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v. 30, n. 1, janeiro a junho de 2022 (publicação contínua), e2230113

 

Seção Temática

Saberes, políticas e éticas da terra e do ambiente entre camponeses, quilombolas e povos tradicionais

 


Recebido: 15.11.2021   •   Aceito: 06.04.2022   •   Publicado: 24.05.2022

Artigo original / Revisão por pares cega / Acesso aberto

 

 

O comum e o público no avanço de fronteiras territoriais: controvérsias entre territorialidade quilombola e estruturas logísticas no Maranhão

Common and public in the advance of territorial frontiers: controversies between quilombola territoriality and logistics structures in Maranhão



orcid_id.png  Cíndia Brustolin [1]
orcid_id.png  Dayanne da Silva Santos [2]


DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-1_st05



Resumo: Na análise do processo de expansão de fronteiras territoriais a partir da instalação de estruturas logísticas de escoamento de commodities sobre o território quilombola de Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru Mirim (MA), buscamos colocar em equivalência as noções de “público” e “comum”, transitando entre espaços discursivos que institucionalizam verdades e lugares de afirmação de princípios gestados em práticas locais. Atentamos para as possibilidades enunciativas inseridas em disputas ontológicas, numa dinâmica que pretendeu contribuir para reverter a cisão hierárquica das discussões, dos espaços de enunciação e problematizar o exercício da violência.

Palavras-chave: territorialidade; estruturas logísticas; quilombolas.

 

Abstract: This analysis of territorial border expansion resulting from the installation of logistics structures to ship commodities in the Santa Rosa dos Pretos quilombo community highlights notions of public and common, moving between discursive spaces that institutionalize truths and places for affirming principles generated from local practices. We pay attention to enunciative possibilities within ontological disputes in an effort that may help reverse hierarchical divisions in these discussions, in these spaces for discourse, while also critically analyzing the use of violence.

Keywords: territoriality; logistics structures; quilombolas.

 

 

 

Introdução

“Você sabe o que é uma estrada? Nós estamos preparados para isso?” pergunta Seu Libânio à jovem quilombola que recentemente havia falado sobre a falta de boas estradas em seu quilombo durante o Seminário Narrativas Quilombolas, em 2018,[3] realizado no território quilombola de Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru Mirim, no Maranhão. A pergunta do ancião sabiamente diz respeito às armadilhas dos discursos que vinculam a construção de projetos desenvolvimentistas ao benefício da população. Não podemos nos enganar, as rodovias federais no Brasil, como demonstra a experiência vivenciada por Seu Libânio, por anos no quilombo Santa Rosa dos Pretos, e outras vozes e trabalhos realizados, estão quase sempre relacionadas ao desapossamento, à entrada de doenças, à supressão de territórios de povos e comunidades tradicionais, à expansão de fronteiras territoriais de exploração. Não se trata de caminhos ou de melhorias nos processos de circulação desses grupos, da chegada de riquezas por caminhões ou locomotivas para o bem viver das comunidades, longe disso, compõem estratégias de circulação de bens, de apropriação e controle de espaços e da tentativa de conferir outra destinação às terras em que vivem. As estradas são uma boa imagem para conceituar o atrito nas fronteiras que compõem localmente o global, nos diz Tsing (2005), pois ao criar caminhos que facilitam fluxos e deslocamentos “podem limitar aonde vamos” (TSING, 2005, p. 6).

A instalação de infraestruturas logísticas para o escoamento de produtos para o mercado exterior, como o ferro extraído das minas de Carajás, no Pará, e transportado por ferrovias até a zona portuária de São Luís, no Maranhão, e, mais recentemente, a expansão das lavouras de soja para o Norte e Nordeste brasileiros e a necessidade de rotas de escoamento mais ao Norte, ainda são apresentadas como importantes estradas ou corredores para o desenvolvimento regional. Aparecem em discursos, sentenças judiciais e outros documentos associadas ao bem público e ao patrimônio público. Uma abstração que assume uma super-representatividade do que é melhor para a vida da população (esse público), afirmada em parâmetros jurídicos institucionalizados que definem o que é “público” como oposição ao “privado”, numa ambivalência que, ao opor as duas classificações, as consagra como únicas possibilidades de formação argumentativa dentro de certos recintos modernos e tem silenciado outras perspectivas em jogo. Mas que fora desses lugares, no chão dos acontecimentos, convencem cada vez menos.

Antônio Bispo nos diz, a respeito da redação do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT),[4] da influência “do pensamento monista verticalizado e desterritorializado dos povos colonizadores, quando o direito a esse território é tratado nos termos da sua condição de propriedade e não nos termos da relação comunitária e biointerativa dos quilombolas com os seus territórios” (BISPO, 2015, p. 92).[5] Alerta para a necessidade de ampliação do entendimento das territorialidades quilombolas, que ultrapassam representações cristalizadas em torno da propriedade privada da terra e da natureza como recurso. E situa essa percepção cristalizada que reduz as compreensões na influência do pensamento monista e na sua expansão a partir da colonização. O pensamento monista eurocristão ao afirmar a existência de um único Deus inatingível, que não pode ser visto materialmente, apega-se “a monismos objetivos e abstratos” que estão no cerne da estruturação de relações verticalizadas (BISPO, 2015, p. 39).[6] A partir dos processos de colonização, esse pensamento opera na organização hierárquica da vida, nas relações de exploração da terra e da água, nos esportes, nas festas. Bispo (2015), na contraposição do pensamento monista, traz exemplos e experiências, como a das pescarias, que vivenciou ainda menino no povoado Piquizeiro, no Piauí. Nas atividades de pesca, os peixes não eram guardados e comercializados, eram partilhados entre os participantes e com outras famílias da localidade e, em sua grande maioria, permaneciam nadando nos rios. Assim como o cofo utilizado na pescaria retornava a terra, numa relação circular e orgânica de interação, de biointeração, influenciada pelos pensamentos de povos pagãos politeístas, em que entidades sagradas estão territorializadas no cotidiano e nos elementos da natureza.

A territorialidade quilombola de Santa Rosa dos Pretos, apesar do sofrimento instalado juntamente com as transformações causadas pelas políticas desenvolvimentistas, ainda abrange uma dominialidade complexa, com relações em biointeração, que conjuga áreas das famílias, como as casas e as árvores, linhas de roça, terras de encantados, os igarapés, muitos lugares que podem ser pensados com a noção de “terras de uso comum”, que emerge das lutas e é discutida pela literatura em Ciências Sociais, guardadas especificidades, nomeações e usos próprios que recebem.[7] Ainda nas décadas de 1980-90, formas de usos da terra e de relações com a natureza não individualizadas, que escapavam às noções de “imóvel rural” ou de “estabelecimento”, oficializadas pelo Estado brasileiro, passaram a tensionar a cena pública e chegaram a ser classificadas para o Cadastro de Glebas do Mirad como “ocupações especiais”.[8] As situações classificadas como “ocupações especiais” contemplavam as chamadas terras de uso comum, que não correspondiam a “terras coletivas”, no sentido de intervenções deliberadas de aparatos de poder, e tampouco correspondiam a “terras comunais”, no sentido aproximado da feudalidade. Correspondiam a “um repertório de nomeações”, como as terras de preto, as terras de herança, as terras de santo e outras, vinculadas a diferentes situações territoriais, a formas específicas de apropriação de utilização dos solos, da água, das florestas, que combinam uso particular e uso comum, a partir de normas específicas “perpassadas por fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores históricos, por elementos identitários peculiares e por critérios político-organizativos e econômicos, consoante práticas e representações próprias” (ALMEIDA, 2011, p. 50).

As memórias de constituição da territorialidade de Santa Rosa dos Pretos remetem a um quinhão de terras recebido de herança de um grande proprietário da região, o barão Joaquim Nunes Belfort, no final do século XIX.[9] Estas terras em posse comum das famílias negras começaram ser desmembradas na década de 1950, com a chegada de estradas e o início da instalação das fazendas, promovidas por programas e políticas desenvolvimentistas. Lideranças históricas da luta quilombola no Maranhão e da comunidade, como Seu Libânio Pires, falam desse momento como de quebra de um grande território negro, “aonde os negros se governavam” e da constituição de um cenário acirrado de lutas que continua até hoje. O território de Santa Rosa dos Pretos está em processo de regularização fundiária no Incra desde 2005. O último ato processual foi a expedição do decreto de desapropriação das terras particulares sobrepostas ao perímetro delimitado pelo Estado em 2015.[10]

As vivências das famílias negras de Santa Rosa dos Pretos na instalação de empreendimentos e os processos de resistência engendrados nas lutas contra a usurpação das terras nos permitem relacionar a territorialidade quilombola e as estruturas logísticas de escoamento de commodities que atravessam o território, trazendo traços de uma importante controvérsia em que estão em jogo mundos que se confrontam num contexto de expansão de fronteiras territoriais e existenciais. Enquanto os processos de ampliação da estrada de ferro Carajás e de duplicação da rodovia federal BR-135 são defendidos a partir da classificação das obras como “bens públicos”, sendo extensivos à proteção da população, as possibilidades enunciativas dos quilombolas permanecem reduzidas diante destes “princípios maiores”. As estradas são apresentadas nos recintos modernos com a força de um projeto consensual ancorado no avanço do extrativismo predatório e das políticas desenvolvimentistas que ultrapassa muitas vezes, inclusive, disputas políticas entre direita e esquerda, como discute Svampa (2012). Analisando a expansão da estrutura logística para o Norte e Nordeste brasileiros, que acompanha a expansão da soja, Aguiar (2021) destaca a existência também de um consenso de infraestrutura que coloca a ampliação das rotas de escoamento como caminho de mão única, silencia perspectivas e questionamentos, a partir da tentativa de fechamento das discussões.

