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v. 29, n. 3, outubro de 2021 a janeiro de 2020, p. 699-726
Recebido em 3 jul. 2021. Aceito em 1 set. 2021.



Entre avanços e bloqueios: uma análise da política de titulação de territórios quilombolas

Between advances and blockages: an analysis of the policy of entitling quilombola territories

 

DOI: 10.36920/esa-v29n3-8


orcid_id.png  Adriane Cristina Benedetti[1]


Resumo: Este artigo teve por objetivo analisar a titulação de territórios quilombolas, em contexto de formulação de políticas de reconhecimento de direitos dos remanescentes das comunidades de quilombos no Brasil. Buscando uma compreensão mais ampla, a análise enfatiza a problematização da titulação de territórios quilombolas, fazendo-se uso da noção de arena pública, da Sociologia Pragmática, como instrumento para abordar a ação coletiva dos atores. Para tanto, são utilizados dados secundários, obtidos nos órgãos responsáveis por estas políticas e demais fontes disponíveis em meio eletrônico, bem como dados empíricos levantados ao longo de uma pesquisa realizada no Rio Grande do Sul, a qual teve por objeto processos de titulação de territórios quilombolas que foram problematizados. Segue-se a linha argumentativa de que a análise da titulação de territórios quilombolas é indissociável de sua construção como problema social a ser debatido publicamente que, associado a mudanças político-institucionais, teve repercussões sobre a implementação da política.

Palavras-chave: política pública; comunidades quilombolas; território.

 

Abstract: The main purpose of this article is to analyse the entitling of quilombola territories in the context of policy formulation on the recognition of remaining quilombola communities’ rights in Brazil. To provide a broader understanding of this process, the article emphasizes the problematization of the entitling of quilombola territories by using the concept of public arena, created by Pragmatic Sociology, as an instrument to analyse actors’ collective action. The data collected was obtained from the agencies responsible for these policies and other sources available in electronic media. We also examined the empirical results of research conducted in Rio Grande do Sul, which had as its object the entitling processes of quilombola territories in the area. We argue that the analysis of policies related to entitling quilombola territories is inseparable from their construction as a publicly debated social problem. Thus, we conclude they are associated with political-institutional changes which had repercussions on the implementation of the same policies.

Keywords: public policy; quilombola communities; territory.

 

 

 

 

 

Introdução

O reconhecimento dos direitos territoriais dos remanescentes das comunidades dos quilombos representa uma dívida histórica no Brasil. Na campanha abolicionista, chegaram a ser apresentadas propostas de distribuição de terras como medidas preparatórias ao fim da escravização, mas que não se efetivaram. Foi necessário transcorrer um século até que o movimento negro[2] conseguisse assegurar os direitos territoriais dos remanescentes das comunidades dos quilombos na Constituição Federal de 1988.

Passados mais de trinta anos de sua promulgação, a emissão do título definitivo ainda é uma realidade distante para a maior parte das mais de 3.000 (três) mil comunidades reconhecidas como remanescentes de quilombos no país. Para que a primeira terra de quilombo fosse titulada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), correspondente à Comunidade Boa Vista, em Oriximiná, no Pará, percorreu-se quase uma década do reconhecimento de direitos na Constituição Federal. O ritmo lento na efetivação do direito se reflete em reduzido número de títulos emitidos entre os distintos entes federados. De acordo com os dados atuais, foram emitidos 267 (duzentos e sessenta e sete) títulos entre os governos federal, estaduais e administrações municipais, referentes a 171 (cento e setenta e um) territórios,[3] regularizando uma área de 1.042.794,4895 hectares, onde vivem 17.515 (dezessete mil, quinhentas e quinze) famílias quilombolas (INCRA, 2021a).

As análises efetuadas têm identificado alguns entraves à implementação da política de titulação de territórios quilombolas a cargo do Executivo federal. Entre estes, constam a ampliação das etapas que integram o processo administrativo de titulação, o enquadramento da regularização fundiária dos territórios quilombolas como questão de segurança nacional (BRUSTOLIN, 2009; ANJOS, 2011), os constantes cortes orçamentários impostos ao órgão responsável (CPISP, 2018), a reação contrária à política de titulação de territórios quilombolas e as disputas internas no governo federal (CHASIN, 2009).

