, seja o Judiciário, seja o Incra, pela demora em agir.

A situação de abandono é propícia à multiplicação de práticas predatórias, como a exploração ilegal de madeira nas áreas ocupadas, garimpo, aluguel de pasto, dentre outras. Isso dificulta o cumprimento das condições para uma ação reivindicatória legítima e eficaz, segundo os critérios da interação socioestatal e dos movimentos: a permanência na terra, a produção na roça, a participação nas reuniões na ocupação e fora dela, em manifestações, marchas, caminhadas, romarias etc. Uma mobilização bem-sucedida pressupõe uma temporalidade em desajuste com o tempo da urgência. Lideranças – como as(os) presidentas(es) de associação – que buscam coibir a predação, atendo-se ao código moral da mobilização, expõem-se a ameaças, com crescente poder dissuasório, na medida em que o movimento (federação sindical, para a grande parte de ocupações existentes no sul e sudeste do Pará, como vimos) não consegue lhe garantir apoio e proteção, e que as políticas públicas existentes a esse fim (como o Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos) são alvo do desmonte.

É nesse quadro que passam a ser aplicadas as mais recentes políticas de titulação e de regularização fundiária. A primeira se dirige ao público de assentamentos e, a segunda, ao público de ocupações situadas em terras públicas federais. Estão descobertas do alcance dessas políticas fundiárias as ocupações em terras pretensamente privadas (mas cuja suspeita de ser terra pública não se confirma pela interrupção dos processos de investigação de cadeia dominial pelo Incra, afetados igualmente pelo desmonte) e as ocupações em terras comprovadamente privadas que não cumprem função social (e cuja aferição do descumprimento também vem sendo prejudicada pela escassez de recursos/desmonte).

Muito embora não disponha de estatísticas sobre a distribuição das ocupações em curso segundo o tipo de terra ocupada, meus interlocutores estimam que 60% encontram-se em: (i) terras pretensamente privadas; e (ii) terras comprovadamente privadas. Elas não são passíveis de regularização fundiária e estão, portanto, sujeitas a despejos iminentes, suspensos em 2020 e 2021 por causa da pandemia. O único modo de atendê-las seria através de reforma agrária por retomada de terra pública, no primeiro caso, e por desapropriação ou aquisição, no segundo. Mas associações e movimentos encontram crescentes dificuldades para compor coletivos mobilizados, por meio do engajamento das famílias ocupantes em ações coletivas como manifestações, ocupações de prédio público e outras, seja pela constante alteração na composição desses grupos, como se viu, seja pela competição com outros atores ligados a práticas predatórias, seja por crise da reputação de lideranças.

Por outro lado, em relação aos integrantes de ocupações em terras públicas, meus interlocutores, os agentes, se deparam com a dificuldade de os fazerem recusar a regularização fundiária, que se realiza (e é seu pressuposto) por demanda individual/lote, para que, ao contrário, ingressem numa mobilização coletiva por assentamentos cuja realização é cada vez menos provável. A regularização e titulação, aliás, tem forte apelo entre participantes das ocupações, na medida em que, segundo eles, alcança-se com elas mais autonomia, contra o cativeiro que a tutela do Incra impõe em um assentamento.

Por fim há outros obstáculos para além da escala local. A reforma agrária, como problema público, vem perdendo robustez pelo silêncio em torno dele (LERRER; FORIGO, 2019). Um problema se publiciza na medida em que interpela o Estado e montagens institucionais, tornando-se sensível (visível e audível), alinhando atores que se consideram concernidos pela questão, estabelecendo alianças ou oposições. Seu modo de existência passa por uma dinâmica de relatos descritivos e prescritivos (CEFAÏ, 1996, p. 47): para tornar pública uma situação considerada problemática (a falta de acesso à terra pela sua má distribuição, por exemplo) os atores se veem implicados numa maquinaria: é preciso definir o problema, investigar suas causas, determinar responsáveis, imaginar soluções, donde a importância de instrumentos de quantificação, descrição e qualificação, e de fazer circular esse trabalho por diversos canais de comunicação e registros: oral, escrito, gráfico, visual, dentre outros (CEFAÏ, 2007). Essa infraestrutura demanda utilização de uma linguagem com algumas molduras (frames) ou paradigmas que torne inteligível a mensagem.