A colocação em equivalência das noções de “público” e das vivências e resistências relacionadas às “terras de uso comum” pretende trazer elementos para o trânsito entre espaços discursivos que institucionalizam verdades e princípios gestados em práticas locais que constroem possibilidades enunciativas fora dos recintos, numa dinâmica que pretende contribuir para reverter a cisão hierárquica das discussões, dos espaços de enunciação e do exercício da violência. Nesse sentido, buscamos contribuir para pensar as lutas por direitos como lutas ontológicas, como propõe Escobar (2015, p. 99), que se expressam fora dos recintos e colocam em jogo a possibilidade de interromper “o projeto globalizador neoliberal de construir Um Mundo”, numa fronteira que busca homogeneizar espaços e pensamentos (ESCOBAR, 2015, p. 99). Ainda, como destacam Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), considerando que as fronteiras no processo de expansão de um sistema-mundo capitalista constituem-se em “loci enunciativos de onde são formulados conhecimentos a partir das perspectivas, cosmovisões ou experiências dos sujeitos subalternos, ou seja, que permitem dar atenção à conexão importante entre lugar e pensamento” (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 19).

Os trabalhos de campo foram realizados a partir de conversas, discussões, leituras e engajamentos, que envolvem a comunidade de Santa Rosa dos Pretos e os conflitos relacionados à expansão de empreendimentos sobre territórios tradicionais na região que abrange o município de Itapecuru Mirim, desde 2017, na busca de uma prática de participação observante.[11] Realizamos diversas conversas e entrevistas, principalmente entre 2017 e 2019, quando do acirramento dos conflitos envolvendo a duplicação da BR-135. Durante os anos de 2017 e 2018, fomos para o território cerca de quinze vezes, em estadias curtas, de dois e três dias para acompanhar reuniões, realizar entrevistas, conversas, participar de festas e festejos e fazer andanças. Nos anos de 2019 e 2021, no âmbito dos trabalhos de mestrado e doutorado de uma das autoras, os campos foram mais extensos, com estadias de quatro e cinco meses. Caminhamos pelo território visitando satubas, igarapés, áreas de roças, famílias que sofreram perdas de parentes na EFC e na BR-135. Realizamos dez entrevistas entre os anos de 2017 e 2019 com lideranças políticas da comunidade (que possuem uma larga trajetória de envolvimento com movimentos, sindicatos e organizações pastorais), a mãe de santo da Tenda Nossa Senhora dos Navegantes, agricultores, mulheres engajadas na organização local, na organização dos festejos, na Mina e no projeto da Barragem.

Os conflitos envolvendo a duplicação da BR-135 eclodiram fortemente em 2017 com a chegada de técnicos do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) e trabalhadores de empresas terceirizadas à localidade com máquinas para iniciar os trabalhos, no que os técnicos chamam de “área de domínio” do Dnit. Nesse momento, multiplicaram-se encontros e reuniões nos territórios quilombolas dos municípios de Itapecuru Mirim, Miranda e Santa Rita e em órgãos públicos. Os municípios foram abrangidos pelo Corredor Carajás e são atravessados por diversas estruturas (linhões de energia, rodovias, estradas de ferro) em contínua expansão (com duplicações recentemente concretizadas ou em processo de realização). Acompanhamos nesse momento reuniões locais, com comunidades e movimentos sociais, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a União das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Itapecuru Mirim (UNICQUITA). Participamos de duas reuniões e três Audiências Públicas chamadas pela Defensoria Pública de União, que mediou ativamente os conflitos nos anos 2018, 2019 e 2020. Uma audiência pública foi realizada em São Luís, na sede da Defensoria Pública da União (DPU), e duas nas comunidades, uma em Santa Rosa dos Pretos e outra em Outeiro dos Nogueiras. Estivemos ainda em uma Audiência Pública convocada pelo Ministério Público Federal em São Luís, em 2018, e em uma reunião virtual no ano de 2020. Desses trânsitos pela comunidade, pelas instituições, em reuniões e em caminhadas, trazemos parte das controvérsias que seguimos.

 

O público no recinto da Justiça

Durante os anos de 2017 e 2018, lideranças do quilombo Santa Rosa dos Pretos, juntamente com lideranças dos quilombos Santa Maria dos Pinheiros (ambos situados no município de Itapecuru Mirim), Joaquim Maria (no município de Miranda) e representantes de quilombolas de comunidades do município de Santa Rita denunciaram irregularidades no processo de duplicação da BR-135, que liga a capital maranhense a Teresina, e passaram a reivindicar o cumprimento dos trâmites de proteção aos seus direitos territoriais. O projeto de duplicação atinge mais de oitenta territórios quilombolas em municípios maranhenses. Em sua maioria, as comunidades possuem processos de regularização fundiária, no Incra ou no Instituto de Terras do Maranhão (Iterma). O processo de Santa Rosa Pretos chegou ao decreto de desapropriação dos imóveis incidentes no território, mas permanece paralisado desde então.

Nas reuniões públicas realizadas na sede do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública da União (DPU), em São Luís, e na Comunidade Quilombola de Outero dos Nogueiras, em Itapecuru Mirim, bem como em documentos protocolados nos órgãos públicos, lideranças comunitárias, representantes das associações e aliados questionavam o início das obras sem a realização da Consulta Prévia, Livre e Informada, direito garantido pela Convenção 169 da OIT;[12] a precariedade dos estudos elaborados no âmbito do licenciamento ambiental, em especial, o Componente Quilombola (com fotos que não correspondem aos quilombos da região, outras retiradas de sites da internet), portanto, a necessidade de novos estudos ambientais; a não realização de audiências públicas; a exigência, por parte do Dnit, de considerar atingidas apenas as comunidades quilombolas que estão no raio de 10 km do empreendimento, desconsiderando os 40 km, conforme regulamentado pela Portaria Interministerial no 60, de 24 de março de 2015, para a Amazônia Legal. Muitas denúncias afirmavam ainda o tratamento desrespeitoso que os quilombolas recebiam, com máquinas chegando no território sem os avisar, com a exigência de assinatura de documentos, a abertura de buracos em frente às casas, o entupimento de igarapés, a retirada de vegetação.

A mobilização realizada em torno das irregularidades do processo de duplicação da BR-135 conseguiu suspender a licença ambiental da obra em 2019. Ocorreu um período de espera e esperança de que as relações poderiam ser retomadas dentro de parâmetros reivindicados pelos grupos: escuta das comunidades, novos estudos, possibilidade de quebra das relações hierarquizadas que configuram a chegada de empreendimentos. No entanto, no início de 2020, quando parecia que os processos de duplicação permaneceriam parados para as lideranças envolvidas, diante do contexto da chegada ao Brasil da pandemia do coronavírus, os quilombolas foram informados da tramitação de uma ação judicial movida pelo MPF contra o Dnit e o estado do Maranhão e de tratativas de um Acordo no âmbito deste processo judicial. O Acordo tinha sido proposto pelo Dnit que apresentou como argumento o perigo da devolução de recursos públicos destinados à obra no estado do Maranhão, caso não fossem utilizados, para a União. A urgência dos gastos justificaria a pressa na continuidade da obra, que não permitiria esperar o “tempo” da pandemia para retomar discussões em curso e mesmo concluir os trabalhos necessários do licenciamento ambiental, como refazer o estudo do Componente Quilombola, realizar audiências públicas e respeitar a Consulta Prévia. No curso da Ação Judicial, representações de associações quilombolas, que participaram das reuniões de 2017 e que vinham pleiteando direitos negados no processo de licenciamento pelo Dnit, e a DPU se posicionaram contra o Acordo e o reinício das obras. Alegaram principalmente as dificuldades e os perigos da retomada dos trabalhos no contexto de pandemia, com a circulação de trabalhadores perto das moradias e a necessidade de cumprir ritos que estavam sendo desrespeitados no âmbito administrativo, como as consultas, as audiências e os estudos.

No entanto, a Decisão Interlocutória proferida em 8 de junho de 2020, no âmbito do processo judicial, autorizou o reinício das obras da BR-135 no “subtrecho” de 18 km entre os municípios de Bacabeira e de Santa Rita. O perigo alegado pelo Dnit de perder recursos foi associado ao fato de que os trabalhos a serem executados na duplicação do trecho não desconsiderariam “a observância das regras e diretrizes das autoridades sanitárias, com o fim de garantir a segurança e saúde das pessoas impactadas”.[13] Ou seja, seriam garantidos os recursos e a saúde dos moradores e trabalhadores não seria prejudicada. Superada a questão da pandemia com a afirmação de que as obras cumpririam protocolos, na controvérsia constituída no recinto jurídico, a decisão colocou em jogo a relação entre direitos das comunidades quilombolas (como direitos fundamentais) e o “interesse público” na tomada de posição quanto ao pleito.

