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v. 30, n. 1, janeiro a junho de 2022 (publicação contínua), e2230102


Recebido: 30.09.2021   •   Aceito:28.01.2022   •   Publicado: 21.02.2022

Artigo original / Revisão por pares cega / Acesso aberto

 

 

A Dialética do Concreto: um aporte epistemológico frutífero nas pesquisas agroecológicas?

Dialectics of the concrete: a fruitful category in agroecological research?


orcid_id.png  Renata Gadelha [1]    •    orcid_id.png  Rosalvo Schütz [2]


DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n1-2



Resumo: Este artigo tem o objetivo de apontar como o materialismo histórico dialético, na forma como é apresentado pelo filósofo Karel Kosik, representa um aporte conceitual que permite um aprofundamento na visão epistemológica e metodológica adequado às pesquisas em agroecologia. Conceitos como totalidade concreta, trabalho, práxis, historicidade, dialética, quando utilizados conjuntamente, propiciam um avanço no potencial de análise e tematização nas pesquisas sobre o campo brasileiro, os agroecossistemas, relações de gênero, relação campo e cidade, assim como podem subsidiar a nossa compreensão quando permitem o reconhecimento da importância dos movimentos sociais para o avanço e fortalecimento da agroecologia. Diante do caráter multidimensional que a agroecologia necessariamente representa na teoria e na prática, a apropriação produtiva do pensamento de Kosik certamente poderá constituir um valioso referencial.

Palavras-chave: materialismo histórico dialético; agroecologia; metabolismo social.

 

Abstract: This article addresses how dialectical historical materialism, as presented by the philosopher Karel Kosik, represents a conceptual contribution that offers an expanded the epistemological and methodological vision suited to research in agroecology. When used together, concepts such as concrete totality, work, praxis, historicity, and dialecticsadvance the potential for analysis and thematization in research on the Brazilian countryside, agroecosystems, gender relations, and rural and city relations, and also expand our understanding by recognizing the importance of social movements to advance and strengthen agroecology. Given the multidimensional nature of agroecology in theory as well as practice, the productive appropriation of Kosik's thinking certainly represents a valuable reference.

Keywords: dialectical historical materialism; agroecology; social metabolism.

 

 

Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar a visão do materialismo histórico dialético do filósofo tcheco Karel Kosik e indicar como essa visão epistemológica e metodológica pode ser tomada como um aporte teórico frutífero para pesquisas agroecológicas. Evidentemente, isso somente será possível na medida em que nos apropriarmos produtivamente dele, tornando-o uma referência inserida no diálogo de saberes, na perspectiva de incluí-lo no contexto da compreensão mais profunda da realidade do campo brasileiro em suas intersecções entre classe, raça, gênero e natureza.

A agroecologia pode ser definida como um enfoque científico (CAPORAL; COSTABEBER, 2000; ALTIERI, 2004; GLIESSMAN, 2005), que critica o paradigma reducionista da ciência moderna, assim como um modo de vida e movimento social (GUZMÁN, 2001). Entre seus princípios podemos identificar, na dimensão ecológica, a busca da recuperação e manutenção do equilíbrio ecológico dinâmico dos agroecossistemas, bem como de sua resiliência, por meio da promoção e conservação da biodiversidade (ALTIERI, 2004; GLIESSMAN, 2005; MACHADO, 2013). Na dimensão social e cultural, há a valorização dos saberes locais, da participação dos(as) agricultores(as) no processo da construção e dos conhecimento que, colocados em práticas, procuram a autonomia e a autossuficiência das famílias, permitindo que elas permaneçam no campo; com isso, gerando emprego, renda, qualidade de vida e superando a pobreza e as desigualdades sociais (GUZMÁN, 2001). Na dimensão política, há a valorização da organização social, de movimentos sociais, com o objetivo de pressionar os governos para aplicarem políticas públicas mais justas que favoreçam o modelo agroecológico (CAPORAL, 2013). Na dimensão acadêmica, há a valorização da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, procurando superar o reducionismo do paradigma científico da ciência moderna que fragmenta os conhecimentos e é incapaz de compreender a realidade em sua complexidade e propor soluções efetivas para os problemas que surgem, assim como nessa nova forma de construção de conhecimento se dá especial atenção aos conhecimentos tradicionais de diferentes povos que, através da experiência prática, desenvolveram diversas técnicas e modos de vida que trabalham em diálogo com a natureza (BORSATTO; CARMO, 2012).

Referências nos estudos em agroecologia que buscaram avançar nas discussões sociológicas e epistemológicas, em geral, se apoiaram nas teorias do pensamento complexo de Edgar Morin (CAPORAL; COSTABEBER; PAULUS, 2005; TOLEDO; GONZÁLEZ DE MOLINA, 2007; GUZMÁN, 2011; BORSATTO; CARMO, 2012; TOLEDO;  BARRERA-BASSOLS, 2015), nas discussões sobre metabolismo social (TOLEDO, 1993; TOLEDO; GONZÁLEZ DE MOLINA, 2007) e em conceitos como coevolução (NORGAARD, 1989; GUZMÁN, 2001, 2011; CAPORAL; COSTABEBER; PAULUS, 2005; GOMES, 2005). Todas essas ideias possuem influências em comum, às vezes diretamente referenciada, logo, consciente para esses autores, às vezes não: o método desenvolvido por Marx e Engels, o materialismo histórico dialético. Loureiro e Viégas (2012), a partir dos estudos de diferentes obras de Edgar Morin, indicam a forte influência que o pensamento de Marx, sobretudo em relação ao método, teve na construção da teoria da complexidade. Já os conceitos de metabolismo social e coevolução são conceitos que, embora evidenciem aspectos específicos ou mesmo inéditos, partem, em grande medida, do conceito de trabalho[3] de Marx, que está no coração do materialismo histórico dialético. Vejamos:

Em relação, por exemplo, ao uso do conceito de “metabolismo social”, embora reconheça-se que um dos primeiros teóricos a empregar esta expressão tenha sido Karl Marx, o seu potencial de análise foi muito reduzido. Este conceito foi incorporado às discussões da economia ecológica como uma forma de quantificar o impacto da economia no meio ambiente, levando em conta uma perspectiva e os dados que a economia clássica desconsiderava. Ou seja, o conceito de metabolismo social permitiu evidenciar o consumo dos bens naturais e as externalidades geradas nos processos produtivos e que não eram levadas em conta nos cálculos de viabilidade econômica dos empreendimentos capitalistas, assim como comparar diferentes sistemas produtivos (por ex.: um sítio camponês e um empreendimento do agronegócio) (INFANTE-AMATE; MOLINA; TOLEDO, 2017).

Embora seja importante a visibilização desses números, a teoria do metabolismo social na economia ecológica ficou restrita à criação de ferramentas para quantificar o impacto do ser humano no meio ambiente. É interessante saber, por exemplo, que em 1900 o consumo total de bens naturais, pelos seres humanos no planeta, era de 7,12 gigatoneladas (Gt) e que, em 2009, havia aumentado para 68,14 Gt (INFANTE-AMATE; MOLINA; TOLEDO, 2017). Contudo, isso tem importância similar à apresentação dos números de feminicídios no mundo, no país etc. Ou seja, temos clareza de que existe um problema, mas não sabemos quais são as suas causas nem como enfrentá-lo. Nos parece que o que foi feito com o conceito de metabolismo social seria o mesmo que utilizar o conceito de relações de gênero para apenas quantificar o número de violências sofridas pelas mulheres: perderíamos boa parte de seu potencial de análise. A questão é: por que sujeitos reais começam a degradar o meio ambiente em determinado espaço e tempo histórico, sendo que em outros isso não ocorria/ocorre? É disso que se trata a expressão metabolismo social na teoria de Marx: compreender processos, transformações históricas nas sociedades, e não apenas apresentar dados de algo que se conhece, uma descrição da atualidade.

É a partir do conceito de trabalho que o metabolismo social torna-se possível, pois sem ele seria apenas metabolismo natural. É com base no trabalho que os seres humanos criam realidades distintas das “naturais”, mas que se automatizam e se reproduzem de tal forma que aparecem como se fossem naturais, por isso, o termo metabolismo: são padrões de reprodução humana e de interação humana com a natureza que se fixam em um determinado espaço e tempo, criando a economia, a sociedade, entre outras construções.

Nos parece que a noção de metabolismo social pode adquirir um significado mais apropriado, quando, por exemplo, é confrontado com a noção de totalidade concreta. Ela é uma das categorias teóricas centrais de Kosik (1969), que contribui para o fortalecimento da perspectiva de como as diferentes dimensões da vida estão conectadas: ecológica, social, econômica, cultural, entre outras. Da mesma forma, a perspectiva histórica é fundamental em sua teoria, uma vez que, como sabemos, os seres humanos fazem sua própria história, mas não sob as condições que escolhem (MARX, 2011). Além disso, na sua concepção de construção de conhecimento e realidade, através da interação dialética constante entre objetividade e subjetividade, deixa em aberto as elaborações de sentidos conforme os espaços e tempos históricos, permitindo a compreensão da formação de diferentes culturas e formas de pensar. Essas questões, no nosso modo de ver, podem contribuir para fortalecer e evidenciar elementos teóricos necessários para uma compreensão epistemológica mais adequada às necessidades agroecológicas, como é o caso da própria noção de metabolismo social. A seguir, abordamos e aprofundamos esses temas com base em algumas categorias da obra de Kosik (1969), a fim de ampliar e refinar o horizonte conceitual que se aproxime da realidade agroecológica.

         

Da pseudoconcreticidade à totalidade concreta

Kosik (1969) inicia a discussão em Dialética do concreto nos lembrando da função da ciência e da filosofia e, com isso, expõe sua concepção de realidade. Se a realidade fosse diretamente apreendida pelos sentidos humanos, não haveria necessidade da existência da ciência nem da filosofia. Ou seja, se ao entrar em contato direto com algo, imediatamente, já compreendêssemos o que é esse algo, então, investigação alguma seria necessária. Sendo assim, muito embora os dados imediatos, que nossos sentidos nos fornecem da realidade, possam parecer ser “a verdade”, num primeiro momento, eles são abstrações, pois o fato de nós vermos, tocarmos, sentirmos algo não significa que conhecemos esse algo, embora essa seja uma condição incontornável para iniciar seu conhecimento. Significa que entramos em contato com algumas características desse algo que, para ser compreendido, precisa ser pesquisado, analisado e situado, ou seja, tornar-se concreto.[4] O que não acontece espontaneamente:

Todavia, a “existência real” e as formas fenomênicas da realidade (...) são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com o seu núcleo interno essencial e o seu conceito correspondente. (...) a praxis utilitária imediata e o Fsenso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade. (KOSIK, 1969, p. 10)

O autor diferencia dois aspectos da realidade: o mundo da pseudoconcreticidade e o da totalidade concreta. O mundo da pseudoconcreticidade diz respeito ao mundo dos fenômenos cotidianos, da rotina, da familiaridade, que é reproduzido sem se indagar como e porque é naturalizado. Nesse sentido, com essa naturalização, o sujeito pode estar violentando a si mesmo, pois a violência lhe aparece como algo natural, como fazendo parte da ordem das coisas: necessária e inquestionável.

