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v. 30, n. 1, janeiro a junho de 2022 (publicação contínua), e2230103


Recebido: 24.08.2021   •   Aceito: 04.02.2022   •   Publicado: 23.02.2022

Artigo original / Revisão por pares cega / Acesso aberto

 

 

Territorializações agroecológicas: saberes, práticas e políticas de natureza em comunidades rurais tradicionais do Paraná

Agroecological territorializations: knowledge, practices, and policies related to nature in traditional rural communities in Paraná


orcid_id.png  Nicolas Floriani [1]   •   orcid_id.png  Dimas Floriani [2]  
orcid_id.png  Adnilson de Almeida Silva [3]   •   orcid_id.png  Antonio Marcio Haliski [4]



DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n1-3



Resumo: Este texto tem como objetivo discutir alguns resultados de pesquisa acerca da formação de redes e sujeitos agroecológicos em comunidades rurais tradicionais da Região do Centro-Sul e dos Campos Gerais paranaenses. Parte-se da discussão da Agroecologia (AE) como campo de produção social de saberes e de práticas, pelo qual se evidenciam estratégias de cooperação, de disputas e tensões entre diversos atores em escalas local, regional e nacional. Abordam-se, para tanto, três dimensões mobilizadoras de recursos e de capacidades potencializadoras de uma relativa autonomia socioambiental, as quais teoricamente poderiam ser impulsionadas por projetos agroecológicos: dimensão organizacional, dimensão epistemológica e dimensão tecnológica. Evidencia-se, portanto, a diversidade de estratégias sociais de apropriação, produção e legitimação de discursos e práticas agroecológicas que desvelam estratégias de territorialização de múltiplas racionalidades, sejam elas de organizações sociais locais, de universidades, de sindicatos e cooperativas, de poder público municipal, estadual e nacional. Destaca-se, do conjunto de imaginações agroecológicas em disputa, aquela que se aproxima de uma ética da campesinidade e dos saberes tradicionais, muitas vezes divergentes em alguns aspectos das concepções hegemônicas científicas e institucionais oficiais, no que tange à autonomia das três dimensões anteriormente mencionadas. Nesses termos, questiona-se em que medida uma ou mais práticas e imaginários de agroecologia – quando apropriados (adaptados e hibridizados) por coletividades rurais locais – podem figurar como dispositivos mobilizadores de capitais sociais e ecológicos para a produção de subjetividades e autonomias assentes em uma ética da campesinidade.

Palavras-chave: agroecologia; autonomia socioambiental; políticas de natureza; territorialização.

 

Abstract: This text discusses some results from research on the formation of agroecological networks and subjects in traditional rural communities in the Center-South and Campos Gerais regions of Paraná state. We begin from the discussion of agroecology as a field for social production of knowledge and practices, through which cooperation strategies, disputes, and tensions between different actors at local, regional, and national scales become evident. To do so, three dimensions that mobilize resources and expand capacities for a relative socio-environmental autonomy that theoretically could be driven by agroecological projects are discussed: organizational, epistemological, and technological. A wide variety of social strategies for appropriating, producing, and legitimizing agroecological discourses and practices that reveal territorialization strategies for multiple motives (local social organizations, universities, unions and cooperatives, municipal, state, and federal government) can be seen. Notable among the competing agroecological imagery is that which resembles an ethics of peasantry and traditional knowledge, often diverging from the official scientific and institutional hegemonic beliefs in some aspects with regard to the autonomy of the three dimensions mentioned above. On these terms, we question to what extent various agroecological practices and imagery can mobilize social and ecological capital when appropriated (adapted and hybridized) by local rural communities in order to produce subjectivities and autonomies based on an ethics of peasantry.

Keywords: agroecology; socio-environmental autonomy; nature policies; territorialization.

 

 

 

Problematizando a territorialização de projetos institucionais de ecologização da agricultura: poder e subalternização de atores rurais

A territorialização de projetos[5] de produção de base ecológica (acadêmicos, governamentais e de movimentos sociais) desvela um complexo jogo de racionalidades de atores sociais que buscam apropriar-se e legitimar modelos sociotécnicos associados a estilos de desenvolvimento do espaço rural que conectam redes de coletivos (humanos e não humanos) em escalas espaciais diversas.

Nessas redes, em meio à disputa de diversos atores pela apropriação desses modelos, encontram-se as famílias de agricultores que buscam adaptar-se ao processo de institucionalização da Agricultura Orgânica (AO) e da apropriação da Agroecologia (AE) nesse processo de tradução entre atores sociais.

Estes agricultores(as) familiares por sua vez podem ou não adotar estritos modelos produtivos em função de suas racionalidades econômicas e substantivas, mas também em função de suas subjetividades e do patrimônio biocultural gestado socialmente no âmbito de seu território-comunidade, o que nos leva a considerar sua campesinidade.

Por campesinidade entendemos as qualidades identitárias de grupos sociais que compartilham práticas culturais-territoriais (modo de habitar, cuidar, produzir e se organizar) comuns a uma região, fundadas em laços de reciprocidade socioecológica. Esses laços presumem o desenvolvimento de uma ética da convivencialidade que deriva da forte relação de codependência entre os coletivos humanos e não humanos (parentesco, terras, plantas e animais). Tais aspectos da campesinidade podem ser traduzidos na forte presença das seguintes relações sociais desenvolvidas no território: i) relações de parentesco e compadrio, reafirmadas por uma ética religiosa; ii) relação de codependência social e ecológica (territorial), traduzida na questão da reprodução do patrimônio biocultural, de seu uso e partilha comunitários; iii) práticas produtivas de subsistência em conjunção com práticas econômicas destinadas ao mercado externo; iv) a busca constante por uma autonomia econômica, tecnológica e, portanto, política.[6]

Nesse sentido, importante reflexão é realizada por Wanderley (2009) quando afirma que o agricultor familiar moderno é uma categoria genérica e que o campesinato corresponde a uma forma particular dessa agricultura familiar, constituindo-se como um modo específico de produzir e viver em sociedade. Assim, entendemos como campesinidade essa tradição camponesa que pernamece e é resultado de nossa história social e se materializa nos distintos modos de vidas das populações tradicionais, ou seja, são patrimonios socioculturais resultantes dessa complexa relação entre sociedade e natureza. Autores como Haliski e Brandenburg (2016) fazem esta constatação ao analisarem as formas de usos dos recursos naturais adotadas por agricultores localizados entre os estados do Paraná e de Santa Catarina, observando continuidades ou permanências do que chamam de uma certa condição camponesa. 

Tais aspectos ético-identitários dão robustez ao problema da adoção ou não de um ou outro modelo socioprodutivo, ultrapassando o plano teórico discursivo e abrindo-se, portanto, para o jogo complexo entre variáveis de diversas ordens, seja: ecossistêmica (as vocações produtivas e as capacidades de regeneração dos ecossistemas); sociocultural (valores substantivos e imaginários a partir dos quais reafirmam-se as práticas de solidariedade comunitária e regimes de propriedade da terra); econômica (formas de exploração dos recursos, organização do trabalho e repartição do seus produtos); e política (a territorialização de políticas institucionalizadas de ciência, assistência e extensão rural, bem como das dinâmicas globais do capital).

Assim, incidem no território diversas racionalidades sociais e subjetividades, tornando complexa a interpretação das escolhas coletivas e individuais por um ou outro modelo socioprodutivo no cotidiano de uma comunidade, o que implica a escolha por uma ou mais redes sociotécnicas às quais a família de agricultores deve aderir, levando-a de algum modo à internalizar as regras organizacionais externas ao seu território e modo de vida. Desse cenário multivariado emergirão, em última análise, (re)arranjos socioterritoriais com repercussões nas esferas, das representações, dos conhecimentos e das práticas relacionadas à agrobiodiversidade.