A controvérsia concreta estabelecida a respeito da retomada da obra, no trecho específico de 18 km entre os municípios de Bacabeira e Santa Rita, revela nítida hipótese de colisão entre o direito fundamental à consulta livre, prévia e informada das comunidades tradicionais potencialmente afetadas pelo empreendimento e o interesse público no efetivo prosseguimento da obra de infraestrutura, no trecho específico indicado pelo primeiro corréu (Dnit), de 18 km, em cujo raio de 10 km para realização da consulta e elaboração do estudo do componente quilombola se encontram quatro comunidades tradicionais. (Santana [Rosário], Santa Rita do Vale, Nossa Senhora da Conceição [Recurso] e Ilha das Pedras)[14]

Nesse caso, se atribui o interesse público ao direito de ir e vir das pessoas em segurança e a possibilidade de perda de recurso público, devendo então ser garantida a execução da obra. Ainda, com a segurança de que os direitos dos quilombolas não seriam severamente prejudicados.

O interesse público relativo à retomada imediata da obra – de forma que não haja a perda de vultosos recursos públicos para sua realização – deve ser compreendido como um interesse público primário, assim entendido – NESTE CASO CONCRETO – AQUELE VOLTADO À REALIZAÇÃO DAS FINALIDADES PRECÍPUAS DO ESTADO, COMO A GARANTIA DE EXISTÊNCIA DE UMA RODOVIA COM CONDIÇÕES ADEQUADAS DE INFRAESTRUTURA E, PORTANTO, SEGURANÇA PARA O TRÁFEGO DE VEÍCULOS E PESSOAS, a fim de possibilitar o adequado exercício do direito fundamental de ir e vir, com a redução dos notórios e evidentes riscos à incolumidade física [...] considerado um dos mais perigosos do estado – integra uma rodovia já existente há décadas, e que constitui o único acesso à ilha de Upaon Açu [...].[15]

O argumento acionado na decisão é de que mesmo com a realização da obra, os quilombolas não teriam seus direitos totalmente desrespeitados, configurando assim uma ideia de ponderação de interesses,[16] em que não se esvaziam os direitos conflitantes.

No caso de que se cuida, a ponderação dos direitos, interesses e valores em conflito sugere o reconhecimento da possibilidade de prosseguimento da obra pública (duplicação de rodovia), no trecho específico indicado (18 km), de modo que se possa utilizar os recursos públicos a ela destinados e realizar o interesse público primário que fundamenta a intervenção. Assim é porque o cenário de retomada da obra, nesse trecho específico, não representará uma interferência excessiva ou desproporcional ao direito das comunidades tradicionais à consulta livre, prévia e informada, eis que ainda será possível a promoção da integração e participação das comunidades através um processo de consulta em que elas sejam ouvidas, consideradas e respeitadas (objetivos inerentes à realização de uma consulta livre, prévia e informada, na perspectiva da função social do instituto), no contexto de elaboração/complementação do estudo a respeito do componente quilombola do empreendimento, com a finalidade de estabelecer medidas mitigatórias e/ou compensatórias consideradas adequadas.

[...] Diante desse quadro é que se entende que a solução de retomada da obra nesse trecho específico não terá o condão de esvaziar o direito à consulta livre, prévia e informada das comunidades tradicionais, que deve ser interpretado à luz da realidade concreta, não se podendo ignorar, nesse sentido e até mesmo à vista dos limites objetivos da demanda (pedidos e causa de pedir), que a consulta (livre, prévia e informada) que se pretende realizar não objetiva deliberar sobre a realização do empreendimento em si – o que num plano abstrato estaria compreendido no caráter prévio da consulta a ser realizada –, mesmo porque se trata de duplicação de uma rodovia já existente [...].[17]

A perspectiva de “interesse público”, bem como o “interesse social”, aparece como portadora de interesses maiores do que a afirmação territorial dos grupos negros no âmbito jurídico, e é acionada na produção de legitimidade da passagem de empreendimentos, mesmo na pandemia, e sem cumprir ritos previstos, diante da situação de risco da perda de recursos financeiros para as obras.

Se na arena judicial constituída, a atribuição do caráter público das obras permite relativizar os direitos requeridos pelos quilombolas, de forma a legitimar a execução, em discursos políticos de representantes de órgãos de governo, a expansão logística é projetada sobre territórios tradicionais e quilombolas como caminho inquestionável de mão única, sem menção aos conflitos e como projetos promissores.

A expansão logística é inserida numa dinâmica de reorganização socioespacial legitimada em um discurso desenvolvimentista que aciona empregos, formação educacional e concentra energias na construção de corredores, que destacam o fluxo das mercadorias como “mais importante que o espaço como um todo do qual a região faz parte” (PORTO-GONÇALVES, 2018). Neste sentido, em evento promovido pela revista Carta Capital, em 2018, o governador do Maranhão em exercício, Carlos Brandão, fala do investimento do governo em Educação Básica e em educação profissional, em saúde e em segurança, como um “dever de casa” direcionado a dar suporte ao avanço de empreendimentos. O avanço nesses setores e a localização geográfica privilegiada da ilha são apresentados como possibilitadores da atração de investimentos na operação de logísticas de escoamento:

O nosso estado é um estado que tem uma localização geográfica diferenciada, nós temos um estado com uma extensão de 640 quilômetros de litoral, segundo maior litoral do Brasil, atividade pesqueira muito forte, de carcinicultura muito forte, região propícia para criação de camarão. Temos um complexo portuário, com Porto da Madeira, da Vale do Rio Doce, o Porto do Itaqui, que é um porto público, temos um Porto da Alumar, e está sendo construído um outro porto, com capital chinês, que é o Porto São Luís, que até 2020 deve estar pronto, tem estudo também de um quinto porto, Porto de Alcântara.

Região apropriada para a instalação de portos, que nos dá condição para que a gente possa exportar e importar [...] O estado mais próximo da Europa, dos EUA, dos grandes mercados consumidores, se a gente utilizar o Canal do Panamá, a gente está mais perto da Ásia, que é o grande centro consumidor do mundo.

[...] Temos chegando nesses portos, três ferrovias, que favorecem a entrada e saída de mercadorias, como disse anteriormente, temos uma grande malha rodoviária...[...] que permite essa trafegabilidade no nosso estado. Diante de todo esse quadro temos uma situação extremamente favorável para que os investidores possam investirem aqui no nosso estado.

[...] Recentemente agora foi aprovado o acordo salvaguarda tecnológica de Alcântara, pela Câmara de Deputados, vai ser votado e com certeza será aprovado no Senado e teremos aqui uma grande base de lançamento de foguetes satélites para a gente aproveitar esse mercado aéreo especial gerando emprego, renda, oportunidade. Tivemos a oportunidade em companhia com o ministro Marcos Pontes, com vários deputados e senadores, de visitar a base na Guiana Francesa, para conhecer os impactos socioeconômicos que aconteceram lá, para que eles pudessem votar no congresso nacional, lá observamos um grande avanço tecnológico, na geração de empregos, na tecnologia, é isso que estamos querendo para Alcântara.

[...] Estamos com o estrangeiro... discutindo com os chineses a construção de uma siderúrgica... a gente se sente à vontade, porque a gente sabe que o Maranhão está pronto, está pronto porque tem um povo capacitado, com saúde, educação, segurança ... a gente precisava fazer primeiro o dever de casa.[18]

A projeção da região como um importante Corredor de escoamento de produtos – racionalizado, eficaz, em constante crescimento – e a relação com a geração de empregos, renda, investimentos são apresentadas como o melhor destino, como superação de situações de crise, como um projeto universal de planejamento e racionalidade melhor para todos. No plano político da apresentação do cenário favorável e das “vocações naturais”, as situações conflitivas nas comunidades desaparecem. No cenário da discussão dos caminhos logísticos e de infraestrutura, nenhuma liderança comunitária se faz presente. Os deslocamentos previstos e/ou já executados de povos e populações desaparecem da cena pública, os custos ambientais e sociais não são mencionados.

 Em sua versão mais radical e explícita do desaparecimento/silenciamento, está a propaganda do senador Roberto Rocha, colada na parte traseira de um ônibus e em um outdoor na capital São Luís, em que estampou seu rosto, seu nome e seu posicionamento: “Exército na BR­-135, primeiro a gente faz, depois a gente fala!”, marcando publicamente a legitimidade autoritária do patrão, daquele que manda no destino da região.

 A autoridade sobre a execução de uma estrada que deve sair, sem conversa, se expressa também no espetáculo da visita. Em 29 de outubro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, visitaram as obras de duplicação da BR-135, juntamente com equipes do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Em notícia publicada[19] sobre a visita na seção infraestrutura do site Br.gov do governo federal, o ministro enfatiza a importância “para o desenvolvimento do estado” e para o acesso à Ferrovia Norte-Sul. “E temos que investir nessa região do Matopiba,[20] que é a região que mais vai crescer no Brasil. É a fronteira agrícola que temos”. O ministro menciona ainda a possibilidade de “federalização da MA-006 até Balsas.”

A importância econômica da estrada e sua relevância política é destacada também no site do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) do governo federal, na referência ao projeto de duplicação e ampliação de rodovias, especificando a BR-135:

A prioridade do projeto se caracteriza em promover a logística da região entre as cidades de São Luís/MA e Teresina/PI, interligando a região considerada a grande fronteira agrícola nacional da atualidade, que apresenta crescimento expressivo na produção agrícola, principalmente de soja e milho, contribuindo para o desenvolvimento regional do Norte e Nordeste do país, do qual importantes rodovias federais fazem parte.