Por exemplo, a divisão sexual do trabalho é vista, por muitos, como algo natural. Podemos descrever as diferentes atividades exercidas por homens e mulheres e suas respectivas valorizações na sociedade, e isso pode ser considerado como algo que sempre foi e pode/deve continuar sendo dessa forma, assim como hoje, em muitas situações, existe a percepção de que o uso de determinados venenos no cultivo de alimentos é algo que não traz malefícios para a saúde, pois, em alguns casos, o efeito dos agrotóxicos não é sentido imediatamente. Contudo, partindo dos fenômenos e buscando analisá-los, podemos chegar a diferentes compreensões sobre eles. A divisão sexual do trabalho, por exemplo, é algo histórica e socialmente construído, logo, pode ser desconstruída e/ou modificada. E uma análise bioquímica dos efeitos dos agrotóxicos no ambiente e no corpo humano, ou mesmo um acompanhamento sistemático da relação entre certas doenças e o uso de agrotóxicos, pode comprovar aquilo que o corpo pode não sentir de imediato: seus malefícios para a saúde e sobre o conjunto do meio ambiente.

Nesse sentido, Kosik (1969) avança afirmando que, embora o fenômeno (a aparência) não nos revele a realidade, ele é a porta de entrada para ela e, por isso, não podemos prescindir dele.

O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. (...) O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos (...) A essência não se dá imediatamente. (KOSIK, 1969, p. 11)

 Para atingir a essência, no entanto, é preciso partir do fenômeno. Esse fenômeno que nos aparece pelos nossos sentidos como sendo concreto/real, na verdade é abstrato/vazio, uma vez que suas “múltiplas determinações” ainda não se evidenciaram para nossa consciência. E somente poderemos compreendê-lo por meio do processo de abstração, da decomposição teórica do todo, a fim de perceber suas interconexões reais. “O ‘conceito’ e a ‘abstração’, em uma concepção dialética, tem o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa” (KOSIK, 1969, p. 14). Porém, por mais importante que seja esse momento da decomposição, ele precisaria ser dialeticamente reinserido no todo mais abrangente, concreto. Não acontecendo esse segundo momento, o pensamento se torna parcial e unilateral.

Fazendo um paralelo com as pesquisas agroecológicas, aqui evidencia-se a importância das investigações inter e transdisciplinares que superam a perspectiva unidimensional da realidade (ou só ecológica, ou só social, ou só cultural, ou só local, ou só global, entre outras) que é insuficiente para compreender a complexidade dos problemas reais. Por exemplo, restringir o olhar apenas para uma realidade local (uma comunidade, um agroecossistema específico), sem analisar como o global afeta e interfere na dinâmica dessas localidades, como o local e o global interagem entre si, seria uma posição teórica que ainda permaneceria na esfera da pseudoconcreticidade e, portanto, marcadamente parcial. Pelo fato de a praxis do dia a dia, geralmente, se orientar por esse recorte específico da realidade, ela está na base do nosso pensamento comum que, por isso, é muito abstrato e unilateral, mesmo sendo justamente ela que fornece, incontrolavelmente, o ponto de partida de qualquer horizonte mais abrangente. Para Kosik, é preciso fazer um duplo movimento:

Da vital, caótica, imediata representação do todo, o pensamento chega aos conceitos, às abstratas determinações conceituais, mediante cuja formação se opera o retorno ao ponto de partida; desta vez, porém, não mais como ao vivo mas incompreendido todo da percepção imediata, mas ao conceito do todo ricamente articulado e compreendido. (1969, p. 29)

A compreensão da realidade desde um ponto de vista agroecológico, certamente, será tanto mais adequada quanto mais se aproximar de uma compreensão epistemológica aqui denominada por Kosik de totalidade concreta.

 

Como superar a pseudoconcreticidade?

Para poder avançar no conhecimento da realidade, superando a pseudoconcreticidade e a tendência de substituir a compreensão do todo por um recorte específico da realidade realizada pela nossa abstração, Kosik (1969) aponta a dialética, no modo como a compreende, como postura teórica mais adequada. Segundo ele, a dialética submete o mundo das representações e do pensamento comum “a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como sedimentos e produtos da praxis social da humanidade” (KOSIK, 1969, p. 16-17). Além disso, de acordo com sua concepção, dialética compreende a realidade como a unidade da produção e produto, sujeito e objeto, gênese e estrutura. Assim, é uma concepção de mundo que não o toma como sendo “pronto e acabado”, com estruturas fixas e imutáveis, seja na estrutura do universo, seja na estrutura do ser humano ou mesmo na historicidade. Daí o autor conclui que, uma vez que a realidade está em constante movimento e transformação, também a forma de tentar conhecer essa realidade deve sempre levar isso em consideração e adequar-se o máximo possível a ela. “A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza” (KOSIK, 1969, p. 19). Estamos, portanto, diante de um desafio propriamente epistemológico que certamente dialoga diretamente com o desafio de compreender de modo adequado os complexos e dinâmicos sistemas agroecológicos.