Tal fenômeno pela escolha de um ou outro modelo sociotécnico pode levar à ressignificação do cotidiano de famílias de agricultores que são cotidianamente tensionads por processos de territorialização do mercado, da ciência e de práticas institucionais formais que buscam controlar e subordinar a lógica familiar por meio da racionalização instrumental e econômica. Assim, são evidenciados territorialiações de projetos em tensão condensados em programas de pesquisa e extensão rural, políticas públicas e legislações que se inserem em dada região rural.

Em termos específicos, os projetos de agroecologias (no plural) que se territorializam na Região Centro-Sul paranaense, dentre os quais figura aquele por nós coordenado, estão carregados de concepções (ideótipos) de saberes e práticas agrícolas assentes em imaginários de natureza, e que muitas vezes diferem daqueles produzidos historicamente por cada coletividade rural territorialmente arraigada.

Cada projeto agroecológico comporta em si, portanto, uma racionalidade (econômica, instrumental, substantiva) acionada no campo social da produção de discursos e práticas de natureza pelos diversos atores que ora se opõem, ora criam cooperações ou tomam posições neutras. Caracteriza-se, nesses termos, a existência de uma ecologia de práticas e saberes[7] de natureza entre coletivos humanos que agenciam coisas, seres e discursos (LATOUR, 2004; DELEUZE; GUATTARI, 1992). Ou seja, a agroecologia pertence ao domínio da Biopolítica (FOUCAULT, 2008).

Nesse sentido, evidenciam-se os problemas decorrentes da institucionalização da AO e da ressignificação da AE, entendendo esse fenômeno como um campo social de disputas pelas práticas e saberes, intermediado pela lógica instrumental e econômica. Nesse jogo de embates e tensões pela apropriação de sentidos do que deva ser AE e AO, demonstra-se a dinâmica dos mecanismos de tradução das práticas jurídicas e tecnocientíficas por parte dos macroatores sociais que inscrevem suas representações sociais e produzem enunciados acerca dos modelos sociotécnicos elencados como prioritários para a sociedade. Assim, presencia-se, em termos conceituais, uma disputa por qual modelo deverá ser subordinado ao outro. No caso, o processo de tradução da agricultura orgânica pelos macroatores institucionais (estado, mercado e ciência) formaliza juridicamente esse ideótipo sociotécnico como conceitos que se sobrepõem às outras expressões de agricultura ecológica, incluindo a AO como um modelo produtivo.[8]

No bojo das críticas à institucionalização das agriculturas de base ecológica, destacam-se os cálculos e as estratégias pela apropriação dos saberes e sua tradução em normas técnicas e jurídicas configurando um processo radical de convencionalização (normatização e regulação) de suas práticas para adequação à lógica de um mercado convencional (NIEDERLE; ALMEIDA, 2013). Por outro lado, a institucionalização da AO (interpretação, síntese e tradução de suas dimensões técnicas e organizacionais às práticas jurídicas, acadêmicas e mercadológicas) não ocorre de forma passiva. Uma miríade de atores (movimentos sociais, agentes públicos municipais, estado, grupos acadêmicos, associações e cooperativas de produtores e de consumidores) disputa esse campo; territorializando racionalidades e subjetividades, tais atores buscam ampliar suas formas de atuação de maneira a garantir um relativo controle e representação política em diferentes escalas – do estabelecimento familiar às arenas políticas municipal, regional e nacional.

Nesse sentido, cabe aqui a seguinte questão: para os agricultores familiares da região Centro-Sul paranaense, herdeiros de uma campesinidade e de um patrimônio biocultural associado, em que medida a(s) proposta(s) institucionalizada(s) de agriculturas de base ecológica pode(m) mobilizar ações e recursos para a produção de autonomias socioambientais?

Essa questão pode ser elaborada inversamente: seriam esses modelos tecnológicos incapazes de internalizar as especificidades socioterritoriais desses grupos de agricultores familiares, a ponto de imporem suas racionalidades instrumentais e econômicas sobre as práticas patrimoniais e cotidianas dessas coletividades rurais?

Que dimensões da subjetivação da ética do cuidar, do habitar e do conviver (ou de uma ética da campesinidade) são acionadas durante o processo de territorialização de discursos e práticas agroecológicos em estabelecimentos familiares de comunidades tradicionais, levando-se em consideração o processo de coexistência de múltiplas modernidades na constituição do espaço rural?

Por fim, avançando na reflexão provocada pelas questões ora elucidadas, serão discutidos alguns resultados alcançados pelos projetos de pesquisa-extensão por nós agenciados. Tais projetos buscam promover a mobilização de recursos e capacidades socioterritoriais de famílias agricultoras para a produção de autonomias socioambientais como chave para se pensar o desenvolvimento local.

 

Uma cartografia da territorialização de projetos agroecológicos na Região Centro-Sul paranaense: visibilizando práticas em sistemas sociotécnicos

Para buscar dar conta de uma cartografia[9] minimamente representativa da territorialização de atores, discursos e racionalidades envolvidas no processo de disputa pela legitimação de projetos (discursos, saberes e práticas ) agroecológicas, tomou-se por base as experiências do Programa UNItinerante (https://parlamentounitinerante.blogspot.com) e dos projetos NEA Territórios Faxinalenses (https://gpinterconexoes2.blogspot.com), financiados pelo CNPq e em desenvolvimento na Região dos Campos Gerais e Centro-Sul paranaense desde o ano de 2010.

A Região Centro-Sul paranaense é produto do processo de formação socioespacial de territórios agrossilvipastoris camponeses relegados à periferia do espaço pecuário e extrativista das oligarquias agrárias dos Campos Gerais; é um espaço de atuação de vários atores sociais que buscam territorializar suas ações e racionalidades a partir de projetos de desenvolvimento rural em estabelecimentos familiares.

A atuação em quatro municípios da região (Imbaú, Imbituva, Ponta Grossa e Rebouças) ocorreu em função do desenvolvimento de quatro projetos de pesquisa-extensão financiados por agências de fomento acadêmico: dois deles pelo Programa Universidade Sem Fronteiras da Superintendência de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná, e outros dois pelo CNPq. Estes projetos convergem para as ações do Programa UNItinerante: Universidade dos Direitos Humanos, da Natureza, pela Paz e o Bem Viver.

Sob a coordenação da organização não governamental Casa Latino-americana (Casla), o Programa UNItinerante busca promover alternativas ao desenvolvimento local em comunidades rurais, a partir da configuração de uma rede regional constituída por associações locais, instituições de Ensino Superior do estado do Paraná, organizações sociais e poderes públicos municipal e estadual.

Desde 2019, o Programa UNItinerante contactou e engajou diversos atores locais dos municípios supracitados para criar e desenvolver mecanismos de consulta e deliberação de base comunitária, chamados Parlamentos Unitinerantes. Tais parlamentos estariam incumbidos de elencar as principais demandas populares de municípios de pequeno porte pouco assistidos pelo governo do estado, a partir de parceiras (novos arranjos locais) entre as três categorias de atores regionais supramencionadas. Das reuniões organizadas no âmbito dos Parlamentos Unitinerantes locais nos quatro municípios, entre 2019 e 2020, evidenciaram-se demandas populares concretas na área da saúde, educação, produção agrícola e comercialização, sendo possível destacar o conjunto de organizações sociais parceiras e colaboradoras, conforme Quadro 1.

