ESA_logo.png
v. 30, n. 1, janeiro a junho de 2022 (publicação contínua), e2230114

 

Seção Temática

Saberes, políticas e éticas da terra e do ambiente entre camponeses, quilombolas e povos tradicionais

 


Recebido: 10.10.2021   •   Aceito: 06.04.2022   •   Publicado: 24.05.2022

Artigo original / Revisão por pares cega / Acesso aberto

 

 

Seringueiros do Alto Acre ‘no tempo das políticas públicas’: comunitarismo e disputas eleitorais na atualização da condição camponesa numa região de fronteira agropecuária

Rubber tappers from Alto Acre “in the time of public policies”: communitarianism and electoral disputes in modernizing the peasant condition in an agricultural frontier region



orcid_id.png  João Maciel de Araújo [1]


DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-1_st06



Resumo: Baseado numa abordagem relacional, o presente trabalho discute aspectos prático-simbólicos da ação dos seringueiros de comunidades de reservas extrativistas do Alto Acre, nos campos burocrático e político. A partir de pesquisa documental, observações e entrevistas com moradores de comunidades da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes e de Projetos de Assentamento Agroextrativistas (PAE) situados numa região de fronteira da expansão agropecuária sobre a Amazônia, o trabalho evidencia as tensões entre, de um lado, os princípios e perspectivas de agentes situados em instituições do Estado e do mercado, e, de outro, as perspectivas dos seringueiros, que incorporam seletivamente aos seus habitus novos elementos para a manutenção de sua condição camponesa. Ao percorrer o processo de criação do instrumento jurídico que regulamentou a exploração madeireira em territórios de Resex e as disputas políticas pelo poder local das quais os seringueiros participaram ativamente, por meio de seu envolvimento com o Partido dos Trabalhadores (PT) nas últimas três décadas, o trabalho conclui que tais processos foram determinantes para a ampliação de capital simbólico a esses camponeses, que inseririam um comunitarismo singular no debate público, permitindo a atualização de sua condição camponesa e, consequentemente, sua permanência no cenário agrário do Alto Acre.

Palavras-chave: seringueiros; Amazônia; reservas extrativistas; campesinato; disputas eleitorais.

 

Abstract: This paper utilizes a relational approach to discusses practical and symbolic aspects of bureaucratic and political activities by rubber tappers from communities in extractive reserves in Alto Acre, in a frontier region of agricultural expansion into the Amazon. Documentary research, observations, and interviews with residents of communities in agroextractive settlement projects and the Chico Mendes Extractive Reserve highlight tensions between the principles and perspectives of government and market actors and the rubber tappers, who selectively incorporate new elements to maintain their peasant condition into their habitus. After tracing the creation of the legal instrument that regulated logging within extractive reserves and political disputes for local power involving rubber tappers via the Workers' Party over the past three decades, we conclude that these processes were decisive in expanding the symbolic capital of these peasants and incorporated communitarianism into the public debate, modernizing the peasant condition and thus allowing them to remain part of the agrarian scenario in Alto Acre.

Keywords: rubber tappers; Amazon; extractive reserves; peasantry; electoral disputes.

 

 

 

Introdução

Durante cerca de duas horas, numa reunião do Conselho Deliberativo da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, realizada em maio de 2019, na cidade de Rio Branco, capital do estado do Acre, a atenção dos participantes (técnicos dos governos estadual e federal, lideranças sindicais e comunitárias, pesquisadores etc.) se voltou à apresentação da situação do manejo comunitário madeireiro naquela Unidade de Conservação (UC). Utilizando a linguagem técnica própria do campo, com notável eloquência, um jovem engenheiro florestal realizava um balanço da experiência da atividade nas comunidades Rio Branco e Dois Irmãos, localizadas no município de Xapuri. Até então, as únicas comunidades que efetivamente tiveram madeira explorada a partir dessa proposta na Resex, representando uma área de aproximadamente 1,80% dos 970.570 hectares da unidade, uma das primeiras da modalidade, criada em 1990.

Consciente ou não, o jovem engenheiro, na função de técnico de uma cooperativa de “manejadores”, encarnava naquele momento os resultados de duas décadas de franco incentivo governamental ao controverso manejo madeireiro entre comunidades tradicionais do Acre: filho de seringueiros, oriundo da Resex Chico Mendes, fez o curso técnico florestal na Escola da Floresta[2] e, na sequência, engenharia florestal na Universidade Federal do Acre (Ufac). A publicação da Fase II do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) do Acre, em 2010, apresentava justificativas para ações que induzissem a situações como a protagonizada pelo engenheiro na reunião do Conselho Deliberativo, propondo a normalização do envolvimento dos seringueiros com a comercialização de madeira. Na prática, as intenções dos governos não saíram exatamente como o desejado, a julgar pelo baixo alcance do manejo na Resex Chico Mendes.[3]

A performance do engenheiro florestal sintetizava, portanto, a ambivalência da estreita relação dos seringueiros com a versão de desenvolvimento sustentável apresentada pelos governos da Frente Popular do Acre (FPA), coligação partidária cuja maior influência foi do Partido dos Trabalhadores (PT): se, por um lado, o altivo jovem de linguajar técnico estava alinhado aos interesses do governo, de madeireiros e do mercado de madeiras tropicais, por outro, seria ele próprio o seringueiro falando de uma posição que quatro décadas antes seria impossível vislumbrar, não fosse pelo seu engajamento (e de duas gerações que o precederam) no discurso do desenvolvimento sustentável.

A referida reunião foi também simbolicamente importante, pois representou um dos primeiros contatos diretos entre o novo governo do Acre e as lideranças comunitárias, incluindo presidentes e diretores das cinco associações da Resex, uma por município sobre os quais incidem: as associações dos moradores e produtores dos municípios de Assis Brasil (Amopreab); de Brasileia (Amopreb); de Xapuri (Amoprex); de Capixaba e Rio Branco (Amoprecarb); e de Sena Madureira (Amopresena). O presidente do Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação de Serviços Ambientais (IMC), órgão do governo estadual, estava presente na reunião para, pela primeira vez, falar naquele fórum sobre a continuidade de projetos socioambientais[4] negociados anteriormente. Em que pesem as críticas sobre as contradições da relação dos seringueiros com os governos do Acre,[5] o período de janeiro de 1999 a dezembro de 2018 constitui-se no de maior proximidade dos seringueiros com os governos estaduais. Os quatro mandatos consecutivos da coligação FPA foram encabeçados pelo PT, que no Acre teve os seringueiros como grupo-chave em sua fundação (FERNANDES, 2018).

Este trabalho propõe uma reflexão sobre esse espaço de tempo, em que se originaram os projetos sobre os quais o novo presidente do IMC ali falaria. Uma época de intensa participação dos seringueiros nos fóruns de governos. Um período que julgamos necessário buscar compreender, sobretudo quando levamos em consideração o que vem ocorrendo a partir de 2019, com manifestações e atos oficiais que buscam desconstruir políticas que tiveram efetivamente a participação dos seringueiros e outras populações tradicionais. Por mais que o envolvimento dos camponeses com os governos tenha sido marcado por um caráter eminentemente técnico, burocrático, racionalizado em termos econômicos ou ambientais, ou nos marcos de uma “economia verde”, nesse período esteve presente uma agência comunitarista, tanto nos projetos sob a gestão do IMC, quanto naquele Conselho Deliberativo, ou na própria Resex Chico Mendes de maneira geral.

Lançando mão de uma abordagem relacional, aqui são discutidos aspectos prático-simbólicos dos seringueiros no campo burocrático, a partir da análise do processo de criação da Instrução Normativa no 16/2011 do ICMBio, marco jurídico que, no âmbito do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), estabeleceu diretrizes e procedimentos para a exploração madeireira em reservas extrativistas – também em reservas de desenvolvimento sustentável (RDS) e florestas nacionais (Flonas). Discutimos ainda a influência das comunidades moradoras de territórios extrativistas sobre a dinâmica do campo burocrático e político nos municípios do Alto Acre (que aqui compreende Assis Brasil, Brasileia, Capixaba, Epitaciolândia e Xapuri). Com base em pesquisa documental (a Atas de reuniões do Conselho Deliberativo da Resex Chico Mendes e de reuniões do Conselho Estadual de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia do Acre; ao arquivo que registra o processo de elaboração da IN no 16/2011-ICMBio; e a legislação relacionada ao tema), observações e entrevistas com moradores de comunidades de projetos de assentamento agroextrativistas (PAE) e da Reserva Extrativista Chico Mendes, realizadas entre 2018 e 2020, evidenciamos as tensões entre, de um lado, os princípios e perspectivas dos agentes situados no campo burocrático, e, de outro, as perspectivas dos seringueiros, como camponeses florestais. O trabalho traz à luz os embates e conquistas de um campesinato que, no limiar do século XXI, luta para manter-se na Amazônia, contra o poder econômico e, na maior parte das vezes, contra a totalidade do poder do Estado.