A questão se complexifica ainda mais, como já se sabe, desde o ponto de vista de qualquer compreensão agroecológica, quando consideramos que a própria realidade é uma construção constante de si mesma e os sentidos atribuídos a ela também são, simultaneamente, a criação e a participação humana ativa desse próprio “sentido”.

Da minha audição e da minha vista participam, portanto, de algum modo, todo o meu saber e a minha cultura, todas as minhas experiências (...). Na apropriação prático espiritual do mundo, da qual e sobre o fundamento da qual derivam originariamente todos os outros modos de apropriação – teórica, artística, etc. – a realidade é, portanto, concebida como um todo indivisível de entidades e significados, e é implicitamente compreendida em unidade de juízo de constatação e de valor. (KOSIK, 1969, p. 24)

Ora, se o materialismo histórico dialético parte dessa concepção, fica evidente seu potencial para analisar a diversidade, multiplicidade, de mundos existentes, tanto nas culturas quanto no meio ambiente. Nos parece que o aporte teórico de Kosik, na forma como aqui o apresentamos, permite que compreendamos diferenças culturais e ecológicas, bem como suas implicações e interpelações. Assim, se torna possível, por exemplo, compreender porque para algumas pessoas as folhas das árvores são sujeira, enquanto para outras elas são alimento para a terra. Porque para algumas culturas ter acesso a terra para cultivar e ter criações é sinônimo de riqueza, enquanto para outras riqueza é possuir dinheiro (MIES; BENNHOLDT-THOMSEN, 2000). Os exemplos seriam diversos, mas o que está por detrás disso é uma forma de compreender e se relacionar com a realidade que, justamente, permite (não anula, nega, inferioriza) observar/analisar a diversidade a partir de suas próprias condições e interconexões materiais, culturais, histórica, entre outras, de modo que precisam ser levadas em conta na perspectiva de uma compreensão pautada pelo horizonte da totalidade concreta:

O homem capta a realidade, e dela se apropria “com todos os seus sentidos”, como afirmou Marx; mas estes sentidos, que reproduzem a realidade para o homem, são eles próprios um produto histórico social. O homem deve ter desenvolvido o sentido correspondente a fim de que os objetos, os acontecimentos e os valores tenham um sentido para ele. (...) O homem descobre o sentido das coisas porque ele se cria um sentido humano para as coisas. (KOSIK, 1969, p. 120)

A teoria materialista do conhecimento, segundo Kosik (1969), compreende a consciência como tendo um duplo caráter: ao mesmo tempo que ela reflete uma realidade, ela cria esta mesma realidade: ela é reflexo e projeção, registra e constrói, é receptiva e ativa. Sujeito e objeto, no conjunto de suas interações, portanto, constituem a realidade concreta. Ou seja, nós humanos, por meio de nossos conhecimentos, consciência e ação, somos copartícipes da construção da realidade: reproduzindo a estrutura vigente, mas também com a potencialidade de construir o novo. Sendo assim, a consciência assume um papel muito importante quando pensamos em transformações sociais: a realidade a ser continuamente construída, seja pela reprodução do existente, ou pela criação do novo, é mediada pela consciência do ser humano. Dessa forma, o sujeito humano passa a ser considerado parte constituinte e constituidora tanto do conhecimento quanto da realidade material, sem, no entanto, se afirmar como sujeito absoluto, uma vez que também está inserido numa realidade natural-ecológica da qual depende. A concepção abstrata que nos isola da natureza passa, assim, a ser superada, em vista de uma visão mais ampla e concreta da realidade, na qual sociedade e natureza podem ser percebidas como partes constituintes de uma totalidade mais ampla.

A partir da dialética do concreto é possível compreender que os sentidos estão em disputa constante, que podem ser desconstruídos e reconstruídos. Por exemplo, se até por volta de 1970, na Região Sul do Brasil, os(as) colonos(as) tinham orgulho de se identificar como tal, e esse orgulho era fruto da valorização do trabalho que eles(as) realizavam, sendo o trabalho assalariado percebido como uma piora na qualidade de vida. Após a década de 1980, com o avanço da modernização conservadora no campo, a importância, o sentido, inverte-se: não há mais orgulho em identificar-se como colono(a) e o trabalho assalariado é valorizado como uma melhora na vida da pessoa (DORIGON; RENK, 2011). Contudo, os movimentos sociais do campo têm trabalhado para resgatar o valor da identidade camponesa, do modo de vida e de trabalho das pessoas que vivem no campo. Com isso, novamente, transformando os sentidos do que é ser camponesa/camponês, assim como identificando qual o sentido da agricultura, da alimentação, dos conhecimentos, entre outras necessidades. Quanto mais concreta a compreensão de todos esses fatores, mais adequados poderão ser os sentidos a orientar as práticas agroecológicas daí decorrentes.

