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v. 30, n. 1, janeiro a junho de 2022 (publicação contínua), e2230112

 

Seção Temática

Saberes, políticas e éticas da terra e do ambiente entre camponeses, quilombolas e povos tradicionais

 


Recebido: 07.10.2021   •   Aceito: 28.03.2022   •   Publicado: 24.05.2022

Artigo original / Revisão por pares cega / Acesso aberto

 

 

Resistências cotidianas em defesa do “bem viver”: o caso da comunidade Lapa, no sertão cearense

Everyday resistance in defense of "living well”: the case of the Lapa community, in Ceará’s badlands



orcid_id.png  Roberta de Castro Cunha [1]
orcid_id.png  Lia Pinheiro Barbosa [2]


DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-1_st04



Resumo: Tendo como contexto histórico o modelo de desenvolvimento imposto pelo capitalismo na América Latina e o caráter regulador do Estado, sobretudo das estratégias para a desterritorialização dos grupos camponeses na contemporaneidade, o artigo objetiva discutir as contradições que envolvem os conflitos socioterritoriais gerados pela construção de uma grande obra hídrica e as comunidades atingidas com esse empreendimento, e como tais comunidades resistiram a esse processo, tendo como subsídio de análise o caso empírico dos agricultores da comunidade Lapa, na luta pelo reconhecimento do território e enfrentamento das violações de direitos, decorrentes da instalação da barragem Figueiredo, no município de Potiretama, no estado do Ceará. Neste estudo, a teoria social latino-americana e a sociologia dos conflitos dialogam com os dados empíricos produzidos por meio de entrevistas e pesquisas bibliográfica e documental, realizadas no período compreendido entre os anos de 2018 e 2020. A pesquisa evidenciou as formas de resistências dos agricultores da Lapa, como a organização coletiva, o acionamento de identidades coletivas, as ocupações, as mobilizações sociais e a manutenção do modo de vida tradicional, concluindo que existe na condição camponesa grupos que resistem e lutam no campo contra a falácia do “viver melhor” em defesa do “bem viver”.

Palavras-chave: barragens; desterritorialização; resistências camponesas.

 

Abstract: This article discusses contradictions involving social and territorial conflicts generated by a large-scale public water project, the communities affected by this project, and how they resisted this process, considering the historical context involving the development model imposed by capitalism in Latin America and government regulation, especially contemporary strategies to deterritorialize peasant groups. We examine the struggle by farmers in the Lapa community for the recognition of their territory and against violations of their rights after the construction of the Figueiredo dam in Potiretama, Ceará, Brazil. In our analysis, Latin American social theory and the sociology of conflicts dialog with empirical data obtained from interviews and bibliographic/documentary research conducted in 2018-2020. The farmers in Lapa were seen to utilize various forms of resistance: collective organization, activation of collective identities, occupations, social mobilizations, and maintenance of the traditional way of life. We conclude that the peasantry includes groups that resist and fight in the countryside against the fallacy of “a better life” in defense of “living well”.

Keywords: dams; deterritorialization; peasant resistances.

 

 

 

Introdução

No Ceará, os governos desenvolvimentistas assumiram a retórica de que a construção de barragens era a solução para a crise hídrica do estado. Entretanto, a maioria das grandes obras não atingiu os objetivos propostos, ao contrário, os cursos dos rios foram alterados e as comunidades deslocadas compulsoriamente não tiveram efetivados direitos humanos fundamentais, coadunando com a afirmação de Buriti e Barbosa (2018) de que as políticas públicas desenvolvidas ao longo de um século de secas não foram eficientes para a resolução do problema da seca, sequer no seu aspecto hidráulico, pois não se construíram [as políticas] de forma compartilhada e participativa, não observaram a diversidade de atores envolvidos e a complexidade dos problemas socioambientais.

O estudo de Buriti e Barbosa (2018) faz uma crítica às políticas públicas desenvolvidas para o combate à seca. Para os autores, tais políticas, ao longo de um século, consideraram a seca apenas em seu aspecto hidráulico, ou seja, na intenção de “promover o aproveitamento econômico das águas dos açudes, [...], visando valorizar o Nordeste para integrá-lo na dinâmica do ‘progresso’ nacional” (BURITI; BARBOSA, 2018, p. 25).

Os autores chamam a atenção para o fato de que na região semiárida “o caráter ainda oligárquico do Brasil, forjado por alianças entre proprietários rurais e industriais urbanos, bem como o comportamento dos poderosos no interior da região podem dificultar a participação ativa da sociedade civil” (BURITI; BARBOSA, 2018, p. 71). Tal realidade é prática no Ceará, pois há predomínio da influência de atores sociais que representam as forças hegemônicas na definição dos projetos, ao passo que as decisões são tomadas sem a participação popular, assim como os projetos são desenvolvidos sem consulta prévia à população impactada.

Isto demonstra que na construção de barragens há disputa do estado e do capital pelo território, pois “enquanto as empresas visam ao território com interesses econômicos, as comunidades residentes veem nele um espaço de sustentabilidade e sobrevivência” (BENINCÁ, 2011, p. 26). Dessa disputa decorrem os conflitos socioterritoriais, acirrados com as alterações das configurações territoriais, quando da implementação de grandes barragens e outros projetos de irrigação.

No Ceará, podemos citar as disputas territoriais nos casos das barragens do Castanhão e do Figueiredo, bem como dos perímetros irrigados de Apodi e Tabuleiro de Russas. No Castanhão, famílias foram excluídas dos espaços de participação para a definição dos novos reassentamentos. No Figueiredo, os reassentamentos não foram planejados, as famílias ficaram sem água e sem terra para cultivo. Em Apodi, a luta dos agricultores no acampamento Zé Maria do Tomé, pelo direito à terra e realização da Reforma Agrária, é constantemente ameaçada por ações de reintegração de posse promovidas pelo Departamento Nacional de Obras Contra às Secas (DNOCS) e, em Tabuleiro de Russas, as comunidades reassentadas ainda aguardam o desfecho de um processo judicial para que possam ter a concessão de uso da terra, a efetivação de um plano de exploração agrícola e a definição da área de reserva legal para apicultura.

Temos nos quatro exemplos, comunidades excluídas do desenvolvimento proposto nos respectivos projetos hídricos, ou seja, famílias atingidas que lutam[3] e resistem contra reassentamentos indignos e em defesa da reforma agrária, da agroecologia, da terra de trabalho e do bem viver dos camponeses.

Os conflitos no e pelo território podem ser considerados um fator propulsor da mobilização coletiva. Na prática, as comunidades lutam para não serem expulsas dos seus territórios e “o conflito é justamente o estranhamento, a compreensão e a denúncia das estruturas de segregação e de morte e a afirmação da vida” (CARDOSO, 2020, p. 167).

Nesse sentido, o artigo objetiva discutir as contradições que envolvem os conflitos socioterritoriais gerados pela construção de uma grande obra hídrica e as comunidades atingidas com esse empreendimento. Nessa direção, analisamos como tais comunidades resistiram a esse processo, tendo como subsídio de análise o caso empírico dos agricultores da comunidade Lapa, na luta pelo reconhecimento do território e enfrentamento das violações de direitos, decorrentes da instalação da barragem Figueiredo, no município de Potiretama, no estado do Ceará.

Para compreensão do fenômeno estudado, realizamos, num primeiro momento, pesquisa documental, que nos rendeu um levantamento de informações sobre a barragem Figueiredo e uma pesquisa bibliográfica, que nos possibilitou uma revisão de literatura sobre temas como atingidos por barragens, grandes projetos de investimentos, conflitos socioterritoriais, deslocamentos compulsórios, entre outros. As leituras e análises do material produzido nas pesquisas documental e bibliográfica foram aprofundadas ao longo dos anos 2018, 2019 e 2020.

Os documentos que compuseram as análises formuladas foram acessados através do sistema de informação da Defensoria Pública da União no Ceará (DPU/CE). Também foram utilizados como fontes de pesquisa matérias veiculadas em jornais de grande circulação no estado do Ceará, notícias e documentos produzidos por instituições da sociedade civil organizada, movimentos sociais e universidades, além de informações contidas no site institucional e biblioteca do DNOCS e outros órgãos governamentais.

O segundo momento compreendeu o trabalho de campo, iniciado em 2018 e aprofundado durante o ano de 2019, com algumas incidências no ano de 2020. No entanto, o contato com as lideranças da Lapa remonta a 2016, em virtude da atuação profissional de uma das pesquisadoras na DPU/CE, que oportunizou as primeiras observações diretas nas reuniões de negociações das lideranças comunitárias com os servidores do DNOCS e do Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), e nas visitas às localidades atingidas pelas obras da barragem.

Para compreendermos os fatos que ocorreram antes e durante a construção da barragem Figueiredo, realizamos conversas informais e entrevistas aprofundadas com as lideranças da comunidade Lapa e com representantes dos órgãos públicos que foram citados nos processos judiciais, que versam sobre as violações de direitos advindas da construção do empreendimento. Para compreendermos os fatos atuais, como a luta por acesso à área da vazante e efetivação de direitos, utilizamos recursos da Etnografia, como observação direta, observação participante e diário de campo, acompanhando as lideranças nas rodadas de negociações com os órgãos públicos, com registros para fins de pesquisa até o ano de 2020.

Na Lapa, priorizamos conversas e entrevistas aprofundadas com os sujeitos elencados pelas próprias lideranças como importantes na mobilização antes, durante e após a construção da barragem. Sendo assim, foram entrevistados: Bem-Viver-66,[4] primeiro presidente da associação comunitária, antes da construção da barragem; Resistência-97, filha de Bem-Viver-66, que ainda criança foi colocada debaixo da caçamba e obrigou a paralisação da obra; Território-68, irmão de Bem-Viver-66, que é conhecido pela comunidade como “conversador”, contador de causos e histórias sobre a comunidade e que fez parte da luta para ampliar o conceito de atingido por barragem; a jovem Luta-92, liderança formada pelo MAB durante o período de construção da barragem; Direito-80, atual tesoureiro e ex-presidente da associação comunitária, que esteve à frente das negociações no período de liberação das medidas compensatórias; e Força-69, atual presidente da associação comunitária e líder nas negociações para efetivação de direitos, na atualidade. No intuito de resguardarmos a identidade das lideranças, seguimos a sugestão de Luta-92, de identificá-las com palavras que ilustram as suas lutas.

Quanto à definição das instituições a serem ouvidas, optamos por aquelas que foram citadas nos documentos acostados nos processos judiciais e/ou foram apontadas pelas pessoas entrevistadas. Já a escolha dos interlocutores ocorreu por meio da indicação de cada instituição, mas observando as suas atuações e relações mediante as comunidades impactadas. Assim, entrevistamos: do DNOCS, a servidora que integrou a comissão de fiscalização do convênio firmado para execução do reassentamento das famílias e o diretor-geral, cuja gestão iniciou-se em 2016, findando em maio de 2019, por ter efetivado o primeiro ato precário de acesso à terra na área da vazante do açude; do MAB, o militante que compõe a coordenação nacional, por ter acompanhado o início das negociações para a construção da barragem Figueiredo; da Renap, o advogado que enviou à DPU/CE a denúncia de violação dos direitos dos atingidos; e da Cáritas Diocesana, entrevistamos o padre diretor-presidente e um membro da equipe técnica, ambos acompanharam as comunidades nas negociações com o DNOCS para acesso a terra, desde 2013, e deram apoio à ocupação da área pública, em 2016. Os relatos dos representantes contidos neste artigo serão identificados por seus cargos e instituições.