Sendo assim, este trabalho problematiza certo ceticismo quanto ao envolvimento dos camponeses com partidos políticos, que tem lugar, inclusive, em análises críticas que desvendam as estratégias dos grupos dominantes para a continuidade do avanço do capital nesta região. Sem negar contradições e ambiguidades dessa relação, o trabalho busca dar relevo a outro aspecto: os desdobramentos da resistência dos seringueiros à expropriação, quanto à participação no campo político. Embora centrando nossa atenção em escala distinta, acreditamos que este trabalho dialogue com o instigante artigo de Bruno (2021), que analisou as disputas travadas por parlamentares do PT e representantes da bancada ruralista no âmbito da Frente Parlamentar da Agricultura, no Congresso Nacional, deixando claro que os dois grupos políticos representam setores distintos da sociedade brasileira. Nossa ênfase, porém, recai sobre as disputas políticas em torno do poder local. Em última análise, no contexto do Alto Acre, através de sua participação no PT, os seringueiros romperam com uma tradição política brasileira que historicamente deixou as populações camponesas às margens do processo político.

Assim, nas duas seções seguintes e nas considerações finais, buscamos recolocar a discussão sobre o campesinato na esfera das disputas políticas. Na seção “Seringueiros do Acre e políticas públicas”, o trabalho apresenta aspectos históricos da trajetória dos seringueiros no Acre. Neste sentido, a seção busca evidenciar aspectos da emergência dos seringueiros contra a expropriação iniciada com os governos militares, elementos do processo de sua aproximação com os governos do PT no Acre e seu envolvimento no controverso debate sobre o manejo madeireiro, que o governo apresentava como medida alinhada ao ideário do desenvolvimento sustentável. Na seção “Gênese e incidência do comunitarismo seringueiro sobre o campo político do Alto Acre” são apresentadas as características e mudanças ocorridas na organização de base dos seringueiros da região, buscando-se enfatizar como o comunitarismo seringueiro incidiu sobre as disputas políticas locais e contribuiu para sua manutenção no espaço agrário. Nas considerações finais é apresentado um resumo da análise.

 

Seringueiros do Acre e políticas públicas

Os seringueiros têm sua origem social marcada pela migração de camponeses sertanejos do Nordeste e pela matriz indígena, principalmente pela incorporação de mulheres à sociedade dos seringais (ALMEIDA, 2004; SILVA, 2004; PORTO-GONÇALVES, 2008; ESTEVES, 2009; TEIXEIRA, 2019). Forjado no ciclo econômico baseado na produção de borracha natural para exportação aos países que se consolidavam como potências industriais, a partir da década de 1920 os seringueiros desenvolveram características que os singularizam como camponeses florestais (ALMEIDA, 2004; SILVA, 2004) e, no caso do Acre, foram mantidos à margem do campo político e das instituições administrativas (ALLEGRETTI, 2002; PORTO-GONÇALVES, 2003). Em meados dos anos 1970, em função de serem diretamente afetados pelas obras de abertura de estradas e a especulação fundiária, condição para implantação do modelo de desenvolvimento por meio do alargamento da fronteira agropecuária, iniciaram a organização de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), fundaram sindicatos rurais (PAULA, 1991; COSTA SOBRINHO, 1992; PORTO-GONÇALVES, 2003), foram determinantes na fundação do PT no Acre (FERNANDES, 2018), aproximaram-se do movimento ambientalista internacional e, no final da década de 1980, propuseram a criação das Resex (ALLEGRETTI, 2002; PORTO-GONÇALVES, 2003).

No caso do Acre, a partir de 1999, já com algumas Resex criadas, seguiram-se duas décadas de uma estreita e inédita relação entre seringueiros e os governos estaduais, levando-os a aproximar-se ainda mais do ideário do desenvolvimento sustentável. Já no oitavo dia útil do que seriam os 20 anos de governo da coligação FPA, a Lei Estadual no 1.277, de 13 de janeiro de 1999, representou o ato inaugural que insinuava uma mudança de orientação das políticas de desenvolvimento socioeconômico do Acre, e foi recebida com entusiasmo por lideranças políticas, militantes da causa socioambiental e milhares de famílias espalhadas nos seringais do estado do Acre. Trata-se da chamada Lei Chico Mendes, que instituiu a “subvenção econômica aos produtores de borracha natural bruta”, no dizer de sua redação formal, ou “subsídio da borracha”,[6] no dizer dos seringueiros.

Também naquele dia a Assembleia Legislativa do Acre (que suspendeu o recesso a pedido do governador) aprovou a Lei Complementar no 63, cujo art. 70 autorizava o Poder Executivo a criar uma “Agência Estadual de Florestas e Extrativismo”, vinculada à Secretaria de Estado da Produção, estrutura técnico-administrativa responsável pelo “Desenvolvimento Econômico Sustentável” do Acre. Passados poucos dias daquela data, os elevadores e corredores do moderno edifício que sediava o extinto Banco do Estado do Acre (Banacre), em pleno centro de Rio Branco, eram frequentados de forma intensa por lideranças sindicais e comunitárias de áreas de Resex do Acre, que buscavam, na Secretaria Executiva de Floresta e Extrativismo (Sefe), informações sobre o subsídio da borracha. Para os meses seguintes, o governo manteria o entusiasmo socioambientalista em alta.

É importante registrar ainda que além das duas leis mencionadas, em 13 de janeiro de 1999, a Lei Complementar no 61 criou a Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour (FEM), que, ao longo dos governos da FPA, foi responsável pela difusão do discurso oficial do “Governo da Floresta”. De acordo com Bourdieu (2014), além de consistir num ato de manifestação da concentração de recursos simbólicos pelo Estado, o discurso oficial, proferido publicamente, é ato de nomeação e instituição.

A FEM produziu e veiculou um discurso que sugeria total imbricação entre o governo da FPA e os povos da floresta. Tal discurso gravitava em torno da noção de “florestania”, expressão que suscitou as críticas mais ferrenhas por parte de dissidentes (lideranças, artistas, intelectuais) desse grupo político, e também das forças políticas opositoras. Morais (2008) define o discurso oficial coordenado pela FEM como uma iniciativa de criação de uma “acreanidade”, que, sob a justificativa de trazer a narrativa “dos de baixo”, agregaria à identidade acreana as lutas de povos indígenas e seringueiros em defesa de seus territórios, a partir dos anos 1970. Para isso, a Fundação muitas vezes veiculava materiais de imprensa (incluindo rádio e TV públicas) que mostravam longínquas localidades rurais e aldeias indígenas, a partir da cobertura das viagens do governador Jorge Viana, dando-lhe uma feição messiânica e buscando justificar o slogan “Governo da Floresta” (PINHEIRO, 2009).

Contudo, paralelamente às medidas que entusiasmaram os defensores do extrativismo e da causa socioambiental, naquele primeiro mês o governo pôs em curso ações que atendiam aos interesses dos grupos que o discurso oficial buscava fazer crer terem sido vencidos: os fazendeiros. A Lei no 1.282, de 25 de janeiro de 1999, por exemplo, estabeleceu uma série de obrigatoriedades relacionadas à vacinação contra doenças que afetam o gado bovino. A Lei no 1.289, de 7 de julho de 1999, por sua vez, definiu as bases de um sistema de inspeção e fiscalização sanitária e industrial de produtos de origem animal, atendendo às expectativas dos pecuaristas que buscavam acesso a novos mercados. Em dezembro de 1999, a Lei no 1.308, que versa sobre infrações e sanções, e a Lei no 1.311, que cria gratificação a servidores do serviço de fiscalização e inspeção, avançavam na consolidação do arcabouço legal do serviço de inspeção sanitária animal. Assim, no primeiro mês do governo da FPA, instalaram-se em seu interior as contradições e ambiguidades que o acompanhariam por duas décadas, com implicações materiais e simbólicas à realidade não somente dos seringueiros, mas de toda a sociedade.

Nos primeiros quatro anos de mandato, os governos do PT no estado do Acre internalizaram o antagonismo irremediável das duas principais forças sociais e políticas do meio agrário acreano. Em continuidade, enquanto a produção do extrativismo da borracha definhava e os seringueiros buscavam apoio estatal para reerguê-la,[7] o desenvolvimentismo das últimas duas décadas, no Acre, esteve colocado a partir de dois projetos apresentados como contrapostos: um projeto pautado na integração do Acre à fronteira agropecuária brasileira, através da pecuária bovina de corte, projeto este gestado e iniciado pelos governos militares; e um projeto desenvolvimentista de assimilação de ideais socioambientais, ou seja, baseado na noção de desenvolvimento sustentável. Um desenvolvimento, que se diga a partir das análises de documentos, foi fortemente influenciado e conduzido por interesses de madeireiros e outros grupos de poder econômico.[8] Ambos os projetos incluem medidas na esfera do governo federal, sendo que ao projeto desenvolvimentista sob o ideário da sustentabilidade associaram-se ambiguamente as chamadas políticas públicas de desenvolvimento da agricultura familiar e, ainda, diversas iniciativas de projetos de ONGs financiadas por organismos de cooperação internacional (ARAÚJO, 2013).

No segundo mandato do PT no governo do Acre, a estrutura político-administrativa de apoio ao extrativismo, que estivera a cargo da Sefe no primeiro mandato, foi alocada na Secretaria de Extrativismo e Produção Familiar (Seprof), pois, com a transformação da Sefe em SEF, Secretaria Estadual de Florestas, a “Floresta” passou a se referir à produção madeireira e o “extrativismo” foi inserido na temática da produção familiar rural, juntamente com a agricultura de pequena escala. A mudança nesse ponto do arranjo governamental é sintomática da posição secundária à qual paulatinamente passaria a produção extrativista nos anos subsequentes.

