ESA_logo.png
v. 30, n. 1, janeiro a junho de 2022 (publicação contínua), e2230108


Recebido: 18.04.2022   •   Aceito: 06.05.2022   •   Publicado: 16.05.2022

Resenha  / Acesso aberto

 

 

As interfaces entre migração e desenvolvimento: um estudo do caso de Lucas do Rio Verde/MT

The interfaces between migration and development: a case study of Lucas do Rio Verde-MT


orcid_id.png  Cristiano Desconsi [1]



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n1-r1



Resumo: Resenha do livro A trama do drama: migração e processos de desenvolvimento na fronteira amazônica, de Betty Nogueira Rocha.

Palavras-chave: fronteira; desenvolvimento; migração.

 

Abstract: Review of the book A trama do drama: migração e processos de desenvolvimento na fronteira amazônica, by Betty Nogueira Rocha.

Keywords: border; development; migration.

 

 

ROCHA, Betty Nogueira. A trama do drama: migração e processos de desenvolvimento na fronteira amazônica. Rio de Janeiro: Garamond, 2021. 292 p.

 

 

 

A expansão das fronteiras agrícolas nas regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil tem se configurado como uma das faces da modernização da agricultura e do desenvolvimento do país desde a década de 1960. Nas décadas recentes, o modelo de desenvolvimento que se consolidou nestes territórios é colocado em evidência associado à pujança do agronegócio que, para além de indicar a associação entre grandes fazendas produtoras de “grãos” (soja e milho, basicamente) e o crescimento urbano, estabelece os atributos identitários dos atores migrantes reconhecidos como protagonistas deste processo.

Observando esta problemática, o livro A trama do drama: migração e processos de desenvolvimento na fronteira amazônica, de Betty Nogueira Rocha, procura “estudar o nexo causal entre migração e desenvolvimento a partir dos discursos dos atores sociais num estudo do caso do município de Lucas do Rio Verde”. Trata-se do resultado da pesquisa de doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, realizada pela autora entre 2006 e 2010. Destaca-se que a obra agrega conhecimentos e materiais coletados em período anterior (2004 e 2005), quando realizou o mestrado no mesmo programa, que resultou na dissertação intitulada: Em qualquer chão: sempre gaúcho: a multiterritorialidade do migrante gaúcho.

O livro está dividido em três capítulos, além da Introdução e das Considerações finais. No Capítulo 1 “A marcha continua”, a autora faz um brilhante resgate da ação do Estado, considerando desde a década de 1930 até o momento atual. Para isso, vai além do que a bibliografia já abordou, especialmente sobre os projetos de colonização efetivados nas décadas de 1970 e 1980, ao expor e analisar fontes documentais – leis, decretos, reportagens da imprensa local e nacional, entre outros. Consegue extrair desta análise elementos que dão um sentido ao drama, de alguma forma, planejado pelo Estado e evidenciando certa coerência e continuidade do projeto Marcha para Oeste, elaborado na Era Vargas. Obviamente, esta forma de exposição do drama dá forma para apresentar e refletir sobre as tramas pelas quais serão retratados os dramas dos atores, aspecto que oferece base para as discussões dos capítulos seguintes.

No Capítulo 2 “De verso e prosa: a ocupação planejada no cerrado mato-grossense”, os(as) leitores(as) encontram a reconstrução da história de Lucas do Rio Verde, feita pela autora com base em múltiplas fontes e enriquecido com as trajetórias de famílias que integraram cada uma das correntes migratórias. Foi o Estado que assumiu a orientação dos movimentos migratórios em interface com o setor privado, a quem coube a tarefa da organização do espaço (urbano e rural) para alocar ou deslocar os grupos de migrantes. Neste aspecto, o capítulo apresenta o processo migratório a partir da classificação em quatro movimentos, a saber: 1) o ocorrido a partir de 1976 de forma espontânea por agricultores providos de recursos, oriundos da Região Sul, reconhecidos como “posseiros”; 2) o que se deu entre 1981-1984, pelo deslocamento do grupo de pequenos agricultores desprovidos de recursos e recrutados de acampamento dos sem-terra do norte do Rio Grande do Sul para compor o projeto de assentamento dirigido que deu origem a Lucas do Rio Verde. São reconhecidos como “parceleiros”; 3) o verificado entre 1985-1990, pelos “assentados da cooperativa”. Neste houve a efetivação do assentamento de agricultores capitalizados das regiões Sul e Sudeste com recursos de programas públicos, por intermédio da Cooperlucas; 4) aquele em curso a partir de 2007 e vinculado à necessidade de mão de obra dos empreendimentos agroindustriais e à urbanização, no qual aparece o movimento migratório dirigido e espontâneo dos “maranhenses” e “nordestinos”. A classificação elaborada pela autora serve para descrever suas particularidades no processo de desenvolvimento evidenciando a orientação estatal, o qual é compreendido e observado por meio da reconstrução das trajetórias pessoais e familiares dos “posseiros”, “parceleiros”, “assentados da cooperativa” e “maranhenses”, para explicar as tramas que compõem os dramas em cada um dos movimentos migratórios.