As entrevistas foram fundamentais para demonstrarmos os impactos dos conflitos socioterritoriais vivenciados pelos agricultores no território e suas formas de resistências contra o grande projeto dito de “desenvolvimento” – a barragem Figueiredo – que, na promessa do “viver melhor”, quase inviabilizou o “bem viver” da comunidade.

O termo “viver melhor” refere-se ao conceito tradicional e produtivista de progresso, disseminado pelo DNOCS nas comunidades que seriam atingidas pela construção da barragem Figueiredo. No caso da comunidade Lapa, o desenvolvimento pregado pela Autarquia Federal, como a oportunidade de trabalho para os agricultores, a construção de casas com banheiro, a instalação de equipamentos sociais, só seria possível se não houvesse resistência à construção da barragem, se a comunidade aceitasse a separação de seus integrantes, ou seja, um “viver melhor” à custa da própria existência da comunidade. Já o “bem viver”, como ressalta Acosta (2021, p. 24): “exige a dissolução do conceito tradicional de progresso em sua deriva produtivista e uma forma de sair da armadilha do ‘desenvolvimento’. Este será, em essência, um empreendimento político, que questiona permanentemente o poder”.

Assim, tendo como contexto histórico o modelo de desenvolvimento imposto pelo capitalismo na América Latina e o caráter regulador do Estado, sobretudo das estratégias para a desterritorialização dos grupos camponeses na contemporaneidade, o artigo inicia com uma breve explanação sobre a comunidade Lapa e a barragem Figueiredo, para que o leitor e a leitora possam conhecer o território disputado entre os agricultores e o DNOCS.

A narrativa textual segue em busca de demonstrar as reivindicações e lutas dos agricultores da Lapa e o modo de interlocução com os seus antagonistas, a saber: os “fazendeiros” e o poder do Estado, a partir das percepções dos sujeitos impactados pela obra pública, bem como das percepções de representantes de movimentos sociais e da sociedade civil organizada e da análise de documentos institucionais.

De que modo a barragem Figueiredo ameaçou a forma de organização da comunidade Lapa e como as lideranças resistiram para a defesa do território e efetivação de direitos, antes e após a barragem?

Em busca de respostas à indagação, o artigo aborda a realidade de escassez vivenciada pela comunidade Lapa, evidenciando a falácia do progresso contido no discurso do DNOCS, assim como aponta as formas de resistências dos agricultores da Lapa, antes e após a barragem, demonstrando que “existem nessa condição [camponesa] grupos que resistem no campo e que lutam para ter uma margem para a livre deliberação em suas práticas cotidianas – embora esta também possa ser uma liberdade subordinada pelo capital” (DUVAL; FERRANTE; BERGAMASCO, 2015, p. 10).

 

Comunidade Lapa: enlaces de tradição e contemporaneidade

A comunidade Lapa é descrita nos documentos oficiais como um sítio situado na localidade Canindezinho, na divisa entre os municípios de Potiretama e Iracema, no estado do Ceará. Atualmente, é composta por 50 (cinquenta) unidades habitacionais, com cerca de 150 (cento e cinquenta) integrantes e seu território abrange terras de Potiretama (local de moradia) e terras de Iracema, às margens do açude Figueiredo (local de trabalho/cultivo).

Por que o nome Lapa e qual o significado? Para Força-69, o nome da comunidade faz referência à lapinha[5] de Jesus, também conhecida popularmente como pastoril, sobretudo no Nordeste brasileiro. Para ela, a lapinha significa o lugar onde Jesus nasceu, representado por uma lapa ou gruta, e a comunidade, assim como a lapinha, é rodeada de pedras. Portanto, a característica do solo, seco e pedregoso, acrescido à crença religiosa no menino Jesus e no pastoril, são símbolos que marcam o nome da comunidade.

Ao serem questionados sobre o nome Lapa, os interlocutores que não integram a comunidade não souberam informar a motivação e o significado. O assessor técnico da Cáritas Diocesana arriscou uma resposta, trazendo à tona o significado contido no dicionário, qual seja: “grande pedra ou laje que forma um abrigo” (FERREIRA, 2008, p. 507). Ele associa o significado à característica do solo e às grandes pedras que existem no entorno: “lá na Lapa é cheio de pedras, a estrada que nos leva até lá é rodeada de pedras enormes e o solo do mesmo jeito” (Assessor Técnico, Cáritas).

A paisagem no caminho é repleta de grandes pedras e vegetação típica do semiárido nordestino, como o xique-xique.[6] Chamou-nos a atenção as fitas vermelhas amarradas à vegetação ao longo do caminho e fomos informadas que são utilizadas como orientação espacial e para demarcar o território.

Quanto aos lapistas, para as lideranças da comunidade entrevistadas, são as pessoas que nascem na comunidade ou pessoas que se tornam integrantes ao constituírem família com algum Moura, conforme o esclarecimento: “é assim: vai um filho meu lá pra São Paulo, casa lá com uma pessoa que não é Moura. Aí chega aqui, ela não é Moura, mas se torna e os filhos deles já vão gerando outro grupo de família Moura” (Força-69). O relato de Força-69 retrata a situação concreta do seu filho mais velho, que foi para São Paulo em busca de inserção no mercado formal de trabalho, mas ele ainda não retornou à comunidade com a nova família constituída.

Portanto, a partir da família “Moura”[7] a comunidade Lapa foi fundando os sistemas de casamento e herança, o inventário das terras, bens e animais (REGIS, 2010). Ainda hoje, a Lapa é composta por agricultores, integrantes da família “Moura” que, à época da construção da barragem Figueiredo, não aceitaram a dispersão de seus membros e recusaram-se a integrar a nova vila, a agrovila e os assentamentos rurais, devido ao sentimento de pertencimento ao lugar, à forma de organização comunitária e ao modo de vida tradicional.

A comunidade Lapa foi a única comunidade que resistiu ao deslocamento compulsório da forma determinada pelo DNOCS e pelo Idace. Eles, apesar de deslocados, permaneceram em espaço recuado entre a barragem e o que sobrou das terras herdadas de seus avós e bisavós, ocupadas sob um regime de uso comum e regras próprias.

O modo de vida tradicional dos agricultores pode ser ilustrado pela forma de controle dos recursos naturais e suas normas específicas, como os critérios de acesso ao território, o uso comum dos recursos e a unidade do grupo. A primeira norma estabelece que apenas lapistas e seus respectivos filhos podem fixar residência nas terras da Lapa, explica Força-69: “a minha filha casa e o esposo dela já vai fazer a casinha deles aqui, pra eles morarem. Tem que ser filho dos herdeiros” (Força-69). Para os filhos que formam família, a fixação de moradia passa pela aprovação das famílias que residem na comunidade, após assembleia na Associação Comunitária dos Moradores do Sítio Lapa e, em seguida, o espaço é definido e o terreno é doado pelos pais. Cada nova casa que se pretende construir na área da comunidade gera uma assembleia na associação comunitária. O exemplo do casamento foi citado por ser a forma mais comum de exigir a instalação de novo imóvel.

A endogamia, apesar de não ser reconhecida como norma, ainda é pregada pelos mais velhos e praticada por parte dos jovens, que se casam entre primos, perpetuando a noção de família pura – “Os Moura”. Isto também se relaciona com controle de recursos, que por meio de uniões intrafamiliares evita partilha com outras famílias. Dos seis agricultores entrevistados, apenas Luta-92 não casou com um primo – ela ainda é solteira – e questiona a continuidade da endogamia, conforme relatou:

quando eu era criança sempre me diziam: minha filha, quando você crescer, você casa com uma pessoa da família. No começo, eu pensei que era por causa de amor. Mas depois eu entendi que era uma questão religiosa, para permanecer uma única linhagem, com a mesma fisionomia e a questão financeira”. (Luta-92)

A argumentação da jovem liderança combate não a endogamia em si, mas o racismo e o machismo que circundam o controle dos recursos, que a endogamia pode perpetuar. O racismo é negado e muitas vezes travestido de “cuidado”, para não receber pessoas estranhas, desconhecidas, de fora, conforme identificam os relatos: “a pessoa vai casá com um de fora, e às vezes num presta, num dá certo. Casa com os de casa mesmo, que já conhece” (Bem-Viver-66); “a maioria não vai assumir: eu sou um preconceituoso. Mas passa de pai para filho. Você branca, tem que casar com uma pessoa da sua cor, senão, não vai dar certo. Eu já escutei e vivenciei isso” (Luta-92).

Já o machismo, na percepção da jovem liderança, é naturalizado, quase despercebido. “É uma coisa estrutural. Infelizmente na comunidade o machismo é muito grande. Muito grande mesmo. Muitas das mulheres acha que tem que obedecer ao homem. Casou, você tem que fazer o que ele quer” (Luta-92). Para ela, parece mais aceitável um rapaz lapista casar-se com uma moça de fora, do que uma moça lapista casar-se com um rapaz de fora, demonstrando uma cultura machista no que se refere ao controle da terra e dos recursos da natureza, isso porque não é admissível um homem de fora administrar os recursos da família, já que para a maioria dos integrantes da comunidade é natural que o homem exerça o controle.

Portanto, a endogamia pode ser considerada como um dos critérios culturais endógenos do território da Lapa, que conferem significados à comunidade e às famílias, “o qual detém uma autonomia com relação à apropriação e ao controle desse espaço social” (GRÜNEWALD, 2016, p. 15).

Quanto aos fazeres coletivos e tradicionais da comunidade, como a produção da farinha e do melaço de cana, hoje estão guardados nas memórias dos agricultores, já que as estruturas físicas das casas de farinha e de engenho não resistiram ao tempo. Isso porque deixaram de realizar os reparos necessários para a manutenção das estruturas, sob a orientação do DNOCS, de não efetuarem benfeitorias nos imóveis, a partir do ano de 2002, quando foi publicado o decreto de desapropriação para a construção da barragem. Portanto, a partir desse período, inicia-se a tentativa de apagamento dos rastros coletivos e tradicionais da comunidade.

Além da agricultura (culturas de ciclos curtos em vazantes), da produção de queijo e extração do leite, da produção da farinha e da rapadura, fazia parte da tradição comunitária a confecção de artesanato, feito com a palha e o talo da carnaúba (bolsas e chapéus); a produção de peças de barro/argila (potes e panelas), extraídos do solo da comunidade; a produção de sabão, feito com a semente da oiticica (sabão preto e cru); e a plantação e produção do fumo. Esses fazeres tradicionais passavam de pai para filho, que mantinham suas famílias com os recursos naturais disponíveis. É oportuno esclarecer que a agricultura em vazante, a produção de queijo e a extração do leite ainda são atividades desenvolvidas na comunidade. As demais eram desenvolvidas antes da construção da barragem, concomitantemente.