Foi no repertório do discurso do desenvolvimento sustentável que foram levadas as propostas de exploração de madeira aos seringueiros dos territórios por eles conquistados a partir do final da década de 1980. A seção 1 do Diário Oficial da União de 8 de agosto de 2011 traz a publicação da IN no 16 do ICMBio, de 4 de agosto de 2011. A IN deveria encerrar um prolongado e controvertido debate, com opiniões distintas entre lideranças camponesas, diferentes pesquisadores e políticos, acerca da legalização da exploração madeireira em UCs de uso sustentável.[9] Uma leitura mais apressada leva a crer que a publicação da medida representaria o triunfo da lógica mercantilista sobre as concepções de espaço e modo de saberes e formas de gestão do território e dos recursos pelas populações tradicionais, com a colaboração de lideranças que se deixaram cooptar. Mas uma observação que leve em conta o que ocorreu durante o processo que culminou com a publicação da IN, bem como o que se deu após, indica que tal debate ainda não está totalmente encerrado e que os desdobramentos nem sempre foram os que alguém, em alguma instituição, havia planejado.

Não se pode negar que o processo de exploração madeireira nos territórios extrativistas do Alto Acre (sobretudo as experiências nos PAEs Remanso, Chico Mendes e Santa Quitéria) consistiu em violência simbólica: basta ter em mente que até o início da década de 1990, a exploração madeireira era para os seringueiros sinônimo de expropriação e algo a ser combatido. Mesmo assim, apesar de toda a estrutura institucional criada para a exploração de madeira em Resex, sob a iniciativa e articulação do governo do Acre, os seringueiros distinguiram com clareza e autonomia entre o que lhes seria mais favorável, conforme se depreende do número relativamente baixo da área sob o Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS). No caso de moradores da Resex Chico Mendes, no município de Brasileia, muitos moradores das 35 colocações[10] que perfazem uma área de aproximadamente 11.300 hectares, dos Seringais Porvir, Filipinas e Porongaba, embora participando da elaboração de um PMFS, aprovado em 2013, afirmam que o fator decisivo para que não se levasse a termo a exploração de madeira (não foi abatida uma árvore através de PMFS), teria sido o baixíssimo preço ofertado pelas madeireiras interessadas.

Em áreas da Resex no município de Assis Brasil, também foi elaborado plano de manejo madeireiro comunitário para retirada de madeira, contudo, o posicionamento dos moradores era de que, diferentemente do que ocorreu em Xapuri, não deveria ser retirada madeira em toras da Resex e que o ideal seria buscar meios para beneficiamento prévio. Os camponeses defendem ainda que deve haver um meio que permita o aproveitamento de toda a árvore abatida. Em grande medida, tal posicionamento deve-se à influência de um seringueiro da Resex, da área de Assis Brasil, que assim como o jovem engenheiro mencionado anteriormente, também fez o curso técnico florestal na Escola da Floresta e lá, além de obter conhecimentos relativos a essa atividade, teve a oportunidade de visitar áreas como a manejada no PAE Remanso, no município de Capixaba, onde constatou que a metodologia utilizada por madeireiras, com anuência do governo, gerava forte impacto ecológico e desperdício de matéria.[11]

A introdução do manejo madeireiro contraria um dos elementos fundamentais da emergência da identidade dos seringueiros como populações tradicionais, a saber, o do conhecimento tradicional. Diferentemente da extração da castanha-do-brasil, por exemplo, a extração de madeira exige a introdução de arranjos tecnológicos de base eminentemente científica sob uma voraz lógica de mercado. Portanto, é, no mínimo, uma incoerência incluir o chamado PMFS, ou manejo madeireiro, no rol de práticas costumeiras que justificam o seringueiro no status de comunidade tradicional.[12]

O manejo florestal historicamente desenvolvido pelo seringueiro baseia-se na reduzida utilização de insumos e materiais externos à colocação (ALMEIDA, 2012), ao contrário do que ocorre no manejo madeireiro, cuja dependência da utilização de combustíveis fósseis, por exemplo, é tremendamente alta. Nesse sentido, apresenta-se uma segunda incoerência: o manejo madeireiro estaria sendo qualificado no mesmo portfólio de projetos que defendem os mecanismos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação – Redd, que, em última análise, são instrumentos financeiros que aceitam que algumas corporações comprem o direito de poluir e degradar o ambiente. No Acre, estes mecanismos estariam abrigados sobre o ideário da produção racionalizada da “floresta em pé”, colocando-se com total distinção daquelas atividades econômicas que retiram a floresta para serem implantadas (notadamente a agropecuária). Além do polêmico manejo madeireiro, Perez (2018) identificou o Programa Florestas Plantadas e Bolsa Verde como políticas do governo do Acre para as Resex que embasavam-se no discurso da “floresta em pé”.

Uma análise de documentos como PMFS, Plano Operacional Anual (POA) e Relatório Pós-Exploratório, elaborados em razão da retirada de madeira em comunidades do Acre, além de demonstrar o caráter meramente formalístico desses instrumentos, revela o papel e o poder de decisão dos diferentes atores envolvido nas operações. Os PMFS são documentos que variam de 60 a 100 páginas e seu conteúdo consiste em informações específicas sobre a área a que se refere (em torno de 16% a 45% do documento) e informações de caráter mais geral quanto a legislação, premissas ecológicas, operacionais e socioeconômicas, que, aliás, não raro demonstram tratar-se de cópias fiéis umas das outras.[13] Em certa medida, a ausência de rigor técnico na formulação dos documentos que confeririam embasamento científico quanto à viabilidade da exploração de madeira sob os pressupostos do manejo florestal sustentável devia-se ao fato de que a análise e o parecer sobre a conformidade técnica fossem realizados também por um órgão do governo estadual que, ao que as evidências indicam, dispensava maiores exigências, visto que a exploração de madeira consistia numa política promovida pelo próprio governo. Em meados da década 2000, o governo do Acre criou o Escritório de Manejo, uma espécie de mutirão técnico para acelerar a análise dos processos e o licenciamento de PMFS protocolados no órgão ambiental estadual (Instituto de Meio Ambiente do Acre – Imac).

A análise do processo de formulação da IN no 16/2011 do ICMBio demonstra uma construção distante da vivência dos camponeses, considerando o teor tecnocrático e os fóruns das reuniões, os meios de comunicações e as reuniões em Brasília, mas ao mesmo tempo é muito próxima das comunidades aqui consideradas, visto que os PAEs, notadamente Chico Mendes e Remanso, embasaram experiências de alguns defensores dessa medida, e também porque a partir dela legalizou-se a atividade nas UCs de uso sustentável e a possibilidade de colocar as florestas aí existentes ao alcance do mercado de madeiras tropicais.

Durante a apresentação da minuta da IN no 16/2011, em reunião realizada em Brasília, em 21 de setembro de 2010, ocasião em que foi criado um grupo de trabalho, composto por três servidores do ICMBio, para fins de adequação da norma, foi destacada a expectativa de moradores da Resex Chico Mendes e a crença de que tal atividade seria alternativa à criação de gado. Àquela altura, apesar de ser mencionada “forte expectativa regional” por parte de moradores das Resex Ituxi, em Lábrea, no Amazonas; Resex Verde para Sempre, no Pará; e da Flona Purus, na região do Mapiá-Inauini, no Amazonas, cabe anotar que somente a Amoprex, organização formalmente responsável pelo manejo nas comunidades Rio Branco e Dois Irmãos, em Xapuri, havia protocolado um pedido de manejo madeireiro em Resex, pedido que então tramitava no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama. Esse fato é, sem dúvida, um reflexo do ambiente institucional destinado a promover essa atividade no Acre nesse período, mas também indica a proximidade entre lideranças camponesas de Xapuri e os governos do PT.

No processo de formulação da IN, observa-se a falta de clareza e a sobreposição de atribuições, que ao final revela a trama burocrático-institucional na qual os seringueiros estiveram envolvidos por várias ocasiões ao longo destes anos: de um lado, um dos participantes do processo sugere que a discussão da IN seja remetida ao Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama (para que este Conselho formulasse uma resolução), de outro, alguém sugere que a questão seja remetida ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável – Condra, visto tratar-se de produção familiar.

Como clara demonstração de atenção aos interesses das empresas madeireiras, não obstante toda a responsabilização das organizações dos moradores das UCs, identificadas na IN como “detentoras do PMFS”, o documento prevê a terceirização das atividades de exploração propriamente ditas, o que dá margem para que as madeireiras e serrarias se tornem as verdadeiras donas do processo, culminando no alheamento dos camponeses, uma vez obtidos os documentos autorizativos.

Houve, por parte da equipe do ICMBio responsável pela condução do processo, um cuidado especial em garantir o envolvimento do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), da Confederação dos Trabalhadores em Agricultura (Contag) e do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) na reunião para discutir as contribuições da consulta pública realizada em junho de 2011, em Brasília. Nessa ocasião, o representante da Amoprex declarou aos demais que o processo de manejo estava avançado no Acre, especialmente na Resex Chico Mendes, e solicitou que se incluísse nos “considerandos” da minuta a observância a duas INs do MMA, a IN no 4 (sobre concessão de Autorização Prévia à Análise Técnica de Plano de Manejo Florestal Sustentável – Apat) e a IN no 5 (sobre procedimentos para elaboração, apresentação, execução e avaliação técnica de Planos de Manejo Florestal Sustentável na Amazônia), ambas de 2006, garantindo que se aproveitasse integralmente o trabalho de elaboração do PMFS então em curso em Xapuri.