O Capítulo 3 “As representações do desenvolvimento na fronteira”, evidencia a fronteira fluída entre o campo e a cidade (de Lucas do Rio Verde) e suas configurações socioespaciais descrevendo os (des)encontros entre as categorias sociais apresentadas no capítulo anterior. Merece destaque especial neste capítulo a análise do processo de “territorialização da fábrica da Sadia”, principal evento em curso naquele município entre 2007 e 2010, como recurso metodológico utilizado pela autora para revelar os conflitos entre aqueles reconhecidos como gaúchos (mais associados às categorias “posseiros”, “parceleiros”, “assentados da cooperativa”) e os “maranhenses” e “nordestinos”. Não por acaso, faz sentido mobilizar, neste capítulo, as categorias de análise “estabelecidos” e “outsiders” do sociólogo Norbert Elias. Dar voz e vez para os migrantes encontrados no bairro conhecido como “vila da Sadia” e, neste caso, ao agir de forma etnográfica, permite indicar o peso dos estigmas associados aos “maranhenses” e “nordestinos” por parte dos “gaúchos”. Neste capítulo a autora também examina a agenda ambiental que passa a ser incorporada nas narrativas sobre o desenvolvimento da região de Lucas do Rio Verde, diante de certa imposição internacional desta agenda por segmentos da cadeia produtiva de commodities agrícolas. Chama a atenção como o poder público e privado gestam o Programa Lucas do Rio Verde Legal, como forma de (re)construir uma vantagem competitiva e, por que não dizer positiva, que associa produção moderna e preservação ambiental. É curioso constatar que, além de promover ações de recomposição de matas ciliares, o programa contribui para resignificar as narrativas dos próprios produtores e empresários em sua ação civilizadora que, historicamente, compreenderam o desenvolvimento vinculado ao “desbravamento” e “pioneirismo” que passaram a assumir a posição de agentes “empreendedores” que contribuem, não só para a recuperação de parte do que foi devastado, mas que por serem altamente produtivos sugerem que esta é sua contribuição para que outras áreas dos biomas do Cerrado e da Amazônia sejam preservadas.

Após esta apresentação geral, faço alguns comentários sobre certas passagens do livro. Na primeira parte, a autora mobiliza o conceito multifacetado de fronteira para dar conta dos processos sociais e econômicos que conformaram o município de Lucas do Rio Verde. A fronteira é “um espaço de construção e experimentação”. Nesta apropriação do conceito como ferramenta de análise dos dados empíricos, acaba por circunscrever o local de estudo como uma espécie de fronteira permanente ao tratá-lo assim tanto nas seções em que concentra seu olhar no processo histórico como naquelas em que concentra sua atenção sobre os processos mais recentes. Uma das dificuldades de uso do conceito de fronteira para fins analíticos decorre do fato de um dos seus atributos constitutivos ser o movimento. Dito de outra forma, a fronteira move e se move. E é exatamente este movimento ou o ritmo imposto pelos dramas que evoca a importância de pensar estratégias de pesquisa capazes de mapear e acompanhar o movimento, ou selecionar quais movimentos serão objeto de análise. A opção da autora foi compreendê-los a partir de um lugar e dos personagens encontrados atualmente naquele município. Esta escolha metodológica permite um olhar distinto da pesquisadora, ou “um entre outros possíveis”, como ela própria apresenta no texto. Na dinâmica da região, os personagens reconhecem que as novas fronteiras, ou seja, que as áreas de expansão agrícolas, atualmente, estão situadas no noroeste do Mato Grosso ou no sul do Pará, por exemplo. O livro não se propôs a examinar a relação de Lucas do Rio Verde com tais áreas, mas há evidências que o ritmo acelerado percebido na ocupação de terras, desmatamento, constituição de vilas, movimentos migratórios em busca de terras, que ocorre nestas áreas geográficas é fundamental para entender o desenvolvimento das “cidades do agronegócio”, localizadas ao longo da BR-163. Até porque não é difícil identificar interdependências entre estas duas áreas e que este suposto crescimento de cidades como Lucas do Rio Verde e o próprio movimento migratório se beneficiam desta expansão. Aqui estou sugerindo a existência de redes de relações dos atores mencionados no estudo, particularmente de empresários ou agricultores empresariais encontrados em Lucas do Rio Verde, enaltecendo seus feitos naquele território e silenciando suas possíveis formas de presença direta ou indireta nas áreas de expansão mais à frente.