Algumas atividades exigiam habilidades e trabalhos de longa duração, sobretudo o artesanato e a produção do fumo. À medida que os mestres do fumo faleciam e/ou não tinham mais condições de desenvolver a atividade, assim como a diminuição da matéria-prima para os artesanatos, os agricultores eram compelidos a desenvolver novas estratégias de sobrevivência, sendo os fazeres tradicionais reinventados, como relatou Força-69: “eu mesma ainda fiz sabão, lavei muita roupa e louça com o sabão da oiticica. Fiz trançado de bolsa e de chapéu. O meu avô foi mestre do fumo, ele ensinava para as outras gerações. Os idosos foram morrendo e foi mudando a tradição” (Força-69). O relato ilustra que “as tradições são vividas socialmente, e, portanto, estão sempre abertas à transformação” (VALLE, 2005, p. 190).

Atualmente, por meio de posse coletiva da terra, de maneira perene, cada família da comunidade Lapa planta em seus quintais e cria os animais (gado bovino, bodes e cabras, porcos, galinhas, capotes). Os animais de maior porte (bovino e caprino) pastam livremente e bebem água no açude centenário da comunidade, construído no período de 1909 a 1919.

O açude da comunidade é de pequeno porte e a obra foi realizada pelos próprios agricultores, no intuito de captar e armazenar água. Segundo Força-69, eles tiravam o barro e a areia e colocavam nas paredes do açude com a ajuda do burro, em comboios, por isso os longos dez anos para a finalização. A construção de açudes é uma prática comumente utilizada no sertão semiárido, para enfrentar a estiagem e garantir água às pessoas e aos animais. Isso nos leva a refletir que a questão não incide na obra em si, já que pode trazer benefícios à população, mas a forma autoritária como, em geral, o Estado atua sobre os grupos mais pobres e vulneráveis, que, na maioria das vezes, são excluídos de possível beneficiamento.

Pois bem, a água para as famílias e para a plantação e criação advém de uma adutora, interligada a um poço profundo. A adutora e o poço foram adquiridos com verba captada pela associação comunitária, no contexto das negociações da barragem, por meio da apresentação de projeto à Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Ceará-SDA, destinado ao fortalecimento da agricultura familiar. A adutora, que fora prometida pelo DNOCS à comunidade, interligada ao açude Figueiredo, ainda não foi instalada, sob a justificativa de falta de recursos financeiros para a instalação e também por falta de água no açude. Há ainda cisternas instaladas em cada quintal, bem como fornecimento de água por meio de carros-pipa. Pequenos riachos e cacimbões naturais são de uso coletivo.

A terra sempre foi uma só, pertencente à coletividade, com delimitações separando os bens e animais de cada família. O território poderia ser bem maior, não fosse a comercialização da terra realizada pelas primeiras gerações que, em busca de melhores condições de vida, vendiam seu pedaço de chão, como é possível observar no relato:

os fazendeiros foram chegando, foram comprando daquele pessoal da comunidade, aqueles que tinham muitos filhos. Sempre [os fazendeiros] iam fazendo grilagem, iam fazendo aquelas cercas, para fazer as divisas, sempre colocando um palmo a dentro da terra dos outros e iam tomando devagarinho (Luta-92).

  As lideranças relataram que é difícil demonstrar, por meios documentais, que integrantes da família Moura foram os primeiros ocupantes das terras. No tocante aos documentos relativos aos modos de apropriação das terras propriamente ditos, os mais antigos que nos foram disponibilizados e que trazem o nome “Lapa” foram uma escritura particular de compra e venda, lavrada em cartório no ano de 1960, uma declaração de propriedade rural para efeito de inscrição em Imposto Territorial Rural (ITR), datada de 1963 e o registro da ata da Assembleia-Geral de criação e instalação da associação comunitária, datada de 1995. Tais documentos demonstram a existência da comunidade, com registros oficiais, mas não exprimem as significações do nome, o tempo real de permanência nas terras. No máximo, oferecem indícios do modo de apropriação e a forma de organização contemporâneos.

Os modos de apropriação fundiária fogem da lógica positivista/jurídica. Logo, não há um documento formal indicando objetivamente a propriedade ou posse da terra. As lideranças relataram que a propriedade era dos senhores Francisco José de Moura e Ananias José de Moura, mas eles não possuíam documentos comprobatórios, como salientado no relato:

os documentos daqui é Incra, ITR, essas coisas. Esses documento aí a gente tinha, eles diziam que não servia. Mas se os próprios cartório aqui não fazia o documento que eles exigia, como é que a gente ia ter? As vez já vinha dos avôs, dos bisavôs [Francisco José de Moura e Ananias José de Moura] da gente. Eles queriam que a gente tivesse escritura pública, não sei mais o quê, uma série de documento, que nem os cartório aqui sabia fazer, nem fazia (Bem-Viver-66). 

Aqui não nos cabe “interpretar a terra como as estatísticas cadastrais pedem que seja reconhecida” (ALMEIDA, 2005, p. 133), mas dar visibilidade ao modo de apropriação de terra comum utilizada pelos lapistas e suas tradições, evidenciando o sentimento de pertencimento ao lugar, como ilustra o relato: “do barro do chão foi construído as nossas casas, a nossa casa de engenho. É como se as pessoas de lá levantassem a história. Não é só um bem patrimonial, mas é uma coisa sentimental” (Luta-92). Tal forma de ocupação da terra é percebida por Luta-92 como terras tradicionalmente ocupadas, pois afirma que são terras de herdeiros, sem modo formal de partilha e que a comunidade possui regras próprias.

Almeida (2008) considera que as terras tradicionalmente ocupadas podem se expressar no uso comum de florestas, recursos hídricos, campos e pastagens; por meio de propriedade ou posse; de maneira perene ou temporária; através de diferentes atividades produtivas exercidas por unidades de trabalho familiar, como extrativismo, agricultura, pesca, caça, artesanato e pecuária (ALMEIDA, 2008).

Logo, nas formas de ocupação e usos da terra por parte dos agricultores da Lapa é possível perceber o que Almeida (2008) descreve sobre o uso comum, pois o controle, exercido com normas específicas, é “combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social” (ALMEIDA, 2008, p. 28).

A continuidade desse modo de vida foi ameaçada com a construção da barragem Figueiredo, uma vez que a proposta do reassentamento e as medidas compensatórias para os atingidos ignoravam o modo de vida tradicional dos agricultores da Lapa. A Autarquia Federal sequer realizou um estudo sobre o patrimônio histórico-cultural da comunidade, apesar da indicação de necessidade descrita no Estudo de Impacto Ambiental e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), bem como nas denúncias da sociedade civil organizada, que sinalizava: “a submersão da comunidade [...] deverá implicar a imersão da cultura, da identidade, do modus vivendi, de um povo que habita a região há mais de um século e meio” (REGIS, 2010, p. 1).

Em 2002, o governador do estado do Ceará publicou o Decreto no 26.579, de 22 de abril de 2002, declarando a terra como de utilidade pública para fins de desapropriação. O decreto considerava a necessidade de dar cumprimento à política de recursos hídricos da administração pública estadual daquele período e o discurso da administração era de benefícios à população, com a construção do açude Figueiredo. Mas que política de águas no Ceará era essa?

No final da década de 1980, o discurso de modernização e solução hídrica começou a ser propagado no Ceará e utilizado como contraposição às ações emergenciais e clientelistas. Segundo Monte, “a implantação de uma nova política de recursos hídricos passou a fazer parte do pensamento estratégico do grupo que assumiu o poder no estado do Ceará em 1987” (MONTE, 2008, p. 92). A autora complementa:

a partir daí, o governo estadual passou a implantar um ambicioso plano de oferta e disciplina do uso da água, tendo por base o argumento de que no passado não havia nenhuma preocupação, nem no estado nem na região, em se estabelecer uma estrutura capaz de ajudar a população das áreas rurais a lidar racionalmente com a escassez de água (MONTE, 2008, p. 92).   

Araújo e Sena (2006) esclarecem que a construção de barragens no Ceará adquiriu destaque, sobretudo midiático, nos governos de Tasso Jereissati (1987-1991, 1995-2002) e Ciro Gomes (1991-1994), que assumiram “a retórica da solução hidráulica no combate à seca e pelo espírito da modernização do estado” (ARAÚJO; SENA, 2006, p. 40).

No “governo das mudanças” – nome atribuído à gestão de Tasso Jereissati, no governo do estado do Ceará –, o aparato[8] da política de recursos hídricos começou a se fortalecer (década de 1990), mas “a área rural não se constituía em motivo de preocupação, dada a dispersão da população e a ausência de resistência e organização. Eles não estavam incluídos nos planos de modernidade” (MONTE, 2008, p. 98).  

O enfrentamento à situação de precariedade alimentar ocasionada pela seca e a exclusão social foram fatores propulsores para a organização dos agricultores da Lapa, por intermédio da associação comunitária, fundada em 1995. Nesse contexto, eles se estruturaram para ter acesso a programas assistenciais e políticas públicas voltados à agricultura familiar. Com a associação, a comunidade passou a se articular com sindicatos rurais e órgãos estatais. A organização ainda não enfrentava questões relacionadas à construção da barragem, e seus integrantes acionavam identidades atreladas a seus ofícios, como agricultores e artesãos.

Ainda que tivessem notícias da intenção de construção da barragem Figueiredo desde a década de 1970, foi nos anos 2000 que tiveram certeza, como relatou Força-69: “eu lembro que meu avô dizia que o mapeamento desse açude foi feito de avião, em 1973. Nessa época eu tinha uns quatro anos de idade. Aí quando foi em 2002, a notícia estourou, a gente começou a ouvir pelas rádios” (Força-69).

O militante do MAB ratificou o relato de Força-69, ao abordar sobre o modo como as barragens são definidas e divulgadas, afirmando que: “ela [a barragem] é uma definição autoritária, ela é uma definição particular de interesse do estado brasileiro e dos capitalistas que vão ganhar dinheiro com determinado empreendimento e a população quando fica sabendo: foi feito o anúncio” (Coordenador, MAB).

A barragem Figueiredo foi prevista pela Política de Recursos Hídricos do Estado do Ceará, que havia implantado o Programa de Gerenciamento e Integração dos Recursos Hídricos (Progerirh), como salientou Monte:

O Progerirh foi criado pelo Governo do Estado em parceria com o Banco Mundial com o objetivo de promover a gestão eficiente e integrada dos recursos hídricos do estado do Ceará, mediante a racionalização do uso de água, o aumento de sua oferta para usos múltiplos, o incentivo à adequada gestão do solo e da vegetação nas bacias hidrográficas tributárias, a minimização de sua erosão, a construção de açudes estratégicos, a transposição de bacias, a criação de agrovilas e a irrigação ao longo dos eixos de transferência, com a abertura de novas fronteiras agrícolas, compondo assim, a política de Recursos Hídricos do estado (MONTE, 2008, p. 94).