Um dos ângulos de análise atribui o baixo desempenho do Estado na efetivação dos direitos territoriais dos quilombolas aos procedimentos administrativos e à estrutura estatal encarregada. Outro ângulo indica que as disputas em curso na sociedade brasileira se refletem na atuação do órgão responsável, bem como nos investimentos realizados (ou não), repercutindo na implementação da política. Seguindo essa indicação, percebe-se que a política de titulação de territórios quilombolas tem sido problematizada por setores políticos, da academia e organizações sociais. À vista disso, levantou-se a indagação sobre como se constituiu uma questão em torno da titulação de territórios quilombolas no país? Como a problematização de um procedimento administrativo do Poder Executivo repercute na implementação da política pública?

Para responder às indagações, lançou-se mão dos aportes da Sociologia Pragmática, como a noção de arena pública, como instrumento analítico para apreender a ação coletiva dos atores e, deste modo, orientar as reflexões. O artigo tem por objetivo analisar a política de titulação de territórios quilombolas, dando-se ênfase à constituição de uma arena pública concernente ao tema, de forma a contemplar suas dimensões processuais e as repercussões na implementação da política pública. Segue-se a linha argumentativa de que a análise da titulação de territórios quilombolas é indissociável de sua construção como problema social a ser debatido publicamente, visto que, associado a mudanças político-institucionais, teve efeitos sobre a implementação da política pública.

Embora a política de titulação de territórios quilombolas compreenda distintos entes federados, a análise focaliza a atuação do Executivo federal. Deste modo, são utilizados dados obtidos nos órgãos encarregados, tanto os disponibilizados de forma aberta quanto via Lei de Acesso à Informação (LAI), por meio da Fala. BR – Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação do governo federal, os quais permitiram traçar o quadro atual da titulação de territórios quilombolas. Em complementaridade, foi efetuada pesquisa documental em acervos, canais midiáticos e demais fontes disponíveis em meio eletrônico, assim como entrevistas com agentes envolvidos na implementação dessa política através de aplicativos de comunicação, dado o atual contexto pandêmico.

Para descrever a constituição de arena pública, direciona-se o olhar ao Rio Grande do Sul, onde instaurou-se intenso debate a respeito da titulação de territórios quilombolas. Faz-se uso dos dados empíricos de uma investigação que elencou, sob a metodologia de “casos exemplares”,[4] processos de titulação de territórios quilombolas no estado que foram problematizados, motivo pelo qual são mobilizados ao longo do texto para ilustrar as reflexões. Seguindo os passos sugeridos por Daniel Cefaï (2009) na descrição da gênese da arena pública, essa investigação aliou pesquisa documental, contemplando o levantamento de dados secundários, com o método etnográfico e entrevistas, tendo sido realizada entre os anos de 2016 e 2018 para dar suporte à elaboração de tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O artigo está dividido em quatro seções, além desta parte introdutória e das considerações finais. Inicialmente, aborda-se a formulação da política de titulação de territórios quilombolas, seguido dos resultados alcançados, em que se procura identificar os principais aspectos que têm sido problematizados. Na sequência, descreve-se a construção de uma questão referente à política de titulação de territórios quilombolas e, a partir de tal procedimento, são analisadas as repercussões sobre a implementação da política pública, buscando uma compreensão mais ampla.

 

A política de titulação de territórios quilombolas

Em que pese a sua dimensão histórica, a inserção da questão quilombola na agenda pública é relativamente recente no Brasil, tendo por marco a Constituição Federal de 1988. A articulação do movimento negro com parlamentares levou à inserção do artigo 68 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que reconhece os direitos territoriais dos remanescentes das comunidades dos quilombos e atribui ao Estado o dever de emitir os respectivos títulos de propriedade definitivos (BRASIL, 1988).

O artigo retomou o uso do termo quilombo, porém com significado distinto do atribuído no período colonial, em que representava uma ameaça à ordem. No texto constitucional, são concedidos direitos aos remanescentes das comunidades dos quilombos, tendo suscitado debates que se estenderam tanto ao plano conceitual quanto ao normativo (LEITE, 2000).