Dadas as diferentes posições decorrentes das interpretações dos estatutos relativos às UCs de uso sustentável e às próprias populações tradicionais, o processo ficou marcado por embates entre a procuradoria do ICMBio e a coordenação responsável pela formulação da IN. Isso fica especialmente explícito quanto a impasses sobre destinação de recursos financeiros resultantes da atividade. A posição da procuradoria era a de que tais recursos deveriam ser destinados ao ICMBio, uma vez tratarem-se de terras públicas, cabendo somente uma parcela cuja destinação seria definida pelo Conselho Gestor da Unidade. Nesse sentido, escancaram-se, inclusive no campo burocrático, as contradições inerentes à exploração madeireira nesse tipo de UC. A coordenação responsável pela formulação da IN, por sua vez, buscando garantir a destinação da totalidade dos recursos oriundos da comercialização da madeira aos comunitários, sustentava que o ponto de partida seria de que a exploração madeireira era atividade tradicional das famílias moradoras de Resex e RDS. Este argumento foi contestado pela procuradoria, que mais de uma vez afirmou não se tratar de atividade tradicional, já que a minuta da IN provava justamente que sua intenção era implantar tal atividade.

Com relação a esse ponto, segundo uma nota emitida pela coordenação, o manejo madeireiro deveria enquadrar-se como atividade tradicional, visto que assim, tal como outras atividades desenvolvidas (caça, pesca, coletas de sementes etc.), não haveria cobrança de pagamento de valores dos comunitários ao ICMBio. Em defesa da IN no 16/2011, a coordenação justificou seu posicionamento lembrando que, uma vez permitida a exploração comercial de madeira, esta se somaria a outras políticas públicas que incentivam atividades geradoras de renda para populações tradicionais, nomeadamente: Política e Plano Nacional de Promoção de Cadeias dos Produtos da Sociobiodiversidade; Política de Garantia de Preços Mínimos; Programa Nacional de Florestas; Programa Mais Ambiente e Programa Bolsa Verde.

A discussão sobre manejo madeireiro no âmbito do Conselho Deliberativo da Resex Chico Mendes, especificamente, se deu de forma conflituosa. De um lado, algumas lideranças de Xapuri sustentavam um discurso de defesa do manejo madeireiro nas comunidades, em grande medida formulado pelo governo estadual, que, por intermédio da SEF, desde 2006 pressionava para integrar o Conselho (a Secretaria acabou sendo admitida em outubro de 2008). De outro lado, estavam os demais integrantes do Conselho que, por convicções (contrárias ao manejo madeireiro, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais – STR de Xapuri) ou declarando desconhecimento sobre o assunto (como representantes da Fundação Nacional de Saúde – Funasa), geralmente demonstravam precaução e tom moderado durante os debates e deliberações.

Em 2014, após mais de dez anos de discussão e tentativa de convencimento de seringueiros na Resex Chico Mendes, foi explorado um volume de 4.092 m³ de madeira, do total autorizado de 12.998 m³, no município de Xapuri. Durante a 14a Reunião Ordinária do Conselho Deliberativo da Resex, realizada em 27 de abril de 2015, em Rio Branco, foi apresentado relatório de vistoria do ICMBio em áreas onde se deu a referida exploração. A avaliação de técnicos do ICMBio e demais participantes da reunião, inclusive representantes de comunidade, foi negativa e apontou problemas em todos os aspectos: infraestrutura de acesso, escoamento e armazenamento; técnicas de abate; envolvimento da comunidade; e resultados econômicos (a venda foi feita a sessenta reais o metro cúbico). Não obstante essa avaliação negativa, aqueles que nas reuniões do referido Conselho, ao longo dos anos, empenharam-se na defesa do manejo madeireiro comunitário na Reserva Chico Mendes minimizaram as avaliações, tomando os resultados como ponto de partida, uma oportunidade para se aprender com os erros da primeira experiência. Entre os comunitários, a experiência tampouco foi satisfatória, e não à toa a segunda exploração se deu somente quatro anos depois.[14]

Entretanto, mesmo com baixa adesão ao manejo madeireiro incentivado pelo governo estadual, deve-se registrar que na última década o uso e a comercialização de madeiras tropicais intensificaram-se consideravelmente entre os seringueiros. Este fato deve-se tanto pela ampliação do uso de madeiras pelos próprios camponeses, com maior acesso a máquinas de motosserras, beneficiando minimamente a madeira para construções residenciais ou instalações produtivas, quanto pela comercialização clandestina. Neste último caso, associam-se a exploração madeireira e a atividade pecuária bovina: os camponeses dão especial atenção a algumas espécies de madeira que são muito utilizadas na atividade pecuária, como estacas e tábuas para a construção de cercas e currais, tais como a itaúba, amarelão, quariquara etc.

Estando claro que o território em que se objetivam as medidas concorrentes é o mesmo, evidencia-se que os seringueiros se relacionaram com os dois modelos desenvolvimentistas que ao longo destes anos receberam franco apoio do Estado (aqui tomado de maneira ampliada): o de desenvolvimento sustentável, que neste caso incluía a promoção do manejo madeireiro; e o da expansão da pecuária bovina de corte. Contudo, também está claro que sua inserção no campo das políticas públicas ocorreu em razão do modelo associado ao ideário do desenvolvimento sustentável que, embora permeado por contradições, os reconhece como sujeito coletivo.

Conforme assinalado por Neves (2010), o debate sobre políticas públicas em determinados setores está associado à democracia, à cidadania e às mediações sociais. Mas está também associado a um (ou uns) contraposto(s), propostas e projetos que se contrapõem ao que está implícito como objetivo de um conjunto de medidas do governo em ato, atendendo determinadas demandas sociais que emergem da organização de grupos sociais.

Conceitualmente, a despeito de diferenciados quadros teóricos que colocam distintas questões em jogo, tomar, em sentido mais genérico, políticas públicas como objeto de estudo é considerar o Estado em ação no que tange à relação com os governados ou com os cidadãos (e vice-versa). Nesse caso, uma das unidades analíticas melhor expressiva desses múltiplos aspectos abarca o intercruzamento de um conjunto de processos sociais e de agentes em redes de relações; interconexões mediante as quais são constituídas regras de controle das ações em causa e meios legítimos de propor, interferir e controlar a redistribuição de serviços e recursos públicos. Por esse prisma, a análise se empobrece se restrita aos efeitos ou produtos; e se enriquece se tentar se enveredar pela produção das intenções, pela formulação dos modos de ação, dos critérios e meios de acesso a recursos etc. (NEVES, 2010, p. 176-177)

Embora a IN no 16/2011 do ICMBio represente um mecanismo de avanço capitalista na mercantilização da natureza, os seringueiros mantiveram-se nas discussões sobre manejo madeireiro, uma vez que compreenderam que, assim, mantinham-se como parte no debate público, antes a eles negado. A legitimidade que os agentes que discutem as políticas públicas buscam conseguir é utilizada como capital social, cultural e simbólico em outros campos do espaço social. Ou seja, para além do reconhecimento por parte dos demais agentes com quem disputam a dominação no interior de um determinado campo, ganhando legitimidade também com “profanos” (BOURDIEU, 2014) afeitos ao campo, tal legitimidade (traduzida nos diferentes capitais) transpõe-se na forma de influência com mais potencial de transformação a outros campos.

No caso por nós investigado, os seringueiros, ao participarem no campo desenvolvimentista, ou de políticas públicas (que pressupõe subcampos como o burocrático), ganharam legitimidade para participar no campo político, no qual a influência aos profanos traduz-se em votos. Isso muito tem a ver, nesse caso, com o fato dos campos estarem muito próximos/associados, ou fazerem parte do Estado, como instância legítima de monopólio da violência física, fiscal e simbólica (BOURDIEU, 2014).

 

Gênese e incidência do comunitarismo seringueiro sobre o campo político do Alto Acre

O comunitarismo cristão, como um dos elementos de criação e fortalecimento do PT no Acre (e no Alto Acre em especial), foi também a base para a constituição da principal ferramenta da relação dos seringueiros com o Estado no período aqui analisado, em boa medida mediante a formalização em associações rurais e de moradores (associações burocráticas). Esteves (2010), referindo-se à criação política das comunidades por meio da atuação da Igreja Católica e seu impacto em relação ao que a autora constatou como o deslocamento do “sistema seringal” que antecedeu a criação das Resex, destacou que: 

Essa ideologia transformou os seringais em “comunidades”. Lideranças e trabalhadores se referem às “comunidades” do Independência, Dois Irmãos, São Pedro, entre outras, e não mais ao Seringal, como outrora. Numa referência às mudanças ocorridas, um Seringal significa hoje um termo para caracterizar a disposição física de uma área, mas não como lugar de morada para os seringueiros. (ESTEVES, 2010, p. 145)

Portanto, mais do que a própria Resex, é a comunidade a nova base de referência territorial que levou à constituição de associações burocráticas de representação dos moradores na interlocução com órgãos de governos. A organização espacial das comunidades de seringueiros do Alto Acre difere do formato que com maior frequência vê-se em outras regiões da Amazônia, caracterizado pela aglomeração de residências dispostas lado a lado, em formato de aldeias ou vilas, às margens dos rios, ou mesmo das agrovilas de assentamentos da reforma agrária às margens de rodovias. Em assentamentos projetados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), técnicos do órgão definem o local da escola e outros equipamentos de serviços sociais, reservando uma área específica. No caso dos seringueiros em suas Resex, ao contrário, foram eles que decidiram a localização para a instalação desses equipamentos. 