O discurso era de gestão integrada, de modernização e em busca de desenvolvimento, mas o governo “foi marcado pelo autoritarismo na realização de grandes obras públicas” (GONDIM, 2002 apud ARAÚJO; SENA, 2006, p. 40). No Ceará, há predomínio da influência das forças hegemônicas nas arenas onde o problema das grandes obras é tematizado, ao passo que as decisões são tomadas sem a participação popular, assim como os projetos são desenvolvidos sem consulta prévia à população impactada, como ocorreu na barragem Figueiredo e do Castanhão, conforme evidenciam os relatos:

em 2002, a gente ouvia pelo rádio sobre a construção da barragem. Em 2003, no meio do ano, começou a aparecer umas pessoas avaliando as casas, sem a gente conhecer, sem a gente saber. Chegavam na época e diziam: é esse valor ou nada. Ninguém sabia de nada (Força-69).

na barragem do Castanhão, a gente protestou algumas posturas do governo, porque o governo iniciou a obra, tinha alguns levantamentos técnicos, mas não tinha uma relação boa com a população. A gente até participava das ações, mas era uma luta limitada às instituições, o povo não participava de forma autêntica. (Coordenador, MAB)

A forma autêntica a que se refere o ativista do MAB é a possibilidade da participação popular com poder de fala e decisão, sem a intermediação de instituições, como a Igreja, por exemplo. Para ele, no início das tratativas da barragem do Castanhão, houve um pseudoprocesso de participação e destacou: “se você perguntar o governo do estado, se perguntar o governo federal, se perguntar as instituições que trabalhavam na época, a própria Igreja, vão dizer que foi o processo mais democrático que ocorreu no mundo” (Coordenador, MAB). Mas, em seus relatos, até a incidência do MAB, “na prática não tinha resistência de força suficiente e então a população tinha que aceitar” (Coordenador, MAB).

É interessante o seu relato sobre o “grupão’, assim se referiu ao grupo multiparticipativo do Castanhão, que para ele foi o grupo criado pelo governo do estado do Ceará para unir estrategicamente pessoas que questionavam sobre a barragem, mas não eram contrários; era um grupo limitado a políticos (vereadores, prefeitos), representantes de setores da Igreja e outras instituições. Mas o povo, os verdadeiros atingidos, não participava das reuniões, e quando participava era apenas como expectador. Para o ativista, os representantes do grupão “eram representantes com interesses ambíguos, atrasados e de coisas insuficientes. Não havia compreensão de forjar uma política de reassentamento, uma política de protagonismo das pessoas” (Coordenador, MAB). E isso só se deu com as resistências dos atingidos que, dentre as conquistas, conseguiram deslegitimar o grupão como representante.

A história do Castanhão merece ser registrada neste artigo, pois, como ressaltou o ativista, foi na luta contra as violações de direitos humanos na barragem do Castanhão que os atingidos se aproximaram do MAB, no ano de 1997, e, desde então, passaram a construir uma resistência “dos atingidos para os atingidos, com mais clareza e consciência política no Ceará” (Coordenador, MAB).

Para ele, a experiência do Castanhão foi importante para os atingidos da barragem Figueiredo, pois o governo levava uma ideia de participação democrática, de desenvolvimento, de estratégias bem-sucedidas. Mas eles, os militantes do MAB, conseguiram alertar as comunidades e tentaram forjar lideranças para construírem suas articulações políticas. Continuou ressaltando que “quando o DNOCS assumiu o Figueiredo, a gente estava na labuta do Castanhão, de 2004 a 2006. Quando começamos a fazer as visitas lá, o governo estava com uma campanha muito forte em campo” (Coordenador, MAB).

As lideranças da Lapa também consideram a experiência dos atingidos pelo Castanhão e as formações do MAB fatores preponderantes para a construção da participação autêntica na região do Figueiredo. Reconhecem [a participação autêntica] como sendo um processo iniciado por meio da mobilização e articulação dos movimentos sociais, especificamente o MAB, como é possível identificar no relato de Bem Viver-66: “no início, o MAB já andava por aqui. Às vez vinha equipe de quatro, de cinco, avisando a gente, dizendo como foi no Castanhão, que o Denoc [referindo-se ao DNOCS] não era boa coisa, que nós se organizasse com todas as famílias” (Bem-Viver-66). Sua fala foi ratificada no relato da jovem liderança:

quando surgiram os rumores que a barragem iria ser implantada na nossa região, o MAB já estava constituído e trazia a experiência do Castanhão pra nossa comunidade. Primeiramente, eles entraram em contato com as lideranças, começaram a explicar o quê que poderia vir a acontecer e começaram a organizar as bases, começaram a ter reuniões, começaram a ter formações, articulações políticas para que o povo se conscientizasse e não fosse tão enganado. (Luta-92)

Disputando com as forças hegemônicas, como o governo, os políticos locais, os meios de comunicação, o coordenador do MAB considera que o Movimento conseguiu ter incidência nas comunidades atingidas pela barragem Figueiredo, como destacou: “vários deles ali começaram a participar do processo de formação do MAB. Chegamos a constituir um grupo bom de jovens, com lideranças, mesclando mais velhos, mais jovens e intermediários, para começar a preparar as lutas” (Coordenador, MAB).

Com as formações políticas dos jovens e das mulheres, as construções de pautas coletivas, a organização e a mobilização populares, as lideranças puderam perceber a invisibilidade da comunidade Lapa diante das medidas adotadas pelos órgãos públicos, bem como que as violações de direitos humanos no Castanhão se repetiam no Figueiredo. Perceberam, também, que ali estava formada uma disputa, com os órgãos públicos, as empreiteiras, os políticos, os fazendeiros e, até mesmo, com pessoas das próprias comunidades atingidas, que foram cooptadas pelo DNOCS, como bem destacou o militante do MAB:

se tem uma coisa que ele faz com profissionalismo [referindo-se ao DNOCS] junto com o governo do Estado, isso faz parte da estratégia deles, eles vão fazendo o processo de cooptação das lideranças e elas passam a ter um vínculo. Eu não quero colocar essa questão aqui, mas a liderança de uma das comunidades foi cooptada e sua família tinha maior poder local e graças a ele o governo conseguiu avançar muito. [...] E não é uma culpa dele, é um processo onde a sociedade é disputada e a nossa lógica ou o nosso método foi disputado. Foi disputado pelo governo e foi disputado localmente. (Coordenador, MAB)

O militante continuou relatando que no Figueiredo, assim como no Castanhão e em outras barragens, os órgãos buscam “fortalecer a lógica do individualismo, comunidade a comunidade, pessoa a pessoa e tenta jogar sempre todos contra o MAB. Faz parte da luta de classes” (Coordenador, MAB). Para ele, o intuito é de fragilizar ou destruir a luta de caráter coletivo e deslegitimar os movimentos sociais.

As lideranças relataram que existiam integrantes da própria comunidade, aliados ao DNOCS, que tentaram desarticular ou desestimular a luta por direitos, como foi possível identificar no relato: “As poucas pessoas da comunidade que tinham conhecimento, algumas ficaram do lado do DNOCS. Eram filhos de atingidos de dentro da comunidade. Já assistiu Avatar? É a mesma coisa” (Luta-92).

No filme Avatar,[9] alguns exploradores adentram o território dos Na’vi no corpo de um avatar, como se fossem nativos, mas com o objetivo de dominação. Daí a relação que Luta-92 fez entre a multinacional que invadiu Pandora e o DNOCS, que cooptou pessoas da própria comunidade, como relatou: “Eles [referindo-se aos representantes do DNOCS] pegam pessoas do território e levam para trabalhar pra eles. É tanto que teve um período que a comunidade se dividiu, nossas reuniões estavam sendo feitas escondidas, praticamente” (Luta-92). Com esse relato, a intenção da liderança era pontuar a importância da organização coletiva para instituir formas de resistências em defesa da comunidade, combatendo cotidianamente “avatares” desarticuladores da defesa do “bem viver”.

A estratégia dos órgãos públicos, relatada pelo militante do MAB como a lógica do individualismo, também foi percebida por Bem-Viver-66, como é possível perceber em seu relato: “o Denoc [referindo-se ao DNOCS] amparava quem não tinha amparo e desamparava quem tava amparado. Eles criava briga das comunidade e não tinha nada pra Lapa. Eles montaram, fizeram as montagem de fotos dizendo que era aqui na Lapa”. Bem-Viver-66 estava se referindo às pessoas que eram beneficiadas com casas e indenizações pelo DNOCS sem terem direitos, na sua concepção, bem como o modo de agir da Autarquia Federal que objetivava a divisão das três comunidades atingidas e a invisibilidade da comunidade Lapa.

Portanto, a partir do decreto de desapropriação, no ano de 2002, para garantir a construção da barragem Figueiredo, o DNOCS disputou o território da comunidade Lapa, alegando o fim das secas e o “viver melhor” da comunidade, ainda que sua cultura, a identidade de seus integrantes e os laços de solidariedade fossem destruídos com a separação das famílias e o deslocamento para a agrovila.

O DNOCS pretendia remanejar apenas as famílias da Lapa que residiam na área abrangida pela poligonal da barragem, ou seja, dividir literalmente a comunidade. Com o deslocamento compulsório, da forma (não) planejada pela Autarquia Federal, alguns integrantes da Lapa permaneceriam na parte não inundada e outra parte seria deslocada para a agrovila, no município de Iracema, colocando em jogo o sentimento de pertencimento ao lugar, a sociabilidade das famílias e o “bem viver” da comunidade.

O sentimento de pertencimento ao lugar, herdado de seus antepassados, emanava da crença de terem sido os primeiros habitantes da região, que desbravaram as terras e construíram as moradias com a força de seus braços e com o barro do próprio chão. A sociabilidade das famílias, da família Moura especificamente, está associada a suas trocas de favores, seus códigos, os cuidados de uns com os outros. E o “bem viver” da comunidade, expressado pelo uso comum da terra, o pasto livre dos animais, o plantio coletivo na área de vazante do açude, a divisão de tarefas da agricultura familiar, sem exploração da força de trabalho de terceiros. O cultivo e demais atividades, como a pesca e a extração do leite, para consumo próprio, trocas e venda, de modo a garantir o essencial à dignidade humana, sem o objetivo de acumulação.

A servidora do DNOCS relatou que a intenção era reunir as três comunidades atingidas – Vila São José dos Famas, Boa Esperança e Lapa – na agrovila, com moradias, locais de cultivo e equipamentos sociais que pudessem atender às famílias. Mas, segundo a servidora, “bateram o pé [referindo-se ao grupo da Lapa] e não quiseram sair de seu lugar” (Servidora, DNOCS).

Parecia incompreensível, aos olhos da servidora, haver resistência das famílias em saírem de suas casas com estrutura física danificada, como destacou: “pra quem tinha uma casa na Lapa, pra quem tinha uma casa assim [e mostrava as fotos do cadastro do DNOCS], pra quem tinha uma casa como essa, sem reboco” (Servidora, DNOCS). Entretanto, como destacou Resistência-97: “a gente queria ter casa com banheiro, rebocada, mas a gente queria a nossa comunidade reunida”.