         

A totalidade concreta como parâmetro epistemológico para a agroecologia

A partir dos argumentos apresentados até aqui, podemos concluir que quando Kosik (1969) afirma que a realidade é a totalidade concreta, ele não está sugerindo que esta seja apenas um conjunto de fatos, um acúmulo de fatos ou todos os fatos. Para ele: “Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético (...) se são entendidos como partes estruturais do todo” (KOSIK, 1969, p. 35-36). A compreensão da realidade como totalidade concreta, por isso, é um avanço diante da perspectiva de mundo mecânica, criada pela ciência moderna. O autor está convicto de que a

(...) constatação de que o estudo das partes e dos processos isolados não é suficiente; ao contrário, o problema essencial consiste em “relações organizadas que resultam da interação dinâmica, fazem com que o comportamento da parte seja diverso, se examinado isoladamente ou no interior de um todo”. (KOSIK, 1969, p. 38)

Ora, se queremos compreender o fenômeno em sua totalidade e não apenas suas partes isoladas, não faz sentido olhar exclusivamente para elas como se não dialogassem entre si e não sofressem influências mútuas. O próprio todo é dinâmico. “A dialética não pode entender o todo como um todo já feito e formalizado, que determina as partes, porquanto à própria determinação da totalidade pertencem a gênese e o desenvolvimento da totalidade” (KOSIK, 1969, p. 49). Para elucidar este ponto, apresentamos dois exemplos vinculados a concepções de natureza (humana ou não humana) que subjazem, como pressupostos ocultos, em muitas pesquisas, influenciando seus procedimentos e resultados.

O primeiro exemplo é sobre a ausência da discussão de relações de gênero nas pesquisas. Em investigações acerca dos conhecimentos tradicionais, agrobiodiversidade, o homem continua sendo apresentado como sujeito universal, padrão, desses conhecimentos (CARNEY, 1998; HOWARD, 2003, 2006; HOWARD-BORJA; CUIJPERS, 2013; PFEIFFER; BUTZ, 2005). Assim, em geral, as pesquisas têm sido “cegas” ao gênero, aquilo que se apresenta como todo concreto, na verdade, não passa de um recorte abstrato específico: pseudoconcreticidade. Essa “cegueira” pode comprometer todo o resultado delas, ao não reconhecer que os conhecimentos são construções sociais, que as construções sociais são perpassadas pelas relações de gênero e que homens e mulheres são socializados (construídos como sujeitos(as) sociais) uns em relação aos outros (masculino e feminino). Invisibilizar as relações de gênero não é apenas apagar as mulheres,[5] é não compreender fatores que determinam o próprio ser social do homem, ou seja, o homem também é apagado. Se olhamos para a comunidade tradicional, para a família agricultora, de modo homogêneo, a partir da voz e atuação apenas do “chefe de família”, permaneceremos na esfera abstrata superficial, não estaremos vendo o todo em suas múltiplas determinações, mas apenas uma parte.  Resulta daí uma objetividade fraca sobre a qual nos falam as epistemologias feministas (SMITH, 2006) e que podemos chamar de pseudoconcreticidade, pois como afirma Kosik (1969): o comportamento da parte é diferente se examinado isolado ou no todo.

Nas ciências agronômicas temos outro exemplo: os estudos de alelopatia (GLIESSMAN, 2005). Algumas plantas no seu processo de desenvolvimento liberam substâncias que apresentam diferentes finalidades para si mesma (proteção contra ataques de predadores, enraizamento, entre outros propósitos). Pesquisadores(as), ao descobrirem a existência dessas substâncias e suas diferentes potencialidades, passam a isolá-las em laboratório para comprovar a sua eficácia. Contudo, as plantas, como todos os seres vivos, são dinâmicas e se comportam conforme o ambiente no qual estão inseridas, interagindo com diversos fatores e se constituindo a partir dessas interações. Desse modo, a liberação da substância e o seu efeito no ambiente dependerá do próprio ambiente, ou seja, da relação da planta com a multiplicidade de fatores aos quais ela está ligada: outras plantas, as qualidades físico-químicas do solo, umidade, irradiação solar, entre outros. Ou seja, examinar a planta e suas substâncias fora do seu contexto representa uma visão muito restrita do seu efetivo resultado (GADELHA, 2018): seria preciso avançar para uma prática orientada por uma compreensão mais concreta.

Trazer a reflexão sobre o comportamento dos ecossistemas e sobre as possíveis implicações epistemológicas decorrentes de uma compreensão deficitária do papel constitutivo das relações sociais no horizonte agroecológico, além de indicar para uma concepção viva e dinâmica de natureza, é recordar que o ser humano não é só cultura mas, também, natureza. Portanto, não nos percebermos como seres inseridos organicamente na natureza é decorrência de um recorte abstrato, não condizente com a realidade e que, talvez, esteja na origem de grande parte dos problemas ambientais da atualidade. Do ponto de vista sugerido pela dialética do concreto, o ser humano tem essa característica da dinamicidade em comum com a própria natureza. Essa dimensão se encontra formulada em Kosik como princípio metodológico:

O princípio metodológico da investigação dialética da realidade social é o ponto de vista da totalidade concreta, que antes de tudo significa que cada fenômeno pode ser compreendido como momento do todo. Um fenômeno social é um fato histórico na medida em que é examinado como momento de um determinado todo (...): de um lado, definir a si mesmo, de outro, definir o todo; ser ao mesmo tempo produtor e produto; ser revelador e ao mesmo tempo determinado; ser revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo; conquistar o próprio significado autêntico e ao mesmo tempo conferir um sentido a algo mais. (1969, p. 40)

Essa postura teórica nos parece muito apropriada no contexto tanto na prática quanto na teoria agroecológica, uma vez que nos leva a buscar compreender e agir de modo a levar em conta as interações ambientais e produtivas como também as culturais e históricas.