 

Quadro 1 – Territorialização de projetos agroecológicos de organizações sociais na região

Município

Agentes Públicos

Iees

Organizações Sociais

Ater

Imbaú

Prefeitura e Câmara de Vereadores

UEPG e IFPR – Telêmaco Borba

APP,
Associação de Moradores
Casla

Secretaria de Agricultura Municipal Emater

Imbituva

Prefeitura e Câmara de Vereadores

UEPG

Coodesafi,
Associação de Moradores
AS-PTA e
Rede Ecovida ReSA
Casla

Secretaria de Agricultura Municipal, Câmara de Vereadores e Emater

Ponta Grossa

Prefeitura

UEPG

Asaeco,
Associação de Moradores
Casla

Secretaria de Agricultura Municipal e Emater

Rebouças

Prefeitura e Câmara de Vereadores

UEPG, Unicentro, IFPR – Irati

APP, Ieep, Masa,
Associação de Moradores
AS-PTA
Rede Ecovida ReSA
Casla

Secretaria de Agricultura Municipal, Câmara de Vereadores e Emater

Fonte: Floriani e Floriani (2020).

 

Nesse sentido, presencia-se uma diversidade de redes de organizações sociais e instituições acadêmicas que se imbricam quando estabelecidas parcerias, mas que também se sobrepõem em função dos interesses próprios de cada instituição, por vezes estrategicamente tensionadores, por meio de projetos de desenvolvimento rural, entre eles o da promoção da AO.

Identificou-se a territorialização de uma profusão de políticas públicas, legislações e discursos de um conjunto de agentes estatais que buscam impor a lógica de cada instituição por meio de projetos de incentivo à produção, à certificação e à comercialização de alimentos de base ecológica, conforme Quadro 2.

 

Quadro 2 – Políticas públicas do estado do Paraná de fomento à produção, à certificação e à comercialização de produtos orgânicos, a partir de 2009

 

Programas em Vigência

Iniciativa

Instituições Governamentais Envolvidas

Objetivo

Paraná Mais Orgânico (2009)

Estadual

Seab, IDR, Seti, Tecpar, Iees

Assistência à produção e à certificação orgânica de estabelecimetos agrícolas

Programa Estadual de Alimentação Escolar (Orgânico, 2010)

Federal e Estadual

Seed (Fundepar), IDR

Incluir alimentos orgânicos gradualmente na alimentação dos alunos das mais de 2 mil escolas estaduais até 2030

Cestas Solidárias Agroecológicas
(2019)

Estadual

IDR, Seab

Promover circuitos alternativos de comercialização de produtos orgânicos e agroecológicos

PAA Estadual
(2019)

Federal e Estadual

Seab, MC, Conab

Promover a compra de alimentos da agricultura familiar por meio de chamadas públicas, dispensando de procedimento licitatório

USF
(AF e AE, 2010)

Estadual

Seti

Estimular projetos de extensão universitária nas temáticas de agricultura familiar e agroecologia

Compra Direta Paraná (2019)

Estadual

Seab, Ceasa

-

NEA
(2016)

Federal

MCTIC/Mapa/MEC/Sead – Casa Civil/CNPq

-

Fonte: Floriani e Floriani (2020).

O conjunto de políticas públicas do governo do estado do Paraná, elencado no Quadro 2, busca especificamente promover a assistência técnica e a comercialização de produtos da agricultura familiar de base ecológica. Desse conjunto, destaca-se o Programa Paraná Agroecológico, revogado em março de 2020, que tinha o objetivo de promover ações integradas entre os municípios, organizações da sociedade civil e outras instituições públicas ou privadas, para implantação, consolidação e ampliação de sistemas de produção e consumo com base em princípios da agroecologia no Paraná. Tais ações eram dirigidas preferencialmente a agricultores familiares e suas organizações, técnicos, pesquisadores, professores, estudantes e organizações do setor público e da sociedade civil organizada, e consumidores e suas organizações (SEAB-PR, 2016).

Outros agentes públicos de relativa importância para a promoção da Agroecologia (AE) são os conselhos estaduais, destacando o CPOrg-PR e o Consea-PR, sendo ao primeiro atribuídas funções diretamente ligadas à AE e à Agricultura Orgânica (AO) e, ao segundo, o incentivo da agroecologia pelo viés da promoção da segurança alimentar e nutricional. As ações dos conselhos territorializam-se nos municípios do estado ou regionalmente a partir de propostas de articulações entre os setores público – em especial a Seab e a Seed – e privado, para a garantia da política nacional e estadual de Agroecologia/Orgânicos e SAN.

Configura-se, assim, um cenário de territorializações de políticas públicas voltadas à promoção da AE e da agricultura familiar, cuja relevância para o poder público ficou evidente em discurso do governador do estado do Paraná em 2019. Neste discurso, falou-se em congregar esforços para a adoção de merenda escolar orgânica integralmente nas duas mil escolas estaduais de Ensino Básico e Médio, cabendo ao poder público estadual criar mecanismos de incentivo à produção, à certificação e à comercialização de produtos agroecológicos oriundos da agricultura familiar.

Não obstante, o cenário mostra-se apenas aparentemente favorável àquelas categorias, por dois motivos associados: i. por uma crescente apropriação e tradução instrumental tecnoburocrárica das práticas e saberes patrimoniais socioterritoriais (ou bioculturais) que incluem as práticas agroecológicas; e ii. pelo desmonte e/ou subordinação das instâncias deliberativas de caráter participativo, dentro do aparelho burocrático estatal.[10]

Instâncias ou estruturas racionalizadoras coordenadas pelo “núcleo de tradução do macroator estatal” (CALLON; LATOUR, 2006) condicionam as formas de territorialização das propostas agroecológicas em uma dada região. A estrutura jurídica, que atua em rede hierárquica desde a esfera federal, traduz o que a estrutura ou instância tecnocientífica, praticada nos laboratórios e campos experimentais, concebe como AO, normatizando as formas de regulamentação da produção, certificação e comercialização dos seus produtos. Emoldura-se, assim, rigidamente, as emergências criativas locais que porventura possam emergir durante o processo de apropriação e organização social desses sistemas produtivos.

Configuram-se, a partir desses sistemas legais, uma rede de normas e leis estaduais e municipais que enrijecem as formas de atuação de atores socioterritoriais agroecológicos. A inscrição (tradução) científica e a racionalização jurídica buscam estender suas ramificações às políticas públicas federais, estaduais e municipais e até mesmo às formas locais de organização entre coletivos, e de relação entre seres humanos e não humanos, configurando assim uma política de natureza cujo resultado é sintetizado, em sua face mais racionalizada, na instrumentação coercitiva e esterilizante da certificação das formas de relação produtiva dos indivíduos com a natureza.

Não obstante, essas estruturas não são totalmente rígidas, e podem sofrer infiltrações a partir de movimentos que se manifestam e constroem dialeticamente outras instâncias de diálogo, cooperação e deliberação com as instituições estatais. Contudo, esses novos espaços também devem adaptar suas demandas e representações à estrutura formal e normativa existente.

Em que pese os avanços em termos de representatividade de organizações sociais nos conselhos, comissões e câmaras formais de políticas agroecológicas e orgânicas, o processo racionalizador científico-jurídico de tradução e síntese do ‘que deve ser’, ‘o que se deve fazer’ e ‘como fazer’ AE tem se transformado na medida em que as demandas sociais e ambientais concretas têm emergido.

Não obstante esse processo de apropriação da AE por parte das organização sociais tem mostrado um claro retrocesso a partir de 2018, com o já citado desmonte das instâncias formais de AE no estado do Paraná (rever nota 7 deste texto), por um lado, e, por outro, por meio da instituição racionalização burocrática traduzida na infinidade de Instruções Normativas elaboradas para tal finalidade. Isso pode ser exemplificado nos relatos de especialistas na área de certificação de produtos orgânicos.