Oliveira chama a atenção para o fato de que “desde o final do século XX, no Ceará, o conflito se move, dentre outras razões, pela questão de acesso e com relação às utilizações na forma de água potável, recurso agrícola, industrial, entre outras formas produtoras de conflito” (OLIVEIRA, 2010, p. 33). Na comunidade Lapa, o que se observou no território foi o descompasso entre o progresso prometido e a realidade das famílias atingidas, que agravou a condição de pauperização e passaram a viver com uma realidade da escassez, inclusive de água.

 

Barragem Figueiredo: o discurso do progresso e a realidade da escassez

A barragem Figueiredo é um empreendimento do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), que foi justificado pelos governos dos estados do Ceará e Federal como sendo necessário para o desenvolvimento regional e a solução dos problemas hídricos de uma parte do sertão cearense, especificamente a microrregião do médio Jaguaribe, no interior da mesorregião Jaguaribe, a leste da capital estadual.

De acordo com o DNOCS, a barragem Figueiredo é a quinta maior barragem do estado, sendo a área da bacia hidrográfica correspondente a 1.621,00 km² e a área da bacia hidráulica equivalente a 4.986,00 hectares. O empreendimento, com o custo da obra no valor de 80 milhões de reais e de 120 milhões de reais para o desmatamento e reassentamentos, estimava segurança hídrica para o estado do Ceará, em complementação ao canal da integração, com a transposição do rio São Francisco e a barragem do Castanhão.

A bacia hidráulica da barragem Figueiredo, projetada para acumular 520 milhões de metros cúbicos de água, abrange os municípios de Alto Santo, Iracema e Potiretama, e foi prospectada tendo como objetivo “o controle de cheias no baixo Jaguaribe, o abastecimento de residências, a irrigação para produção agrícola, a piscicultura e a perenização de trecho do rio Figueiredo” (BRASIL, 2012, s/n).

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apontou como objetivo da barragem: “servir para usos múltiplos, trazendo benefícios a pelo menos seis diferentes setores” (COBA; VBA, 2003, p. 13), e detalhou seis importantes usos: 1) abastecimento de água para consumo humano dos núcleos urbanos de Alto Santo, Iracema, Potiretama, Pereiro e Ererê e da população ribeirinha de jusante; 2) atendimento da demanda hídrica das indústrias difusas dos municípios citados; 3) desenvolvimento hidroagrícola, com irrigação intensiva nas regiões da Chapada do Anastácio e baixo Jaguaribe; 4) controle de enchentes do baixo Jaguaribe; 5) desenvolvimento da pesca; e 6) desenvolvimento de atividades associadas ao turismo (COBA; VBA, 2003).

Os usos múltiplos do açude Figueiredo, descritos no EIA/Rima, não foram concretizados, pois o açude nunca assumiu a capacidade de água necessária para abastecimento dos núcleos urbanos, por exemplo. No projeto de aproveitamento do açude Figueiredo é expresso: “A posição estratégica do Açude Figueiredo em relação à Chapada do Apodi e à região de Tabuleiro do Norte poderá favorecer a irrigação da zona da Chapada do Atanásio, abastecer comunidades na área produtiva da Caatinga Grande e perenizar sistemas lacustres da região do Sopé da Chapada” (DNOCS, 2011, p. 1). Logo, é possível perceber que a intenção de beneficiamento exclui as comunidades do entorno, que do acesso livre ao rio Figueredo, passaram a ter um acesso controlado às águas e às margens do açude.

Para as lideranças da Lapa, apesar do EIA/Rima descrever os diferentes usos do açude, o Estado sempre teve a intenção de expulsar as comunidades de suas terras para atender aos interesses empresariais, o que passamos a denominar de desterritorialização ou “o conjunto de medidas adotadas pelos interesses empresariais, vinculados aos agronegócios, para incorporar novas terras a seus empreendimentos econômicos” (ALMEIDA et al., 2010, p. 116). 

A desterritorialização é uma estratégia histórica da expropriação territorial de populações indígenas, camponesas, quilombolas, de povos tradicionais, entre outros, para a instauração das lógicas de reprodução da acumulação do capital. Conforme analisa Zavaleta (2009), a desterritorialização é expressão de um estado de separação inerente à homogeneização totalizadora do modelo capitalista. No caso ora analisado, esse estado de separação se revela na tentativa de expropriação dos meios de produção e reprodução da vida no território da Lapa decorrentes da implementação de uma barragem. 

De 2002 a 2008, do decreto de desapropriação ao início da construção da barragem, alguns atingidos passaram a indagar sobre os objetivos do empreendimento. Eles não se viam – e de fato não estavam – contemplados nos planos do DNOCS para terem acesso ao desenvolvimento proposto e perceberam que o açude atenderia principalmente aos interesses do agronegócio, uma vez que viam a priorização do projeto técnico e sequer tinham conhecimento do projeto de reassentamento das famílias. 

Entretanto, antes mesmo de terem a consciência de que ocorria em seus territórios o efeito da violência e da expropriação constituintes da incessante acumulação do capital (COMPOSTO; NAVARRO, 2014), se viram encobertos pelas águas da barragem, literalmente afogados, e se posicionaram contrários ao empreendimento.

Antes, a barragem era bem vista, criou-se expectativas positivas com a promessa do fim das secas, da água em abundância nas torneiras de casa. Mas qual foi a surpresa dos atingidos quando souberam do fechamento da calha da barragem, no ano de 2008, sem as casas dos reassentamentos estarem concluídas.

Assim, as formas de resistências dos agricultores da comunidade Lapa começaram a ser instituídas contra o discurso do progresso, pregado pelo DNOCS, e a realidade da escassez, vivenciada pelos agricultores, conforme identificamos nos itens seguintes.

 

Antes da barragem: ocupar e resistir para existir

Os agricultores relataram que quando as máquinas se instalaram no canteiro de obras, não tinham conhecimento acerca da regularização fundiária da área, não tinham informações sobre as indenizações e a construção das casas, conforme o relato: “a construção começou e a gente não sabia das casas, das indenização; não chegava uma pessoa pra dar explicação” (Força-69).

A falta de transparência nas negociações das terras e nos projetos de reassentamento motivou os agricultores a realizarem um protesto no canteiro de obras, em 18 de agosto de 2010, onde permaneceram por dois dias e saíram com a promessa de que teriam reunião com o DNOCS, Idace e Incra na semana seguinte. A reunião não ocorreu e os agricultores ocuparam novamente o canteiro de obras da barragem, em 26 de agosto de 2010, por tempo indeterminado, até que suas reivindicações fossem atendidas.

Agricultores, militantes e simpatizantes da causa revezaram-se por 29 (vinte e nove) dias na ocupação, impedindo a construção da barragem, com o apoio de representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que ficaram responsáveis pela mobilização de outros parceiros (sindicatos, universidades, ONGs), discussões sobre as demandas das comunidades, contribuição na elaboração das pautas de reivindicações e articulação com os órgãos públicos, bem como apoio de representantes da Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte que, além das articulações, contribuiu no apoio logístico necessário à ocupação, como transporte, alimentação, reprodução de material gráfico, entre outros suprimentos.

É interessante registrar que, no caso da barragem Figueiredo, a Igreja Católica é considerada uma aliada pelas lideranças entrevistadas, sobretudo pela postura combativa do padre-diretor da Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte, que foi atingido pela barragem do Castanhão e sofreu influência das Comunidades Eclesiais de Base em sua formação.

Segundo Bem-Viver-66, a organização da comunidade e a divisão de tarefas foram importantes para conseguirem ocupar e permanecer até que garantissem alguma compensação aos agricultores, e relatou: “queriam trazer o Lula [presidente da República àquela época] pra inaugurar a barragem, mas a gente começou a se organizar, a correr atrás e ocupamos o canteiro. A gente segurou até que fizessem algo por nós”. 

A ocupação, que culminou com a paralisação da obra no ano de 2010, pode ser considerada como o primeiro ato público de resistência à construção da barragem e de maior força, pois demonstrou a capacidade de organização política das três comunidades atingidas, refletindo a importância das mobilizações sociais e articulações em redes (GOHN, 2011). Conforme relata Bem-Viver-66: “na ocupação, a gente percebeu nossa força; a gente viu que tinha gente do nosso lado, que tinha instituição preocupada com nós. Tinha o MAB, tinha a Cáritas, tinha os sindicatos, tinha gente”. E complementou: “era o enfrentamento das forças. A gente tinha a força das famílias e eles a força do dinheiro”.

A partir da ocupação, os agricultores conseguiram pautar suas reivindicações nos órgãos públicos e tiveram poder de barganha em disputas administrativas, com a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), no âmbito do Ministério Público Federal (MPF), e disputas jurídicas, com a interposição de Ações Civis Públicas (ACPs), por intermédio da DPU/CE, pleiteando a paralisação da obra e, posteriormente, danos morais coletivos. 

Da petição inicial da DPU/CE às decisões proferidas pelo Judiciário, estiveram em disputa os sentidos em torno do direito da comunidade Lapa como uma comunidade tradicional. A Defensoria buscou demonstrar a violação de direitos ocasionada pela obra da barragem Figueiredo à comunidade Lapa, ameaçando o seu desaparecimento e, portanto, a sua cultura, a identidade de seus integrantes e a sua territorialidade. O processo da DPU não abrangeu apenas a comunidade Lapa, mas as três comunidades impactadas. Entretanto, foi a caracterização da Lapa como comunidade tradicional, após a elaboração do parecer do historiador João Rameres Regis (2010), que ensejou a denúncia da Renap à DPU/CE e que evidenciou a irregularidade das obras, pela ausência do estudo sobre o patrimônio histórico-cultural da comunidade, garantindo a paralisação das obras por força de liminar, no ano de 2010.

Atendo-se à ampliação do conceito de povos e comunidades tradicionais, advinda do Decreto no 6.040/2007,[10] a DPU/CE buscava demonstrar que os agricultores da comunidade Lapa já se reconheciam como sujeitos coletivos organizados em associação comunitária, com regras próprias e uso comum da terra; que assumiam a identidade de “atingidos” pela barragem Figueiredo; e lutavam pela manutenção de seu território.

 

Depois da barragem: resistências cotidianas para a efetivação de direitos

A obra impactou diretamente três comunidades rurais do Ceará, a saber: Vila São José dos Famas, pertencente ao distrito São José dos Famas, no município de Iracema, instituído por meio da Lei Municipal no 6.877, de 13 de dezembro de 1963; Boa Esperança, um assentamento rural regularizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, mediante a Portaria Incra/SR-02 no 0064 de 22 de outubro de 1997, localizado no município de Potiretama; e Comunidade Lapa, já caracterizada em item específico.

