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v. 29, n. 3, outubro de 2021 a janeiro de 2020, p. 750-776
Recebido em 30 abr. 2021. Aceito em 6 ago. 2021.



Tradição em disputa: a cachaça artesanal no cenário mineiro

Tradition in dispute: artisanal cachaça in the setting of Minas Gerais

 

DOI: 10.36920/esa-v29n3-10


orcid_id.png  Daniel Calbino[1]
orcid_id.png  Mozar José de Brito[2]
orcid_id.png  Valéria da Glória Brito[3]



Resumo: As tradições inventadas são práticas que atribuem valores pela repetição, de forma a estabelecer significados que vinculam-se a um histórico. Ao mesmo tempo que representam o início de um período, essas tradições são descoladas do processo do qual emergiram, determinando a continuidade com um passado, cujos significados são mutáveis. Nesse sentido, o artigo teve por objetivo analisar os conflitos e exclusões na reinvenção da dita tradicional cachaça artesanal de alambique. Por meio de uma pesquisa qualitativa, recorreu-se às práticas e às narrativas utilizadas ao longo de quatro décadas (1982-2020) em Minas Gerais. Os achados evidenciaram uma rede de atores que se colocaram como os guardiões da tradição, ao se basearem no conhecimento técnico-científico. A mescla de antigos e novos elementos cumpriu um papel de situar a cachaça como uma nova bebida (distinta da antiga pinga), mas “tradicional”. Ainda que esse discurso tenha silenciado diversos desencaixes históricos, a narrativa operou dualismos que manteve a vinculação identitária de um grupo específico (empresários), ao mesmo tempo que constituiu de status e autoridade no papel da delimitação daqueles (a maioria dos pequenos produtores rurais) que foram os excluídos do seu processo de invenção.

Palavras-chave: Invenção da Tradição; cachaça; alambique.

 

Abstract: Invented traditions are practices that assign values through repetition, in order to establish meanings that connect to a history. At the same time that they represent the beginning of a period, these traditions are detached from the process from which they emerged, establishing continuity with a past, whose meanings are changeable. In this sense, the article analyzes conflicts and exclusions in the reinvention of the so-called traditional still-made, (alambique), cachaça. Through qualitative research, the practices and narratives used over four decades (1982-2020) in Minas Gerais were examined. The findings showed a network of actors who established themselves as the guardians of tradition, based on technical and scientific knowledge. The mixture of old and new elements played the role of situating cachaça as a new drink (as distinct from the old cachaça known as “pinga”), but also as “traditional”. Although this discourse has effectively covered over a number of historical incongruities, the narrative works on the basis of dualisms that maintain the identity of a specific group (entrepreneurs), while at the same conferring on them a status and an authority to decide who (the majority of small rural producers) should be excluded from this process of innovation.

Keywords: Invention of Tradition; cachaça; alembique.

 

 

 

 

 

Introdução

As mudanças tecnológicas e econômicas registradas no setor da cachaça, a partir do começo de 1980, trouxeram elementos relevantes para se ilustrar a invenção da tradição. Vista popularmente pela baixa qualidade, a cachaça artesanal de alambique tinha o foco em atender as classes populares representando um produto socialmente marginalizado por apreciadores dos destilados refinados e de elevado valor agregado (SILVA, 2009; PAIVA; 2017; SOUZA, 2018).

Após um conjunto de práticas de um grupo de atores mineiros, a narrativa sobre a qualidade da bebida sofreu modificações significativas que elevaram a cachaça a um patamar de alto prestígio social pelas classes média e alta. Além de migrar para diferentes estados, o movimento se respaldou na institucionalização da cachaça mineira sob o rótulo de tradicional (SILVA, 2009; THOMÉ, 2018), desassociando, simultaneamente, das populares formas de produção e consumo (MORAIS et al., 2020).

Diferente de uma concepção metafísica que naturaliza o conteúdo transmitido e esvazia a historicidade da identidade (THOMAS, 1992; COUTINHO, 2002), o caso da cachaça mineira ilustra o que Linnekin (1983), Handler e Linnekin (1984), Hobsbawm (1984) e Giddens (1994) definem de invenção da tradição. Entendida por um conjunto de práticas reguladas de forma tácita ou abertamente, a tradição inculca valores e normas de comportamento por meio da repetição (HOBSBAWM, 1984; TURNER, 1997; LUVIZOTTO, 2010; DACIN; DACIN; KENT, 2019).

A tradição inventada atua, na maioria das vezes, pela narrativa de guardiões, que mantêm a vinculação identitária do grupo e o sentido de coletividade das ações sociais produzidas (SILVA, 2005; ALBUQUERQUE, 2008; HIBBERT; HUXHAN, 2010; FRANCO; LEÃO, 2019). Ao mesmo tempo, opera-se como sinais diacríticos, isto é, conferem uma marca de distinção, tornando-se excludente ao delimitar quem se torna os “outros” (HANDLER; LINNEKIN, 1984; THOMAS, 1992; JEFFERY, 2005; LUVIZOTTO, 2010; TURETA; ARAÚJO, 2013).

No bojo desse cenário e à luz de uma ontologia construtivista, este estudo procura compreender como as práticas e narrativas de um determinado grupo de atores do campo da cachaça geraram conflitos e exclusões ao delimitarem as fronteiras da dita tradicional cachaça artesanal de alambique.

Com relação às contribuições para a área, registra-se o baixo número de pesquisas que tratam da tradição como invenção, e a tendência é a utilização da abordagem como instrumento para eficiência organizacional.[4] Dentre as exceções, destacam os esforços em indicar descontinuidades (CAMILETTI; SANT’ANNA, 2008; ALBUQUERQUE, 2008; XAVIER, 2014), formas de exclusão (TURETA; ARAÚJO, 2013; AGUIAR; CARRIERI, 2016), regimes de autoridade (COUTINHO, 2002; FRANCO; LEÃO, 2019), mecanismos de invenção (SISKIND, 1992; GRÜNEWALD, 1996; ALEXANDRINO, 2015) e manutenção da tradição (DI DOMENICO; PHILLIPS, 2009; LUVIZOTTO, 2010; DALMORO; NIQUE, 2017). Ao recorrer a um estudo interpretativo das práticas no campo da cachaça mineira de quatro décadas (1980-2020), busca-se em uma perspectiva teórico-empírica trazer elementos que permitam avançar para se pensar as tensões e contradições nos processos de invenção da tradição.

Assim, o próximo tópico deste artigo debate os conceitos de tradição, suas descontinuidades e fronteiras identitárias. Posteriormente, são descritos os percursos metodológicos e os dados produzidos são analisados a partir da análise temática buscando-se compreender a disputa da tradição da cachaça realizada em Minas Gerais. Por fim, são apresentadas as principais conclusões do artigo.

 

A invenção da tradição e suas descontinuidades históricas

No senso comum, a tradição é vista como sinônimo de costumes[5] e crenças atribuídas a um sistema simbólico herdado, passado de geração em geração. Trata-se da memória de longa duração manifesta em símbolos, vestuários, culinária, música, poesia, dança, que fazem parte de uma dada cultura (HANDLER; LINNEKIN, 1984; LUVIZOTTO, 2010).  A reificação da tradição esvazia o aspecto histórico da cultura ao divinizar o conteúdo transmitido, se apresentando como algo de qualidade dos objetos naturais, transcendentes ao sujeito histórico (THOMAS, 1992; COUTINHO, 2002). 

Linnekin (1983) e Hobsbawn (1984), em contraponto, ilustram que a tradição é mutável de acordo com determinado propósito, sem que haja perda de autenticidade no grupo portador. A tradição é um modelo consciente, e seu conteúdo pode ser redefinido a cada geração, uma vez que a sua temporalidade é construída pela ação humana. A crítica à metafísica da tradição lança mão do conceito de invenção que a define como um processo de natureza ritual. Formalmente institucionalizada, caracteriza-se por referir-se ao passado por meio da repetição quase que obrigatória (HOBSBAWN, 1984).