Do ponto de vista nativo, a comunidade implica uma quantidade de famílias que habitam uma área geográfica, mas se mantêm relativamente dispersas, conforme definido quando do estabelecimento dos seringais, portanto, da distribuição das colocações de seringa.[15] A distância entre as colocações que constituem uma comunidade varia de seis a 18 quilômetros, aproximadamente, o que no período de sua formação implicava caminhadas de uma a três horas até o local por eles escolhidos para reuniões. Nesse sentido, como referência na formação de uma comunidade, na maioria dos casos mantiveram-se aquelas colocações pertencentes a um mesmo seringal, até pelo fato de que os seringueiros eram motivados a se reunirem em virtude de problemas decorrentes de decisões dos seringalistas/patrões/gerentes sobre o seringal em que viviam, tal como a exigência do pagamento abusivo de renda, ou mesmo a venda do seringal para fazendeiros que ameaçavam expulsá-los.

Antes da instituição das comunidades que, motivadas pela fé, passaram a problematizar e buscar meios de resistir ao processo de expropriação que se avizinhava, a partir dos anos 1970, os seringueiros mantinham laços comunitários que remontam à introdução e à expansão das atividades agrícolas nos seringais ainda na primeira metade do século XX. Porto-Gonçalves (2003) destaca a importância das mulheres e o estabelecimento das famílias para a constituição das primeiras comunidades nessa parte da Amazônia. As experiências em torno da religiosidade têm influência como elemento de agregação comunitária – não propriamente a religião católica institucional, cujo contato àquela altura resumia-se às viagens esporádicas (uma vez por ano, ou em intervalos mais prolongados) de sacerdotes aos seringais, a convite ou apoiados pelo seringalista, atraindo os seringueiros aos barracões das sedes dos seringais para os ritos sacramentais.

O comunitarismo cristão, apesar de fundante da ação coletiva dos seringueiros a partir dos anos 1970 por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ao longo dos anos matizou-se com outras vertentes comunitaristas, inclusive, em alguns momentos, buscando o coletivismo produtivo afeito a propostas socialistas de inspiração marxista. Independentemente das relações estabelecidas com mediadores de diferentes espectros ideológicos, a comunidade foi, nesse período, a célula coletiva que imprimiu uma postura de identificação e combate na luta de classes no contexto do Alto Acre, notadamente no que toca ao campo/floresta e à luta pela terra/território e aos recursos naturais, especificamente: de um lado, fazendeiros buscando apropriar-se de terras para a formação de pastagens para o gado; de outro, seringueiros em comunidades para, buscando melhores condições de vida, garantir sua “permanência” na terra-território.

Após a criação das Resex, esse comunitarismo passou a lidar com políticas públicas, sobretudo a partir da segunda metade da década de 1990. Parte dessas políticas esteve sob o ideário da “comunidade tradicional”, portanto, um novo tipo, ligeiramente diferente do comunitarismo cristão. Somaram-se à figura do monitor da CEB, e mesmo do delegado sindical, outros atores: o técnico da ONG ou do projeto de intervenção financiado por fundos socioambientais, os políticos locais etc. Esse comunitarismo foi, pois, o instrumento que conduziu, apesar das descontinuidades, deformações, readaptações etc., o processo de mudança sociocultural, econômico e, sobretudo, político, iniciado com os levantes seringueiros contra o processo de expropriação incentivado pelo Estado a partir dos anos 1970. 

Apesar das inúmeras tentativas, o comunitarismo seringueiro não foi instrumentalizado para o ambientalismo, ou mesmo para o cooperativismo, mas se mostrou persistente e em certo sentido viável aos seringueiros nos assuntos que eram debatidos ainda no âmbito das CEBs: a superação da pobreza material, a conquista da “terra prometida” e de direitos, a dignidade, enfim, os elementos que animavam a utopia de um mundo melhor e mais justo. Tais temas foram abrigados de maneira sistematizada na noção de políticas públicas que se introduz a partir dos anos 1990, colocando-se acima das tensões, das divergências de valores e comportamentos, e mesmo político-partidárias, decorrentes de diferenças de confissão religiosa que se acentuaram ao longo destas três décadas.[16]

Fundado na Teologia da Libertação (BOFF, 1980) e incorporando outros matizes (ambientalismo, desenvolvimento sustentável etc.), o comunitarismo seringueiro não recuou diante do declínio relativo da hegemonia católica no meio rural, ante o crescimento das denominações pentecostais e neopentecostais.[17] É esse fato que justifica nossa atenção ao tema do comunitarismo cristão iniciado pelas CEBs, uma vez que essa esfera de sociabilidade, mas também de disputas e conflitos entre os próprios camponeses, indica ter comportado, ao longo das últimas duas décadas, uma espécie de democracia agonística, nos termos apresentados por Mouffe (2003), como um modelo no qual se trava uma luta entre adversários e não entre inimigos, visto terem antes de qualquer coisa concordância quanto ao modo de vida, ultrapassando diferenças de valores morais. 

Reiteramos que as comunidades se iniciam de maneira autônoma e concomitantemente ao estabelecimento de uma nova configuração social na região, a partir da formação de famílias e da ampliação da agricultura, favorecendo o desenvolvimento de relações de parentesco e vizinhança, através de adjuntos (mutirões) para a troca de trabalho, partilha de sementes e resultados de colheitas e carne de caças abatidas etc. (PORTO-GONÇALVES, 2003). Mas a concepção de comunidade como sujeito coletivo se deu pelo fortalecimento mecânico e coordenado por intermédio das CEBs, ganhando mais força com a criação das Resex, tanto pelas previsões formais/legais de participação de comunidades na gestão do território e uso de recursos como no decurso dos governos do PT – governos pós-constituição de 1988 de maneira geral – que, pela ação mesma desse sujeito coletivo, são levados a reconhecer e adotar a comunidade como instrumento para a concessão de direitos e implementação de políticas públicas, ou seja, alocação de recursos públicos segundo reivindicações dos comunitários. 

O comunitarismo entre os seringueiros esteve em processo contínuo de atualização. Inclusive porque, após a demarcação das Resex, o seringueiro passou a ter a possibilidade (e isso é o que mais ocorre também na prática) de se fixar por muito mais tempo num lugar, o que não era muito comum (OLIVEIRA, 1991). O comunitarismo seringueiro recebeu influência determinante do comunitarismo cristão para se alçar à política, mas não pode ser confundido com este. Nem mesmo daquele presente na CEB e da Teologia da Libertação, pois em última análise, essa pressupõe o cristianismo e o seringueiro, em boa medida, é comunitário porque nasce dentro dos pressupostos morais e costumeiros de uma comunidade, para a qual o cristianismo não é necessariamente o núcleo estruturante. Certamente o cristianismo é elemento marcante no habitus do seringueiro, mas aquele caracterizado pelo catolicismo popular.             

Independentemente dessas disputas, concorrências, diferenciações etc., ao longo do período aqui considerado (finais dos anos 1990 a 2018), as comunidades contribuíram para a segurança e garantia da condição camponesa dos seringueiros. Isso é verificável quando se compara com o desfecho que tiveram outras formações comunitárias camponesas nessa região no decorrer desses anos, cujas terras foram apropriadas por fazendeiros. É fundamental entender a comunidade como uma peça num complexo jogo político, no qual se acentuou a relevância da busca dos seringueiros de incidirem e, antes, disputarem estar, de alguma maneira, no controle de instituições públicas como prefeituras e câmaras, no intuito de viabilizarem melhorias nas Resex.

Em última análise, as comunidades são a esfera de mediação mais próxima das famílias, na qual mantêm maior controle e autonomia sobre diferentes aspectos da vida social. O comunitarismo, com as características e dinâmicas que se pôde observar, não se fez espontaneamente, mas, tal como se apresentou e comportou nestes últimos anos, reflete as circunstâncias que ele próprio engendrou na relação com esses outros organismos de mediação. É um organismo que se autonomiza em relação às pretensões do indivíduo, mas também em relação às pretensões do partido, do sindicato e até da associação como esfera formal mais imediata desse processo. Os demais organismos são relativamente mais estáticos, em função das condicionantes burocráticas de um Estado que é historicamente fiador das classes dominantes econômica e politicamente, as classes de onde provêm historicamente os que produzem as normas legais que incidem sobre o mundo social (BOURDIEU, 2014).

A comunidade, informal que é (não é espontânea, mas informal, relativamente mais livre de amarras burocráticas), constitui-se numa força em que se processam demandas verdadeiramente reais das famílias em sentido ampliado. Ou seja, nesses casos, a comunidade é o local que extrapola aquele ambiente de debate e das deliberações colocado na agenda das associações burocráticas e que estaria alinhado ao que querem os governantes. As pautas de governos, as agendas que chegam intempestivamente por meio das associações ou STRs (ou mesmo ONGs), com prazos para um posicionamento “comunitário”, não oferecem tempo suficiente (pois quase sempre restritas a uma reunião para apresentação de uma resposta) para a tomada de posição, de uma forma em que as diferentes forças comunitárias se expressassem suficientemente para gerar decisões que incorporem as dinâmicas de cada comunidade. As associações burocráticas, em muitos casos, são vistas como instrumentos, cuja finalidade maior é legitimar algo previamente determinado e que se coloca sob o verniz de ato democrático. Dessa perspectiva nativa, é comum que uma comunidade, em sua dinâmica real, passe a refletir sobre as consequências, em médio e longo prazo, de determinada proposta/oferta desses agentes estatais. Os acordos intempestivamente assumidos, às vezes pela associação, em ato formal de assinaturas rituais de adesão, passam a ser generalizadamente quebrados, o que, apesar de contar com a maioria da comunidade, gera conflitos e desgastes internos. 