 Além das três comunidades de agricultores, cerca de 24 (vinte e quatro) fazendas de grande porte foram atingidas. Tais fazendas são definidas pelo DNOCS como as que tiveram suas terras avaliadas com valores acima de cem mil reais, conforme especificação contida no Edital no 002/2007, publicado para normatizar a desapropriação de terras, benfeitorias e coberturas vegetais, inseridas em área rural, abrangidas pela construção do açude público Figueiredo.

Entretanto, os conflitos e antagonismos dos grupos foram diferenciados. Enquanto os “fazendeiros”[11] lutavam pela ampliação de suas indenizações, já consideradas de alto valor por parte do DNOCS, os agricultores da Vila São José dos Famas e Boa Esperança lutavam por suas casas e indenizações, no novo espaço destinado ao reassentamento das famílias. Já os agricultores da Lapa, lutavam para permanecer em suas terras tradicionalmente ocupadas, bem como por água, energia elétrica e terra para cultivo, ilustrando que “cada grupo constrói socialmente seu território de uma maneira própria, a partir de conflitos específicos em face de antagonismos diferenciados” (ALMEIDA, 2008, p. 72).

Os relatos das lideranças da Lapa demonstram o orgulho de pertencer à comunidade, construída ao longo de gerações; demarcam a tradicionalidade, narrada como a diferença entre as demais comunidades da região do médio Jaguaribe; e ressaltam as suas lutas pela manutenção do território, deflagradas em contexto marcado por conflitos socioterritoriais, após a construção da barragem Figueiredo.

As lideranças entrevistadas narram que desde o anúncio da construção da barragem, no ano de 2002, até a finalização dos deslocamentos compulsórios, no ano de 2012, as disputas por terras na região se acirraram, e a primeira vitória, que é motivo de orgulho para eles, diante da pressão fundiária instalada, foi a permanência em suas “terras de herdeiros”, como salientou a presidente da associação: “a gente não podia sair daqui, das nossas terras, nossa herança, nossa raiz, nossas terras de herdeiros”. Eles optaram pela redução das terras e ficaram comprimidos às margens da barragem. Suas casas foram construídas na parte alta da poligonal, mas não foram deslocados para a agrovila.

O acionamento da categoria “terras de herdeiros”, por parte da presidente da associação comunitária, ocorreu de modo espontâneo, para ilustrar que são as terras de sua família, dos seus antepassados, sem uma formalidade no modo de partilha e mantidas sob uso comum. Entretanto, os relatos convergem para as concepções de terras tradicionalmente ocupadas e territorialidades específicas, que se afastam das noções de origem, de passado, de imemorialidade e agregam elementos identitários, correlação de forças com antagonistas e defesa de territorialidades de referência (ALMEIDA, 2008), como exprimem as descrições de Força-69: “nós nascemos agricultores, mas agora somos os agricultores atingidos pela barragem Figueiredo”; “tivemos que unir forças contra o DNOCS, o Idace e os fazendeiros, que queriam separar a gente e tirar as terras da gente”; “se a gente fosse separado e levado pra agrovila, era como se matasse a nossa comunidade, era como se a gente fosse morar debaixo de um viaduto”.

“A gente se organizou, lutou e mostrou a nossa força”, continuou relatando Força-69 para ilustrar que a organização dos agricultores da Lapa, fortalecida no conflito advindo da construção da barragem Figueiredo, deu visibilidade à comunidade, como ressaltou: “a nossa comunidade era conhecida pelas vilas vizinhas, mas não era muito conhecida pelos de fora. É tanto que na época que começou a construção da barragem, disseram que a comunidade Lapa não existia no mapa” (Força-69).

Segundo as lideranças entrevistadas, a comunidade Lapa não estava no mapa utilizado pelo DNOCS e era ignorada pelo órgão diante das ações compensatórias de indenização e reassentamento. Apenas no período da ocupação do canteiro de obras que a Lapa saiu da invisibilidade e as lideranças conseguiram pautar e garantir a permanência em suas terras de origem. Entretanto, não bastava ficarem encurralados às margens da barragem, era preciso garantir direitos fundamentais. 

Assim, em outubro de 2016, período em que o grupo se mobilizou para ter acesso à água, à energia elétrica e a terra para cultivo, quatro anos após a construção da barragem Figueiredo e finalização do deslocamento compulsório dos antigos habitantes da área, os agricultores da Lapa apresentaram as suas reivindicações e discutiram estratégias conjuntas de resolução das demandas, em reunião no DNOCS.

Como demandas, discutiam-se as pendências na execução do Convênio no 0001/2009, firmado entre DNOCS e Idace, para a regularização fundiária e o reassentamento das famílias na “região do Figueiredo”, como assim denominam os servidores da Autarquia Federal ao se referirem a toda extensão de terra abrangida pelo rio Figueiredo e contida na poligonal da barragem, envolvendo os municípios de Alto Santo, Iracema e Potiretama.

As lideranças reivindicavam ações para dirimir os conflitos socioterritoriais, pois os “fazendeiros” – como se denominavam os proprietários de grandes extensões de terras –, apesar de indenizados, cercaram a área pública e queriam arrendá-la, impedindo o uso por parte do grupo de pequenos agricultores; discussão sobre o uso das vazantes (terra produtiva), com assembleias locais e ações para acelerar a delimitação da área pública; ampliação da quantidade de carros-pipa (água potável), pois três carros semanalmente eram insuficientes às famílias, bem como instalação de uma adutora, cisternas e finalização de 800 metros de rede de energia elétrica, para atender todas as casas da Lapa.

Em 2016, o eldorado, pregado pelo DNOCS e esperado pela população impactada pela barragem Figueiredo, não havia se concretizado. As promessas de água em abundância não se cumpriram, quiçá foram amassados os carros-pipa, como assim prometeu o prefeito de Alto Santo. Segundo Bem-Viver-66, “o Adelmo [prefeito] disse que tinha lutado pra esse açude sair e que ia amassar todo carro-pipa”. Ao contrário, faltava água, luz, terra para cultivo e as condições de pauperização se ampliavam, inclusive pela falta de alimentação para as famílias e seus animais.

As reivindicações dos agricultores da comunidade Lapa, na luta por direitos fundamentais, estavam sendo caracterizadas pelo DNOCS como falta de paciência e terrorismo, como assim afirmou um dos procuradores jurídicos do órgão àquela época, numa nítida postura de criminalização dos movimentos sociais e naturalização da violação de direitos.

Naquele mesmo ano, 2016, os agricultores denunciavam os problemas causados pela barragem e como eles atingiam os grupos impactados, como a priorização do projeto técnico do grande empreendimento em detrimento da garantia dos direitos fundamentais das populações; o abandono das populações e as violações de direitos vivenciadas após a obra; o acirramento dos conflitos fundiários na região e a dificuldade de acesso à justiça por parte dos grupos de agricultores.

As denúncias dos agricultores convergiam para as leituras sociológicas e antropológicas que problematizam grandes projetos de desenvolvimento socioeconômico, que evidenciam que a construção de barragens é considerada, pelo Estado e pelos empreendedores, uma alternativa para geração de eletricidade e garantia de segurança hídrica às populações que vivenciam a falta de água e as privações em decorrência da ausência desse recurso natural. O discurso oficial é “de que elas [as barragens] são indispensáveis para acelerar o crescimento econômico e sustentar o desenvolvimento social” (BENINCÁ, 2011, p. 17).

Na contramão desse discurso, diferentes pesquisadores[12] têm mostrado que o desenvolvimento proposto por grandes obras, como as das barragens, não chega aos moradores das comunidades que se situam em seu entorno. Ao contrário, grandes obras frequentemente expulsam compulsoriamente as populações locais e violam direitos fundamentais, fenômeno entendido como “novas lógicas de expulsão” (SASSEN, 2016, p. 9), que geram violências múltiplas em decorrência da desterritorialização, que vão desde a perda do seu território como espaço de produção e reprodução da vida e da existência, até a desagregação do tecido social e o universo simbólico e patrimonial atrelado a essa sociabilidade. E no caso dos agricultores da Lapa a situação não foi diferente. Eles se viram usurpados do direito a terra, à moradia, ao trabalho e à renda.

Mais uma vez, se viram diante da necessidade de acionarem formas de resistências, caracterizadas através da organização coletiva, por meio da associação comunitária; do acionamento de identidades coletivas, como a de “atingidos por barragens”; das disputas por classificações, como “comunidade tradicional”; das ocupações, agora das áreas de vazantes do açude; das mobilizações sociais, com o acionamento de diversas instituições de justiça e defesa; e da manutenção do modo de vida tradicional, que lhes confere uma resistência cotidiana contra o modelo de desenvolvimento imposto pelo capitalismo.

O rio Figueiredo, antes da barragem, era utilizado para pesca. Após a construção da barragem, o uso deste manancial fluvial passou a ser controlado pelo DNOCS. A instalação do empreendimento também ocasionou a redução das terras produtivas, compelindo os agricultores a ocuparem a área da vazante da barragem para plantar por unidades de trabalho familiar. A ocupação é considerada por eles como uma “retomada” de suas terras tradicionalmente ocupadas.  

Em 2021, depois da organização e das ações coletivas dos agricultores, o DNOCS concluiu as formalidades para a concessão de uso da terra por parte de cada família. A Autarquia Federal, sob a justificativa de tratar-se de “agricultores familiares”, pertencentes a uma “comunidade tradicional”, conferiu-lhes o direito de plantar na área pública, ao passo que criou critérios de exclusão para outros grupos que eventualmente venham a ocupar a vazante. 

 

“Viver melhor” ou “bem viver”?

Atendo-nos ao processo histórico das estratégias do DNOCS e do Idace para a desterritorialização da comunidade Lapa, às contradições impostas pela lógica de desenvolvimento capitalista na região, aos conflitos vivenciados por diferentes grupos e às transformações sociais no território, procuramos evidenciar, neste artigo, a interação entre teoria e prática, conhecimento e ação, bem como demonstrar que toda ação é interessada e a verdade está sempre se produzindo, podendo ser ressignificada a partir da interação humana em busca da transformação da realidade.

A transformação da realidade da comunidade Lapa foi observada no trabalho de campo, que nos conferiu o cuidado de sempre estabelecer um diálogo entre os dados empíricos e as reflexões decorrentes da abordagem teórica. Isto nos levou a deixar de lado a tentativa de enquadrar a teoria à empiria e vice-versa, numa espécie de camisa de força que restringe as possibilidades teóricas da investigação ou reduz o potencial observador e descritivo da ação das pesquisadoras. Como alternativa, tentamos manter um exercício contínuo de sempre estabelecer discussões a partir do que o campo de pesquisa nos fazia perceber; isso se estendeu à definição das categorias descritivas e de análise.

A “tradição” da comunidade Lapa e os “conflitos socioterritoriais”, em virtude da construção da barragem Figueiredo, foram as primeiras categorias a serem identificadas nos relatos das lideranças comunitárias. A primeira, acionada no intuito de demarcar as diferenças entre as comunidades impactadas pela obra pública e os modos de apropriação da terra, como observamos no relato “o nosso grupo sempre foi diferenciado, é tanto que foi a tradição da nossa comunidade uma das questões para que permanecêssemos no território” (Luta-92). A segunda, ganha força nas narrativas sobre as lutas contra a barragem e as disputas por terras. A relação entre ambas – tradição e conflitos socioterritoriais – refletem os processos de territorialização vivenciados pelos agricultores após a construção da barragem.