O exercício repetitivo de determinadas práticas inculcam valores e normas de comportamento que estabelecem e preservam a continuidade de passado considerado apropriado (LINNEKIN, 1983). Em sua invenção, assume-se algo como ininterrupto, como se existisse um passado cultural ou político que perpassasse a comunidade de praticantes de uma tradição. Dada a distância com certo passado e até mesmo a sua ausência na vivência e nas memórias cultivadas, inventou-se um para modelar o presente (JEFFERY, 2005; MENEZES, 2010).

Hobsbawn (1984) sublinha que instituições políticas, grupos e movimentos, mesmo sem antecessores, tornaram necessários à invenção que extrapola a continuidade histórica e abrem espaços para que o novo possa ser criado. As canções folclóricas acrescentaram elementos na mesma língua, muitas vezes compostas e transferidas para um repertório coral de conteúdo patriótico-progressista, embora incorporando da hinologia religiosa elementos sob o aspecto ritual. Também os símbolos e acessórios foram criados como parte de movimentos e Estados nacionais, tais como o hino nacional, a bandeira nacional, ou a personificação da “Nação” por meio de símbolos ou imagens oficiais. Isso significa que os conceitos relacionados à tradição são produzidos pelos atores sociais que utilizam da história como legitimadora, na construção de seus propósitos (LINNEKIN, 1983; GRÜNEWALD, 1996). Os símbolos de identidade são particularmente propensos à “reconstituição ou reconstrução” porque são selecionados para dar ênfase (EISENSTADT, 1973).

Ao se analisar as tentativas de continuidade entre passado e presente, o que se observa, muitas vezes, são desencaixes, quebras e rupturas. Por exemplo, Handler e Linnekin (1984) citam que os havaianos modernos abraçaram o violão slack-key e o ukelele como um acompanhamento indispensável para todas as festas e banquetes de luau, assim como o salmão é um prato necessário para uma celebração havaiana “genuína”. No entanto, o slack-key é uma adaptação dos estilos musicais introduzidos, o ukelele é atribuído a imigrantes portugueses do final do século XIX e o salmão lomi é feito da carne vermelha, ambos, introduções estrangeiras.

Formas de desencaixe da tradição são encontradas também no estudo de Camiletti e Sant’Anna (2008) sobre a produção das panelas de goiabeira em Vitória – Espírito Santo. Antes a sua produção ocorria em casa, para consumo próprio, passada de pai para filho. Porém, o potencial de tornar um item de cozinha em mercadoria artesanal, mudou a dinâmica da produção. Novas pessoas entraram no processo, a produção saiu do ambiente caseiro para o fabril, rompendo com os costumes da produção familiar. Porém, na narrativa, as panelas são apresentadas como itens da cultura de um determinado povo, vistas como uma repetição, cuja descontinuidade não é relatada, mas inventada a partir de uma linha contínua entre o passado e o presente.

Outra forma de invenção da tradição é a mescla do antigo e do novo que se confundem em um ideal de passado, conforme ilustra Siskind (1992) sobre o feriado norte-americano, o Dia de Ação de Graças. O ritual, simbolizado pelos membros das famílias festejando com o peru recheado, batata-doce e molho Cranberry, evoca a narrativa de se sentirem membros de uma nação, de uma comunidade imaginada (ANDERSON, 1993), ao longo de 400 anos de tradição. No entanto, a sua forma atual é marcada por descontinuidade e uso de novos elementos, a partir do final do século XIX. O primeiro desencaixe é a data, que não coincide com a histórica festa de Playmouth, interpretada como um festival da colheita, elaborada pelos ingleses para manter a aliança com a colônia dos índios. Da mesma forma, a busca pelo primeiro local do Dia de Ação de Graças faz parte de um mito de origem, uma vez que os estados do Sul, nos anos seguintes à Guerra Civil, não aceitaram um dia que celebrava a reunificação da nação.

O Dia de Ação de Graças se tornou um feriado nacional estabelecido e significativo, somente em 1875, a partir de negociações que atenderam aos interesses de um retorno à supremacia branca, em determinadas regiões dissidentes, combinando com tons religiosos puritanos da festa de outono. Além disso, se as primeiras festas de colheitas de Playmouth eram em toda a comunidade, a tradição emergente a substituiu pela ênfase na família. A casa se tornou o local de desempenho ritual, em contraste com as primeiras ações de graças que envolviam uma dinâmica congregacional. As descontinuidades históricas na invenção do feriado americano ilustram, como exemplo, um projeto de tradição que ofusca a comunidade, construindo a família e a nação com as únicas referências de integração, e utilizando a aparência das relações familiares como exigência e prova da identidade nacional (SISKIND, 1992).

 

Os guardiões da tradição e o caráter identitário-excludente

Para que a tradição seja transmitida aos membros de uma determinada comunidade é necessário que haja um intérprete, o guardião. Caracterizado pelo papel de autoridade na ordem tradicional, ele está diretamente ligado à verdade formular e/ou ao sagrado (GIDDENS, 1994; SILVA, 2005; LUVIZOTTO, 2010). Os guardiões têm acesso privilegiado à verdade, na medida em que se manifesta na capacidade de interpretar e transformar a tradição em práticas, constituindo de status e autoridade no papel da delimitação da identidade. Nas tradições seculares, os guardiões geralmente eram representados pelos sacerdotes, ou xamãs, que reivindicavam ser os porta-vozes dos deuses, relacionadas ao sagrado (GIDDENS, 1994).

Na Antiguidade, exploravam a festa, a dança, os cantos e os rituais para disseminar e preservar a identidade. A estrutura familiar também foi relevante para a tradição, quando os mais velhos cumpriam um papel de autoridade na sua transmissão. As informações passadas de geração a geração por meio de narrativas apoiadas pela memória dos mais velhos, com uso de artefatos que amparavam a memória, foram meios usados para a sua criação e/ou manutenção (LUVIZOTTO, 2010). No contexto da modernidade, o guardião foi reinventado a partir da figura do especialista, do perito. A tradição passou a reincorporar o discurso técnico-científico, que modelou os símbolos, as suposições, os preconceitos de comportamento para a identidade coletiva. As mudanças nas figuras dos guardiões, no entanto, não alteraram as relações de poder. A interpretação monopolizada pelo guardião constitui uma verdade acessível apenas aos iniciados, isto é, aos que aceitam a verdade relevada por ele e, consequentemente, o seu status. A identidade do eu vincula-se ao envolvimento com o ritual, diferenciado em relação ao outro a partir do discurso do especialista (SILVA, 2005).

Um exemplo de mudanças de guardiães na modernidade é relatado por Grünewald (1996) e Albuquerque (2008), no caso da comunidade indígena de Atikum-Umã, no sertão pernambucano. Na década de 1940, um grupo se afirmando como caboclos descendentes de índios reivindicou ao Serviço de Proteção ao Índio o reconhecimento oficial de uma reserva indígena. Todavia, para tal reconhecimento, o órgão governamental impôs (na figura de autoridade técnica) a demonstração de uma tradição esquecida ou desconhecida pelos caboclos: o Toré, uma festa de caráter sagrado, em que se dançava em círculos ao som de maracás e cantigas. Foi pedido aos caboclos que escolhessem uma pessoa, a ser chamada de cacique, para representar seus interesses no órgão tutor, e outra, a ser chamada de pajé, para cuidar do Toré.

A justificativa dos técnicos foi que os “remanescentes de índios” nordestinos não poderiam ter outras tradições a exibir, logo, o Toré seria o paradigma que permitiria o status de índio e de território para uma reserva. Ao resgatar a autoridade de especialistas em “índios”, definiram aos próprios índios o que era ou não objeto de sua identidade. O caso ilustra também como a tradição do Toré foi a tentativa de estabelecer uma continuidade numa história nitidamente descontínua, intencionalmente gerida pelos guardiões modernos (técnicos, especialistas nos índios), para sustentar uma etnicidade que emergia de forma pragmática e utilitária.