A produção agrícola da região denominada Matopiba compreende o bioma Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e responde por grande parte da produção brasileira de grãos e fibras [...].

A melhoria da logística do transporte terrestre oferecerá facilidades de escoamento da produção agrícola, bem como o uso de outros modais e a viabilização da exportação da produção por meio dos complexos portuários de Itaqui (São Luís/MA), e também do Arco Norte, de Vila do Conde (Belém/PA), sendo um importante corredor logístico para o Centro-Oeste.

Um dos grandes diferenciais dos portos citados é a sua localização, próxima dos mercados da Europa, América do Norte e do Canal do Panamá, por onde é possível alcançar mais rapidamente os países da Ásia.

O empreendimento foi qualificado na 13a reunião do Conselho do PPI, por meio da Resolução no 121, de 10/6/2020.”[21]

Inseridas nas agroestratégias que acompanham a expansão da soja, na busca de saídas de escoamento pelo Norte (o Arco Norte), as obras aparecem como potencializadoras do “desenvolvimento regional do Norte e do Nordeste”.

O caráter público do empreendimento acionado na Ação Judicial, que garantiu a retomada das obras da BR-135, já havia sido acionado anos antes do processo de duplicação da rodovia, na legitimação do processo de duplicação da estrada de ferro Carajás na Ação Civil Pública (ACP)[22] movida, em 2011, pelo MPF contra a empresa Vale S.A e o Ibama, baseada em dois Inquéritos Civis (IC) instaurados pelo MPF.[23] A ACP foi movida em virtude da

insuficiência dos estudos apresentado pela mineradora ao Ibama, no processo de licenciamento ambiental do empreendimento Duplicação da Estrada de Ferro Carajás, de responsabilidade da primeira requerida, que omitiu os impactos ambientais e sociais causados às comunidades remanescentes de quilombos Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, além de outras indicadas.[24]

O MPF solicitou nesta ACP ao Judiciário à complementação do estudo ambiental, no que se refere aos impactos sociais causados às comunidades quilombolas, e medidas informativas, compensatórias e mitigatórias. A solicitação estava relacionada às denúncias de irregularidades no processo de duplicação da estrada de ferro Carajás por diversas organizações não governamentais (como a Justiça nos Trilhos e a Justiça Global), pastorais (CPT e o CIMI) e associações quilombolas. O licenciamento da obra de duplicação foi realizado de forma fragmentada, por trechos, de modo a não caracterizar um grande empreendimento. Assim, de início não foi necessário que a empresa mineradora fizesse o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) nem audiências públicas, conseguindo as licenças ambientais a partir de um procedimento simplificado.[25]

Após as denúncias e mobilização das associações, organizações e entidades, em 2012, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) passou a considerar a necessidade de tratar o empreendimento como um todo, não mais operando na lógica de vários empreendimentos independentes. A mineradora, diante da pressão exercida, reorganizou o projeto apresentado. As organizações exigiram a elaboração de EIA-Rima através de um processo de licenciamento regular e não simplificado, a divulgação do estudo e das medidas mitigadoras e compensatórias, a realização de audiências públicas regulares e a consulta às comunidades tradicionais (FAUSTINO; FURTADO, 2013).

O juiz Ricardo Felipe Rodrigues Macieira, da 8a Vara Federal, em São Luís, responsável pelo julgamento da ACP movida pelo MPF, em 2012, determinou por liminar a suspensão da licença e a paralisação das obras. Contra essa decisão, a mineradora ingressou com dois pedidos de revisão: um Agravo de Instrumento no Tribunal Regional Federal (TRF) da 1a Região, em Brasília, e um pedido de suspensão da liminar, também no TRF, alegando prejuízos de ordem pública, embasada na Lei no 8.437/1992. O desembargador Carlos Moreira Alves aceitou a argumentação da empresa de que a EFC é uma concessão pública e, portanto, a paralisação poderia causar prejuízos à ordem pública (BRUSTOLIN; ANJOS; SANTOS, 2018).

Faustino e Furtado (2013) destacam que o posicionamento do desembargador foi o de que “a decisão que a paralisação das obras acarreta grave lesão à ordem pública, resultando no desequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão”, à economia pública, considerando a inserção de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e ainda a perda de empregos (FAUTINO; FURTADO, 2013). No estudo publicado pela organização Terra de Direitos, Santos e Gomes (2015) chamam a atenção para o fato de que em conflitos que colocam em relação políticas desenvolvimentistas e a violação de direitos humanos o “Judiciário, sob a alegação da garantia do ‘interesse público’, cada vez mais tem chancelado interesses econômicos privados em detrimento dos direitos humanos” (SANTOS; GOMES, 2015, p. 5).

O interesse público acionado nos processos de duplicação da BR 135 e da EFC, apesar de uma série de denúncias de irregularidades, é constituído como um forte argumento no recinto jurídico diante dos pleitos quilombolas. Apresentados como ligados a uma comunidade maior, a defesa da vida da população, o desenvolvimento de uma coletividade, o direito de ir e vir permitem um ato de apropriação em nome do grupo em que “o sujeito coletivo é produzido pelo ato comum da instituição, em vez de precedê-lo” (DARDOT; LAVAL, 2017), fazendo o destino público ser decido por quem pode se sentar à mesa para traçar os planos.

 

O quilombo como possibilidade de pensar o incomum em comum

A classificação das obras de duplicação da rodovia federal e da estrada de ferro como de interesse público, nas decisões judiciais proferidas no cenário de conflitos que envolvem a expansão de estruturas logísticas e o território quilombola de Santa Rosa dos Pretos, atua no trabalho de construção de um caráter universal de representação para os empreendimentos e para o projeto de expansão do Corredor. Amparada em princípios apresentados como maiores, como o progresso para o bem de todos ou pelo menos “da maioria”, a “segurança” da população, justificaria assim o sacrifício de alguns, como os quilombolas, a água, as florestas para um ideal particular de coletividade. Ao relatarem a supressão ou transformação de lugares de socialidade, de produção, de vida no território, que estão ou serão comprometidos com o avanço das obras, quilombolas de Santa Rosa colocam outras questões em jogo, que tensionam a finalidade pública dos empreendimentos. A partir de suas narrativas, as decisões judiciais se apresentam como incoerentes não apenas por permitirem que os empreendimentos corram sem os papéis e trâmites necessários (audiências públicas, consultas livres e informadas, planos ambientais adequados, mitigações), mas também porque excedem seu domínio,[26] centrado na “concepção e regulação da natureza como recursos” (DE LA CADENA, 2018, p. 112), colocando em jogo mundos, relações, pois as obras permitem “acabar com tudo”.

O discurso desenvolvimentista de segurança para a população e da chegada de benefícios com a extração e exportação de riquezas minerais, a duplicação das estradas, a geração de empregos não produz a eficácia simbólica das promessas do progresso para anciões e lideranças da comunidade quilombola de Santa Rosa dos Pretos, de outras comunidades atravessadas pelos empreendimentos na localidade e de quilombolas situados em outras regiões. Antônio Bispo (2015) faz uma forte crítica ao desenvolvimentismo e a instalação de grandes projetos (hidrelétricas, estradas) que afetam o território de povos e comunidades e são executados a partir de posturas autoritárias e processos expropriatórios. Em Santa Rosa, Seu Libânio diz que não sobem mais no “barco furado” em que os mais velhos e seus antepassados entraram no passado quando trabalharam na abertura do primeiro pico da futura BR-135 sobre suas terras. Paisagens compostas na constituição da fronteira com a expansão do Corredor Carajás que corta territórios quilombolas após anos de conflitos, negociações, “portas na cara” reorganizam as possibilidades de universalização das justificativas e dos empreendimentos. A face colonial e exploradora das estradas voltadas para a exportação do ferro e da soja para mercados internacionais é exposta a partir de múltiplas narrativas locais, da quebra de relações e da organização de novas alianças, uma vez que as “caravelas não param de chegar”.[27] As conexões globais não produzem necessariamente uma homogeneização, como discute Tsing (2005), mas se organizam a partir de ligações desiguais e desajeitadas produzidas no curso das práticas, da reprodução de modelos e das transformações que se operam no local. As transformações nas paisagens, com o avanço das infraestruturas industriais e imperiais, produzem também uma série de efeitos não projetados, em que ações de “ferocidade perigosa” disparam (TSING, 2019, p. 14-15).

Nas reuniões em instituições públicas que acompanhamos e em conversas em suas casas a respeito das transformações que afetam o quilombo, Dona Ana, Seu Libânio e Mãe Severina falam de lugares, relações e valores importantes na constituição da vida no território que estão ameaçados pelas obras e pelo desrespeito com que são executadas. Nesses lugares, as relações são permeadas por valores e práticas que se chocam com a chegada de máquinas, o entupimento de igarapés, os cortes de árvores. Dona Ana, juntamente com Elias, se colocou na frente de uma máquina escavadeira que chegava pelas margens da rodovia para retirar árvores e abrir espaços para a duplicação. Muitos espaços compartilhados na colocação de roças, na extração do coco e das palhas do babaçu, como de pesca nos igarapés e nos campos naturais, que também são moradas de mães d’água, foram suprimidos durante as décadas de avanço de fronteiras territoriais dos projetos desenvolvimentistas iniciados na década de 1950, potencializados nos anos 1980-90 e retomados recentemente com ampliações e duplicações, como a implantação e posterior duplicação da EFC, o projeto de duplicação da rodovia BR-135, a extensão do conjunto de linhões de energia e a chegada de novos fazendeiros que compram terras dentro do território quilombola. Importantes roçados de Seu Libânio ficaram embaixo da Coeb e da Coebinha, o Igarapé Simaúma foi entupido pelas estradas de ferro, impedindo a circulação da água e dos peixes, as famílias começaram a vivenciar um território seco, a escassez de alimentos e o enfraquecimento das relações tecidas no quilombo.