A pesquisa de campo demonstrou que tal processo de territorialização foi resultante da capacidade das mobilizações dos agricultores em torno da identidade de “atingidos por barragens” e da nomeação da Lapa como “comunidade tradicional”, bem como das disputas que travaram com o DNOCS, o Idace e os “fazendeiros”, na luta por terra e por direitos.

Sendo assim, algumas categorias analíticas foram importantes para compreender o caso empírico em questão, como as noções de processos de territorialização, territorialidade específica, terras tradicionalmente ocupadas e unidades de mobilização, trabalhadas por Almeida (2008); a dimensão identitária construída em situação de conflito – que considera a identidade de um grupo como “uma categoria definida e construída, podendo emergir, desaparecer e ser substituída dependendo das novas situações sociais em que se encontrarem” (BARAÚNA, 2014, p. 41) –, a partir das concepções de Almeida (2008) e Baraúna (2014).

Almeida (2008) acredita que os processos de territorialização correspondem ao caráter dinâmico de apropriação dos recursos naturais e apresentam mobilizações em torno de uma política de identidades, com jogo de forças em face do Estado e das relações comunitárias em transformação, que ele caracteriza como a passagem de unidade afetiva para unidade política de mobilização, passagem de uma existência atomizada para uma existência coletiva (ALMEIDA, 2008).

Para além da noção de processo de territorialização, Almeida incorporou uma noção prática para nomear as delimitações físicas de determinadas unidades sociais, que ele denominou de territorialidades específicas, “entendidas como resultantes dos processos de territorialização, apresentando delimitações mais definitivas ou contingenciais, dependendo da correlação de força em cada situação social de antagonismo” (ALMEIDA, 2008, p. 51).

Como dito ao longo do artigo, a barragem Figueiredo gerou conflitos e antagonismos diferenciados para cada grupo atingido. A Lapa, por ter defendido suas terras tradicionalmente ocupadas, conseguiu manter parte de suas terras de pertencimento coletivo, com normas específicas, identidades coletivas e laços de solidariedade. Para Almeida, as terras tradicionalmente ocupadas “expressam uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais em suas relações com os recursos da natureza” (ALMEIDA, 2008, p. 25).

Quanto à classificação “comunidade tradicional”, esta passou a ser acionada pelo grupo da Lapa como forma de diferenciação entre os outros grupos atingidos pela barragem Figueiredo, como esclarece Carvalho (2016): “a tradição é acionada como elemento de luta. O modo de ser tradicional é utilizado para se contrapor à ação do antagonista, do ‘outro’ que quer ‘te destituir’” (CARVALHO, 2016, p. 51).

Segundo Almeida (2008), a Constituição Federal de 1988 e o Decreto no 6.040/2007 afastaram o significado da categoria “populações tradicionais” da “imemorialidade” e contrastaram criticamente as legislações agrárias coloniais. Para Almeida (2008), a tradição não se reduz à história, ao passado; não se reduz a laços primordiais e unidades afetivas; mas incorpora também identidades coletivas, que podem ser redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada (ALMEIDA, 2008). 

Quando fala que a tradição não se reduz à história, ao passado, Almeida quer chamar a atenção para o fato de que a tradição pode ser iniciada a qualquer tempo, sobretudo quando grupos são afetados por grandes empreendimentos e são compelidos a construir novas histórias, novos laços, novas unidades afetivas, em novo território. Isso porque nos ditames das instâncias jurídicas, para o reconhecimento de direitos, ainda associam a tradição tão somente à imemorialidade. A exemplo da tese do marco temporal.    

Durante e após a construção da barragem Figueiredo, as disputas por classificações alteraram drasticamente as identidades e o território do grupo da Lapa, compelindo seus integrantes a novas estratégias de identificação e reconhecimento, evidenciando que “a identidade se constitui a partir de como o agente se mobiliza e se sente, do uso que faz da identificação e não necessariamente de uma atividade que exerce ou obrigatoriamente de um marco territorial fixo” (BARAÚNA, 2014, p. 41).

No jogo das classificações, os agricultores da comunidade Lapa se autoidentificaram e foram reconhecidos como atingidos, mas não deixaram de acionar outras classificações imprescindíveis à visibilidade do grupo, para garantia de direitos e acesso às políticas públicas, como “agricultores familiares”, “assentados”, “vazanteiros”, ilustrando como as intervenções do Estado e outros agentes interferiram nas estratégias de identificação e reconhecimento do grupo, cujo dinamismo é “inerente às estruturas sociais, uma vez que tais estruturas não atuam sobre agentes passivos, mas sobre sujeitos ativos, capazes de modificá-las de acordo com seus interesse contextuais” (BARTOLOMÉ, 2006, p. 59).

Ser “lapista”, “atingido por barragem” e pertencente a uma “comunidade tradicional” são categorias de afirmação identitária que refletem as disputas por classificação no campo, ou seja, tratam-se de identidades acionadas como estratégias de luta e resistência ao deslocamento compulsório, compreendido “como parte de uma lógica integrada de produção de desigualdades na corrente conjuntura da acumulação do capital, seja do ponto de vista das migrações transnacionais, [..] remoção de populações de seus territórios ou tráfico humano” (FELDMAN-BIANCO, 2014, p. 11).

A ameaça de destruição da comunidade – que ocorreria com o deslocamento compulsório imposto pelo DNOCS, já que na proposta algumas famílias permaneceriam na parte não inundada e outras seriam reassentadas na agrovila – foi fator decisivo para fortalecer a organização e luta comunitária em defesa do território, percebido pelos agricultores como “território de vida, condição da própria existência do grupo” (HAESBAERT, 2020, p. 143).   

Na Lapa, o território também é compreendido como “um produto histórico de processos sociais e políticos” (LITTLE, 2002, p. 3) e está sempre em movimento, é dinâmico, representa a ação dos agentes sociais. Sendo assim, para análise das lutas dos agricultores da Lapa em defesa do território, dialogamos com o estudo de Haesbaert que aborda o território como categoria de análise, normativa e da prática (HAESBAERT, 2020).

Segundo Haesbaert (2020), a perspectiva latino-americana sobre o território é marcada pela pluralidade, envolvendo diversos sujeitos sociais, contrapondo-se à concepção exclusivista e universalizante eurocêntica, que estuda o território numa perspectiva de território estatal. Para o autor,

a realidade latino-americana valoriza tanto o território, não só como categoria de análise mas também como categoria normativa (nas políticas territoriais) e, sobretudo, como categoria da prática, principalmente enquanto ferramenta na mobilização e luta de diferentes movimentos sociais (HAESBAERT, 2020, p. 147).

Haesbaert problematiza e afirma que “num continente marcado por profunda exploração econômica, insegurança política, racismo e desigualdade social – com destaque para a concentração de terra – grupos subalternos, Estado e capitalistas desenham o tempo inteiro um complexo emaranhado de lutas no e pelo território” (HAESBAERT, 2020, p. 147).

A luta dos agricultores da Lapa no e pelo território pode ser compreendida como resistência cotidiana de um grupo em defesa da sobrevivência e contra a perspectiva de desenvolvimento que encara os recursos naturais (terra e água) como mercadorias e que passa por cima de grupos e organizações que ousem instituir “outra racionalidade intersubjetiva com seus territórios” (BARBOSA, 2019, p. 285). A autora chama a atenção para o fato de que “vemos erigir-se um paradigma epistêmico do campo latino-americano, que interpela o paradigma de desenvolvimento do capital transnacional” (BARBOSA, 2019, p. 285).

As lideranças da comunidade Lapa destacaram que não foram contra a construção da barragem Figueiredo propriamente, pois o açude poderia proporcionar fartura de água na região. Porém, foram contrárias ao modo como os órgãos públicos as trataram no período das obras e após o reassentamento das famílias. Os objetivos de caráter mercantil sequer foram atingidos, pois o reservatório nunca atingiu a capacidade máxima prevista, posto que no período de grande chuva (2010) a obra estava paralisada com discussões no âmbito judicial, após a organização comunitária. Mas as formas de resistências foram preponderantes para o enfrentamento das violações de direitos e para garantir a existência da comunidade Lapa.

Ainda segundo Barbosa (2020), existe uma luta permanente e histórica entre paradigmas capitalistas e não capitalistas, persistindo na modernidade “a existência de organização sociocultural não capitalistas baseadas em outras matrizes de pensamento” (BARBOSA, 2020, p. 108). Para ela, as epistemes próprias – aqui nos interessa as epistemes dos povos do campo – determinam as naturezas identitárias e políticas do projeto político que articulam, construindo “seu próprio conhecimento, resultante da sistematização, reflexão coletiva e da teorização sobre seus próprios exemplos e experiências, os quais permitem a produção de seus respectivos documentos e textos de estudo” (BARBOSA, 2019, p. 290).

A autora identifica quatro eixos de identidade política dos povos do campo, que caracteriza como a unidade da luta latino-americana articulada por tais povos, são eles: a reconfiguração da história e da memória no âmbito das lutas; a dimensão ontoepistêmica que sustenta as subjetividades políticas dos movimentos; a territorialidade; e a autonomia (BARBOSA, 2020).

Quanto ao primeiro eixo, Barbosa destaca que a concepção de história, tempo e memória dos povos do campo busca “retomar o passado com uma projeção do futuro que se combina com o presente do processo de resistência política” (BARBOSA, 2020, p. 113). No caso dos agricultores da comunidade Lapa, o processo de reconstrução das histórias e memórias foi preponderante para demarcar sua tradicionalidade, projetando as estratégias dos embates políticos e judiciais que teriam pela frente, fortalecendo o processo de resistência presente e cotidiano. Afinal, foi na reconstrução de suas histórias e memórias que puderam perceber os modos de apropriação do seu território; as disputas que tiveram com os fazendeiros pelas terras. A partir do acionamento dessas histórias e memórias reconheceram as ações do Estado para apagar os rastros de suas coletividades, mas também tiveram a oportunidade de repensar os critérios culturais endógenos, como a endogamia e o machismo, por exemplo.

No tocante à dimensão ontoepistêmica, é possível identificar no território da Lapa a defesa do “bem viver”, “entendido como princípio essencial dos direitos humanos e da natureza, contrastando com a perspectiva do ‘viver melhor’ defendida pelo capitalismo moderno” (BARBOSA, 2020, p. 113). Antes da barragem, o “bem viver” podia ser reconhecido na relação dos agricultores com a terra e com os demais recursos naturais, o desenvolvimento de seus fazeres, saberes tradicionais e regras comunitárias próprias. A partir do anúncio da construção da barragem, com a promessa do “viver melhor”, as relações comunitárias ficaram fragilizadas, intentou-se disseminar a estratégia colonial de dividir para separar os integrantes do grupo. Parecia sedutora a perspectiva de se obter casas novas com banheiro, água encanada e serviços socioassistenciais ao lado.