Enquanto os guardiões cumprem a função de delimitar as fronteiras da tradição, merece ainda destacar os múltiplos objetivos que a perpassam. O discurso da tradição pode cumprir ao menos três perspectivas: a) aquelas cujo propósito é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento; b) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades; e c) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade (HOBSBAWN, 1984). As duas primeiras perspectivas estabelecem um conjunto de rituais que possibilitam a constituição da identidade de um determinado grupo. Hobsbawn (1984) sublinha, por exemplo, o uso do espírito de equipe, da autoconfiança, da liderança das elites desenvolvidos por meio de costumes esotéricos, que manifestam a coesão de um superior oficial.

Essa identidade coletiva, na coesão, entretanto, camufla as condições de desigualdades entre os envolvidos. A tradição pode incentivar o sentido coletivo de superioridade das elites – especialmente quando estas precisam ser recrutadas entre aqueles que não possuem este sentido por nascimento ou por atribuição – ao invés de inculcarem um sentido de obediência nos inferiores (WEBER 1978; HIBBERT; HUXHAM, 2010). Ao mesmo tempo que a tradição integra, que cria sentidos de compartilhamento de valores do passado e mantém a vinculação identitária do grupo, ela exclui por delimitar quem não irá participar ou não pertence à tradição (DI DOMENICO; PHILIPS, 2009; LUVIZOTTO, 2010; FRANCO; LEÃO, 2019).

A ideia de nação e suas formas de tradição são recortes da realidade, são categorias para classificar pessoas e espaços e, por conseguinte, demarcar fronteiras e estabelecer limites. A marginalização, a discriminação daquele que não é iniciado, portanto, o outro (eles), é fundamental para fortalecer o status daquele que detém o poder. O outro está fora, a verdade formular lhe é confiscada (SILVA, 2005). Alexandrino (2015) constatou formas de exclusão ao analisar uma antiga escola secundarista no interior do Rio Grande do Sul. A tradição do colégio na comunidade, uma escola para a formação das elites locais, legitimava um discurso de qualidade presente nas práticas educativas e no quadro de professores competentes. No entanto, a inserção das camadas populares na instituição permitiu as relações dessas com as camadas mais abastadas, tornando o corpo discente mais heterogêneo, o que gerou conflitos e segregações socioculturais. Enquanto a maioria dos alunos da elite era chamada pelo sobrenome, reproduzindo a “tradição” das gerações anteriores, os novatos, de origem popular, eram referenciados apenas pelo primeiro nome.

Em similaridade, os estudos de Aguiar e Carrieri (2016) observaram as fronteiras de identidade que demarcaram a tradição no setor circense da região Sudeste. Os sujeitos dos discursos enunciavam uma competição entre pessoas que possuíam algo em comum (arte circense) com as “outras”. O tradicional e o não tradicional eram entendidos como os de circo (nasceu no) e os que vêm para o circo (vem do teatro ou outro lugar que não o circo). Para o enunciatário, “Você é de circo?”, buscava-se algo inerente, que não se adquire, fazendo que a pergunta se caracterizasse como barreira para o outro. Nessa tradição inventada, o uso da linguagem caracterizando o igual e o diferente reificou a tradição do circo como portador de identidade coletiva e integrador de sujeitos, ao mesmo tempo que excluiu aqueles que não faziam parte do nascimento.

 

Metodologia

No intuito de investigar os conflitos e exclusões na reinvenção da tradicional cachaça artesanal de alambique, adotou-se uma abordagem qualitativa de pesquisa. O método se justifica por facilitar a leitura do campo de forma contextual, identificando, a partir de elementos narrativos, os fatores que inventaram os discursos da tradição da cachaça, em quatro décadas.

O processo de coleta de dados seguiu dois percursos: a pesquisa documental e entrevistas em profundidade. A investigação documental mantém coerência com a própria abordagem crítica à metafísica da tradição, uma vez que recorre à historicidade para a compreensão de descontinuidades no passado das organizações (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUIDANI, 2009). Foram revisadas matérias jornalistas em meio digital, revistas especializadas sobre a cachaça mineira, legislações estaduais e federais, artigos, dissertações e teses que trataram das práticas e consequente percepção da tradição mineira no período de 1982 a 2020.

Quanto às entrevistas qualitativas em profundidade, foram escolhidas em vista da sua coerência com a ontologia construtivista, uma vez que apresentam o potencial de explorar temas, descrever processos e compreender elementos passados, na interpretação e construção dos sujeitos envolvidos (DUARTE; BARROS, 2006). As entrevistas, realizadas entre 2018 e 2020, contemplaram atores que atuaram na liderança do estado e/ou presenciaram a invenção das narrativas da cachaça como produtores da Região Sul e Metropolitana do estado. No total, foram analisadas 70 páginas de documentos e 10 horas de gravação que foram em seguida transcritas para o software Word 10.

 

Quadro 1 Relação de entrevistados e pesquisa documental

Fonte de dados

Atores e instituições

Excertos da pesquisa

Entrevistado 1

Pesquisador da Universidade
Federal de Minas Gerais

1

Entrevistado 2

Técnico do Indi – MG

2, 3, 4, 8

Entrevistado 3

Diretor da Associação Mineira de Produtores de Aguardente
de Qualidade (Ampaq) e Produtor

5, 7

Matérias na Mídia

Plataformas on-line de
jornais, revistas e leis

6, 9, 10, 11, 13

Entrevistado 6

Produtor de cachaça

12

Entrevistado 7

Produtor de cachaça

14

Entrevistado 8

Membro de
entidade paraestatal

15

Entrevistado 9

Associado Ampaq e
prestador de serviços

16

Entrevistado 10

Produtor de cachaça

17

Entrevistado 11

Consultoria na
área de cachaça

18

Entrevistado 12

Diretor da Ampaq
e produtor

19

Entrevistado 13

Produtor de cachaça

20

Entrevistado 14

Produtor de cachaça

21

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

Para o tratamento dos dados recorreu-se às quatro etapas do método de análise temática, proposto por Braun e Clarke (2006), que visa entender os significados implícitos transmitidos pelas mensagens no conteúdo das narrativas. Na primeira etapa foi realizada a leitura do banco de dados pelos métodos documentais e de entrevistas, para entender o ambiente da pesquisa e reunir descrições do contexto institucional, dos anos de 1982 a 2020. Na etapa dois buscou-se compreender os condicionantes históricos que levaram aos propósitos da invenção da tradição, bem como os elementos adotados para a sua invenção. Os estudos de Linnekin (1983), Handler e Linnekin (1984), Hobsbawm (1984) e Giddens (1994) guiaram os resultados, ilustrados nos excertos 1 a 8 da pesquisa.

Por fim, na etapa três, o cruzamento dos dados empíricos com as análises teóricas possibilitou apontar, nos excertos 9 a 18, as práticas que corroboraram a fronteira identitária e consequente excludente, no setor da cachaça mineira. Para a apresentação dos resultados, buscou-se incorporá-los de tal maneira a ilustrar a narrativa da pesquisa nas consequentes mudanças cronológicas do campo da cachaça mineira. No entanto, trata-se de um recurso didático, uma vez que se compreenda que as formas de invenção da tradição se imbricaram, de forma dinâmica durante quatro décadas.

 

A invenção da tradição a partir de novos guardiões

Diferente do estado da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro, a produção da cachaça mineira, ao longo de sua história, se fundou no consumo do mercado regional. Ainda que sejam poucos os estudos sobre a genealogia da bebida no estado, Silva (2015) levanta a hipótese de que a sua chegada ocorreu concomitantemente com a vinda dos portugueses e bandeirantes. Os primeiros relatos, segundo Dias (2016), são de 1703, de um barril de aguardente que acompanhava os viajantes nas estradas para dentro do estado. Logo, é provável que a sua raiz esteja na descoberta do ouro que levou à formação de povoados em torno dos garimpos auríferos e de diamantes.