Outros espaços, partilhados na produção da vida comum, ainda estão presentes, mesmo que ameaçados ou diminuídos pelo avanço de cercas e das infraestruturas, pelo desmatamento e pela pressão para o encolhimento do território; outros, ainda são recriados e reinventados, compostos nas ruínas de projetos, de obras, de investimentos públicos e privados, a partir de uma resistência cotidiana, de uma potente insistência nas relações de vida comum que permite fazer frente aos processos de usurpação e nas relações com aliados. As conexões que se tecem no fazer conjunto, nas práticas cotidianas, nas relações entre moradores, natureza e encantados, nas alianças com ativistas e técnicos de organizações e instituições desafiam o sentido de público referido nos documentos, tensionando a reabertura em vários momentos da controvérsia que se pretendia encerrada nas decisões.

 

A Matinha: as forças do quilombo

As terras dos pretos são terras de muito mistério, diz Seu Benedito, ao falar sobre os lugares e as encantarias no território Santa Rosa dos Pretos numa conversa em frente à sua casa na Barreira Funda.[28] Não se caminha desavisado e não se entra sem permissão em muitas matas, igarapés e satubas. São muitos os registros de pessoas que desobedecem, desafiam ou não prestam atenção e adoecem, águas que se acabam e entidades que migram para outros lugares, enfraquecendo o quilombo. Tem lugares no território que ninguém entra, como diz Dona Dalva:

Aqui dentro da Santa Rosa tem um lugar que ninguém vai. Passa no caminho, passa beirando, mas lá não vai. Nem nós daqui! É pra cá, do outro lado da Rodagem. O que impede de a gente ir, é que quem vai lá fica ruim demais. Uma vez, mamãe foi pra lá tirar palha, mas acabou a palha no mato e ela não foi mais. Meu sobrinho, que era o neto dela que ela criava, quando ele veio de lá, ele corria ao redor da casa, doidinho (risos). A gente perdeu uma pessoa que foi pra lá também, um rapaz jovem. Ele caçava com um cachorro. (Entrevista com Dona Dalva, Santa Rosa dos Pretos, 11 de março de 2017)

Entre os mistérios das terras nas quais não se pode ir, ou daquelas em que é preciso pedir permissão, a área da Matinha assume grande importância na produção da força do quilombo e dos quilombolas. As terras da Matinha situam-se numa mata preservada e cuidada pelas famílias do quilombo atrás da Tenda Nossa Senhora dos Navegantes, terreiro de Mina da comunidade, pertencem aos encantados Seu Cearense e Tereza Légua, e seu uso obedece aos preceitos de seus donos. É um lugar de banhos, de obrigações, de cuidados, lugar onde estão os pontos de luz.  “É lugar de obrigação para mães d’águas no primeiro dia da festa de Seu Cearense. [...] Temos de ir por um caminho estreito de terra batida, em alguns momentos se faz necessário o uso da catana (facão), temos de caminhar um pedaço de chão, sempre com a permissão de mãe Severina” (SILVA; SANTOS, 2020, p. 123-124).

As terras da Matinha foram encontradas por Mãe Severina a pedido de Seu Cearense:

Quando eu cheguei aqui nessa casa, ele chegou e disse que eu tinha que ter essa casa, mas eu tinha que ter um lugar reservado a ele. Pra fazer os pontos dele lá. Pra fazer o primeiro trabalho dele lá. Aí eu disse “meu deus, onde é que eu vou achar?” Ele voltou e disse que era pra eu procurar, que eu encontrava. Realmente, eu achei. (Entrevista com Mãe Severina, Santa Rosa dos Pretos, 14 de junho de 2017)

É lugar de banho e de limpeza do corpo, ao mesmo tempo em que é lugar que se deve preservar e limpar. Conforme Dona Dalva, em Santos (2019, p. 139): “A Matinha é lugar sagrado, então não se pode entrar errado, de qualquer jeito pensando que você pode fazer o que quiser lá, é lugar onde a gente entra para tomar banho, se defumar, limpar nosso corpo antes de ir para a Tenda dançar” (anotações do caderno de campo de fevereiro de 2018) (SANTOS, 2019, p. 139). Cada passo dado dentro da Matinha, além de assegurar as obrigações com os encantados do Tambor de Mina, recria laços de cuidados extensos na defesa do território e do corpo que estão conectados na extensão de uma terra que é natureza e que é viva, com a qual se tem obrigações de respeito. Para a mestra e quilombola Dona Dalva, “a Matinha é um lugar sagrado, são pedaços da gente ou o corpo todo. Ela chama a gente pra cuidar dela e ela cuida da gente e de quem precisar”.

Uma das veias da Matinha era o Igarapé Sumaúma, pensado como um fluxo de vida, que corre pelo território quilombola, e que quando interrompido pelos projetos de morte, recria a escravidão, o cativeiro e as chibatas. Sobre essas mazelas que chegam, tomam terras e destroem igarapés, alerta Dona Ana: “Estamos sendo atacados.” Em 1980, a ferrovia Carajás começou a aterrar o Simaúma, os quilombolas não tinham dimensão dos danos provenientes da construção da estrada, quando se espantaram, o ancestral comum, o velho Igarapé, estava sendo asfixiado pelo progresso, as mães d’água se mudaram, as mulheres deixaram de pegar peixes nas barras das saias, nem em tempo de chuva ele enche mais. Mas não bastou esse golpe, a EFC foi duplicada, e o fio de água que insistia em correr, nem sempre aparece.

Quando Seu Libânio, ancião antigo de Santa Rosa, interroga a jovem quilombola, “Você sabe o que é uma estrada? Nós estamos preparados para isso?”, ele convida a desconfiar dessas promessas de melhoria que chegam com as grandes obras, os grandes empreendimentos que surgem com o nome de desenvolvimento econômico e são traduzidos como públicos nos grandes recintos, mas que sufocam importantes espaços de relações. Vai além, nos fala do que está se acabando e das insistências necessárias.

 

Matas, roças e igarapés: paisagens em transformação

Seu Libânio conta que quando atravessava as matas pelos caminhos antigos dentro do território voltava com a barriga cheia das frutas que apanhava. Seu Benedito fala de lugares que não se enxergava a luz do sol de tão fechado o mato. Que o peixe que circulava abundantemente no inverno, ficava parado nos igarapés quando as águas baixavam nos meses de verão, seguindo o calendário de cheias e vazantes que compõem o território e organizam a vida. E hoje “os rios não têm mais dado peixe. Os rios não têm mais nada, não tem mais absolutamente nada, não tem nada para onde o peixe se encosta e tira um cochilo” (Seu Libânio, entrevista 2019).

As matas e os igarapés são espaços comuns partilhados entre os quilombolas, encantados, animais e plantas: lugares de trânsito, de coleta, de roçados, de pesca, de contemplação, de obrigações, de respeito, de trocas. No entendimento de Seu Libânio, isto está ameaçado, em parte se acabou, pois as mazelas que chegaram com as estruturas que atravessaram o território entupiram igarapés, destruíram matas, envenenaram e cercaram terras. E como está tudo interligado: se se acaba o igarapé, se acaba a fruta e se acabam os bichos.

Eu saía daqui para pescar, era para andar dentro do mato. Quando chegava de tarde, vinha todo mundo com o bucho cheio. E hoje não tem nada disso não. Acabaram, acabaram! E a natureza, ela está gritando. E quem está gritando nessa natureza somos nós próprios. Acabou a água que se tinha, que aqui hoje eles estão perfurando poço em cima de poço e nós não precisávamos disso. A água eram bem pertinho, a estrada acabou com isso. (...) Quando essa natureza se acaba, o que nós vamos fazer, vamos se acabar também. (Entrevista com Seu Libânio, 2019)

Esta situação dramática das águas vivenciada no quilombo tem sido enunciada ao ancião também em sonhos, numa preocupação compartilhada com as encantarias, em que ele primeiro visita os igarapés e as nascentes vivas e, em seguida, vivencia a angústia que sofrem, numa dimensão temporal e espacial paralela.