Se as comunidades são representadas por agentes do Estado como uma teia de moradores de áreas rurais, ou, por correntes do socioambientalismo, como sendo unidades contidas no interior de uma UC, ou mesmo pelos próprios camponeses que em certas circunstâncias aderem a este tipo de perspectiva, na prática, uma comunidade configura-se como um fluxo organizado de pessoas (VINCENT, 1987). Nesse sentido, a comunidade é o lócus no qual se devem considerar as tensões internas e a produção de estratégias com vistas a fins externos, e também como agentes externos, ou relações com agentes ou coisas externas, influenciam na dinâmica interna, e vice-versa. Ou seja, apesar do comunitarismo ser assumido pelos seringueiros como instrumento de reconhecimento e afirmação perante o Estado, as comunidades não são fechadas, e na prática alinham-se à concepção de comunidade diversificada em sua constituição e fluxos de relações com agentes do mundo exterior (VINCENT, 1987), sendo muito tênue, e analiticamente arriscada, a delimitação de esfera interna versus esfera externa.

Numa escala mais próxima ao cotidiano dos seringueiros do Alto Acre, a proximidade (em certo sentido, lealdade) de sua ação em relação aos governos do PT, para além da preferência eleitoral (conforme confirmam as estatísticas de votações em seções eleitorais localizadas no interior das Resex do Alto Acre entre 2008 e 2018), deu-se a partir da rede intercomunitária, articulada na forma institucional de associações de produtores e associações de moradores, ligadas aos STRs e cooperativas. Esta rede intercomunitária operou uma mudança estrutural na forma de atuação das prefeituras municipais e demais esferas de governo (e isso deve ser uma das mudanças mais profundas resultante da atividade política dos seringueiros, ou do movimento seringueiro, no período aqui aludido). Foram instituídas novas práticas administrativas, como as parcerias entre prefeituras e comunidades para a manutenção dos ramais (os camponeses aportando parte do trabalho e, a prefeitura, combustível e máquinas) a partir da presença dos seringueiros na esfera pública, no campo político. O comunitarismo seringueiro ingressou e impôs um método de atuação ao campo burocrático em escala local, que nem mesmo os prefeitos de partidos de oposição ao PT puderam ignorar: organizar o investimento de recursos públicos ao nível comunitário e não somente pensando no indivíduo. Apesar desse resultado, a rede intercomunitária não esteve livre de tensões e conflitos, um deles o da percepção de que, por razões diversas, o governo estadual direcionava recursos de maneira a privilegiar certas comunidades em detrimento de outras.

Famílias percebidas como “notáveis”, que em muitos casos através de alianças políticas têm mantido sua influência nas organizações locais e dissimulado suas divergências/concorrências em suas respectivas comunidades, estabeleceram contatos entre si, formando redes em nível municipal e em escala de Alto Acre, por meio da organização sindical, das ações após a criação da Resex Chico Mendes e das articulações em torno do PT. Antes disso, suas demandas tinham a ver com o âmbito do seringal onde moravam e eventual influência ficava mais resumida àquela delimitação espacial, reclamando, sobretudo, algum reconhecimento por parte do patrão. Com o sindicato e o partido, a intercomunicação entre as diferentes comunidades se potencializou. No espaço dos treinamentos das CEBs, a articulação também era favorecida, mas ali, como lugar também de rezar, essa dimensão do poder e das disputas por poder ficava diluída, pois pressupunha uma unidade contra os algozes comuns: o latifúndio, o Estado etc.

A permeabilidade das comunidades ao socioambientalismo e a emergência do associativismo burocrático trouxeram outros elementos de diferenciação interna às comunidades. As famílias mais envolvidas com projetos experimentais, de ONGs ou do governo, ou membros de direção de associações, sobretudo o presidente, estão mais sujeitos ao distanciamento relativo de algumas pessoas, em especial, dependendo do tipo de relação que se estabelece com interlocutores externos – técnicos de ONG, políticos do PT, dirigentes de determinado setor do Poder Público etc. Diferenciação dessa ordem já aparece com o sindicato, ou mesmo na CEB, mas uma diferenciação mais tênue e menos cobrada que a de um presidente de associação, em especial a partir dos governos do PT, e a ideia de que essa associação se mantenha alinhada ao governo e tenha responsabilidades na viabilização das políticas públicas. Também as mudanças quanto à confissão religiosa modificam esses padrões de diferenciação.

Tratou-se dessa rede de comunidades, aparentemente iguais, constituídas até certo ponto ao custo da abnegação de lideranças sindicais e partidárias. A rede intercomunitária se converteu em mecanismo que viabilizou o acesso a recursos e serviços públicos, cuja distribuição antes era restrita a um grupo de famílias incrustado no campo burocrático em que a ação era restrita às cidades, ou a famílias que dominavam o comércio local e regional. A partir dos governos do PT, algumas comunidades se tornaram mais “notáveis”, de certa forma, locais com prioridade para investimentos públicos, como lembram várias lideranças a respeito da Cachoeira (PAE Chico Mendes) – nesse caso, devido à história diretamente vinculada ao líder Chico Mendes. 

Para além da eficácia eleitoral, temos consciência de que é importante outros estudos que se dediquem à eficácia de tal relação quanto aos interesses e ideais efetivamente pautados pelas comunidades. Todavia, o estabelecimento da rede intercomunitária de seringueiros, que incidiu sobre a gestão de um território relativamente extenso do Alto Acre, se fez notar também no campo político, mudando práticas e discursos de todos os agentes aí inseridos. Do ponto de vista simbólico, não é nada desprezível que, em 2002, na região do Pontal do Paranapanema, enquanto o prefeito de Presidente Prudente bloqueava o acesso de uma marcha organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), utilizando máquinas agrícolas e caminhões de fazendeiros da União Democrática Ruralista (UDR), impedindo que os trabalhadores entrassem na cidade, no Alto Acre, lideranças camponesas transitavam com uma liberdade antes não experimentada nos escritórios das representações dos órgãos do governo estadual, nos gabinetes e eventos promovidos pelas cinco prefeituras dos municípios da região, das quais três eram administradas por políticos com estreita relação com a história e entidades do movimento seringueiro que emergiu nos anos 1970.

A partir de então, diferentemente do que ocorreu em outras áreas e em outros projetos de assentamento em regiões de fronteira dessa parte da Amazônia, as famílias de seringueiros ampliaram-se em termos numéricos no interior das Resex e se reposicionaram no espaço social do Alto Acre, passando a transitar por diversos campos, entre eles o político, seja como tipo de comunidade tradicional, seja como beneficiários de programas governamentais de fortalecimento da agricultura familiar, identidades atravessadas pela ambiguidade inerente ao ideário do “desenvolvimento sustentável” e das políticas públicas a ele associadas. Paradoxalmente, além de reconfigurarem suas estratégias de enfrentamento às forças políticas e sociais locais que a eles se opunham, os seringueiros depararam-se com novos desafios para a reafirmação de sua identidade e dos traços culturais que os singularizam, muitos desses desafios advindos do reconhecimento do direito à permanência na terra.

 

Considerações finais

Este trabalho traz reflexões oriundas de pesquisa realizada entre 2018 e 2020, portanto, durante o processo eleitoral (o de 2018) cujo desfecho representou uma virada na correlação de forças que ao longo de 20 anos garantiu um arranjo institucional/governamental no qual, não sem ambiguidades, os seringueiros tinham expressiva participação.

Dedicamo-nos à compreensão de um processo que se deu paralelamente ao movimento que realçou, no debate público, a relevância das populações tradicionais para a conservação da Amazônia e da biodiversidade de maneira mais ampla, causa de todo o planeta, porquanto a luta por reconhecimento e as disputas locais são restritas, em última análise, à causa dos seringueiros na busca de reverter um quadro de extrema exploração, marginalização e discriminação. Esse estado de coisas tendeu a se manter, apesar de já não serem explorados por seringalistas, mas com outros atores, quais sejam, os representantes do agronegócio que emergiu no Brasil como um todo nos últimos 40 anos, sendo a classe incontestavelmente influente nos rumos econômicos e políticos do país.