Em Minas Gerais, os polos de produção foram mudando geograficamente. Oliveira (2000) aponta que determinadas cidades e regiões já lideraram a produção, como Ponte Nova, Curvelo e depois Januária, que foi perdendo o protagonismo e sofrendo descontinuidades para outras regiões, como a cidade de Salinas (atualmente considerada a capital da cachaça).

Merecem destaque as inovações tecnológicas na produção da cana-de-açúcar, que impactaram o setor, a partir da década de 1940. Se o costume de produção em todo o Brasil era por meio de alambiques, com as mudanças tecnológicas a cachaça adotou processos industriais em destilarias de coluna. A inovação foi capaz de aumentar substancialmente o volume de produção, conforme registra um dos pesquisadores da UFMG: “Enquanto na cachaça de alambique se produz cerca de 60 mil litros durante a safra, na industrial, de coluna, tem produtores que chega até um milhão de litros” (excerto 1 do Quadro 1, 2020).

Nas décadas seguintes, Minas Gerais optou por manter a produção das cachaças no formato de produção de alambiques (bem como, em outras regiões do país), no entanto, passou também a sofrer concorrência das cachaças industriais que entraram no mercado mineiro com preços mais competitivos. Segundo uma das lideranças responsável pela articulação da narrativa da tradição:

Perguntei para um produtor por que ele não fazia alguns melhoramentos em sua fábrica? Tive como resposta: Sou vizinho de uma grande destilaria de aguardente. O preço de venda dela se iguala ao meu custo de produção, nessas condições, estou pensando em fechar o meu alambique. [...] Em várias regiões onde a produção da cachaça industrial se instalou, a produção da cachaça de alambique deixou de ser viável e a maioria dos produtores deixou de fabricar. (Excerto 2 do Quadro 1. CANA BRASIL, 2020)

Neste contexto de perdas de mercado, a invenção da tradição da cachaça mineira emerge concomitante com outras iniciativas pelo país. Na cidade de Paraty, No estado do Rio de Janeiro, em 1982, criou-se um festival da pinga, no intuito de resgatar a tradição da bebida para alavancar o turismo local. O esforço institucional consolidou-se na obtenção da certificação de Indicação Geográfica[6] (DIAS, 2016), que tende a favorecer reservas de mercado.

Registram-se também tentativas no estado da Paraíba, uma década depois, em associar a produção artesanal da cachaça à reconstrução dos mercados locais. No entanto, a frágil ausência de políticas públicas e de uma rede de atores dificultou a imagem mercadologia de tradição no restante do Brasil (CAVALCANTE, 2013). No caso mineiro, o mais “bem-sucedido” na invenção da tradição, as iniciativas ocorreram em 1982, a partir de um conjunto de investigações realizadas por técnicos do Instituto de Desenvolvimento Industrial, órgão do governo do estado. Inicialmente diagnosticaram, através de um cadastro dos produtores de aguardente de Minas Gerais, que o mercado era formado por 1.500 fábricas de aguardente e apenas 15 com tecnologia industrial. O perfil dos “tradicionais” produtores de cachaça, até 1980, era de: “pessoas que viviam na informalidade (99% dos cadastros), e utilizavam da produção da bebida com uma fonte de complemento as rendas obtidas pela agricultura familiar” (excerto 3 do Quadro 1. CANA BRASIL, 2020).

No entanto, também observaram que muitos consumidores de poder aquisitivo gostavam de ir à “roça” na busca da cachaça de um determinado produtor, o que indicava uma oportunidade de atuar em um novo nicho. Assim, desenvolveram um projeto de pesquisa de diagnóstico do setor (pesquisa de mercado), constatando o potencial do investimento na cachaça artesanal, sob o status de um produto de maior valor agregado, conforme indica um técnico do estado:

Com esta motivação fiz o estudo de viabilidade, constatei que um novo modelo produtivo era economicamente viável, lucrativo e se pagava em pouco tempo. Comecei então a conversar com jovens empreendedores estimulando-os a apostar neste negócio. [...] De modo geral a atividade rural é pouco lucrativa, mas a cachaça é bastante lucrativa. Então houve uma demanda porque era uma forma de ter mais renda na fazenda. Os fazendeiros enxergaram a oportunidade de ganho em se tornarem produtores de cachaça. Engenheiros, Médicos, advogados, juízes, jovens ousados, estudados e de alto nível, se interessaram pelo negócio. (Excerto 4 do Quadro 1. CACHACIÊ, 2017)

A delimitação do novo perfil de parte dos produtores estabeleceu uma descontinuidade nas antigas formas de produção, o que ilustra como as práticas tradicionais são modificadas, ritualizadas e institucionalizadas para servir aos novos propósitos (HOBSBAWN, 1984). Não seriam mais os produtores tradicionais, com baixo nível de conhecimento formal, descapitalizados financeiramente, que fariam parte da empreitada, mas engenheiros, médicos, juízes e jovens empreendedores que, mesmo não tendo a “tradição” da produção herdada de seus antepassados, enxergaram a oportunidade de ganho em se tornarem produtores de cachaça.

Os motivos da integração de um grupo de produtores distintos do costume, segundo um diretor da Ampaq, ocorreram pelo fato de os empresários terem o perfil “necessário” para adotar a modernização nos processos produtivos que uma nova bebida, mais sofisticada, exigia:

E o trabalho que foi feito na Ampaq, os primeiros esforços da Ampaq eram pessoas que não eram aquele povo tradicional. É aquele cara – igual que eu falei – que saiu da roça e foi pra capital. É um cara com uma visão mais empresarial do que aquela turma mineira tradicional que conta piada: “Ah tá dando certo desse jeito, eu não vou mudar”. [...] O produtor tradicional é o que já fazia de pai para filho, que aprendeu com o pai dele e dizia, eu não vou mudar, meu pai fazia isso há trinta anos. [...] Porque essa turma era praticamente impossível trabalhar com ela. Esses caras pensavam, se eu pago minhas contas com isso aqui, se eu eduquei os meus filhos com isso aqui, por que é que eu vou melhorar? Já o cara que tem uma visão mais empresarial, que está na capital, é diferente. Então daí começou com essa turma. (Excerto 5 do Quadro 1, 2020)

O uso da expressão tradicional indica um sentido duplo do que será utilizado pelo mesmo grupo para enaltecer a perspectiva mercadológica da cachaça mineira. Sua intencionalidade é para referir-se a algo ultrapassado, vista como um limite à inovação, por seguir “a tradição” e logo não querer mudar as antigas formas de produção. Na narrativa é possível notar ainda a alternância da autoridade dos guardiões. Se, na Antiguidade, a conservação da tradição é mantida ou repassada pela figura familiar, dos mais velhos, de pai para o filho, que detém o saber, na fala do produtor esse ritual simboliza uma negatividade da tradição a ser mudada em prol de inovações tecnológicas, representando a reinvenção da figura dos guardiões na modernidade (GIDDENS, 1994; SILVA, 2005; LUVIZOTTO, 2010).

Os novos guardiões passaram a ser os técnicos especialistas do governo, os fazendeiros “da capital” e empresários com a “visão moderna” de negócios (que querem ganhar dinheiro), para a elaboração de uma bebida de status superior. É interessante notar, contudo, o caráter paradoxal da modernidade: se, por um lado, a “verdade” dos guardiões exigia um comportamento moderno do produtor como fronteira identitária, por outro, os condicionantes vieram da modernidade tecnológica vista como uma ameaça, a partir de um produto industrializado (a cachaça industrial) que afetava o mercado das tradicionais formas de produção da cachaça de alambique (artesanal).