Estamos perdendo o maior foco do mundo, através desse desrespeito que está tendo. Isso não é um sonho só de uma vez não, de vez em quando eu continuo... a realidade ou a irregularidade que estamos tendo nas nascentes, nos igarapés... De vez enquanto eu sonho, tá com uns três dias, eu tornei a voltar a ter o mesmo sonho.... não melhorando, nem piorando, a situação continua. A natureza ela é viva, é uma sustentabilidade do ser natural... por isso, a gente dormindo tem uma passagem de olhar no sonho... o que é realidade que está acontecendo, não era antes.... Hoje a gente... você vê... as cabeceiras tudo interrompidas, os igarapés tudo acabado. Então, com isso, o sonho cai lá. Agora não sei se é um sonho de sonho ou é uma realidade viva. Alguém dizer sim... “tá se acabando tudo... se não tiver um jeito, a gente também vai embora”. (Entrevista com Seu Libânio, 2019)

Os igarapés e as cabeceiras, mais do que lugares físicos de onde se retira água, onde se pesca e se realiza diversas atividades, também são moradas dos bichos e dos peixes, moradas da mãe d’água, das famílias das águas e dos matos. Compõem a “sustentabilidade do ser natural”, a força necessária à vida. A agressão, o desrespeito, desequilibram as forças do mundo, do território e dos quilombolas organizadas numa paisagem de uma ecologia complexa. Esta dimensão de natureza apresentada pelos quilombolas está relacionada à força do Tambor de Mina e das relações tecidas entre pessoas e encantados em noites de obrigação e na lida diária com as coisas do quilombo e do mundo. Nesse sentido, toda fala na defesa do território tem uma vela (uma força) assentada no chão que não se circunscreve às possibilidades enunciativas das paredes e dos papéis. A fala é ancestral e encantada, pode curar ou preparar a língua como flecha para um estado de guerra antigo e colonial. Se o território é como um corpo e os igarapés ancestrais, a defesa da natureza é um ato político e contracolonial. Nessa tessitura política, mãe d’água alerta que é com respeito que se deve entrar nos territórios quilombolas, nas matas, nas cabeceiras de águas que circulam e circundam o mundo preto, pois anuncia:

Eu sou mãe d’água preta lá do poço de beber

Eu sou mãe d’água preta lá do poço de beber

Lá eu vejo gente e gente não me ver

Lá eu vejo gente e gente não me ver

Importantes áreas de roça também foram suprimidas pelo avanço de fazendas e empreendimentos sobre o território quilombola, como os linhões de energia da Eletronorte e da Cemar, comprometendo a reprodução econômica, social e cultural da comunidade quilombola. As roças de toco, antigamente colocadas em terras férteis escolhidas pelos grupos familiares ou de afinidades dentro das áreas de uso comum, de acordo com avaliações do solo, da capoeira, do descanso da terra, que respeitava um tempo de pousio de dez anos, ficaram prejudicadas e os espaços de roças diminuídos. As famílias demarcam os lugares de trabalho na roça nas reservas de terras, hoje praticamente inexistentes, se “tira o eito” ou “corta o eito”. Na demarcação dos “limites de cada um dos eitos, planta-se quiabo ou carrapato (mamona), que formam uma espécie de cerca viva” (LUCCHESI, 2008).

As pessoas têm certas experiências naturais e aí conhecem o solo, onde o solo é propício para as sementes. Adentrava nas matas para rever como estaria ali os matos, se os matos já estavam recuperados. Onde as matas já estavam recuperadas como se deixava tempos, se conhecia, tem toda uma experiência, as relações do sentir. Eles conseguiam às vezes até fazer furinho na terra para ver a umidade da terra, todo um processo de experiência. Tinha as reservas, onde a gente vive era local mesmo de se morar, onde eles adentraram ... é aonde tinha a concentração das reservas para as roças e para tirar material para fazer as casas, que as casas eram de Taipas. Hoje nos estamos no meio, e em volta está tudo tomado... além dos seis quinhões, que ficamos quase num canto, tem a ferrovia Carajás acabando com tudo. (Depoimento, Dona Anacleta, 2021)

Dona Ana explica como o sistema de roças e de organização das terras encontram-se prejudicado com a tomada de seis quinhões, mas principalmente “acabados” pelo avanço das estradas e também pelo desmatamento das fazendas. Um dos fazendeiros colocou fogo em boa parte das terras de sua fazenda no ano de 2017, quando foi expedido o decreto de desapropriação das áreas particulares dentro do território quilombola. O fogo se espalhou e pegou parte da plantação de abacaxi que os quilombolas tinham feito. As transformações na paisagem comprometeram severamente a possibilidade de colocar roças no sistema de pousio e as reservas que garantiam autonomia produtiva e de materiais para as casas. Lucchesi (2008) fala de uma “habilidade de combinação ecológica” dos agricultores no quilombo, que na produção misturada de “arroz, milho, mandioca, feijão, maxixe, melancia, abóbora, pepino, melão, quiabo, vinagreira, batata doce, gengibre, gergelim, fava e amendoim” maximiza a utilização de luz solar, da água e dos nutrientes. Produção realizada em dois períodos de roça: a rocinha, de no máximo quatro linhas, em que se roça no mês de maio e planta-se entre junho e setembro, e a roça de janeiro.

O encolhimento das terras de uso comum tem provocado a perda das reservas, dos projetos gestados para a reprodução camponesa no local, com a supressão das matas, a diminuição e o esgotamento dos solos, o entupimento de igarapés e a saída de jovens para trabalhos sazonais fora do município (na cana, nas construções). Assim, a formação de “Centros de Lavoura”, relacionada ao tempo de pousio e às distâncias percorridas nas movimentações intraterritórios, é cada vez mais impedida pela diminuição das terras disponíveis.

Um sinal dessa itinerância era a formação e dissolução de “Centros de Lavoura”. Como tempo de pousio era de cerca de 10 anos, era também maior a movimentação dentro do território em busca de boas áreas de plantio. Muitos desses centros conservaram apenas o nome na memória local, como o “Centro do Agostinho”, “Centro de Sieba”, “Centro de Nhô”. Outros, como é o caso do Centro de Águida, mantiveram-se ao longo do tempo. Segundo comentário de Seu Libânio Pires e Seu Paulão, muitas vezes eles passavam dois ou três anos “lá no centro, no interior, pra lá”, fazendo roça, criando galinha, cuidando da “criação” (porcos), plantando árvores frutíferas, “quando pensava que não largava aquelas casas pra lá e ia para outro setor do território estabelecer outro centro de lavoura” (Entrevista/dez. 2007). (LUCCHESI, 2008, p. 192)

Na luta contra as perdas, Seu Libânio conta que os conflitos dentro do território com conhecidos e familiares se intensificaram com a escassez de terras e as promessas que chegam àqueles que não acordaram. Situações consideradas muito difíceis. As obras e o avanço das cercas sobre as terras são acompanhadas de promessas e de convites que atacam justamente, no diagnóstico de Dona Ana, as vaidades daqueles que não estiveram no chão das lutas na década de 1980, momento em que queriam tomar toda a terra à força. Está também se acabando o respeito mútuo por muito tempo cultivado. No seu entendimento, quando um dá um passo para a frente, todos devem andar também, sem que alguém tome a dianteira e os demais fiquem atrás, o que estava deixando de ser preceito forte. Nos dizia, portanto, que o ataque às terras de uso comum também precisa ser visto como ataque ao comum como filosofia política de vida, a qual a noção de “público” parece não corresponder. Nos parece se aproximar da discussão realizada por Dardot e Laval (2017) de “‘comum’ no sentido de princípio, e não no sentido de coisa, de substância ou de qualidade própria a uma coisa ou conjunto de coisas”. O seja de “um ‘começo sempre a começar’, isto é, um começo que rege e domina tudo o que vem depois”.

 

Composições e insistências

As transformações na paisagem em decorrência da construção de um Corredor logístico para exportações de commodities e a instalação das fazendas marcaram profundamente as experiências de vida no quilombo Santa Rosa dos Pretos, produzindo um local cada vez mais “seco”, sem o fluxo dos igarapés, desmatado e cercado de empreendimentos. Colocam em risco a força do quilombo, o que se acentua com a possibilidade das encantarias das águas e dos matos migrarem. No cenário difícil da fronteira em expansão, práticas e projetos ético-políticos de vida comum se reinscrevem como insistência a partir de uma série de ações, como a luta incessante dos quilombolas para ocupar as arenas públicas, denunciar e obter o retorno das terras usurpadas, como a pressão constante para o término do processo de regularização fundiária do território quilombola, executado pelo Incra. Cada passo do processo administrativo de regularização fundiária foi dado com a ação política conjunta dos quilombolas nas ocupações do prédio do Incra, em São Luís, na ocupação da estrada de ferro Carajás, e da BR-135, no ano de 2014. Sem contar as muitas denúncias e reuniões com o Ministério Público e a Defensoria Pública, com entidades de apoio e de defesa dos direitos humanos. Insistências num jogo de forças em que seus direitos são constantemente relativizados e as mazelas dos empreendimentos escondidas num discurso de benefício de uma população que deve ser protegida, mas que não os inclui.

Numa paisagem em rápida transformação, o quilombo reinventa sua força a partir de ações e alianças diversas, como as firmadas por meio de projetos de jovens e lideranças, executados autonomamente e/ou em conjunto com organizações não governamentais, apoiados por entidades públicas e religiosas, movimentos sociais e aliados e aliadas. O fortalecimento da terra e das relações com as encantarias, a recuperação dos satubas e o aprofundamento da compreensão da histórica luta do quilombo e da importância da ancestralidade dão forma às ações do Coletivo Agentes Agroflorestais Quilombolas. A organização foi criada em 2017 por jovens da comunidade, com o apoio de ativistas, e conseguiu financiamento de entidades de fomento para a realização de projetos coletivos.

Com essa chegada de companhias mineradoras e da redução de nossas áreas produtivas, o desmatamento, o assoreamento de rios e córregos e a falta d’água, é que decidimos criar o coletivo Agentes Agroflorestais Quilombolas, formado por jovens quilombolas.