A IN no 16/2011 do ICMBio figura claramente como um dos diversos instrumentos que buscaram um novo enquadramento dos seringueiros, no âmbito dos processos que visavam objetivar a versão ecologizada do desenvolvimentismo nessa região da Amazônia, que se oporia à expansão da pecuária bovina de corte, outro vetor da expansão capitalista que afetou diretamente os seringueiros. O modelo de dominação territorialista da tradição política brasileira não foi afastado com a Constituição de 1988, ganhando novo ânimo sob a ideia de agronegócio, o que pode ser sentido mais fortemente na zona de fronteira de expansão agropecuária e seu capitalismo autoritário. A democracia política, tal como os exemplos que se viu no Alto Acre, com a participação direta dos agentes “de baixo” (para além de golpear as bases do territorialismo latifundista com as Resex) nas eleições para cargos do Estado consiste num golpe contra essa tradição. Mas isso nutriu por anos a insatisfação das elites representantes deste territorialismo. Tanto é assim que, no primeiro ano de governos autodeclarados de direita, políticos da bancada federal do Acre em Brasília intermediaram a visita de um grupo de pretensos grileiros da Resex Chico Mendes ao ministro do Meio Ambiente e uma deputada federal do Acre apresentou um projeto de lei[18] que busca deslegitimar as conquistas dos seringueiros, reduzindo a área da referida Resex.

As evidências indicam que, assim como em outros contextos camponeses (PAOLIELLO, 2009), os seringueiros incorporam seletivamente a seu habitus elementos trazidos pelo reconhecimento do direito a terra e de seu envolvimento no campo político. Em particular, destacamos a constante mobilização em torno dos acontecimentos políticos e ações do Poder Público e a incorporação e consolidação de práticas como as reuniões comunitárias. Cientes de que a participação em partidos políticos expõe o campesinato às vaidades e às posturas intransigentes de líderes demagogos, os seringueiros oportunizaram o capital simbólico de seu envolvimento histórico com o PT do Acre, recusando ser somente massa de manobra, e dessa forma se opondo ao domínio dos fazendeiros instalados na região que também ingressaram nas disputas para ocupar os cargos eletivos nos municípios.

Tratamos, pois, de povos que, para atualizarem seus sistemas simbólicos (nesse caso, dependendo de uma territorialidade camponesa), atualizam sua condição camponesa com a adoção de diferentes mecanismos, e com disputa em diferentes campos. Embora não formuladas à exaustão, as ideias aqui apresentadas podem contribuir para a reflexão sobre os possíveis caminhos dos seringueiros e outros grupos camponeses diante do cenário atual de profundas mudanças políticas e tentativas de silenciamento, tanto no Acre como no Brasil.

 

 

Agradecimentos

O autor agradece Renata Paoliello e Marilene Alberini pelas contribuições a uma parte das ideias aqui apresentadas, por ocasião da reunião do Grupo de Trabalho "Processos de reconhecimento de direitos territoriais, culturais e lutas sociais no Brasil contemporâneo", durante o VII Encontro Nacional de Antropologia do Direito – ENADIR, em agosto de 2021.

 

 

 

Referências

ACRE. Governo do Estado. Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre, Fase II (Escala 1:250.000). Documento Síntese. 2. ed. Rio Branco: Sema, 2010.

ALMEIDA, Mauro W. Barbosa de. Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 19, n. 55, p. 33-53, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/9hyLqvGyMWs9xBy5b8QMvVh/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 15 ago. 2021.

ALMEIDA, Mauro W. Barbosa de. As colocações: forma social, sistema tecnológico, unidade de recursos naturais. Mediações, Londrina, v. 17, n. 1. p. 121-152, 2012. Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/12612. Acesso em: 9 ago. 2021.

ALLEGRETTI, Mary Helena. A construção social de políticas ambientais – Chico Mendes e o movimento dos seringueiros. 2002. 827 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável – Gestão e Política Ambiental) – Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, 2002.

ARAÚJO, João Maciel de. Manejo florestal madeireiro em projetos de assentamento agroextrativistas do Alto Acre: para onde caminham os seringueiros? 2013. 196 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) – Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional, Universidade Federal do Acre, Rio Branco, 2013.

ARAÚJO, João Maciel de. Seringueiros do Alto Acre no século XXI: Estado desenvolvimentista e mudança sociocultural na Amazônia brasileira. 2021. 409 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais,  Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2021. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/210925. Acesso: 2 ago. 2021.

BOFF, Clodovis. Deus e o homem no inferno verde: quatro meses de convivência com as CEBs do Acre. São Paulo: Vozes, 1980.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-92). Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

BRUNO, Regina. Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA): campo de disputa entre ruralistas e petistas no Congresso Nacional brasileiro. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, p. 461-502, 2021. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa29-2_09_fpa/esa29-2_09_pdf. Acesso em: 10 jul. 2021.

COMERFORD, John. Onde está a “comunidade”? Conversas, expectativas morais e mobilidade em configurações entre o “rural” e o “urbano”. Ruris, Campinas, v. 8, n. 2, p. 7-29, 2014.

COSTA SOBRINHO. Pedro Vicente. Capital e trabalho na Amazônia Ocidental: contribuição à história das lutas sindicais no Acre. São Paulo: Cortez; Rio Branco: Edufac, 1992.

ESTEVES, Benedita Maria Gomes. O seringal e a constituição social do seringueiro. In: NEVES, Delma Pessanha; SILVA, Maria Aparecida de Moraes (Orgs.). Processos de constituição e reprodução do campesinato no Brasil – Vol. 1: formas tuteladas de condição camponesa. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. p. 91-111.

ESTEVES, Benedita Maria Gomes. Do “manso” ao guardião da floresta. Rio Branco: Edufac, 2010.

FERNANDES, Marcos Inácio. PT: A expressão política de amor ao Acre. Natal: Offset, 2018.

MORAIS, Maria de Jesus. “Acreanidade”: invenção e reinvenção da identidade acreana. 2008. 340 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Programa de Pós-graduação em Geografia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.

MORAIS, Maria de Jesus. Usos e abusos da imagem de Chico Mendes na legitimação da ‘economia verde’. In: CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Dossiê Acre: o Acre que os mercadores da natureza escondem – Documento Especial para a Cúpula dos Povos. Rio Branco: CIMI, 2012. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Dossie-acre_2012.pdf. Acesso em: 28 jul. 2021.

MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 3, p. 11-26, 2003.

NEVES, Delma Pessanha. Políticas públicas: mediação e gestão de demandas sociais. Retratos de Assentamentos, v. 13, p. 171-206, 2010. Disponível em: https://retratosdeassentamentos.com/index.php/retratos/article/view/70/60. Acesso em: 10 jul. 2021.

NOVAES, Regina Reyes. A divina política. Notas sobre as relações delicadas entre religião e política. Revista USP, São Paulo, v. 49, p. 60-81, 2001. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/32908. Aceso em: 16 jul. 2021.

OLIVEIRA, Ronaldo Lima de. Extrativismo e meio ambiente: conclusões de um pequeno estudo sobre a relação do seringueiro com o meio ambiente. Rio Branco: [s.n.], 1991. Mimeografado.

PAOLIELLO, Renata Medeiros. “Condição Camponesa” e novas identidades entre remanescentes de quilombos no Vale do Ribeira de Iguape. In: GODOI, Emília Pietrafesa de; MENEZES, Marilda Aparecida de; MARIN, Rosa Acevedo (Orgs.). Diversidade do campesinato: expressões e categorias: construções identitárias e sociabilidades, v.1. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. p. 229-250.

PAULA, Elder Andrade. Seringueiros e Sindicatos: um povo da floresta em busca de liberdade. 1991. 206 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Itaguaí, 1991.

PEREZ, Pietra Cepero Rua. A produção da floresta em pé: Resex CM (AC), do projeto à realização. 2018. 453 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Universidade de São Paulo, 2018.

PINHEIRO, Francisco de Moura. A invenção da Florestania. In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUDESTE, 14., Rio de Janeiro, 2009. Anais... São Paulo: Intercom, 2009. P. 1-14. Disponível em: www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2009/resumos/R14-0264-1.pdf. Acesso em: 4 nov. 2020.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Geografando nos Varadouros do Mundo: da territorialidade seringalista (o seringal) à territorialidade seringueira (a reserva extrativista). Brasília: Ibama, 2003.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Amazônia, Amazônias. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

RIBEIRO, Letícia Mendonça Lopes; SANTOS, Adriana Ramos dos. Currículo e Pedagogia da Alternância: a experiência da Escola da Floresta em Rio Branco, Acre . Revista Brasileira de Educação do Campo, v. 4, e7312, 2019.

SILVA, Silvio Simione da. S. Resistência camponesa e desenvolvimento agrário na Amazônia-acreana. 2004. Tese (Doutorado em Geografia) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2004.

TEIXEIRA, Carlos Côrrea. Servidão humana na selva: o aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. 2. ed. Manaus: Valer, 2019.

VINCENT, Joan. A sociedade agrária como fluxo organizado: processos de desenvolvimento passados e presentes. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (Org.). A antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987. p. 375-402.

 

 

 

 

Como citar

ARAÚJO, João Maciel de. Seringueiros do Alto Acre ‘no tempo das políticas públicas’: comunitarismo e disputas eleitorais na atualização da condição camponesa numa região de fronteira agropecuária. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, e2230114, p. 1-30, 24 maio 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-1_st06.

 

 

 

João Maciel de Araújo

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com apoio do Programa de Bolsas de Pós-graduação fora do Estado do Amazonas – Propg-Capes/Fapeam. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), Campus Humaitá.

https://orcid.org/0000-0002-8180-9754
http://lattes.cnpq.br/3014778612329461
joao.maciel@ifam.edu.br

 

 

 

 

ccby.png

Creative Commons License. This is an Open Acess article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License CC BY 4.0 which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium. You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if changes were made.

 



[1] Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com apoio do Programa de Bolsas de Pós-graduação fora do Estado do Amazonas – Propg-Capes/Fapeam. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), Campus Humaitá. E-mail: joao.maciel@ifam.edu.br.