Desde a promulgação da Lei no 10.831 de 2003, que trata da regulamentação da AO, decretos e diversas ações burocráticas sobrecarregaram o contexto jurídico específico – a exemplo do Decreto no 6.323/2007 e da grande quantidade de instruções normativas que estabelecem as normas técnicas do sistema orgânico de produção e beneficiamento e armazenagem, concebidas entre 2009 e 2014 (KAWAKAMI, 2016).

Questionou-se, contudo, se esse leque normativo de abas infinitas responde às demandas sociais ou ao próprio funcionamento das agências e órgãos estatais que buscam legitimar suas ações, territorializando-se ao máximo em todos as dimensões e escalas. Em meio à profusão de agentes e instituições técnicas e jurídicas estaduais e federais, que elaboram leis e políticas públicas regulatórias da produção, certificação e comercialização da AE e da produção orgânica, pergunta-se: como a institucionalização da questão agroecológica pode gerar sujeitos agroecológicos viabilizadores de autonomias socioambientais em comunidades rurais, entendendo-se que essa institucionalização tende a determinar as formas de relação social entre pessoas, coisas e seres?

Em outros termos, como evitar que o processo de construção criativa de subjetividades agroecológicas ancoradas em práticas materiais locais patrimoniais – em confrontos, tensões e também hibridações com outros discursos e práticas de natureza – seja cooptado, traduzido, apropriado e sintetizado por práticas corporativas do mercado, da ciência e das leis anteriormente evidenciadas?

Essa tradução e apropriação dos saberes-fazeres e bens agroecológicos patrimoniais locais e regionais são sintetizadas na rotulagem certificada – seja por um processo imperativo de auditagem ou um processo participativo de garantia da qualidade do produto –, posto que a marca – o selo de certificação agroecológico e orgânico – instaura o processo de tradução[11] das práticas institucionais, entendido por Michel Callon e Bruno Latour (2006) como a amplificação do poder rizomático de um ator macrossocial (tal como o Estado) sobre os atores sociais situados na escala micro que compõe a rede de atores.

Nesse processo sociotécnico de transformação de saberes e práticas de natureza, a inscrição (formatação) tecnocientífica de objetos, fatos e enunciados percorre uma rede de agenciamento de atores (humanos e não humanos) que lançam mão de dispositivos (jurídicos, econômicos e técnicos) para colocar em prática os sistemas ou objetos sociotécnicos planejados a priori em espaços e contextos sociais diversos.

A rede sociotécnica comandada pelos centros de tradução (os macroatores, tais como o Estado) pratica uma “geografia das responsabilidades e causalidades” (LATOUR, 2004), partilhando assimetricamente papéis e responsabilidades entre atores. A circulação dos dispositivos regulatórios do sistema sociotécnico em lugares-atores privilegiados da rede subordina assimetricamente outros lugares-atores, caracterizando o processo de hierarquização e conferindo a distribuição do poder a determinados nós da rede em detrimento de outros.

O processo de produção de assimetrias na rede sociotécnica que garante a distribuição e agenciamento de atores, dispositivos, enunciados torna-se ainda mais acentuado quanto mais incógnitas o objeto técnico a ser utilizado possuir. Nesse sentido, quanto mais “caixas-pretas” (de seus mecanismos, componentes e entidades) o centro de tradução da rede utilizar, maior será seu poder de subordinação entre os atores envolvidos, conferindo limitações e dependências aos seus utilizadores hierarquicamente subordinados em seus lugares periféricos.

Ora, esse é o atributo principal de um macroator: o de expandir seu poder distribuindo funções entre seus órgãos, garantindo a eficiência dos sistemas sociotécnicos a partir dos quais são distribuídos assimétrica e hierarquicamente (temporal espacialmente) problemas, saberes e responsabilidades entre a rede de atores. Confere-se, com isso, o poder de controlar, incluir e excluir atores no processo de configuração de redes sociotécnicas. Conforme Michel Callon (2006) e Madeleine Akrich (2006):

Esses dispositivos técnicos asseguram a delegação à distância da ação decidida no centro de tradução: assegurando a circulação de inscrições e a mobilização de cadeias de dispositivos. (CALLON, 2006, p. 24)

Certos dispositivos vão mais longe no “controle social”: eles estabelecem normas e comportamentos e punem seus transgressores, posto que os seus construtores possuem uma confiança muito limitada na capacidade dos utilizadores em dominar seus desejos e subordina-los às exigências técnicas do sistema. Nesses termos, evidencia-se que certas normas são inextrincavelmente técnicas e sociais. (AKRICH, 2006, p. 43)

Tal processo implica a delegação de instâncias decisórias locais a outros coletivos situados em escala macro, mesmo que a certificação seja participativa, como ocorre em coletivos agroecológicos já consolidados. Nesse processo de tradução, há um sem-fim de “caixas-pretas” que dificultam a compreensão do funcionamento do sistema sociotécnico (objetos, discursos, normas etc.) que é codificado em subsistemas técnicos representados por agências de pesquisa, extensão e instâncias jurídicas municipais, estaduais, federais e internacionais (a exemplo do que ocorre com a lei de patentes, sistemas sanitários entre estados etc.).

O fenômeno da normatização, iniciado em 2003 com a Lei dos Orgânicos e seus desdobramentos em decretos e posterior elaboração da política nacional abarcando a Agroecologia, criou – conforme Niederle e Almeida (2013) – condições para o desenvolvimento de um mercado, sem contudo questionar os compromissos outrora estabelecidos entre Estado, organizações sociais e outras categorias: “pelo contrário, elas reforçaram esses compromissos e garantiram a estabilidade do mercado” (NIEDERLE; ALMEIDA, 2013, p. 55).

Todos esses mecanismos de acesso ao mercado são, assim, intermediados por agências públicas que, com base em dispositivos jurídicos que regulamentam as diversas instâncias hierárquicas subordinadas, controlam as esferas de organização social, das tecnologias permitidas à produção e ao acesso chancelado (certificação) de reconhecimento dos produtos a serem comercializados. O mesmo ocorre quando é analisado esse processo em termos de institucionalização da representação de organizações sociais agroecológicas no aparato burocrático estatal, isto é, em conselhos, comissões e outras instâncias consultivo-deliberativas de elaboração de políticas públicas de promoção da agroecologia, a exemplo da CPOrg-PR e da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), que teve sua ultima reunião oficial registada em agosto de 2018.

Em outros termos, a diversidade de práticas materiais e imateriais agroecológicas, que está no princípio da autonomia criativa local, tem sofrido constantemente transformações[12] quando da atuação de agentes econômicos e especialistas que buscam se apropriar de parte ou da totalidade do sistema sociotécnico de base ecológica de origem local (patrimoniais). Nesse quadro de transformação dos saberes e práticas locais emerge o contramovimento de resistência local, do seu patrimônio cultural, a partir do fenômeno de hibridização de saberes e práticas por parte dos atores locais, que buscam redefinir sua identidade como sujeitos históricos. Nesse quadro de disputa pela legitimação de questões elencadas como prioritárias para a sociedade, evidencia-se pelo menos uma tensão entre diversas outras: a disputa marcada pela questão ecológica, o mercado e a burocratização.

 

A construção social de novas subjetividades: saberes, práticas, enunciados e identidades em jogo

Nesse processo de interpretação, tradução e síntese (ressignificação) de projetos identitários territoriais, presencia-se, por um lado, o fenômeno de invisibilização e subalternização de ontoterritoralidades (modos de sentir-praticar com o outro e com o território) quando, por exemplo, da imposição de modelos sociotécnicos às regiões – como é o caso da institucionalização de processos de certificação (racionalização jurídica e econômica) de agriculturas de base ecológica. Por outro lado, presencia-se, como resposta a esse fenômeno, a produção de novos sujeitos de direito e de alternatividades.