Nessa ambiguidade de narrativas, um grupo de 30 produtores com perfil empresarial fundou a primeira Associação Mineira de Produtores, denominada Aguardente de Qualidade (Ampaq), em 1988. A simbologia da etimologia “qualidade” servirá como a fronteira identitária da bebida mineira em relação às demais. Ancorada nas formas tradicionais de produção em alambiques, ao mesmo tempo foram incluídos novos elementos, o que é apresentado como um “case de sucesso” em matéria da mídia:

Conheça a pinga mineira. Profissionais explicam essa excelência. [...] Com o passar dos anos esse cuidado no preparo da bebida justificou a fama da pinga mineira. Segundo o produtor, o mercado está em crescimento e, para atender à demanda, seu alambique desenvolveu o que chama de “artesanal otimizado”. É a tecnologia aplicada a um produto tradicionalmente feito de maneira rústica. Investimos em qualidade e higiene, sem alterar o conceito de produção artesanal. (Excerto 6 do Quadro 1. FIUZA, 2013)

O fragmento indica que as formas da invenção da tradição, segundo Hobsbawn (1984), trazem elementos antigos para fins bastante originais, a partir de uma linguagem elaborada, composta de práticas e comunicações simbólicas. Às vezes, as novas tradições são prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual do simbolismo. É o caso da cachaça mineira que reproduz o discurso de velhas práticas, a fabricação da cachaça em alambiques e a relação com as ditas regiões históricas, introduzidas em modernos elementos, como os melhoramentos tecnológicos. A frase “artesanal otimizado” ilustra a justaposição de novas práticas de produção (qualidade e higiene), sem perder a sua “tradição”, ou seja, a produção artesanal. O mesmo fenômeno do uso de novos elementos no “tradicional” ocorreu no design da bebida, as embalagens das cachaças que antes reproduziam a tradição das garrafas no formato de cerveja tiveram, segundo um dos produtores, que inovar nos rótulos, em vista da concorrência com outras regiões do país:

Eu acho que a cachaça mineira, ela teve que evoluir muito. Por quê? Minas Gerais tem uma tradição muito forte dos rótulos de garrafa de cerveja, né? E muita gente só trabalhava nesse mercado e, esse mercado, é muito bom para Minas Gerais, mas nos outros estados, a tendência não é essa. Então, a gente teve que aprender a trabalhar melhores rótulos, melhores garrafas, né? Teve um caso de um camarada do Rio Grande do Sul que fez um trabalho muito bom e atrapalhou... Complicou o mercado e isso assustou o mineiro... (Excerto 7 do Quadro 1, 2020)

O estudo de Souza (2018) acerca do design de cachaças mineiras parece corroborar as evidências do empréstimo fornecido do ritual do simbolismo (HOBSBAWN, 1984). Em sua análise, constou que as embalagens resgatavam um valor de rústico, ao reproduzir desenhos de fazendas em tons neutros, de campos com plantações de cana, inspirando as tradições mineiras regionais. Ao mesmo tempo, recorreu-se aos artefatos modernos do uso de selos que indicam o tempo de envelhecimento das bebidas, dos prêmios obtidos em competições mundiais, envoltas em caixas de maneira que as acompanhavam, lembrando as de uísque, de alto valor agregado.

Do ponto de vista cultural, merece destaque as práticas da criação de roteiros turísticos da cachaça e festivais gastronômicos em cidades históricas, na década de 1990, conjuntamente com o apoio da mídia, no intuito de associar a cachaça às identidades locais. Conforme elencou um dos técnicos do governo estadual:

A mídia apoiou integralmente, havia um espírito de nacionalidade, tudo que era feito virava notícia positiva. Uma das ações acertadas foi o Festival de Cachaça de Sabará. Isso foi um marco muito importante. A Ampaq teve apoio da Prefeitura de Sabará para a sede ser lá. Sabará era perto de Belo Horizonte, uma cidade histórica; nós queríamos ligar a cachaça a uma cidade histórica. Por outro lado os eventos em Sabará eram concorridos. Este evento feito pela Ampaq durante alguns anos foi um sucesso, tanto que a estrada ficava congestionada (Excerto 8 do Quadro 1. CACHACIÊ, 2017).

A relevância de um evento de cachaça em uma cidade histórica cumpre um caráter estratégico de associar, simbolicamente, uma bebida que se propõe a ser conceituada como tradição a uma região histórica, que já tem legitimidade institucional por ser um patrimônio cultural. Ao mesmo tempo, busca-se ligá-la a um passado “tradicional”, referenciado a uma cidade que foi caracterizada pela exploração do ouro, e consequente berço das primeiras formas de consumo da bebida no estado. O esforço associativo é aquilo que Linnekin (1983) ilustra sobre a tradição como um modelo consciente (pensado estrategicamente pelos atores mineiros), cuja intencionalidade é a sua invariabilidade. Ou seja, a busca por uma continuidade com um passado apropriado, ininterrupto, o que a torna uma invenção, uma vez que não há evidências históricas de que a cidade de Sabará tenha sido um polo da cachaça nos últimos 300 anos no estado.

Na elaboração dos discursos da tradição, um forte aliado entra em cena no final da década de 1990, os pesquisadores das universidades mineiras. A partir do incentivo de políticas de editais para os temas da cachaça e da rede de pesquisadores mineiros, foram criadas as condições para a fundamentação de um regime de verdade, o conhecimento científico, que passou a definir os parâmetros “corretos” de se produzir a cachaça. A legitimação do conhecimento técnico se fundou em pesquisas que passaram a orientar, com base em evidências empíricas, as formas de cortar a cana, da higienização do alambique, do processo de moagem e destilação, do armazenamento e envelhecimento da bebida.

Além disso, os estudos de melhorias no processo de controle biológico da fermentação e o uso das análises fisioquímicas sobre a contaminação serviram para delimitar as políticas que normatizaram o setor. Desta forma, se a Ampaq e o Indi já vinham se articulando para determinar limites aos padrões de qualidade para a bebida na década de 1990, com avanços de estudos na academia foi possível consolidar as metodologias de análises para a avaliação da cachaça, e suas condições “científicas” para distinguir a cachaça de qualidade das demais. Não é por menos que a Lei no 13.949 de julho de 2001 estabeleceu o padrão de identidade e as características do processo e elaboração da “Cachaça de Minas”, conforme se observa no discurso a seguir:

Desnecessário enfatizar o quanto a cachaça de alambique é importante para Minas e para o País, representando um produto que espelha a nossa cultura e tradição, sendo uma bebida de paladar verdadeiramente regado de mineiridade. Obra de arte marcada por segredos de fabricação e critérios de qualidade, a cachaça artesanal produzida em Minas Gerais guarda uma tradição de mais de 300 anos. Aspectos estes mais do que suficientes para demonstrar a tradição e importância do produto na economia e no mercado nacional. (Excerto 9 do Quadro 1. Projeto de Lei no 1911/ 2004)

O respectivo fragmento ilustra o discurso de um deputado estadual, em defesa da transformação da cachaça como um patrimônio cultural de Minas Gerais. A proposta, futuramente concretizada na Lei no 16.688, de 11/1/2007, se justifica nos argumentos de que a cachaça mineira tem elementos “mais do que suficientes” para demonstrar a sua tradição.

Chama à atenção o uso da expressão “mais de 300 anos” no cenário nacional, como uma visão contínua do peso da cachaça mineira no país. No entanto, se comparadas com outras regiões do país, perde em mais de um século de “tradição” para São Paulo e Bahia. Estima-se que suas raízes, no Brasil, encontram-se na Bahia em 1610 (CAVALCANTE, 2011) ou mesmo na hipótese de um período anterior, em 1532 no Engenho dos Erasmos em São Vicente – São Paulo (ALMEIDA; DIAS, 2018). Ainda que não seja consenso sobre o local de origem, em Minas Gerais a cachaça chegou, pelo menos, em 1703 (SILVA, 2015).