Ora, desapareceram arenas que propulsionavam a publicização do problema. A principal delas, o Fórum Nacional pela Reforma Agrária – criado em 1995 pelos atores que estiveram implicados na Campanha Nacional pela Reforma Agrária iniciada em 1984, que participou do lançamento do I PNRA e foi ativa durante a Constituinte, em especial no debate sobre a função social da propriedade – deixou de existir em 2005. As molduras (frames) da linguagem da reforma agrária nos anos 1980 e 1990 entraram em crise – fim das narrativas agrárias com o campesinato como categoria englobante, como diria Mauro Almeida (2007) – diante de novas agendas: agricultura familiar, agroecologia, direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais.[23]

Essas dificuldades, em diferentes escalas, de vocalização e publicização da reforma agrária como um problema – que a categoria fragilização utilizada pelos agentes, e identificada pela etnografia, permite descrever – ajudam a compreender como a redução da participação pela impermeabilidade crescente do Estado foi acompanhada pelo arrefecimento continuado do protesto. Importa agora resumir os principais impasses que o declínio da reforma agrária implica.

 

Considerações finais

Preterir reforma agrária em terras (pretensamente ou comprovadamente) privadas por regularização fundiária em terras públicas impacta a dinâmica da fronteira na Amazônia. Este é o primeiro impasse. A expansão da agropecuária tem se beneficiado das mudanças no marco legal de regularização de posses em terras públicas (MENEZES, 2019, p. 264) e funciona como continuado mecanismo de anistia (perdoando a grilagem, legalizando-a), com efeitos incitatórios (BRITO et al., 2019) para que novas ocupações contra a lei, no presente, aconteçam com expectativa de regularização no futuro. O quadro torna-se ainda mais preocupante em áreas onde há mobilizações para descaracterização territorial como no sudoeste do Pará (LACERDA, 2019) e sul do Amazonas (MENEZES, 2019). Vale lembrar que o público-alvo não tem sido apenas de agricultores(as) familiares que detêm entre 50 e 100 hectares, mas visam beneficiar posses de até 1500 hectares, sem garantia que os procedimentos de controle e verificação das condições de acesso a tal direito sejam cumpridos. Os ocupantes de posses menores como muitos sem-terra em áreas públicas, uma vez titulados, não têm acesso aos subsídios do programa de reforma agrária (ainda que não aplicados nas últimas décadas, podiam ao menos ser reivindicados), e poderão partir renovando frentes de expansão em outras direções, redinamizando a fronteira, em concorrência com outros atores como empresas agropecuárias, minerárias, madeireiras, grandes proprietários rurais.

O segundo impasse é o potencial aumento de conflitos e casos de violência, seja pela extinção de arenas de mediação, como a CNCVC, seja pelo aumento iminente no número de despejos judiciais pela ausência de soluções administrativas através do Incra. A etnografia da mobilização na última década, 2011-2020, combinada com a atenção às formas como os atores, notadamente os agentes, descrevem a historicidade dessa mobilização, permitiu identificar uma ruptura inédita no modo como o ‘Estado’ responde aos conflitos. Pela primeira vez nota-se um desacoplamento: na ditadura, privilegiava-se oferecer uma resposta (via titulação/regularização) em “áreas de tensão social” e, na redemocratização, a política de assentamentos se intensificou após acontecimentos como os Massacres de Corumbiara e Eldorado do Carajás, ou o assassinato de Dorothy Stang; em 2017, o Massacre de Pau d’Arco não ensejou a mesma resposta do ‘Estado’ nem houve ampla mobilização pública em favor da reforma agrária.

O desmonte intensificado desde 2016 foi decisivo no declínio da reforma agrária como agenda pública, mas não compreendemos direito esse fenômeno, sem atentar para o modo como a mobilização (dinâmica do protesto/contestação) ocorreu, nos últimos anos, em paralelo à participação. É isto que a etnografia permite destacar, chamando a atenção para a riqueza heurística do termo êmico fragilização, por ele descrever as transformações encontradas nas duas pontas da interação entre ‘Estado’ e movimentos, desde 1985. O declínio da reforma agrária – que tem os impasses anteriormente mencionados como consequências – passa pelo enfraquecimento concomitante da parceria e das ocupações e acampamentos, retratados na cena inicial. Estudos sobre desmonte da política agrária já são mais raros em relação aos de política agrícola e ambiental (SABOURIN; CRAVIOTTI; MILHORANCE, 2020; LEITE; SABOURIN, 2021), e poucos têm se detido sobre a queda continuada de novas ocupações. Este trabalho pretende ser uma contribuição inicial nesse sentido.