Em artigo anterior (FLORIANI; FLORIANI, 2020), foram apontados graus relativos de autonomia/dependência socioambientais de comunidades rurais tradicionais envolvidas em projetos de desenvolvimento local e de promoção da agroecologia, a partir da constituição de Parlamentos Unitinerantes. Uma das constatações da metodologia aplicada foi o peso da organização social como catalizador de autonomias. Constatamos que em municípios menores e com projetos sociais alinhados às demandas populares, os atores locais, juntamente com o poder público municipal e coletivos extensionistas da universidade, constituem parcerias positivas no que tange à disponibilização da infraestrutura (pessoal e logística) para acessar políticas públicas e recursos dos governos estadual e federal.

Por outro lado, em municípios maiores, como é o caso, por exemplo, de Ponta Grossa, Guarapuava e Curitiba,[13] historicamente atreladas às oligarquias agrárias campeiras e ervateiras que imprimiram ritmo ao processo de formação socioespacial do “Paraná tradicional”, não ocorre esse arranjo de forças espontâneo como acontece atualmente em pequenos municípios rurais, submetendo as demandas sociais da agricultura camponesa ao rolo compressor do projeto modernizador do espaço rural.

Portanto, mostra-se urgente pensar uma nova cultura de governança que possibilite ampliar e tornar mais permeáveis e participativos os processos decisórios e de governança, em diferentes escalas e dimensões, isto é, incentivando formas de representação e decisão equitativa entre academia, comunidades, poder público e ONGs atuantes em uma região, em que seja possível propor projetos alternativos ao desenvolvimento econômico imposto aos territórios rurais pelas agências estatais submetidas aos anseios do mercado.

Para tanto, não basta ampliar a participação na mesma estrutura deliberativa hierarquizada, mas ampliar as formas e gêneros de participação aos novos sujeitos de direito, incluindo nesse novo coletivo as coisas e seres de direito, próprias a cada território. Propositalmente deixado de lado pelos acordos econômicos entre países nas pautas de exportações de commodities, o patrimônio biocultural é transformado em propriedade privada e mercadoria por meio de leis de patente nacionais e internacionais, como ocorreu emblematicamente em relação à querela judicial entre a empresa Natura e as quebradeira de coco no estado do Maranhão.[14]

No estado do Paraná, o “Programa Paraná Mais Orgânicos”, iniciado em 2009, visou à certificação de estabelecimentos familiares em conversão ao sistema produtivo orgânico, produzindo efeitos interessantes no que tange aos processos decisórios relativos à normatização e à rotulagem (MICHELON et al., 2018a; MICHELON et al., 2018b). Nos dez primeiros anos, o grupo de instituições de Ensino Superior, em parceria com o laboratório oficial do estado (Instituto de Tecnologia do Paraná – Tecpar), deu autoridade ao corpo técnico de extensionistas para outorgar a marca ao grupo de agricultores familiares assistidos, prevalecendo o processo de certificação por auditagem. Na segunda fase do projeto, duas das sete universidades estaduais certificadoras buscaram abriram suas “caixas-pretas” (os conhecimentos e práticas científicas e legais da certificação por autitdagem de sistemas orgânico familiares) às organizações sociais agroecológicas,[15] convidado-as a participarem do processo a partir de suas experiências consolidadas em certificação participativa. Com isso, as metas de certificação foram pelo menos triplicadas nas regiões abrangidas.

Acreditamos que esse processo não ocorreu de forma espontânea, mas sim a partir de tensão nesse campo de produção social de conhecimento. Um canal de comunicação foi estabelecido entre essas duas unidades acadêmicas certificadoras e as organizações agroecológicas, que, ao nosso ver, reivindicaram mais autonomia nos processos de produção e certificação com base em mecanismos de controle mais participativos e includentes. Dentre as críticas evidenciadas nas publicações sobre os resultados do Programa (MICHELON et al., 2018a; MICHELON et al., 2018b), figura a crítica feita à morosidade do processo burocrático, no qual é exigido o preenchimento de requisitos legais (fundiário, renda, ambiental) necessários para ingressar no procedimento de certificação. Isto é, as caixas-pretas da certificação por auditagem fazem menção aos dispositivos e mecanismos burocráticos do estado aos quais Bruno Latour (2004) confere a amplificação e perpetuação do poder representativo e coercitivo de suas instituições oficiais sobre os outros atores.

Não obstante o terreno pouco fértil e pouco criativo da institucionalização jurídico-científica e mercadológica da agroecologia, Niederle e Almeida (2013) destacam que a heterogeneidade de trajetórias sociopolíticas das organizações sociais envolvidas impede traçar um caminho único para o desenvolvimento de mercados de produtos orgânicos.

Voltando ao processo de territorializações de projetos de natureza na região evidenciada nesse trabalho, destaca-se a iniciativa contra-hegemônica da Rede de Sementes para a Agroecologia (ReSA). Criada em 2015, a rede congrega pelo menos 19 organizações sociais,[16] atuando em diversas regiões paranaenses, com o objetivo de “fortalecer a agroecologia como modelo para a produção de alimentos, garantindo uma maior autonomia às famílias produtoras e consumidoras, promovendo o conhecimento e a multiplicação das variedades e das experiências” (RESA, 2020).

A ReSA simboliza o esforço de agricultores familiares, assentados da reforma agrária e indígenas de abrir brechas na Lei de Regulamentação da Multiplicação e Comercialização de Sementes e Mudas (Lei no 10.711/2003), permitindo-lhes a desobrigação de registrar as sementes crioulas no Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem) e tampouco no Registro Nacional de Cultivares (RNC) para fins de comercialização, troca e distribuição entre si, isto é, não ferindo a Lei de Propriedade Intelectual (Lei no 9.456/1997). A mesma Lei que institui o Sistema Nacional de Sementes e Mudas e que garante a apropriação privada do patrimônio biocultural coletivo permite, até certo ponto, a multiplicação, doação e distribuição desses cultivares privados, e já não conta, desde 2019, com subsídios financeiros por parte de políticas públicas como o Programa de Aquisição estatal de Alimentos na modalidade sementes (PAA Sementes).

Ora, esse é outro ponto importante acerca da questão da autonomia socioambiental e que toca os princípios de uma AE que se quer emancipatória: a questão do acesso pleno de agricultores(as) e comunidades tradicionais às tecnologias (FLORIANI; FLORIANI, 2020). Essa questão nos remete a um processo de subordinação e tutela de saberes e práticas locais às redes tecnocientíficas empresariais e estatais, o que vem ocorrendo já algum tempo no âmbito de sistemas de produção orgânicos no Brasil (FLORIANI, 2011).

Especificamente no caso das famílias de agricultores em transição agroecológica apoiadas pelos projetos na região dos campos gerais, grande esforço tem sido dado à configuração de bancos de sementes, mudas e propágulos crioulos. Uma atenção à ideia de região biocultural é dada como prioritária dentre as ações de resgate dos bens naturais: a diversidade de usos da floresta remontam à história de ocupação de populações autóctones e que foram apropriadas e reproduzidas no contato interétnico colonial até o presente (FLORIANI et al., 2019). Assim, o incentivo à produção da erva-mate sombreada no sub-bosque da floresta secundária e igualmente à criação de abelhas nativas (meliponicultura) são elementos próprios da região do faxinais.