Quanto aos atributos organolépticos de natureza “intrínseca”, ou seja, essencialista à bebida mineira, observam-se relevantes contradições em uma da matéria da revista Encontro (2013), que apresenta em seu título o slogan: “Uma coisa é certa: Minas Gerais é sinônimo de aguardente de qualidade”. Ao longo do texto, o artigo elenca os fatores que justificam a superioridade da bebida. Para tal, recorre-se a um saber moderno, pautado na figura dos novos guardiões, os empresários que passaram a adotar as melhorias tecnológicas na sua produção. Na fala do presidente da Associação dos Produtores de Salinas – MG, o diferencial da bebida ocorre a partir do “processo ancestral mantido nos alambiques” (Excerto 10 do Quadro 1. FIUZA, 2013). No entanto, ao conversarem com um dos pesquisadores responsáveis, segundo a matéria por “dedicar-se a mapear o DNA na pinga mineira”, o professor da Ufop questionou a tradição mineira no seu ideal científico: “Do ponto de vista científico, digo isso com muita tranquilidade, não há nada no processo produtivo que diga que essa é de Minas e aquela é da Bahia” (Excerto 11 do Quadro 1. FIUZA, 2013).

Semelhanças são encontradas na tentativa de definir os traços da cultura de Quebec, investigados por Handler e Linnekin (1984). A invenção da tradição, tipificada durante o final dos anos de 1970 pela ideologia nacionalista, se fundamentava no lema “somos uma nação porque temos uma cultura”. No entanto, quando se propunham definir o que constitui a “quebecitude”, os discursos recorriam a metáforas essencialistas, sem descrever as diferenças baseadas do que os distinguiam dos franceses, americanos e dos esquimós.

 

As fronteiras identitárias e excludentes da cachaça artesanal de qualidade

Um dos aspectos da invenção da tradição foi o esforço de afastá-la das antigas imagens negativas que a cachaça carregou, em especial no último século. Se a bebida já foi concorrente do vinho português (em 1600) e presente em movimentos sociais da elite (Inconfidência Mineira, 1789), contudo carregou estigmas e preconceitos (SILVA, 2009). No ciclo do café do século XIX, a cachaça começou a sofrer uma baixa em sua importância econômica, passando a ser discriminada, uma vez que os membros das elites locais (que no passado a bebiam) buscavam formas de se identificarem com os aspectos culturais predominantes. A tentativa de adotar costumes europeus a negativou como uma bebida de baixo status, diante do que era trazido da Europa (DANIEL, 2016).

No início das décadas de 1980, com o objetivo de elaborar uma bebida de maior valor agregado para as classes de poder aquisitivo, o seu consumo passou a ser associado a um novo status, representado por indivíduos que têm conhecimentos sobre a bebida, que possuem “cultura”. Não se trata mais do consumo de uma simples bebida alcoólica, mas da cachaça, rica em valores simbólicos e tradição (CAVALCANTE, 2013; DIAS, 2016). A estratégia de estabelecer a identificação e hierarquização dos sujeitos de acordo com a forma de consumir a bebida, ao mesmo tempo que associou uma narrativa aos consumidores de alto poder aquisitivo, dispostos a pagar caro por uma bebida, afastou dos antigos rótulos de “pinguços” os sujeitos que bebem em excesso, de forma “equivocada”, conforme descreve um prestador de serviços do ramo:

O brasileiro aprendeu a beber cachaça num copinho, jogar na boca e pra ele a “boa” ela tinha que descer rasgando igual a um gato, e isso não existe gente. A cachaça pra você beber, ela tem que te fazer bem, você tem que sentir o sabor dela, são pequenos goles, [...] mas o certo é você tomar 50 ml de cachaça em 15 min! (Excerto 12 do Quadro 1. SOUZA, 2018)

A associação identitária nos modos “corretos” de consumi-la efetivou-se nos hábitos de consumo deste novo público, conforme registra a pesquisa de Araújo (2020). O ato de “virar o copo” foi considerado inadequado para a maioria dos “apreciadores” da bebida, os frequentadores de confrarias, uma vez que esta prática é o que os distinguem daqueles que “não conhecem muito” sobre o destilado ou são recém-iniciados nas confrarias de cachaça.  O exemplo ilustra como a tradição na modernidade continua intrinsecamente excludente (GIDDENS, 1994; SILVA, 2005; LUVIZOTTO, 2010). A discriminação do não iniciado, o outro (aqueles que não fazem parte da confraria e não entendem da cachaça), é fundamental para fortalecer o status dos membros (integrantes das confrarias), operacionalizado pelo ritual em si (a verdade sobre as formas de apreciar a cachaça).

A dimensão excludente é evidenciada também na etimologia, deixando a “pinga” para todas as formas de produção vinculadas às antigas imagens populares e pejorativas, e associando a “cachaça” a uma bebida ressignificada, revalorizada como um produto “superior”, de qualidade e ligada a uma tradição local (SILVA, 2015). Não parece coincidência a alteração na etimologia da Ampaq, que em 1988 se autonomeou Associação Mineira dos Produtores de Aguardente de Qualidade, porém uma década depois modificou a sigla para Produtores de Cachaça de Qualidade (SANT’ANNA, 2020). O mesmo aconteceu na cidade de Paraty que iniciou o seu processo de invenção da tradição no Festival da Pinga, rebatizando-o de Festival da Cachaça, em 2010 (DIAS, 2016). Se as fronteiras identitárias estabelecem a exclusão de antigos consumidores, as regras criadas para a sua produção também cercearam os produtores que não foram capazes atender aos critérios de “qualidade”. Um desses elementos normativos foram os certificados de Conformidade e o Selo da Qualidade para as cachaças filiadas:

Desde 1990 a Ampaq oferece aos seus associados um selo de qualidade, garantia da produção conforme normas que permitem a obtenção de um produto superior, com características específicas que destacam a sua performance. Por meio da Comissão de Avaliação da Qualidade (CAQ), o pioneiro selo da Anpaq no setor da cachaça certifica o produto de seus associados, garantindo ao consumidor uma bebida boa e livre de substâncias que fazem mal à saúde. Para o associado, o selo traz credibilidade e diferenciação dos concorrentes. (Excerto 13 do Quadro 1. Entrevista pessoal. CACHAÇA COM NOTÍCIAS, 2017)

O excerto ilustra os sinais diacríticos da tradição, que conferem uma marca de distinção (HANDLER; LINNEKIN, 1984; THOMAS, 1992; JEFFERY, 2005). A atribuição de papéis e direitos define os limites entre quem está dentro (aqueles que possuem os certificados, que seguem os protocolos para a aquisição do selo de qualidade), daqueles que ficam fora do sistema social (por não seguir as regras criadas). No caso, o agente julgador da dita cachaça de qualidade é a própria Associação Mineira, que se fundamenta em procedimentos técnicos com o suporte da comunidade científica.

Quanto aos seus propósitos é possível notar que as fronteiras tecnocientíficas para deliberar os padrões de qualidade serviram para criar barreiras às cachaçarias industriais de coluna. O Projeto de Lei no 923/2000 estabeleceu as especificidades da cachaça artesanal em Minas Gerais, vetando o uso de aditivos químicos, comumente utilizados no modelo de produção industrial. No bojo das bordas normativas, registra-se ainda o esforço de se distanciar de um quadro fortemente institucionalizado, marcado por uma “tradição” da informalidade. Se até o começo da década de 1980, 99% dos produtores eram familiares e faziam da bebida mais uma fonte de renda em seu plantel de subsistência (MORAIS et al., 2020), com o discurso da produção de uma nova cachaça, a adoção de “rígidos” protocolos legais se tornou central para a justificativa de uma bebida dita de qualidade.