São valores fundamentais de nosso coletivo:

1) a relação de respeito com a natureza;

2) o entendimento de que nós, mulheres e homens, somos parte dela; e

3) a autonomia individual e coletiva que advém da relação harmônica entre os humanos e outros seres vivos: se respeitamos estes seres e mantemos a harmonia nas relações, não faltará a eles vida e proteção, e não faltará a nós alimento e qualidade de vida. (Agentes Agroflorestais Quilombolas – AAQ)[29]

Os jovens se reúnem para capinas, limpezas, plantios e discussões, fazendo a contraposição à devastação do lugar, à individualização dos projetos de vida e à migração como destino necessário da juventude para a construção de uma vida digna. As ações são compostas no sentido contrário do avanço das estruturas que acabam com matas, igarapés e na afirmação de valores ambientais e partir dos conhecimentos produzidos no quilombo, na escuta dos mais velhos e da ancestralidade e também na construção de novas alianças.

Dona Dalva entrou com força na reinvenção do projeto da Barragem. Reuniu famílias do quilombo na retomada de um projeto de construção de tanques para a criação de peixes que ficou inacabado dentro do território. As famílias passaram a fazer o manejo dos tanques num rodízio, em que se alternam em trabalhar, dormir e zelar na Barragem. A partir de contribuições das famílias engajadas, de pequenas doações de terceiros e do trabalho incessante compraram ração, adquiriram uma roçadeira para capinar, uma bomba, puxaram e eletricidade e ergueram uma casa de taipa. Recentemente fizeram canteiros com temperos e hortaliças ao redor dos tanques. A Barragem se diferencia em muito da pesca nos igarapés (onde o peixe era farto), os tanques foram cavados quando o projeto chegou, exigem o manejo do peixe que é introduzido e tem um tempo para a retirada, e grande parte da ração precisa ser comprada. No entanto, no projeto, a Barragem se inscreve a partir das forças e possibilidades locais. Nesse sentido, numa das visitas à Barragem, Dona Dalva explicava a sabedoria da natureza, quando numa lagoa que abrigava principalmente peixes criados, passaram a viver também as piabas. Ali continua ser lugar de muito mistério.

O problema da escassez da água fortemente relacionado à expansão logística exige novas investidas dos moradores para abastecer as casas. Não tem mais água pertinho, como diz Seu Libânio. Não apenas o peixe não chega mais ao território, mas conseguir água para a vida doméstica também se apresentou como desafio nas últimas décadas. A partir da construção de relações com organizações e pessoas de São Paulo e Minas Gerais, foi lançada em 2018 a campanha “Rega Santa Rosa” de “financiamento coletivo para a construção de 15 poços em nove comunidades quilombolas no território Santa Rosa dos Pretos”.[30] A campanha conseguiu arrecadar 131.170,00 reais por meio da plataforma Catarse.[31] As pessoas que doassem receberiam “recompensas” como “ilustrações autorais de artistas parceiros desenvolvidas especialmente para o projeto, DVDs e adesivos, toalhas de ponto de cruz, bonecas típicas e cofos de palha produzidas por mulheres do quilombo, entre outras”.[32] Os tanques ajudam, mas não são uma solução para os problemas, considera Seu Libânio. Acessam uma água que estava guardada, “e quando ela acabar”? A água, os peixes, a vida em Santa Rosa insistem, se reorganizam e tensionam num cenário de difícil reconstrução.

 

Considerações finais

A possibilidade da constituição de uma arena pública que instale discussões necessárias a respeito do avanço de empreendimentos desenvolvimentistas de logística e infraestrutura na região, inseridos numa agenda estratégica consensual e apresentados como produtores de benefícios públicos, se apresenta praticamente nula. As práticas cotidianas de respeito tecidas na comunidade, os princípios que organizam as relações no território, os efeitos maléficos produzidos pelas obras sobre a natureza, quase sempre estão ausentes dos recintos modernos, e quando acionados, são inaudíveis nas mesas. O silenciamento provocado a uma pluralidade de vozes que ecoam em distintos espaços, mas não são ouvidas e entendidas em recintos específicos, talvez seja uma das estratégias mais eficazes que opera na justificação dos projetos desenvolvimentistas e esteja fortemente enraizada no passado colonial de desqualificação de pessoas, projetos e lugares.

A impossibilidade de que projetos políticos e a afirmação de direitos por parte dos quilombolas ressoem nas arenas públicas diante destes Consensos é fortemente denunciada no blog Consulta Prévia pela jovem liderança quilombola Zica Pires dos AAQ, depois de uma reunião virtual de discussão da Duplicação da BR-135, presidida pelo MPF, em 2020:

Quando uma pessoa quilombola faz um apelo ancestral – pare de me matar! – é possível ouvir esse apelo de qualquer lugar, porque se trata de um grito infinito. Mas escutar esse grito não é pra todo mundo. Se fosse, já teriam parado de nos matar há séculos.

Há uma imensa a diferença entre ouvir e escutar. Ouvir é ser capaz de captar os sons. Escutar é prestar atenção neles, fazer caso, ser capaz de se abrir ao significado deles.

No último dia 15/5, sexta-feira, nós, lideranças quilombolas dos territórios Santa Rosa dos Pretos (Itapecuru-Mirim), Santa Maria dos Pinheiros (Itapecuru-Mirim) e Joaquim Maria (Miranda do Norte), tivemos uma reunião virtual chamada pelo MPF. [...]

O que mais fizemos nesse dia foi gritar pra que parassem de nos matar de novo, para que os órgãos públicos, incluindo o MPF, parassem de tentar buscar uma forma de retomar as obras em meio à pandemia de Covid-19, a pedido do Dnit, simplesmente porque este NÃO É O MOMENTO de discutir nada – muito menos a viabilidade ou pertinência de um canteiro de obras instalado dentro de nossas casas com trabalhadores vindos de fora – que não seja a sobrevivência humana em meio à maior crise sanitária e humanitária global desta geração.

Nos ouviram, mas não nos escutaram.[33]

O pedido para que parem de matá-los (matar árvores centenárias, matar jovens que estão no Coroadinho, assassinados na periferia de São Luís, matar igarapés) realizado por Zica Pires durante a reunião e depois organizado e publicado no site Resistência Quilombola, também presente nas falas de Seu Libânio (a natureza está gritando, e nela, nós estamos gritando), agrega à histórica invisibilidade desses grupos subalternos e de suas ocupações nos planejamentos territoriais, a sua inaudibilidade: “eles ouvem, mas não nos escutam”. Quando se sentam com direitos a reivindicar, mas saem sem, o reconhecimento da histórica luta pela proteção territorial de espaços “comuns” se desfaz, sobrando a condição de armar as defesas. Como nos diz Anjos, em entrevista: “sob um sistema que para continuar se expandindo precisa destituir sujeitos da condição de sujeitos de direitos, a situação é de guerra, e o que se paga posteriormente são compensações de guerra e não proteção de direitos”.[34]

Se nas décadas anteriores, quando as estradas começaram a ser instaladas, os quilombolas não foram convidados a sentar em nenhuma mesa, no recente processo de duplicação, conseguiram firmar certa presença, em documentos e em reuniões, pelo menos na maioria. Ou seja, as falas irromperam na cena pública, mas nem por isso abriram possibilidades de compreensão. Os gritos talvez operem mais a passagem de uma “guerra silenciosa”, amparada na imagem do interesse público, que justifique as perdas e sacrifícios, para “um campo de batalha aberto”, como discute De La Cadena (2018). No que tange à situação de confronto discutida pela autora, ocorrida em 2009, quando lideranças foram presas na “curva del diablo”, ela alerta: “aqueles que se opõem à transformação da natureza universal em recursos se opõem à possibilidade do bem comum como missão do Estado-nação e, assim, são inimigos do Estado, merecendo no mínimo ser presos”.

Desde 2017, nas reuniões que acompanhamos, lideranças de comunidades quilombolas de Itapecuru Mirim, Santa Rita, Anajatuba e Miranda[35] questionam o projeto de duplicação da Rodovia BR-135. A rodovia é um importante caminho “por terra” a ligar o interior do estado à ilha de São Luís e está no cerne de uma série de transformações que marcam o lugar. Segundo Seu Libânio Pires, a estrada amparou a chegada das fazendas, o carregamento dos trilhos para a construção das ferrovias, os linhões de energia da Eletronorte e da Cemar, ou seja, todas as “mazelas” que acompanharam os projetos desenvolvimentistas instalados na região e estão no cerne da perda de terras, dos problemas ambientais, de conflitos envolvendo a expansão de empreendimentos e os territórios negros. É contra essa enganação que Seu Libânio alerta com a pergunta que iniciamos esse artigo. É preciso compreendê-la. Seu Libânio pede que se preste atenção: quando eles falam de estrada, do que estão falando? Mas mais do que isso, é com a certeza de que projetos outros, outras relações, precisam tensionar os modos hegemônicos de traçar os entendimentos, de se sentar à mesa, de se fechar nas paredes, e abrir espaços para proposições outras de “o público”.

 

 

Agradecimentos

Agradecemos interlocutores e interlocutoras do quilombo Santa Rosa dos Pretos que nos receberam e partilharam pensamentos, preocupações e esperanças. Queremos lembrar aqui, especialmente, Dona Anacleta, Seu Libânio Pires, Seu Benedito Belfort (in memoriam) e muitas outras pessoas e encantados que ajudaram nesse processo de teorização insurgente e urgente na luta em defesa dos quilombos no Brasil. Somos muito gratas pelas partilhas e ensinamentos. Agradecemos também aos comentários dos pareceristas que permitiram avançar no artigo e trouxeram novas discussões para nossa prática de pesquisa.