 

 

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Como citar

ROLEMBERG, Igor. Terra, Estado e movimentos: declínio da reforma agrária a partir de uma etnografia na Amazônia Oriental. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e2230201, 7 jul. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-2_01.

 

 

Igor Rolemberg

Doutorando em Antropologia Social na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França, em co-tutela com o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ). Mestre em Ciências Sociais pela École Normale Supérieure (ENS) de Paris, França

rolemberg.igor@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5171-1254
http://lattes.cnpq.br/8547986250304605

 



                                   

 

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[1] Doutorando em Antropologia Social na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França, em co-tutela com o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ). Mestre em Ciências Sociais pela École Normale Supérieure (ENS) de Paris, França. E-mail: rolemberg.igor@gmail.com.  

[2] Convenções da escrita: utilizo itálico para termos êmicos e para reproduzir falas mais extensas de interlocutores(as) durante o trabalho de campo, aspas duplas para fazer citações bibliográficas e documentais e aspas simples para destacar algumas categorias analíticas que merecem ser tomadas como menos evidentes, ou mais instáveis, a exemplo de ‘Estado’.

[3] Sempre que o termo agente aparece no texto, ele se refere a agente de pastoral, nunca a agente no sentido sociológico do termo. Quando utilizo conceito analítico para tratar de pessoas interagindo em ambientes compartilhados com uma diversidade de entes, opto por ‘atores’.

[4] Para uma síntese sobre os rituais de mística no MST, ver Chaves (2021).

[5] As fazendas citadas receberam nomes fictícios, assim como meus interlocutores, exceto Mano.

[6] Ficaram de fora desse censo as ocupações em terras públicas estaduais, cuja reivindicação se dirigia à agência fundiária estadual, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), além das ocupações ditas espontâneas (as que não têm relação com nenhum movimento). As ocupações da Frente Nacional de Luta não apareceram nesse momento, mas permaneceram baixas em anos posteriores, quando vieram a ser quantificadas.

[7] Disponível em: https://www.gov.br/incra/pt-br/acesso-a-informacao/auditorias/sr27-mba_2015.pdf. Acesso em: 8 dez. 2021.

[8] No entanto, os menos familiarizados com esse idioma, como atestam falas de diversos juízes e jornalistas da região, já presumem que todo sem-terra pertence ao MST.

[9] Expressão corrente para se referir a transações comerciais envolvendo lotes de terra e eventuais benfeitorias.

[10] Quatro meses entre março e julho de 2014; 14 meses entre outubro de 2014 e dezembro de 2015; três meses entre junho e setembro de 2016; três meses entre março e junho de 2017; três meses entre março e junho de 2018; um mês entre abril e maio de 2019.

[11] Ou seja, com o uso de armas, na mata, por detrás das árvores.

[12] Números para consulta através do Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (Sipra). Disponível em: https://painel.incra.gov.br/sistemas/index.php. Acesso em: 9 dez. 2021. A data de atualização na tabela constava: 14/12/2020. Ao longo de 2015 foram criados mais seis assentamentos e, em 2016, mais cinco, totalizando os atuais 514 projetos. Desde 2017 nenhum assentamento foi criado.

[13] A Amazônia Oriental, durante as primeiras décadas do século XX recebeu diversas frentes de expansão (VELHO, 1972; KELLER, 1975), em correspondência com ciclos de atividades econômicas desenvolvidas, como as do extrativismo da borracha e da castanha, atraindo fluxos migratórios que se intensificavam à medida que ocorriam as febres ver Guedes (2014, p. 64-65) – e que expulsões, expropriações e cercamentos afetavam populações rurais em outros pontos do país. A frente maranhense que se dirigiu ao Bico do Papagaio e a Marabá é exemplar disso (ALMEIDA; MOURÃO, 1976). A partir dos anos 1960, a essas frentes com migrantes pouco ou nada capitalizados, que, na combinação de expedientes de trabalho, também procuravam tirar posse em terras consideradas livres (devolutas), junta-se uma outra frente que se fortalece, chamada de ‘pioneira’ por Martins (1996), constituída pela chegada da grande empresa, através de créditos e incentivos fiscais do governo federal, ao que se acrescentavam programas de grandes obras (rodovias, hidrelétricas), tornando-a propriamente uma área de ‘fronteira’, no sentido empregado por Pacheco de Oliveira (2021, p. 17-18).