As práticas encontradas para desinstitucionalizar o setor foram duplas: associar a informalidade aos riscos da saúde do consumidor, reforçando o problema da qualidade; e combater a informalidade com rigidez na fiscalização. Quanto à primeira, os centros de pesquisa mineiros legitimaram o discurso ao trazer evidências dos prejuízos do consumo da cachaça, sem os padrões mínimos de controle de qualidade.

A narrativa contou com o apoio da grande mídia, que reproduziu os estudos científicos, como no site UOL em 2012, “bebidas clandestinas têm metanol, cobre e substância cancerígena diz estudo da Unifesp (CRUZ, 2012)”, no Estado de S. Paulo em 2016, “Cachaça boa é cachaça legal: a importância de consumir bebidas registradas (MAIA, 2016)”, e na Revista Veja em 2018, “Ingerir álcool ilegal pode trazer riscos à saúde (VIDALE, 2018)”.

A informalidade, no setor da cachaça, traz riscos à saúde do consumidor, uma vez que os estabelecimentos não cadastrados não passam por auditorias de verificação das condições do produto. Se a compreensão da necessidade de critérios mínimos de controle de qualidade é praticamente um consenso entre os atores do campo, contudo, as tensões ocorrem em delimitar quais são esses critérios:

A gente está lidando com saúde pública. Imagina você vender um produto de qualquer jeito? A gente tira a granulação da cachaça umas duas ou três vezes, para ver se ela não está muito acima, porque se tiver muito alto, prejudica a pessoa né? Então você tem que fazer tudo dentro das normas. (Excerto 14 do Quadro 1. Entrevista pessoal. COUGO, 2020)

É, tem coisa que dá pra minimizar, né, por exemplo, tem que ter um azulejo branco do tamanho X, gente, cara, tem lugar que... Pra quê, sabe, tem coisas que é exagerado! Mas, nós temos que ter uma forma de garantir que no mínimo, o que tá sendo consumido não é prejudicial à saúde de ninguém. E dá pra fazer isso no artesanal! Falta alguém comprar a luta, são brigas que a gente precisa comprar. (Excerto 15 do Quadro 1. Entrevista pessoal. SANT’ANNA, 2020)

Análise dos excertos ilustram a complexidade que perpassa o conceito de qualidade.[7] Se o entrevistado do excerto 19 concorda que deve seguir todas as normas vigentes, a entrevistada do fragmento 20 relativiza alguns itens, definindo como “exagerados”. Ademais, o enunciado, “falta alguém comprar a luta”, para referir à flexibilização de critérios que afetam os pequenos produtores, indica as intencionalidades da legislação, que atendem aos objetivos de alguns grupos, excluindo, consequentemente, outros.

Os conflitos nas fronteiras identitárias ficam mais evidentes quando se trata do combate à informalidade com rigidez na fiscalização. Esta prática foi liderada pela Ampaq que conseguiu transferir, a partir da Portaria no 1, de 26 de junho de 2018, do Mapa, para o Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) o exercício da inspeção e fiscalização da produção e comércio de bebidas. Ao realocar a fiscalização para um órgão com maior número de funcionários, a mudança no escopo da fiscalização passou também a operar sobre os comerciantes que vendiam as cachaças informais. Como resultados foram 265 fiscalizações e inspeções em 202 estabelecimentos de produtores e 63 comerciais, que geraram 76 intimações, 53 termos de apreensão, 25 termos de fechamento e 63 autos de infrações (IMA, 2019). Os impactos da fiscalização vão ao encontro dos produtores formais, geralmente vinculados à Ampaq:

Esse posicionamento eu acho que ele é muito seguro, muito certo e muito... Não tenho dúvidas em relação a isso, essa é uma grande bandeira da Associação, eles estão o tempo inteiro focados e olhando isso, eles entendem claramente e o tempo inteiro eles... Acho que eles verbalizam através de ações e posicionamento a preocupação deles, com a defesa da cachaça artesanal, né, de alambique, né, perante as grandes industriais e também a preocupação com a informalidade que atrapalha quem tá formal. (Excerto 16 do Quadro 1. Entrevista pessoal. MORAIS, 2019)

[...] não devia nem ter informais! Não devia ter. Porque aqui... eu pago o sindicato lá, o Conselho Regional de Química, tem que pagar uma química responsável, entendeu? Essas coisas todas, o outro não paga. Ele não paga imposto, de espécie alguma. Então fica um mercado cruel. (Excerto 17 do Quadro 1. Entrevista pessoal. COUGO, 2020)

As narrativas indicam que os altos custos da formalidade se tornam uma desvantagem competitiva em um setor majoritariamente informal, pois os formais competem com os “outros”, aqueles produtores informais, que não pagam diretamente os mesmos custos e, em tese, entram com um preço menor no mercado. Nesta fronteira identitária é evidenciado, contudo, críticas às formas como as políticas de fiscalização afetaram o setor, estreitando os critérios para o pertencimento no mercado mineiro:

Você viu o que aconteceu lá na região de Abreus? 30, 60 indústrias foram fechadas! Na região aí do sul de Minas mais 30, o que que a Ampaq fez? Como assim, gente? Que Associação é essa? Só é associado a eles quem é legalizado! Mas a gente pode dar esse apoio técnico, esse apoio, não sei o que, não sei o que... Quem falou que eles fizeram isso? (Excerto 18 do Quadro 1. Entrevista pessoal. SANT’ANNA, 2020)

Se cem por cento desses informais saírem, não vai favorecer os associados da Ampaq, vai fazer com que fortaleça a cachaça industrial, entendeu? Porque nós não vamos ter volume para cobrir essa lacuna... Aí vai acontecer um problema sério que já está acontecendo... Que é vir caminhões de álcool, de dobrados lá de São Paulo ocupando espaço desses pequenos clandestinos que a gente tirou do mercado... (Excerto 19 do Quadro 1. Entrevista pessoal. MORAIS, 2019)

Os respectivos fragmentos explicitam que os critérios normativos para a fiscalização reproduziram formas excludentes, uma vez que atenderam aos interesses específicos de produtores vinculados à Associação. Por trás da rígida fiscalização, respalda-se também um silenciamento na narrativa dos guardiões, ao não considerarem as atuais estruturas legais que dificultam a formalização dos pequenos produtores:

Nós temos mais de oito mil alambiques que produzem cachaça em Minas Gerais, e acho que não tem 800 que são registrados. E por que acontece isso? É justamente por causa dessa burocracia e as despesas que não são baratas. Porque se você vai agilizar um documento, você depende deles (do Estado). Aí você tem que pagar seis taxas que são baratas e seis taxas que são mais elevadas. (Excerto 20 do Quadro 1. Entrevista pessoal. COUGO, 2020)


Hoje pra você se regularizar, estar dentro das leis é muito caro. Você pega pequenos produtores que tem que pagar responsável técnico, tem que comprar todo material de primeira, tem que pagar as análises, acho que pra eles ficaria uma coisa inviável, porque você está mexendo com a agricultura familiar. (Excerto 21 do
Quadro 1. Entrevista pessoal. SANT’ANNA, 2020)

Para seguir as regras de competitividade dos produtores legalizados, os informais se deparam com desafios desde a abertura do negócio. As implicações das mesmas regras das legislações, aprovadas pelos atores de maior capital político, não estabelecem diferenciações para os pequenos produtores artesanais. Isso cria barreiras de entrada para os pequenos, que além de arcar com os altos custos de formalização e manutenção, incorrem no longo tempo para a sua formalização. Do ponto de vista legal, o único Projeto de Lei apresentado sobre o tema foi arrastado desde o ano de 2013, até que foi arquivado com o fim da última legislatura, em 31 de janeiro de 2019.