 

 

Referências

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Como citar

BRUSTOLIN, Cíndia; SANTOS, Dayanne da Silva. O comum e o público no avanço de fronteiras territoriais: controvérsias entre territorialidade quilombola e estruturas logísticas no Maranhão. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, e2230113, p. 1-32, 24 maio 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-1_st05.

 

 

 

Cíndia Brustolin

Professora Associada do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA/UFMA).
https://orcid.org/0000-0001-7388-6760
http://lattes.cnpq.br/6508300092890442
cindiabrustolin@gmail.com

 


Dayanne da Silva Santos

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA/UFMA). Mulher negra, poetisa e de terreiro.

https://orcid.org/0000-0002-6583-0705
http://lattes.cnpq.br/2394816629394228
lavignedayanne@gmail.com

 

 

 

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[1] Professora Associada do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA/UFMA).E-mail: cindiabrustolin@gmail.com.

[2] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA/UFMA). Mulher negra, poetisa e de terreiro. E-mail: lavignedayanne@gmail.com.

[3] Seu Libânio proferiu essa fala durante o 1o Encontro de Narrativas Quilombolas no Maranhão. Para visualizar a proposta do encontro, ver: https://doity.com.br/1-enaquima. Acesso em: 20 fev. 2022.

[4] O Artigo 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre os direitos territoriais das comunidades quilombolas. Na Carta Constitucional, consta o seguinte texto: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos” (Constituição da República Federativa do Brasil Federal, 1988).

[5] Bispo percebe a “influência do pensamento de elaboração circular dos povos contra colonizadores, quando a regulamentação do Artigo 68 do ADCT, em diálogo com outros artigos constitucionais, garante a inalienabilidade e a impenhorabilidade dos territórios quilombolas, exatamente porque essa é a única garantia da produção e da reprodução, material e imaterial, dos modos de vida ali existentes” (2015, p. 92).

[6] Bispo (2015) trabalha exemplos da influência dos pensamentos monistas e politeístas. Contrapondo o jogo de futebol, mais próximo a uma lógica monista, e a capoeira, evidencia a lógica excludente do jogo de futebol, que parte de regras estáticas e predefinidas, colocadas hierarquicamente, em que algumas pessoas jogam, enquanto muitas assistem. Nessa situação, dificilmente alguém que esteja assistindo entrará no jogo. Na capoeira, diferentemente, muitas pessoas jogam e poucas assistem. Mesmo as que assistem poderão ser convidadas a jogar, independente de um domínio de regras e movimentos, a partir de uma lógica inclusiva que perpassa a Capoeira.

[7] Ver estudos: SÁ (2007); MORAES (2009); CASTRO (2009); SABOURIN; CARON (2009), ALMEIDA (2010, 2011).

[8] Projeto que não se consolidou posteriormente devido aos desdobramentos políticos no Mirad (ALMEIDA, 2011).

[9] Hoje a noção de “herança” é discutida por lideranças quilombolas na região, que falam de pagamento e de dívida. Sobre memórias de constituição de Santa Rosa dos Pretos, ver: LUCCHESI (2008); SANTOS (2019); SILVA (2019).

[10] O Decreto de 22 de junho de 2015, da Presidência da República, “declara de interesse social, para fins de desapropriação, os imóveis rurais abrangidos pelo território quilombola de Santa Rosa dos Pretos, localização no município de Itapecuru Mirim, estado do Maranhão”. Disponível em: www.plantalto.gov.br.

[11] Nos aproximamos da discussão proposta por Albert de uma prática de participação observante, que envolve o ativismo em relação aos conflitos, como condição importante dos trabalhos, e as possibilidades de problematização e reflexão, num cenário de envolvimento de longo prazo num “espaço social total de redes e discursos emaranhados, que integra o campo local de relações interétnicas à esfera global das relações entre sociedades” (ALBERT, 2014, p. 136).Integramos como pesquisadoras o Grupo de Estudos, Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (Gedmma-UFMA), que tem desenvolvido trabalhos de pesquisa e extensão com os povos e as comunidades tradicionais no Maranhão, e acompanhado ativamente as lutas empreendidas.

 

[12] A Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais, número 169, da Organização Internacional do Trabalho, é um tratado internacional aprovado em 1989 em Genebra e dispõe sobre “os direitos de povos indígenas e tribais dos Estados-membros em que vivem e as responsabilidades dos governos de proteger esses direitos”. O Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT, por meio do Decreto Legislativo no 143 de 2002, que entrou em vigência em julho de 2003, passando a normativa internacional a compor o ordenamento jurídico nacional, devendo o estado brasileiro assegurar seu cumprimento. Disponível em: www.ilo.org. Acesso em: 29 mar. 2022.

[13] Trecho decisão, Justiça Federal, Processo: 1024159-16.2019.4.01.3700.

[14] Trecho decisão, Justiça Federal, Processo: 1024159-16.2019.4.01.3700.

[15] Trecho decisão, Justiça Federal, Processo: 1024159-16.2019.4.01.3700.

[16] A ponderação de interesses é um instrumento jurídico acionado na esfera judicial para dirimir conflitos que envolvam normas de direitos fundamentais e/ou normas constitucionais. Tem como objetivo central, nas situações de conflitos em que as posições distintas dos atores conflitantes têm amparo constitucional, buscar um encaminhamento para o litígio que garanta ao máximo a proteção dos direitos e princípios em jogo nas disputas (CRISTÓVAM, 2017).

[17] Trecho decisão, Justiça Federal, Processo: 1024159-16.2019.4.01.3700.

 [18] Transcrição de fala de Carlos Brandão, governador em exercício no Maranhão, 2019. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/live/?v=718675701984546&ref=watch_permalink. Acesso em: 20 ago. 2021.

[19] Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/transito-e-transportes/2020/10/br-135-no-maranhao-passa-por-obras-de-duplicacao-e-restauracao. Acesso em: 26 ago. 2021.

[20] O acrônimo Matopiba refere-se às siglas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Trata-se de uma região de Cerrado que engloba áreas dos estados mencionados e que foi constituída como uma importante área de expansão da fronteira agrícola.

[21] Disponível em: https://www.ppi.gov.br/br-135-316-ma. Acesso em: 7 nov. 2020.

[22] ACP 0021337- 52.2011.4.01.3700.

[23] IC 1.19.000.001691/2007-16 e IC 1.19.000.001476/2010-1.

[24] ACP 0021337- 52.2011.4.01.3700.

[25]O EIA/Rima é exigido para empreendimentos de “significativa degradação do meio ambiente”, conforme redação dada pela Constituição Federal de 1988, art. 225, p. 1, IV.  Por isso, a disputa na classificação em empreendimento de pequeno ou de grande porte acaba sendo definidora das exigências de documentos no processo de licenciamento ambiental. O EIA/Rima é disciplinado pela Lei no 6.938/1981, pelo Decreto no 99.274/1990, pela Resolução do Conama no 1/1986, pela Constituição Federal de 1988 e por legislações específicas para cada empreendimento potencialmente poluidor.

[26] Em 2009, na análise do confronto entre forças do estado e os AwajunWampi, De La Cadena (2018) conta que Santiago Manuín terminou o pronunciamento declarando sua inocência. Se, por um lado, caberia perguntar porque seria um crime defender o território ancestral dos AwajunWampi contra um Estado usurpador? Por outro, argumenta que desde o princípio do conflito havia um dissenso que “não encontraria resolução dentro da lei – mesmo em sua versão mais justa – pois excede seu domínio”.

[27] Referência ao documentário produzido no contexto de luta:  1. Caravela à vista – os invasores não param de chegar – YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9fqulnuFHZ4. Acesso em: 20 fev. 2022.

[28] Um dos 20 quilombos que compõem o território de Santa Rosa dos Pretos.

 [29]Coletivo de jovens agroflorestais do território quilombola Santa Rosa dos Pretos. Disponível em: https://quilombolasagroflorestais.wordpress.com/. Acesso em: 20 fev. 2022.

[30] Disponível em: https://www.facebook.com/regasantarosa/. Acesso em: 20 fev. 2022.

[31] Disponível em: https://www.catarse.me/regasantarosadospretos?fbclid=IwAR0QghjnLyTYmZvp7fnt-kITEXXhrm_9qt3p122dqz-NdF9vy0DNtOCalIo. Acesso em: 20 fev. 2022.

[32] Disponível em: Campanha quer levar água potável à comunidade quilombola (https://catracalivre.com.br/),  https://catracalivre.com.br/cidadania/campanha-agua-potavel-comunidade-quilombola/?fbclid=IwAR0dBkUiPK_icyn6UeM_EzrMHrcUG0J36l9S3_9T3ISJz6O-cPeF3UNSBV4. Acesso em: 20 fev. 2022.

[33] Disponível em: https://consultapreviaquilombola.wordpress.com/.  Acesso em: 20 ago. 2021.

[34] Entrevista concedida em 2019 no vídeo Interfaces do Racismo: Racismo Ambiental – YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3IxobCS1n-k&t=182s. Acesso em: 20 jan. 2022.

[35] Questionamentos realizados a partir de similaridades e também de diferenças políticas e organizativas.