 

A historicidade e a importância dos sujeitos

Além de todas essas dimensões, que podemos dizer que são dimensões do presente, estruturas atuantes no aqui e agora, segundo Kosik (1969), é preciso considerar o processo histórico de cada uma dessas dimensões. Cada uma das dimensões descritas anteriormente teve um processo histórico de formação que levou à sua constituição no presente. Elas não foram sempre da forma como são hoje e não permanecerão sendo, pois estão em constante transformação. E nesse processo, o papel do ser humano em tal dinâmica é fundamental:

a realidade social não é conhecida como totalidade concreta se o homem no âmbito da totalidade é considerado apenas e sobretudo como objeto e na praxis histórico-objetiva da humanidade não se reconhece a importância primordial do homem como sujeito. (KOSIK, 1969, p. 44).

No contexto das reflexões agroecológicas, isso implica afirmar que são os sujeitos que criam os agroecossistemas, os sistemas agrícolas tradicionais, dos quais a agroecologia extrai seus princípios ecológicos. Se perdermos de vista a interação sujeito-ambiente, a análise se torna muito reduzida/abstrata e, por vezes, equivocada. Da mesma forma, se partimos da perspectiva da totalidade concreta, é importante que compreendamos a extrema importância da dimensão política dos processos, pois nas relações sociais é por meio dessa dimensão que a totalidade se amarra de forma global. Não adianta a família agricultora criar um modelo perfeito de sustentabilidade apenas em seu estabelecimento, agroecossistema, ficando à mercê de agrotóxicos dos vizinhos, da diminuição de disponibilidade de água em virtude dos desmatamentos, de monoculturas, do aquecimento global, da diminuição da biodiversidade, de polinizadores, entre outros fatores, que continuarão ocorrendo, pois são ações do todo da sociedade que escapam do controle da família.

Partir da perspectiva da totalidade concreta é compreender que a luta pela agroecologia não pode ser feita apenas pelo lado de dentro da “porteira”. É imprescindível a luta política, que extrapola os limites do sítio e atinge as estruturas políticas municipais, estaduais, nacionais e globais. Da mesma forma, é preciso romper com a visão de que o campesinato necessita de uma “tutela política” (MARTINS, 1983), de uma elite intelectual que defenderá seus direitos nessas instâncias “superiores”. A aliança entre campo e cidade para a construção de um mundo mais justo, social e ecologicamente, só ocorrerá quando os sujeitos tiverem a consciência da importância da luta política e não transferirem a responsabilidade desta para terceiros. Diante do exposto, vemos aqui, na medida em que a análise passa a ser mais concreta, a importância da atuação dos movimentos sociais no campo, das ações conjuntas, da organização popular, da articulação política, entre outras atitudes.

 

Seres humanos e natureza

Nesse momento, é interessante observar a reflexão que Kosik (1969) faz acerca da relação entre seres humanos e natureza, e que nos parece ser mais um importante aporte teórico para qualificar a reflexão agroecológica. Segundo ele, quando estamos reproduzindo nossas ações e valores, cotidianamente, sem refletir sobre a origem delas, há uma relação com a natureza na qual esta é “humanizada”, no sentido de se tornar apenas objeto instrumental e base material da indústria: “[...] a natureza é laboratório e reserva de matérias primas, e a relação do homem com ela é relação do dominador e do criador com o material” (KOSIK, 1969, p. 67). Para o autor, a natureza não poderia ser reduzida a esta função, sob o risco de “empobrecer infinitamente a vida do homem”.

Significa arrancar pela raiz o lado estético da vida humana, da relação humana com o mundo; e, o que mais importa, (...) significa a perda do sentimento de que o homem é parte de um grande todo, comparando-se ao qual ele se pode dar conta da sua pequenez e da sua grandeza (RUBINSTEIN, 1959 apud KOSIK, 1969, p. 67).

Essa “perda do sentimento de que o homem é parte de um grande todo” seria uma das consequências desse processo de alienação no qual os seres humanos se tornam objetos, manipuláveis e controláveis, uma vez que limitados a um recorte abstrato, pseudoconcreto. Como reforça o estudioso de Marx e Kosik, o filósofo austríaco Schmied-Kowarzik:

Marx não deixa dúvida de que, por mais que as ciências naturais aumentem enormemente nosso saber da natureza, elas, em sua forma atual abstrata, munidas de leis naturais apartadas de nós, não apenas “completam de modo imediato a desumanização”, mas desnaturam também a própria natureza em suas forças vivas. (2019, p. 70

Ora, se a relação que o ser humano desenvolve com a natureza gera uma percepção desta apenas como objeto, recurso natural, manipulável, essa percepção é transposta para os próprios seres humanos, que passam a ser vistos como objetos que podem ser manipulados (incapazes/impedidos de gerar conhecimento). Decorre daí que qualquer proposta de transformação social certamente deva conter em si, também, outra concepção de natureza e vice-versa, na qual ela e a sociedade possam ser concretamente concebidas como constitutivos de um “grande todo”: a agroecologia certamente poder contribuir e, simultaneamente, ser fortalecida com esta perspectiva.