Desta forma é possível notar “dois mundos”, que delimitam as fronteiras identitárias do campo. De um lado, os produtores formalizados, sob o cajado dos novos guardiões da tradição da cachaça de “qualidade” e que possuem as condições para atender as normas da formalização. Do outro, “eles”, os informais, que apesar de representarem a maior parte do setor (90%), são oriundos da agricultura familiar e descapitalizados para atender aos critérios da inclusão na fronteira identitária. Elucida-se, assim, o caráter diacrítico de identidade e exclusão no processo de invenção da tradição (HANDLER; LINNEKIN, 1984; THOMAS, 1992; JEFFERY, 2005). Ao repaginarem as raízes da cachaça mineira como uma continuidade do passado, assumiu-se um discurso de preservação das suas formas de produção seculares. No entanto, na inclusão de novos elementos, foram excluídos aqueles produtores que não atendiam aos “padrões de qualidade”. Nesta descontinuidade, os pequenos, os informais que tinham na produção de cachaça a complementação de renda, principalmente na entressafra agrícola, foram rotulados de “problemas” a serem resolvidos por uma rígida fiscalização, para a consequente preservação da tradicional cachaça mineira.

 

Considerações finais

Ao analisar as práticas e narrativas adotadas em quatro décadas (1980-2020) no estado de Minas Gerais, o artigo buscou compreender como as práticas e narrativas de um determinado grupo de atores do campo da cachaça geraram conflitos e exclusões ao delimitarem as fronteiras da dita tradicional cachaça artesanal de alambique.

Registramos, no processo de ritualização, que a sua invenção foi desenvolvida ao estabelecer uma continuidade com o passado, situacionalmente construído, cujos significados foram mutáveis, de acordo com as alterações de propósitos. A emergência da concorrência de grandes industriais e a simultânea oportunidade de um nicho para um produto de maior valor agregado estabeleceram, no início da década de 1980, as condições em que se define a mutação de propósitos.

Nesse sentido, uma rede de atores representados por especialistas se colocou como os guardiões da tradição na modernidade. O propósito foi simbolizar a coesão social de um grupo, que buscou, pelo discurso da tradição, um reposicionamento de mercado, a partir de um novo modo (mais empresarial) de gerir e produzir a bebida. Ao se fundarem em um discurso tecnocientífico, passaram a adotar um conjunto de práticas que remodelaram a concepção da tradição no campo. O uso do discurso de uma cachaça dita de qualidade para um público mais requintado foi atrelado às associações com cidades históricas, festivais gastronômicos, indicando uma ideia de continuidade, porém em um passado repleto de desencaixes. Ao mesmo tempo, novos elementos foram incorporados à tradição, como: a modernização nos rótulos das garrafas, as melhorias tecnológicas no controle da qualidade, as mudanças na forma de se consumir e apresentar a bebida na mídia.

No bojo das fronteiras identitárias que conferem a marca da distinção, foi possível notar a delimitação daqueles que se tornaram os “outros”. A narrativa da tradição operou dualismos manifestos em expressões marcadas por: cachaça x pinga, consumo moderado x pinguço, degustar x virar, capital x roça, moderno x tradicionalistas, empresários x produtores da roça e formais x clandestinos. Enquanto o primeiro grupo de expressões (cachaça, consumo moderado, degustar, moderno, empresários, formais) representou os atributos positivos para se referir à tradição da bebida, o segundo grupo (pinga, pinguço, virar, tradicionalistas, produtores da roça, clandestinos) indicou um passado negativo, pejorativo, que mereceria ser dissociado. Por suposto, os termos e os valores morais nas etimologias foram resgatados pelos guardiões da tradição, que mantiveram a vinculação identitária do grupo específico (os produtores de perfil empresarial), ao mesmo tempo que excluíram aqueles (a maioria dos pequenos produtores) que não se encaixaram na fronteira identitária da nova cachaça dita de qualidade.

Com base no exposto, concluímos que o estudo corroborou as bases teóricas que indicam as falácias da tradição em um ideal metafísico. Ao recorrer aos elementos empíricos no campo da cachaça, evidenciamos desencaixes, descontinuidades e relações de poder, o que ilustra a tradição como um processo interpretativo, um modelo de passado que é inseparável da interpretação do presente. Por fim, consideramos que a temática da tradição, para a área, pode ser vista como um fenômeno social que possibilita insights, principalmente no olhar das práticas de gestão da tradição. Enquanto este trabalho se limitou à análise da tradição a partir da sua emergência, consideramos, contudo, de suma relevância que futuras investigações possam ser aprofundadas em uma agenda de pesquisa.

 

 

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Como citar

CALBINO, Daniel; BRITO, Mozar José de; BRITO, Valéria da Glória. Tradição em disputa: a cachaça artesanal no cenário mineiro. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 3, p. 750-776, out. 2021. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v29n3-10.

 

 

 

 

Daniel Calbino

Professor Adjunto da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

https://orcid.org/0000-0001-8260-6126
http://lattes.cnpq.br/4784709340714266
dcalbino@ufsj.edu.br

 

Mozar José de Brito

Professor Titular do Departamento de Gestão Agroindustrial e do Programa de Mestrado em Administração da Universidade Federal de Lavras (UFLA).

https://orcid.org/0000-0001-9891-9688
http://lattes.cnpq.br/1942580852256588
mozarbrito@gmail.com

Valéria da Glória Brito

Professora Associada do Departamento de Gestão Agroindustrial da Universidade Federal de Lavras (UFLA).

https://orcid.org/0000-0002-4757-0129
http://lattes.cnpq.br/7605295141140649
vgpbrito@gmail.com

 

 

 

 

 

 

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[1] Professor Adjunto da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). E-mail: dcalbino@ufsj.edu.br.

[2] Professor Titular do Departamento de Gestão Agroindustrial e do Programa de Mestrado em Administração da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: mozarbrito@gmail.com.

[3] Professora Associada do Departamento de Gestão Agroindustrial da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: vgpbrito@gmail.com.

[4] Os estudos bibliométricos de Jeffery (2005), Hibbert e Huxham (2010) e Truong (2019) indicam que a tradição, em sua maioria, é evocada na literatura como um tema de forma indiscriminada, pouco conceituada e, quando feita, geralmente é descrita como um conteúdo ou padrão de uma sociedade ou cultura, limitada ao significado de algo “pré-moderno”.

[5] A tradição difere do conceito de costume, pois este é uma prática social que é repetida para gerar convenções e rotinas. Ele é criado para facilitar operações que podem ser modificadas de acordo com as necessidades práticas. Já a tradição é um recorte da realidade que se apresenta como racionalizado e invariável (HOBSBAWN, 1984). É inventada com o objetivo de demarcar fronteiras (LINNEKIN, 1983). Por exemplo, os bonés geralmente são itens protetores quando se monta a cavalo (costume). Porém, o uso de certo tipo de boné, em conjunto com um casaco vermelho de caça, tem um sentido diferente e serve como delimitação de fronteiras (tradição) (HOBSBAWN, 1984). Assim, a tradição utiliza os costumes, mas pela ação que buscar afirmar os seus valores (BARTH, 1982).

[6] As indicações geográficas se diferenciam dos registros de bens culturais imateriais, inscrito no Livro de Registro de Saberes, pelo Decreto no 3.551/2006. Enquanto estes possuem forte valor cultural, simbólico, político, social de conservação de tradições, as indicações geográficas, instituídas pela Lei da Propriedade Industrial (9.279/1996) geram produtos ou serviços de valorização econômica (LAGARES; LAGES; BRAGA, 2005).

[7] Sonnino e Marsden (2005), ao discutirem a qualidade no campo dos alimentos de diversos países europeus, apontam que a qualidade envolve um processo social de quantificação, fundado e atribuído no curso de justificações. Por isso, diferentes redes alimentares e concorrentes de qualidade refletem distintos sistemas agrícolas, culturais, percepções dos consumidores e institucionais. Logo, o conceito de qualidade, negociado e contestado, sempre se encontra aberto para interpretações e apropriações.