Esse desafio de gerar autonomia socioambiental (em suas dimensões cognitivas, tecnológicas e associativas) a partir da construção de sujeitos agroecológicos vem sendo a finalidade de nossas ações territorializadas, e representa, de forma similar, o anseio de inúmeras iniciativas familiares, conforme aponta o relatório da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) de 2020, realizado por conta das eleições municipais no Brasil.

De acordo com o documento da ANA (2020), a Região Sul conta com 39,31% das iniciativas identificadas no mapeamento, sendo que o estado do Paraná é o que figura com mais iniciativas de promoção da agroecologia, pontuando com 147 projetos das 725 iniciativas (das quais 647 vigentes) apresentadas pela rede de pesquisadores da ANA, apoiados por “ações que possuem o poder público municipal como executor e/ou financiador (…), mas também com outros entes e atores: governo federal, governo estadual, organizações da sociedade civil, iniciativa privada e/ou organizações internacionais” (ANA, 2020, p. 10).

No diagnóstico, constam como ações de promoção ao desenvolvimento de iniciativas agroecológicas, da agricultura familiar e da segurança alimentar por parte das municipalidades no Paraná os seguintes projetos desenvolvidos: fomento à produção agroecológica e distribuição de insumos e equipamentos (24 e 11); educação alimentar e nutricional e promoção da alimentação adequada e saudável (16); alimentação escolar (26); apoio a feiras e circuitos curtos de comercialização (13); compras institucionais (7); e agricultura urbana e periurbana (14). Esses dados vão ao encontro dos temas mais acessados e demandados pelas coletividades locais no Brasil: no total, o tema mais incidente nas iniciativas foi Apoio a Feiras e Circuitos Curtos de Comercialização, num total de 113, seguido do tema Compras Institucionais da Agricultura Familiar e outros instrumentos de geração de demanda pela produção da agricultura familiar (73), mostrando, portanto, uma grande dependência dos estabelecimentos agroecológicos às compras institucionais, mas concomitantemente uma preocupação em criar circuitos alternativos de comercialização.

Em que pese o estado do Paraná ser quantitativamente diagnosticado como aquele que apresenta mais projetos em rede com parcerias na esfera local, em termos de propostas potencialmente viabilizadoras de autonomias socioambientais, em suas dimensões organizacional (arranjos institucionais locais), tecnológica (agrobiodiversidade) e educadora (formação), o diagnóstico da ANA mostrou outras regiões brasileiras com potencial inovador, destacadamente no que tange a dois temas geradores de tensões e controvérsias em discursos e práticas de agentes estatais e movimentos sociais: a Certificação e Denominação de Origem (9 iniciativas no Brasil); e Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária, isto é, adequação à legislação sanitária (20 iniciativas no Brasil).

Cabe destacar, ainda, que propostas de elaboração de políticas públicas no âmbito do poder público municipal e financiamentos municipais para a promoção de Bancos Comunitários de Sementes Crioulas aparecem apenas em uma (1) ocasião no Paraná, conforme o mapeamento organizado pela ANA: trata-se de um projeto de autoria da Aopa (Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia)[17] financiado pela Prefeitura Municipal de Mandirituba.

Levando-se em consideração que o método central de antropologia simétrica (LATOUR, 2021) deva conduzir à superação das dicotômicas Natureza/Sociedade para a leitura das realidades, e que por princípio a natureza é reflexo de meta-adaptação à cultura e vice-versa, pode-se pensar, portanto, a produção de seres e ideias pela relação simétrica e interdependente entre humanos e não humanos que ocorre por meio da tecnologia. Esses axiomas permitem à Madeleine Akrich responder à uma das questões centrais de sua antropologia das técnicas:

Sob quais condições e segundo quais mecanismos, a introdução de uma nova tecnologia pode resultar na recomposição parcial das relações que definem nossa sociedade, e ao mesmo tempo, na modificação da representação e dos conhecimentos que dela temos…Nos interessa especificamente a maneira na qual os objetos técnicos participam na construção de nossa cultura. (2006)

Ora, posto que os objetos técnicos produzem modelos de organização social e, portanto, de circulação e distribuição têmporo-espacial de saberes e práticas, portanto de relações de poder entre atores e produção, então é precisamente pelo jogo incessante entre macro e micro, interior e exterior, que se põe à prova os enunciados, as inscrições e os dispositivos de um sistema técnico e, com isso, o papel e a natureza de cada ator, as suas intencionalidades e racionalidades, envolvidas na configuração das redes sociotécnicas.

Em outros termos, a eficiência e a finalidade de um sistema sociotécnico estão calcadas na representação que cada ator da rede tem de si e do outro: os agricultores familiares de base ecológica podem ser vistos pelo centro de tradução (estado e mercado) apenas como os “apertadores” de parafuso da fábrica dos Tempos modernos, de Chaplin, ao passo que o sistema de certificação de garantia (controle) do processo produtivo pode ser visto como um objeto técnico de produção de mercadorias para novos nichos de mercado.

Esse exemplo nos ajuda a pensar sobre a importância de (f)atores (i)materiais (ético-identitário-ecológico) como dispositivos (re)formuladores de sistemas sociotécnicos produtores de sujeitos e racionalidades agroecológicos, catalisadores de autonomias socioambientais. Conforme Floriani e Floriani:

Assim, é possível tratar dessa questão a partir de três dimensões sobre a constituição dos sujeitos ecológicos: 1) sua localização em espaços que designamos como territórios da diferença” e que remetem a contextos de confronto com os demais atores sociais, principalmente aos hegemônicos (Estado, agentes econômicos de mercado, sistema das tecnociências, sistema cultural associado à racionalidade dos estilos de vida de consumo); 2) seus sistemas de práticas associados à gestão dos territórios, aos tipos de relação com a natureza e aos seus usos, com cuidados ecológicos de preservação e de reprodução das condições materiais de vida, de acordo com os princípios do socioambientalismo crítico; 3) suas experiências de vida e de associativismo voltadas a projetos de construção de autonomias socioambientais. (2020)

O movimento de (des)naturalização e ressignificação do sistema sociotécnico por parte de atores subalternos em processo de subjetivação parte do questionamento do jogo de papéis e de atribuição de responsabilidades e do reconhecimento dos atores e dispositivos (economico-jurídico-técnico) em jogo, permitindo a apropriação da tecnologia (ou de parte dela), modificando com isso as intencionalidades projetadas (as racionalidades, as representações e os mitos) em algum momento no processo de construção do objeto técnico e, assim, permitindo alterar sua condição subalterna (de quase excluídos do processo) na rede. Em outros termos, a apropriação sociotécnica permite “aos atores subalternos se auto reconhecerem coletivamente pelas suas identidades culturais (…), segundo suas capacidades enunciativas e as práticas políticas autônomas de seus recursos mobilizados” no processo de (re)produção biotecnocultural (FLORIANI; FLORIANI, 2020).