[14] As disputas violentas pela posse da terra decorriam, é certo, de expropriações/expulsões de posseiros para a instalação de grandes empreendimentos madeireiros, agropecuários e minerários, segundo o modelo da ‘chegada do estranho’ consagrado na literatura por Martins (1993). Porém, como tem insistido Pereira (2015), muitas disputas resultavam também de ocupações realizadas por posseiros (por intermédio de grupos de parentes, amigos e vizinhos) em terras privadas, com títulos de domínio, ou aforadas (caso dos castanhais).

[15] A institucionalização era baixa, mas, pela consulta aos arquivos da CPT, nota-se que muitas disputas já eram judicializadas, com alguns posseiros procurando advogados particulares, ou, nos casos em que havia acompanhamento da CPT, contando com a assessoria jurídica da própria Pastoral. Encontram-se menções também a audiências de conciliação realizadas na sede do Incra em Marabá nos anos 1970.

[16] A mudança institucional acontece no bojo de muitas pressões, após a robustez e amplitude da mobilização por reforma agrária no cenário nacional: em 1984 foi lançada uma Campanha Nacional da Reforma Agrária com diversas entidades; no mesmo ano foi criado o MST; em 1985 foi criado um ministério apenas para cuidar dessa agenda, e logo depois criou-se o primeiro plano, lançado em um encontro militante, o V Congresso da Contag. Tudo isso suscitou forte reação ruralista, ocasionando aumento de conflitos (inclusive de chacinas) e mortes de lideranças. Para uma síntese, ver Medeiros (2010).

[17] Imediatamente após o Massacre de Eldorado foi criado o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, logo convertido em Ministério do Desenvolvimento Agrário. No mesmo ano, a data foi escolhida como dia internacional da luta camponesa. No ano seguinte, uma marcha nacional do MST, saída de três pontos do país, chegou a Brasília em 17 abril.

[18] Cooperação entre ‘Estado’ e movimentos sempre foi combinada ao conflito; ou seja, a participação ocorria concomitante ao protesto. Comerford, Almeida e Palmeira (2014) e Abers, Serafim e Tatagiba (2014) identificaram que o sucesso de negociações na agenda da reforma agrária dependia da manutenção do protesto. Penna (2018) reserva o termo parceria para a relação mantida durante os governos do PT, pelo fato de as regras, procedimentos e práticas de cooperação/participação terem se tornado mais rotinizadas.

[19] Ressalve-se, porém, que os conflitos, em outras situações, promoveram deslocamentos e fuga de lideranças com a desarticulação de mobilizações. Agradeço ao parecerista anônimo pela observação.

[20] Arena em que as partes em conflito, seus representantes e assessorias, e as instituições administrativas e judiciais podiam trocar informações e abrir novas possibilidades de negociação quanto à destinação das terras disputadas.

[21] O mesmo decreto, em seu artigo 4o, traz a proibição de vistoria em imóveis rurais sob esbulho, o que se aplicaria aos imóveis ocupados. Isso teve como efeito, em diferentes lugares, a realização de acampamentos à beira da estrada, fora das fazendas. No sul e sudeste do Pará, no entanto, ocupações dentro do imóveis continuaram ocorrendo.

[22] CPT e CIMI são organismos pastorais que têm certa autonomia da hierarquia eclesiástica católica. Por essa razão, foram menos afetados que pelo reordenamento conservador que atingiu outras pastorais sociais a partir dos anos 1990 em muitas dioceses brasileiras.

[23] A retirada da reforma agrária da agenda governamental é acompanhada pelo boom das commodities dos anos 2000, pela corrida global por apropriação de terras e pelo fortalecimento da concertação política do agronegócio (POMPEIA, 2021). Prova também do enfraquecimento da reforma agrária, é que os sem-terra deixaram de ser o ponto antagônico mais forte do agronegócio que vê nos movimentos indígena e ambientalista a maior ameaça ao seu aparato de justificação, e ao avanço dos seus empreendimentos (POMPEIA, 2021).