[2] Criado em 2001, o “Centro de Educação Profissional Escola da Floresta Roberval Cardoso”, ou simplesmente Escola da Floresta, em termos simbólico-práticos, representou mais uma ação que visou apresentar os governos do PT como descolados da agenda de expansão da pecuária no estado do Acre. Passando a funcionar com base na pedagogia da alternância e garantindo vagas para jovens de comunidades situadas em reservas extrativistas, a Escola da Floresta substituiu o antigo Colégio Agrícola, que entre 1982 e 1998 ofertava curso técnico profissionalizante em agropecuária. Para mais sobre a Escola da Floresta, ver RIBEIRO; SANTOS, 2019.  

[3] Na seção 4.2, Produção Florestal Madeireira da segunda edição, documento-síntese do Zoneamento Ecolológico-Econômico do Estado do Acre – Fase II (ACRE, 2010), o engenheiro florestal Marcelo Arguelles (que trabalhou em projetos de apoio ao manejo madeireiro por comunidades extrativistas na organização não governamental Centro dos Trabalhadores da Amazônia – CTA e posteriormente atuou na Secretaria de Estado de Florestas – SEF) apresenta diversos argumentos que justificariam o esforço dos governos do Acre para viabilizar a exploração madeireira na Resex Chico Mendes. Em boa medida, as ações de mobilização comunitária visando à adesão ao manejo madeireiro, bem como investimentos governamentais em programas de certificação florestal, e mesmo as discussões locais que culminaram com a edição da IN no 16/2011 do ICMBio, se guiaram por análises como as feitas no referido texto.

[4] O presidente do IMC apresentou as perspectivas do governo em torno da continuidade do Programa REM (REDD Early Movers, na sigla em inglês, ou “REDD+ para pioneiros”). O programa, financiado pela Alemanha e o Reino Unido via KfW (Banco de Desenvolvimento da Alemanha), prevê o repasse de recursos financeiros a populações indígenas e camponesas como compensação pela redução de emissões de gases de efeito estufa, através da adoção e manutenção de práticas de baixo impacto ambiental em suas atividades produtivas. Iniciado em 2012, no âmbito do Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambiental do Acre (Sisa), criado em 2010, o REM estava naquela ocasião encerrando sua primeira fase e iniciando a fase II. Informações sobre o REM podem ser obtidas no site: http://imc.ac.gov.br/.

[5] Sobre as contradições ver: MORAIS, 2012.

[6] A medida representou um estímulo à produção da borracha natural, que se somou à subvenção federal prevista na Lei no 9.479, de 12 de agosto de 1997, com a diferença de que o benefício estadual seria repassado diretamente aos produtores, por meio de suas organizações. Medidas como essa podem ser inócuas se não são articuladas com outras intervenções estatais no interior e fora do setor beneficiado. Conforme apresentamos ao longo deste trabalho, não obstante a instituição do “subsídio da borracha”, o estímulo estatal a outras atividades, como os incentivos fiscais à pecuária bovina de corte, limitaram a produção de borracha, levando os camponeses a também ingressarem na pecuária.

[7] Dados da pesquisa da Produção da Extração Vegetal e da Silvicultura (Pevs) do IBGE indicam que entre 2011 e 2017, a produção de borracha natural no Acre acumulou queda de 90,63%. Comparada com Amazonas, Pará e Rondônia, a produção de borracha do Acre foi a que mais decaiu.

[8] As análises de Atas, Resoluções e a própria composição do Conselho de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia do Acre e suas Câmaras Temáticas, constituem um bom material para se ter a dimensão da influência de madeireiros e outros grupos econômicos no processo de promoção do manejo madeireiro no Acre. Sobre este assunto ver: ARAÚJO, 2021.

[9] Criado pela Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), classifica as Unidades de Conservação (UCs) em dois diferentes grupos: Unidades de Conservação integral e Unidades de Conservação de uso sustentável, esta última permitindo a permanência de moradores, como no caso de Reservas Extrativistas.

[10] A Colocação figurava no sistema de aviamento como unidade territorial básica, dispondo de uma quantidade de árvores nativas de seringueiras para a produção de borracha para o seringalista. Segundo Almeida (2012), com o colapso do mercado mundial da borracha amazônica, os seringueiros desenvolveram um modo de vida florestal na Colocação, de maneira que passaram a depender do mínimo de mercadorias produzidas fora desta unidade. A Colocação manteve-se como unidade referencial quando da criação de Resex, uma vez que sua indivisibilidade era o que possibilitava ao seringueiro viver como camponês florestal.

[11]Vale dizer que as reflexões deste seringueiro influenciaram a edição da Resolução no 12 do Conselho Deliberativo da Resex Chico Mendes, em 2008, que determinava que a madeira oriunda da execução de Planos de Manejo Florestal Sustentável de Uso Múltiplo passasse por processos de beneficiamento, ou pré-beneficiamento, proibindo a saída de madeira em toras daquela Reserva. Em 2012, já com a participação da SEF, Cooperfloresta e CTA, estrategicamente posicionadas como entidades integrantes do Conselho Deliberativo, e diante da ofensiva motivada pelo que os representantes destas instituições entendiam ser um processo moroso, a proibição de saída de madeira em toras foi revogada, justificando-se pela exigência do mercado interessado na madeira da Resex.

[12] O Decreto no 6.040/2007, da Presidência da República, instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, como uma das respostas práticas decorrentes da Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre os Povos Indígenas e Tribais, resultante da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, em 7 de junho de 1989, da qual o Brasil é signatário. Além da efetiva participação nos debates e articulações que resultaram no referido Decreto, os seringueiros, por intermédio do Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS, garantiram representação na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, criada em 2008, com o intuito de manter uma articulação constante entre diferentes povos e comunidades tradicionais e os diversos órgãos do governo federal, para a implementação da referida política. Em 2016, em substituição à Comissão, foi criado o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, no qual os seringueiros seguiram com representação, desta feita, na qualidade de extrativistas, representados pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas, nomenclatura adotada pelo CNS em 2009.

[13] Analisamos os PMFS da Associação Vicente de Melo, no PAE Santa Quitéria, elaborado em 2008; PMFS da Associação Fé em Deus, no PAE Chico Mendes, elaborado em 2008; e PMFS da Amoprex, na Resex Chico Mendes (área de Xapuri), com elaboração datada de 2011. Chamou-nos a atenção uma referência feita ao “PAE Equador” nos PMFS da Fé em Deus e Vicente de Melo, como tratando-se do PAE Chico Mendes e Santa Quitéria, respectivamente, ou seja, um flagrante da prática do “copia e cola” por parte do profissional que assina como responsável técnico dos dois PMFS. No entanto, embora apareçam como tendo o mesmo responsável técnico, esses dois PMFS foram elaborados por empresas de nomes diferentes: Fé em Deus, pela empresa Tecnologia e Manejo Florestal (Tecman), e Vicente de Melo, pela Empresa de Assessoria e Consultoria Ambiental da Amazônia (Ekoar).

[14] O PMFS comunitário da Amoprex foi aprovado em novembro de 2011 e a exploração se deu em 2014. Em julho de 2017, a Portaria no 476 do ICMBio atualizou a aprovação e estabeleceu termos e condições a serem atendidos para que fosse realizada a segunda exploração. Em 2018, ocorreu a segunda exploração do PMFS comunitário em Xapuri, mas não dispomos de dados com resultados.

[15]Aqui também é necessário reiterarmos a ambiguidade e a imprecisão carregadas pelo termo “família”. Constatamos que há uma série de relações de cotrabalho, corresidência ou redistribuição de bens de forma multilateral, entre várias unidades domésticas situadas tanto no meio rural quanto nas cidades. Nesse sentido, a comunidade, como a compreendemos analiticamente neste trabalho, não se limita àquelas famílias que moram exclusivamente no meio rural/reserva extrativista, sendo mais adequado operarmos com a ideia de translocalidade, alinhando-nos à perspectiva apresentada por Comerford (2014). 

[16] Em que pese o fato de que as mudanças relevantes no campo religioso para nosso estudo dizem respeito aos anos 1990, cabe anotar que Regina Novaes (2001) cita um relato de Francisco Julião sobre a participação de evangélicos já nas ligas camponesas nordestinas, entre as décadas de 1940 e 1960.

[17] Dados dos Censos do IBGE, entre o ano 2000 e 2010, registram um avanço de 3,38% das denominações pentecostais e neopentecostais entre moradores das áreas rurais na microrregião de Brasileia, enquanto, embora mantendo-se como religião majoritária, o catolicismo recuou -8,85%. No período, houve um avanço de 4,21% na quantidade de pessoas das áreas rurais que se declaravam sem religião. No mesmo período, os resultados, considerando todo o estado do Acre, revelam que o catolicismo recuou mais acentuadamente nas áreas urbanas, com redução de -18,44%, enquanto as denominações evangélicas teriam avançado 7,63% nas áreas urbanas.

[18] PL no 6.024/2019 de autoria da deputada federal Mara Rocha, do PSDB do Acre, altera os limites da Reserva Extrativista Chico Mendes, localizada nos municípios de Assis Brasil, Brasileia, Capixaba, Epitaciolândia, Rio Branco e Sena Madureira, no estado do Acre e modifica a categoria do Parque Nacional da Serra do Divisor.