O “viver melhor” propagado pelo DNOCS ganhava força até os agricultores perceberem que essa perspectiva capitalista ameaçaria a territorialidade e a autonomia do grupo, ou seja, os seus modos de ser, de viver e coexistir (BARBOSA, 2020). Com tal ameaça, estava em jogo a própria existência da comunidade, fazendo com que os seus integrantes passassem a reivindicar “o reconhecimento de uma lógica pluriversa de conceber e habitar o território” (BARBOSA, 2020, p. 114), atreladas a lógicas de valorização deste mesmo território decorrentes do neoextrativismo como estilo de desenvolvimento e modelo socioterritorial (SVAMPA, 2018).

O neoextrativismo contemporâneo é caracterizado, por Svampa, como um modelo de desenvolvimento baseado na superexploração dos bens naturais e na expansão das fronteiras de exploração de territórios, antes considerados improdutivos sob a ótica do capital. Para a autora, ao passo que esses modos de exploração redefiniram as disputas por terras, de forma assimétrica, entre as populações pobres e vulneráveis e os grandes atores econômicos, geraram novas formas de ação coletiva, que questionaram a ilusão desenvolvimentista e denunciaram a consolidação de um modelo monoprodutor. Nessa contraposição, assumem a ação política em defesa da terra, do território, dos bens comuns e da natureza (SVAMPA, 2018).

Mas como os agricultores da Lapa resistiram às lógicas do neoextrativismo e reivindicaram o reconhecimento de uma lógica pluriversa de conceber e habitar o território?

Para as lideranças da comunidade, o barramento do rio Figueiredo foi responsável pelo desaparecimento dos pequenos rios e riachos, onde pescavam livremente. Com o açude, foram privados do acesso livre à água, que agora é fiscalizada pelo DNOCS, pois a sua finalidade é o abastecimento das cidades vizinhas. No máximo restou a vazante da barragem, onde plantam coletivamente, mas a plantação é ameaçada pelo gado dos fazendeiros e grileiros, que insistem em utilizar a área pública, mesmo sem possuírem a concessão de uso.

No início da ocupação da vazante, no ano de 2016, uma área ampla foi cercada pelas famílias da Lapa, para suas plantações coletivas, sem separação por lotes. A ocupação forçou a negociação com o DNOCS para a concessão de uso dessas terras agricultáveis, com um mínimo de segurança jurídica, já que os fazendeiros se diziam os donos da terra pública. Assim, para garantir o “papel[13]” da autorização de uso, foi preciso apresentar requerimento administrativo na Autarquia Federal, que exigiu a separação de cada lote, por núcleo familiar.

O requerimento coletivo foi considerado inviável, por parte do DNOCS, pois o órgão alegou que precisava responsabilizar individualmente cada agricultor ou agricultora que, porventura, contaminasse a água do açude. Então, os lotes foram separados e cada núcleo planta em seu respectivo pedaço de terra. As famílias se unem nos trabalhos de plantação e colheita e trocam produtos de acordo com suas necessidades.

Essas lógicas de valorização territorial construídas historicamente pelos povos originários e povos do campo (que inclui a comunidade da Lapa) convergem à concepção do “bem viver” analisada por Acosta (2016, p. 41), “com sua proposta de harmonia com a Natureza, reciprocidade, relacionalidade, complementariedade e solidariedade entre indivíduos e comunidade, com sua oposição ao conceito de acumulação perpétua”.

Como já informado, na comunidade Lapa não havia só coesão, consenso e solidariedade. Apesar das discordâncias e embates dentro da comunidade, como o destino das indenizações coletivas, o lugar da Igreja, a escolha da padroeira, a manutenção do grupo escolar, a estrutura das casas, as pautas de reivindicações, as lideranças perceberam que nas negociações com o DNOCS e outros órgãos precisavam ter um discurso único, que pudesse garantir os direitos da coletividade, como ressaltou Bem-Viver-66: “a gente podia discordá uns com os outro, mas depois da votação na associação, era isso e pronto. Nóis não mudava de opinião na frente do Denoc [referindo-se ao DNOCS], para não enfraquecer a luta”.

Em que pese essa acepção do “bem viver” em defesa do território e em contraposição ao suposto “viver melhor” proferido na narrativa dos empreendimentos vinculados ao capital transnacional, prevaleceu o estado de separação nas ações institucionais próprias de um Estado regulador de um modelo de desenvolvimento baseado na expropriação permanente dos territórios, muito embora as dinâmicas de resistência da comunidade da Lapa permaneçam.

 

Considerações finais

A barragem Figueiredo atingiu o seu objetivo de controle de enchentes do baixo Jaguaribe, mas não alcançou os objetivos de usos múltiplos da água, já que o açude nunca atingiu a capacidade para tais fins. O uso é limitado a fornecer água para municípios vizinhos, ainda de forma insuficiente. Para os agricultores da comunidade Lapa foi concedida autorização para a plantação na vazante. Entretanto, o direito ao uso livre das águas do açude é cerceado e controlado pelo DNOCS.

A Autarquia Federal muito se empenhou para a construção do empreendimento, que até o presente momento não alavancou o desenvolvimento proposto para a região. Ao contrário, a execução do grande projeto hídrico violou direitos humanos, culminou com a expulsão, a retirada dos povos do campo de seus territórios e usurpou as terras da Lapa, evidenciando o processo de desterritorialização das comunidades atingidas em busca de beneficiar os interesses capitalistas.

O processo de desterritorialização da Lapa, enfrentado pelos agricultores, mobilizados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), motivou novas formas de organizações e resistências do grupo, que passou a levar em consideração “o reconhecimento coletivo de um direito e a formação de identidades […], o desenvolvimento de uma sociabilidade política [e] a construção de um projeto de transformação” (SCHERER-WARREN, 1993, p. 69-72).

No caso empírico observado, os agricultores perceberam que não bastava ser “lapista”, da mesma família, era preciso mostrar a força mobilizadora da identidade coletiva dos “atingidos” pela barragem Figueiredo e se mobilizar em torno da classificação de “comunidade tradicional” para barganhar com o Estado e conquistar um poder de negociação diferenciado, demonstrando a habilidade de criar e influenciar a definição de um problema político.

Essas identidades – que pulsam, que não são ossificadas ou cristalizadas – também refletem o sentimento de comunidade do grupo, que concebe a terra como território, com tomada de decisões em conjunto e trabalhos coletivos, mas também com embates e conflitos internos, longe de ser um lugar apenas de consensos, mas que possui integrantes com diferentes percepções e perspectivas de realidade, como é comum a diversos movimentos sociais.

A visibilidade da comunidade foi alcançada em virtude das formas de resistências dos agricultores, caracterizadas pelo fortalecimento da organização coletiva, as mobilizações sociais, as ocupações das terras públicas e o acionamento de identidades coletivas. Para eles, as articulações com instituições da sociedade civil organizada e com o MAB foram preponderantes para que pudessem agir e serem percebidos em diferentes instâncias do Estado, dando visibilidade aos problemas e pautando-os em busca de resolução e transformação da realidade.

As lutas mostraram aos agricultores da Lapa o poder da organização comunitária e o descompasso entre as ações desenvolvidas pelo DNOCS para garantir o “viver melhor”, mais que isso, mostraram a necessidade de resistir cotidianamente para se alcançar o “bem viver”.

 

 

 

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Como citar

CUNHA, Roberta de Castro; BARBOSA, Lia Pinheiro. Resistências cotidianas em defesa do “bem viver”: o caso da comunidade Lapa, no sertão cearense. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, e2230112, p. 1-41, 24 maio 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30-1_st04.

 

 

 

 

Roberta de Castro Cunha

Doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Assistente Social da Defensoria Pública da União no Ceará (DPU/CE).

https://orcid.org/0000-0003-3492-233X
http://lattes.cnpq.br/5481214217367498
roberta.castroas@gmail.com


Lia Pinheiro Barbosa

Professora Adjunta I no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).  Doutora em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional Autónoma de México (Unam). Bolsista de Produtividade PQ2-CNPq. Pesquisadora do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) no GT Anticapitalismos & Sociabilidades Emergentes e no GT Economía Feminista Emancipatoria.
https://orcid.org/0000-0003-0727-9027
http://lattes.cnpq.br/3858914223581195
lia.barbosa@uece.br

 

 

 

 

 

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[1] Doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Assistente Social da Defensoria Pública da União no Ceará (DPU/CE). E-mail: roberta.castroas@gmail.com.

[2] Professora Adjunta I no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).  Doutora em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional Autónoma de México (Unam). Bolsista de Produtividade PQ2-CNPq. Pesquisadora do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) no GT Anticapitalismos & Sociabilidades Emergentes e no GT Economía Feminista Emancipatoria. E-mail: lia.barbosa@uece.br.

[3] A síntese das lutas dessas comunidades foi formulada pelas pesquisadoras, considerando as reivindicações de suas lideranças, descritas em processos judiciais acompanhados pela Defensoria Pública da União no Ceará (DPU/CE).

[4] No intuito de resguardarmos a identidade das lideranças, seguimos a sugestão de Luta-92, de identificá-las com palavras que ilustram as suas lutas. Os dois números que sucedem cada nome são uma referência ao ano de nascimento de cada entrevistado.

[5] Para aprofundamento sobre o significado da lapinha de Jesus, consultar: CASCUDO, 1998.    

[6] Os agricultores informaram que o xique-xique é utilizado como alimento para os animais nos períodos de grande estiagem, pois é uma vegetação resistente à seca.

[7] Os integrantes da comunidade Lapa pertencem à família Moura. Lá, todas as pessoas possuem o sobrenome Moura ou são casadas com algum membro que possui o sobrenome. 

[8] Para um aprofundamento sobre a Política de Recursos Hídricos no Estado do Ceará consultar: MONTE (2008), ARAÚJO; SENA (2006); OLIVEIRA (2010).

[9] Avatar, filme dirigido por James Cameron em 2009, retrata a tentativa de dominar Pandora – um satélite do planeta Polifemo –, para extrair do seu solo os recursos naturais esgotados no planeta Terra. A trama se desenvolve na intenção de mostrar ao expectador a disputa pelo território. De um lado, uma empresa multinacional que financia a permanência de militares e cientistas para explorarem as riquezas naturais, em busca de lucros. De outro, o povo Na’vi, nativos que lutam pela própria existência, defendendo o território e os seus lugares sagrados.

 

[10] Decreto que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

[11] Citamos os proprietários das fazendas Tabuleiro, Açudinho, Curral do Meio, Pilar e Varzinha, que questionaram os valores de suas indenizações e se recusaram a sair das áreas já indenizadas.

[12] A exemplo de SIGAUD, 1992; VAINER, 1998, 2003, 2004, 2007; ARAÚJO; SENA, 2006; LIMA, 2004, 2008; MONTE, 2008; FOSCHIERA, 2010; ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010; BENINCÁ, 2011; SANTOS, 2015; ACSELRAD, 2019.

[13] O documento de concessão de uso da vazante só chegou nas mãos dos lapistas no ano de 2021.