 

A razão racionalista e a razão dialética

Por trás da ciência econômica que interpreta o ser humano como homo oeconomicus, está a própria concepção de ciência no mundo moderno capitalista. Por trás da ciência moderna está o que Kosik chama de razão racionalista que leva à racionalização de todos os processos analisados mas, também, à irracionalidade.

A razão racionalista cria uma realidade que ela não pode nem compreender nem explicar racionalmente e nem sequer sistematizar racionalmente. Esta inversão não é uma transformação mística, ela ocorre porque o ponto de partida de todo o processo é a razão racionalista do indivíduo, e, por conseguinte, tanto uma forma de indivíduo historicamente determinada, como uma forma de razão historicamente determinada (1969, p. 92).

Nessa forma de razão, historicamente determinada, os juízos valorativos são supostamente excluídos da ciência, pois a sua presença significaria a perda da cientificidade da pesquisa. Assim, Kosik (1969) constata que na esfera das ações humanas supostamente a ciência pode abordar apenas os “meios” (esfera técnica do comportamento), mas nunca os fins mesmos dessas ações, já que não lhe é permitido trabalhar com valores, motivações subjetivas, entre outras práticas. Com isso, ocorre uma separação entre meios e fins, na qual os meios (as técnicas) permanecem dentro da esfera da “razão”, contudo, os fins, as avaliações, são abandonados. “Nesta concepção de razão e na realidade desta razão, a própria razão equivale à técnica: a técnica é a mais perfeita expressão da razão e a razão é a técnica do comportamento e da ação” (KOSIK, 1969, p. 94). Esse tipo de concepção certamente é um dos elementos que legitimam ações de intervenção e mesmo destruição de complexos sistemas ecológicos simplesmente para instrumentalizá-los tecnicamente para a produção de commodities, desconsiderando todas as possíveis consequências sociais e ambientais negativas dessa intervenção.

Em contraposição à razão racionalista, Kosik (1969) apresenta a razão dialética. Segundo o autor, podemos identificar algumas características fundamentais dessa dialética. Uma delas é o historicismo da razão, ou seja, a razão está em constante transformação, não existe uma “razão” supra-histórica, pronta e acabada para todos os tempos; a razão dialética parte dos fenômenos para a essência, da parte para o todo, e o progresso no conhecimento permite a revisão constante dos princípios mesmos que fundamentam a construção desse conhecimento; ela não está apenas no âmbito do pensar, mas também no do fazer, ela faz parte do processo de formação da própria realidade; e, por fim, “a razão dialética é negatividade que situa historicamente os graus de conhecimento já atingidos e a realização da liberdade humana, e ultrapassa teórica e praticamente cada grau já atingido, inserindo-o na totalidade evolutiva” (KOSIK, 1969, p. 97). Desse modo, podemos compreender a amplitude dos impactos para a vida humana com o processo de alienação do trabalho. Ao ter bloqueada sua capacidade criativa, criadora (perder o nexo com a sua força produtiva), o ser humano começa a perder sua humanidade com o avanço da hegemonia da construção dos conhecimentos pela Ciência Moderna que está a serviço da reprodução e acumulação do capital, como nos alerta Schmied-Kowarzik:

Ora segundo Marx, a alienação do homem em relação à natureza mostra-se no fato de que o trabalho cotidiano não é experimentado como desdobramento criativo das próprias capacidades e forças essenciais, mas como esgotamento e exploração crescentes das próprias forças, até o desfazimento de si; de que os bens produzidos não representam uma formação da natureza conscientemente levada a efeito pelo homem, senão antes um estilhaçamento das relações naturais de vida (...). (2019, p. 64)

Nesse sentido, o conceito de trabalho e como este está vinculado à construção não só dos conhecimentos, mas da realidade humana (e, com isso, as transformações que essa realidade efetua no mundo/natureza), é fundamental no materialismo histórico dialético. Dentro do campo de pesquisas agroecológicas e do campo brasileiro, podemos compreender com essa “constelação conceitual” (SCHÜTZ, 2012) mais abrangente, por exemplo, como a perda da autonomia pelas(os) agricultoras(es) na construção dos seus conhecimentos leva à dependência, não só de insumos/técnicos agrícolas, mas também de um modo de vida, cosmologia, impostos de fora. Permite compreender, ainda, como foi exposto, que embora o ser humano viva sempre dentro de um sistema, ele não se reduz a esse sistema, e como sujeito pode, coletivamente, transformá-lo. Encontrar os meios para essa transformação requer a compreensão das múltiplas dimensões que condicionam, na atualidade, a vida humana. Diante do exposto, evidencia-se a importância do conceito de totalidade concreta e de uma correspondente concepção de razão (dialética), não só para que compreendamos as conexões entre essas múltiplas dimensões no campo da agroecologia, mas também para que tenhamos referências epistemológicas adequadas que nos auxiliem na sua compreensão e práxis, de modo que possamos pensar estratégias de resistência e transformação coerentes com sua dinâmica.