O segundo elemento a ser comentado se refere às impressões que tive ao final da leitura da obra quanto aos sentidos do que é desenvolvimento. Parece não haver concepções sobre desenvolvimento em disputa, ao menos tomando como base os dados empíricos apurados neste universo de pesquisa. Tudo indica que não há uma concepção alternativa, mas apenas divergências em termos da escala e ritmos de um mesmo processo de transformação social e econômica, que não são capazes de questionar a legitimidade das relações de poder, a seletividade social e os estigmas presentes na estrutura social. Entender este aspecto vai além do que se propôs a autora, mas a obra deixa pistas interessantes a serem exploradas em outros estudos como: i) a impossibilidade de desvincular a noção de desenvolvimento de uma série de atributos a ela associados, como o crescimento econômico e a modernização da agricultura, independentemente das críticas e reelaborações feitas por inúmeros autores nas décadas recentes; ii) a ideia que a provisoriedade e o movimento inerentes às dinâmicas destas áreas parecem indicar que o caminho para os que discordam no âmbito local da visão predominante ou que não acompanham o ritmo imposto destes “territórios de desenvolvimento” é de sua retirada espontânea (física e/ou simbólica) deste território, vinculando-se seja ao seu território de origem, seja para buscar construir uma melhor posição social nas novas fronteiras, mas de alguma maneira reforçando a marcha construída por gerações de migrantes.

Nestes termos, recomendo a leitura deste livro, tanto para aqueles interessados nas questões específicas da Região Centro-Oeste e Norte do Brasil, como também para estudiosos de várias áreas do conhecimento que discutem os temas do desenvolvimento e da migração. Uma pequena observação a ser feita é o crescimento dos estudos realizados nestas regiões, particularmente na última década, buscando compreender, sobre diversas abordagens teórico-metodológicas, os processos sociais, econômicos e políticos em curso. Dentre outras questões, a reconfiguração ocorrida em torno do termo agronegócio e a necessidade de ampliar a compreensão dos fenômenos sociais pós-período da política de colonização (fim da década de 1980) mobilizam pesquisadores para empreender novos estudos. Para finalizar, chamo a atenção dos leitores que, dada a velocidade das transformações sociais e econômicas na região estudada, a leitura sempre deve ser datada, ao menos no que se refere à análise de dados empíricos apurados neste contexto sócio-histórico.

 

 

 

Referências

ROCHA, Betty Nogueira. A trama do drama: migração e processos de desenvolvimento na fronteira amazônica. Rio de Janeiro: Garamond, 2021. 292 p

 

 

 

 

 

Como citar

DESCONSI, Cristiano. As interfaces entre migração e desenvolvimento: um estudo do caso de Lucas do Rio Verde/MT. Resenha do livro A trama do drama: migração e processos de desenvolvimento na fronteira amazônica, de Betty Nogueira Rocha. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, e2230108, p. 1-6, 16 maio 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n1-r1.

 

 

 

Cristiano Desconsi

Professor adjunto do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ).

https://orcid.org/0000-0001-7883-6164
http://lattes.cnpq.br/4718457501039884
cristiano.desconsi@ufsc.br



 

 

 

 

ccby.png

Creative Commons License. This is an Open Acess article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License CC BY 4.0 which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium. You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if changes were made.

 



[1] Professor adjunto do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). E-mail: cristiano.desconsi@ufsc.br.