Da mesma forma, Michel Callon (2006) evidencia, por meio da Sociologia de Ator-Rede (isto é, teoria social que busca compreender as disputas e conflitos pela construção social de problemas, saberes e tecnologias por agentes e atores envolvidos em redes de socialização e controle dessas variáveis), conexões interdependentes entre ação, cognição e matéria, ultrapassando a oposição entre estrutura e agência na interpretação das formas de ressignificação e apropriação dos sistemas sociotécnicos por um dado ator ou atores da rede:

Após ter incluído os não humanos no coletivo, a SAR se esforça em analisar esses não humanos, membros de pleno direito de nossos coletivos, participando da criação de subjetividades. (p. 27)

Voltando ao projetos impulsionados a partir da territorialização do Programa Unitinerante, destacam-se alguns elementos importantes envolvendo a constituição de uma consciência ecológica por meio da qual esses sujeitos associam seus sistemas de práticas ao desenvolvimento de uma consciência ética sobre a natureza, o saber cuidar e o bem viver:

       as redes de discussão e trocas de saberes propiciadas pelos dias de campo e atualizadas e reforçadas pelas mídias sociais apropriadas pelo coletivo, a partir das quais criam-se narrativas do cotidiano da família agricultora e recria-se a memória regional para além dos seus desafios de produção e comercialização (p. ex.: socialização de receitas alimentares e de fitoterápicos);

       o incentivo da troca de mudas nativas, propágulos e sementes crioulas, assim como o incentivo à instalação de bancos de sementes nos estabelecimentos, isto é, o agenciamento dos coletivos não humanos;

       a reprodução de espécies patrimoniais regionais como a erva-mate e a meliponicultura, revitalizando espaços relegados ao desuso (esquecimento) social ou à deterioração ecológica;

       a construção social da identidade agroecológica local, a partir do agenciamento dos elementos anteriores, das narrativas coletivas, da socialização da natureza (coletivos bioculturais) e dos saberes associados que formam uma territorialidade complexa que irá se tensionar com os outros projetos agroecológicos, produzindo ou não híbridos em suas respectivas dimensões cognitiva, associativa e tecnológica.

Essa territorialidade múltipla e híbrida tem elementos mitopráticos ligados a uma ética do habitar-cuidar-cultivar camponesa ressignificada conforme as contingências históricas e materiais, simbolizada em uma marca coletiva (selo) dos produtos bioculturais das famílias agroecológicas que constituem rede sociotécnica formada também por agentes públicos e organizações sociais locais e regionais e setores da academia socialmente comprometidos.

 

Considerações

Diante do exposto, buscou-se evidenciar, por meio de uma ecologia de práticas e saberes desenvolvida a partir da teoria de ator-rede – isto é, teoria social que procura compreender as disputas e conflitos pela construção social de problemas, saberes e tecnologias por agentes e atores envolvidos em redes de socialização e controle dessas variáveis) –, uma cartografia de atores e sujeitos socioambientais envolvidos no processo de territorialização de suas práticas sociotécnicas envolvidos no processo de apropriação da temática agroecológica em comunidades rurais.

Além disso, foram destacadas algumas práticas de atores sociais hegemônicos (os macroatores ou centros de tradução da rede sociotécnica, tais como o estado e o mercado), sintetizadas no conjunto das políticas de institucionalização da AE que buscam de alguma forma atrelar princípios da alternatividade e criatividade da AE a uma lógica instrumental que responde a pelo menos duas finalidades: 1) da própria reprodução da lógica do aparato estatal (incluindo instâncias mais participativas como conselhos municipais) de subalternização política das coletividades e da perpetuação da dependência desses grupos às instâncias formais (legislações ambientais, sanitárias, de produção e de organização); 2) da subordinação daqueles dispositivos formais e legais ao mercado, privilegiando um ou outro segmento social.

Nesse sentido, acredita-se que essas propostas institucionalizadas tendem ao insucesso por tratarem-se de mais um modelo tecnológico exógeno (não autóctone) submetido às regras formais e legais de padronização produtiva e do controle da transformação dos produtos, inclinando-se à promoção da segregação social, espacial e ecológica, deixando-se, assim, em segundo plano, princípios fundamentais da agroecologia e conceitos associados a ela, tais como segurança alimentar, sociobiodiversidade, economia social e organização local, deslocando e dissipando sua potencialidade de gerar autonomias e alternatividades criativas.

Por outro lado, testemunhou-se uma (re)apropriação de sistemas sociotécnicos por parte de um conjunto de atores historicamente subalternizados, a partir da (re)sistência cultural, territorial e ambiental. Tal resistência conflui para a construção de sujeitos agroecológicos por mobilizar aos menos três dimensões: territorial (a transferência ou deslocamento dos centros de decisão e de responsabilidades para a periferia), ecológica (a conservação e manejo do patrimônio biocultural) e social (o associativismo na escala local). Tais dimensões mobilizadas poderiam catalizar sujeitos e racionalidades agroecológicos catalisadores de autonomias socioambientais.

 

Agradecimentos

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento do projeto de pesquisa Das Territorialidades Tradicionais às Territorializações da Agroecologia: Saberes, Práticas e Políticas de Natureza em Comunidades Rurais Tradicionais do Paraná” (CNPq, Universal 431468/2016-8), assim como pelo financiamento do projeto de extensão “Núcleo de estudos e Capacitação Sociotécnica de Populações Tradicionais em Agroecologia nos Territórios Faxinalenses” (CNPq 403031/2017-6).

 

 

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Como citar

FLORIANI, Nicolas; FLORIANI, Dimas; SILVA, Adnilson de Almeida; HALISKI, Antonio Marcio. Territorializações agroecológicas: saberes, práticas e políticas de natureza em comunidades rurais tradicionais do Paraná. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, e2230103, p. 1-27, 23 fev. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n1-3.

 

Nicolas Floriani

Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estágio de Pós-doutorado nas Universidades de Los Lagos (Chile), Alberto Hurtado (Chile) e Ladyss, Paris X (França).

https://orcid.org/0000-0003-1629-3218
http://lattes.cnpq.br/5059063402543231
nicolas@uepg.br


Dimas Floriani

Professor Titular e aposentado Sênior nos programas de Ciências Sociais e no Doutorado Interdisciplinar em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain  (Bélgica). Pós-doutor pelo El Colégio de México e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

https://orcid.org/0000-0002-8834-8225
http://lattes.cnpq.br/8434128019700380
floriani@ufpr.br


Adnilson de Almeida Silva

Professor Associado no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa  (UEPG).

https://orcid.org/0000-0003-2555-0861
http://lattes.cnpq.br/1636594441225024
adnilson@unir.br

 

Antonio Marcio Haliski

Professor da Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS-Pgua) no Instituto Federal do Paraná (IFPR). Doutor e Pós-doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

https://orcid.org/0000-0001-8373-8796
http://lattes.cnpq.br/8732336877263476
antonio.haliski@ifpr.edu.br

 

 

 

 

 

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[1] Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estágio de Pós-doutorado nas Universidades de Los Lagos (Chile), Alberto Hurtado (Chile) e Ladyss, Paris X (França). E-mail: nicolas@uepg.br.

[2] Professor Titular e aposentado Sênior nos programas de Ciências Sociais e no Doutorado Interdisciplinar em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain  (Bélgica). Pós-doutor pelo El Colégio de México e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). E-mail: floriani@ufpr.br.

[3] Professor Associado no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa  (UEPG). E-mail: adnilson@unir.br.

[4] Professor da Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS-Pgua) no Instituto Federal do Paraná (IFPR). Doutor e Pós-doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: antonio.haliski@ifpr.edu.br.

[5] Uma das definições que podem nos ajudar a entender o conceito de territorialidade é aquela elaborada por Saquet (2015): “significa mediação simbólica, cognitiva e prática que a materialidade dos lugares exercita sobre o agir social (SAQUET, 2015, p. 122). Ademais, derivamos dessa noção a constituição da problemática das territorializações de imaginários (projetos) e de práticas sociais que ligam questões relacionadas à produção social do conhecimento e como diferentes grupos societários produzem e dão sentidos (legitimam) às suas realidades, agenciando e transformando outras coletividades (humanas e não humanas), na configuração daquilo que poderíamos chamar de sua identidade social em um território e espaço socialmente apropriado, sua cultura-natureza.