 

Considerações finais

A perspectiva ontológica, epistemológica e metodológica do materialismo histórico dialético, na forma como foi tematizada por Kosik (1969), deixa clara a concepção de relação constante entre seres humanos e natureza. É a partir dessa concepção de que os seres humanos são, antes de tudo, natureza em devir, que nasce e se desenvolve toda a teoria. A partir dessa relação primeira da necessidade, do precisar mover-se, viver, sobreviver e reproduzir-se como ser da natureza, por meio do trabalho, que o ser humano cria a economia, cria as relações sociais de produção e reprodução e, com isso, também, todos os significados, sentidos e valores correspondentes a essa forma de se relacionar, trabalhar com a natureza e, historicamente, em cooperação com os demais seres humanos. Objetividade e subjetividade, nesse processo, não estão desvinculadas, uma condiciona a outra, constantemente, no desenvolvimento da práxis humana.

Por mais que, em um determinado momento histórico, nós tenhamos sistemas que nos condicionem e orientem a “cotidianidade” dos sujeitos, isso não significa que esses sistemas são eternos, únicos, nem necessários. São recortes abstratos da realidade que podem ser postos em questão desde perspectivas concretas mais amplas. Eles apenas são um momento histórico que tiveram um passado e terão um futuro, o qual é possível tentar prever, mas nunca determinar. O que o materialismo histórico dialético apresenta, na forma como é compreendido por Kosik (1969), é o sujeito como imprescindível na construção de sua realidade, na construção da história, logo, como sujeito que pode desconstruir o sistema vigente e criar outros, com outros sentidos, outros valores e práticas. Embora esse sujeito não seja absoluto, isto é, esteja condicionado pela realidade social e ambiental em que está desde sempre inserido e desde onde constrói sua existência individual e coletiva.

Kosik fornece valiosos elementos, tanto no que se refere a aportes e parâmetros adequados para o desenvolvimento de pesquisas em torno da agroecologia quanto da construção de uma relação não alienada entre seres humanos e natureza. Retomando alguns pontos abordados no texto, a Dialética do Concreto nos fornece uma visão mais profunda de metabolismo social com um alcance analítico mais abrangente. Evidencia-se a importância do olhar multidimensional das(os) pesquisadoras(es) no momento da construção de suas pesquisas, tendo em vista que a realidade é uma totalidade concreta e que: o comportamento da parte é diferente se examinado isoladamente ou no todo (o que tentamos evidenciar com alguns exemplos no decorrer do texto).

Abordamos também, como na totalidade concreta, é fundamental a compreensão da dialética entre sujeito e objeto, produção e produto, gênese e estrutura, para o entendimento da realidade em sua complexidade e, assim como Kosik (1969) aponta, a historicidade e o papel dos sujeitos são essenciais. Se não há agroecologia sem natureza, certamente ela também não existe sem a participação ativa de sujeitos sociais e coletivos. Nesse sentido, podemos perceber como a técnica de coleta de dados, de história de vida, pode ser frutífera nas pesquisas agroecológicas, desde que reinserida em uma totalidade concreta, cuja elaboração necessita da participação teórica ativa dos sujeitos. A importância dos movimentos sociais no avanço e fortalecimento da agroecologia também é uma percepção que se evidencia no contexto teórico proposto, uma vez que essas organizações buscam problematizar a realidade, superar a visão da pseudoconcreticidade e construir outros sentidos de diferentes aspectos da existência (o que é ser agricultor(a)? O que é agricultura? O que é natureza? O que é natureza humana?; entre outras questões), tendo em vista a transformação social em direção a uma sociedade compatível com um horizonte agroecológico.

 

 

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Como citar

GADELHA, Renata; SCHÜTZ, Rosalvo. A Dialética do Concreto: um aporte epistemológico frutífero nas pesquisas agroecológicas. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, e2230102, p. 1-21, 21 fev. 2022. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v30n1-2.

 

 

Renata Gadelha

Professora de Filosofia do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Doutora em Desenvolvimento Rural Sustentável pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).

https://orcid.org/0000-0002-6795-1412
http://lattes.cnpq.br/0076743461896357
regadelha@hotmail.com

 

Rosalvo Schütz

Professor Adjunto D nos Programas de Pós-graduação em Filosofia e em Desenvolvimento Rural Sustentável da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Doutor em Filosofia pela Universität Kassel, Alemanha.

https://orcid.org/0000-0002-4548-6652
http://lattes.cnpq.br/0920572653737862
rosalvoschutz@hotmail.com

 

 

 

 

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[1] Professora de Filosofia do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Doutora em Desenvolvimento Rural Sustentável pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). E-mail: regadelha@hotmail.com.

[2] Professor Adjunto D nos Programas de Pós-graduação em Filosofia e em Desenvolvimento Rural Sustentável da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Doutor em Filosofia pela Universität Kassel, Alemanha. E-mail: rosalvoschutz@hotmail.com.

[3] “O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para a sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio” (MARX, 2017, p. 255).

[4] Kosik se mantém na tradição marxiana, já herdada de Hegel (1995), segundo a qual o concreto é mais abrangente que o abstrato: “O concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX, 2008, p. 258).

[5] Algumas pesquisas têm apontado os problemas gerados pela invisibilização dos conhecimentos e práticas das mulheres agricultoras em todo o mundo, assim como da incompreensão das relações de gênero nas diferentes culturas, no momento de se pensar políticas públicas e formas, por exemplo, de promover/conservar a agrobiodiversidade (CARNEY, 1998; HOWARD, 2003, 2006; PFEIFFER; BUTZ, 2005; HOWARD-BORJA; CUIJPERS, 2013).