[6] Longe de apresentar o estado da arte sobre os paradigmas científicos acerca da questão camponesa, sejam eles mais de cunho materialista ou cultural, evidenciamos alguns autores que têm contribuído para as reflexões do que são os camponeses na modernidade e o processo de recampenisação diante do processo de globalização do modo de produção capitalista, principalmente no espaço rural latino-americano. Cada autor, embora enfocando mais sobre as dimensões econômicas, ou organizacionais ou simbólicas buscam tratar do tema estabelecendo conexões entre as categorias identidade, território, trabalho e modo de vida, e suas formas de resistência e busca constante pela autonomia (CANDIDO, 1964; SAHLINS, 1978; CHAYANOV, 1981; IANNI, 1986;  WOORTMANN, 1995; DIEGUES, 1996; CARMO, 1998; WANDERLEY, 1999; ESCOBAR, 1999; BRANDENBURG, 1999; BRANDÃO; LEAL, 2002; RAFFEL, 2002; SABOURIN, 2009; FLORIANI, 2011; PLOEG, 2016; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2020, entre outros).

[7] De um ponto de visto conceitual mas também aplicado, a ecologia das práticas resulta da produção e reprodução de várias práticas (materiais e imateriais) por parte da ação dos sujeitos ecológicos e está associada a outras quatro dimensões, em interação tensa e conflituosa: usos e apropriação da natureza; cultura e valores; imaginários; tecnologias e inovação. Por sua vez, a ecologia das práticas não está dissociada da ecologia dos saberes, da capacidade enunciativa dos sujeitos ecológicos e da produção de subjetividades que possibilita a emergência de identidades coletivas e culturais (FLORIANI; FLORIANI, 2021).

[8] Especificamente, o inciso 2 do artigo IX da Lei no 10.831 de 2003 define que: “O conceito de sistema orgânico de produção agropecuária e industrial abrange [grifo nosso] os denominados: ecológico, biodinâmico, natural, regenerativo, biológico, agroecológicos, permacultura e outros que atendam os princípios estabelecidos por esta Lei.

[9] O processo cartográfico poderia ser resumido a partir dos ensinamentos de Castro, Gomes e Corrêa (2005). Eles nos ensinam que a cartografia presume a percepção e a representação iconográfica de fenômenos psicossociais que possuem uma expressão espacial. Não se restringe a uma modelização técnica guiada por princípios da matematização (as geotecnologias). Ela pode ser a expressão simbólica de atores sociais em suas diversas formas espaciais que escapam à lógica cartesiana. A cartografia social nesses termos pode ser feita a diversas mãos, em diversos contextos não acadêmicos e com diversos instrumentos (artesanalmente), pressupondo o diálogo e a horizontalidade entre saberes em jogo na confecção de símbolos e legendas. Sobretudo o objetivo principal de uma cartografia é buscar representar especialmente as formas, fluxos dos sistemas de objetos e ações que se organizam em um dado espaço vivido. A escala matemática do mapa resultante não é o elemento limitador para a elaboração desse produto.

[10] Esse processo de desmonte de políticas públicas e instrumentos jurídicos para o desenvolvimento da agricultura familiar e agroecologia tem início no Brasil antes de 2017, quando da orquestração do golpe político ao Governo Dilma Roussef. Especificamente no Paraná, ainda em 2013, instaura-se a Operação Agrofantasma, que prendeu sem provas agricultores familiares acusados de receberem indevidamente recursos do PAA. Testemunha-se, a partir de então, o desmantelamento de instituições governamentais e instâncias deliberativas paritárias ligadas à agroecologia e ao desenvolvimento rural, criadas em governos mais afeitos às demandas populares no âmbito federal e estadual, como os casos do Conselho de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar do Paraná (Cedraf), extinto e depois reinstalado às pressas no ano de 2020, e da extinção do Centro Paranaense de Referência em Agroecologia (CPRA).

[11] Nas palavras de Bruno Latour (2004, p. 35): “Por tradução entende-se o conjunto de negociações, de intrigas, de atos de persuasão, de cálculos, de violências, graças a qual um ator ou uma força é autorizada à falar ou agir em nome de outra.”

[12] Pode-se falar da proibição da roça-de-toco pela legislação ambiental e por alguns ecológos ‘duros’. Ora essa tecnologia social patrimonial extensivamente praticada em regiões rurais do sul do país eram a base do Sistema Agroflorestal Tradicional com Bracatica (Mimosa scabrella). Como outro exemplo temos a aplicação irrestrita de compostos orgânicos (cama de galinheiros e de estábulos) e produção de morangos com mudas convencionais providas de outras regiões e mesmos países. Ou ainda a utilização de microorganismos controladores de doenças e de insetos, produzidos por grandes empresas. Tais exemplos nos fazem questionar sobre a dependência tecnológica sobretudo em sistemas e transição agroecológica.

[13] Em Curitiba, após a segunda metade do século XIX, há um novo processo de ocupação do território nas franjas da cidade, o que imprimirá um novo rearranjo socioespacial quando da formação de um “cinturão verde” configurado por migrantes europeus que coadunará na organização de um sistema agrário dedicado ao fornecimento de alimentos para o abastecimento interno (em especial a olericultura) da população da capital paranaense. Tal espaço rural periurbano chegou a ser considerado em início dos anos 2000 como a região metropolitana mais rural e familiar das metrópoles brasileiras. Por outro lado, configurou-se a partir de 1980 um movimento de contestação da modernização agrícola, que coadunará na constelação de grupos de agricultura alternativa e, mais tarde, na constituição de associações de agroecologia em rede.

[14] As discussões sobre o acesso ao conhecimento tradicional envolveram, no caso das quebradeiras de coco, todo o Movimento de Quebradeiras de Coco Babaçu, que acabou assumindo a responsabilidade de gerir um Fundo criado, resultado das negociações em juízo entre a Natura e as associações de quebradeiras de coco. Apesar da Natura ter acessado um grupo específico, esse grupo estendeu a discussão ao Movimento, pois tinha consciência que o mesocarpo, como tantos outros conhecimentos tradicionais da Região Amazônica, não era de sua exclusiva propriedade. Se não fizesse esse processo de envolver os demais grupos nas negociações, haveria o risco de eclodir conflitos internos entre aqueles que pudessem se considerar detentores do conhecimento (FLORIANI et al., 2019).

[15] Como exemplo desse processo de diálogo e abertura às organizações sociais agroecológicas, o Lama, (Laboratório de Mecanização Agrícola) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) estabeleceu parcerias com o Núcleo Maria Rosa da Anunciação da Rede Ecovida de Agroecologia, por sua vez formado por 29 grupos de agricultores familiares orgânicos, e que conta com a participação de: cooperativas e associações, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lapa e São João do Triunfo, da Associação Regional das Casas Familiares Rurais do Sul do Brasil (Arcafar-Sul), da Agência de Desenvolvimento Regional do Extremo Oeste do Paraná (Adeop), da Secretaria Municipal de Agricultura, do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) da Lapa e da Escola Latina Americana de Agroecologia (Elaa).

[16] De acordo com a Resa, continuem o coletivo as seguintes entidades: Abai, Assesoar, Aopa, AS-PTA, Rede Ecovida, CPT, CAPA, MST, Terra de Direitos, Instituto Contestado de Agroecologia, Coletivo Triunfo, Centro Ecológico Terra Viva, Coletivo de Jovens de São João do Triunfo, Fecoqui-PR, Grupo Terra Jovem, Terra Indígena Pinhalzinho, Terra Indígena Laranjinha, Terra Indígena Ywy Porã e UEPG-Lama.

[17] Importante destacar que esta histórica organização social, que mais tarde associou-se à Rede de Agroecologia Ecovida, e constituiu um de seus principais membros, tinha no início de sua constituição o nome Associação de Agricultura Orgânica do Paraná. Essa alteração reflete o jogo político entre atores sociais pela disputa de sentidos e apropriação do que venham a ser as agriculturas de base ecológica.