No plano conceitual, o uso do termo remanescentes provocou um impasse que, associado ao referencial histórico do Quilombo de Palmares, desafiou intelectuais e militantes na busca por uma definição. Entre os desafios constava romper com a visão de quilombo presa ao passado colonial, a qual remete à fuga e ao isolamento, tendo na resposta do Conselho Ultramarino ao rei de Portugal, em 1740, uma de suas principais referências. Pesquisas realizadas apontavam que as comunidades demandantes da aplicação do artigo constitucional não necessariamente tinham origem em fugas, ou mesmo viveram em isolamento, havendo situações de acamponesamento de escravos, relacionado ao declínio do sistema de monocultura agroexportadora (ALMEIDA, 2011). No plano normativo, as discussões giraram em torno de questões jurídicas e legislativas, levando em conta a necessidade de definir a categoria jurídica geradora de direitos sobre o território, e da aplicabilidade do artigo 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988.

Para dar embasamento científico à categoria jurídica instaurada pela carta constitucional, a academia foi chamada a contribuir no debate, para o qual foi criado um Grupo de Trabalho (GT) sobre Terra de Quilombos[5] envolvendo Ministério Público Federal (MPF) e Associação Brasileira de Antropologia (ABA). As discussões travadas no âmbito do GT buscaram tecer uma postura crítica à visão estática de quilombo, tendo em vista não corresponder, na atualidade, a resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica (LEITE, 2000; O’DWYER, 2002) e a ressignificação do termo.

Desta forma, mesmo que o termo quilombo acione um conteúdo histórico (O’DWYER, 2002), sua significação encontra lugar no tempo presente, abrangendo uma diversidade de situações sociais (ALMEIDA, 2011), como compra de terras, doações em testamento e recompensa por serviços prestados, entre outras, as quais transcendem à fuga e ao isolamento de grupos negros. Isso abre a possibilidade de pensar os remanescentes das comunidades dos quilombos como formas de organização social existentes na contemporaneidade.

Seguindo a Constituição Federal, alguns estados incluíram a regularização fundiária de territórios quilombolas nas próprias constituições, a exemplo do Pará, do Maranhão, da Bahia e do Mato Grosso, enquanto houve atuação direta de governos estaduais mesmo sem estar prevista em sua lei maior, como no caso de São Paulo. A atuação dos governos estaduais[6] se deu por meio de seus respectivos órgãos encarregados, como o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), o Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma), o Instituto de Terras da Bahia (Interba) e a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), além do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp).

Na esfera federal, a Fundação Cultural Palmares emitiu a Portaria no 25, de 15 de agosto de 1995, e o Incra a Portaria no 307, de 22 de novembro do mesmo ano, discernindo-se a identificação e a titulação dos territórios quilombolas. A edição da Medida Provisória no 1911-11, de 25 de novembro de 1999, redefiniu as atribuições dos ministérios, em que o Ministério da Cultura delegou competência à Fundação Cultural Palmares para normatizar e implementar o dispositivo constitucional (MÜLLER, 2006). Estas iniciativas convergiram na emissão do Decreto no 3.912, de 10 de setembro de 2001, atrelando o reconhecimento dos remanescentes das comunidades de quilombos à comprovação de que: i) estivessem ocupadas por quilombos em 1888; e ii) estivessem ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988 (BRASIL, 2001), data de promulgação da Constituição.

Os dados disponíveis informam que cerca de 30 (trinta) comunidades quilombolas tiveram suas terras tituladas pela Fundação Cultural Palmares no início dos anos 2000 (FCP, 2018), mas sem haver desapropriação das áreas, motivo pelo qual, em alguns casos, o Incra acabou abrindo novo processo de titulação em face da ocorrência de conflitos. Pela localização em terras públicas estaduais, houve situações de titulação de territórios conjunta entre a Fundação Cultural Palmares e os órgãos estaduais responsáveis pela política fundiária, compreendendo uma área total de 21.990,6882 hectares (INCRA, 2021a).

Com a mudança política na esfera federal, foi instituído um Grupo de Trabalho interministerial no início de 2003, envolvendo lideranças quilombolas e organizações do movimento negro, para rever a regulamentação do artigo constitucional. Como resultado, foi assinado o Decreto no 4.887, em 20 de novembro daquele ano, regulamentando o processo de reconhecimento e titulação dos territórios quilombolas, que assumiu viés de política de reparação histórica. O novo Decreto estabeleceu a definição normativa dos remanescentes das comunidades de quilombos e o critério de autoatribuição para fins de sua identificação:

(...)
Art. 2o. Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

§ 1o. Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.

(...) (BRASIL, 2003)

A definição dos remanescentes das comunidades de quilombos como grupos étnico-raciais, a partir do critério da autoatribuição, afastou a necessidade de comprovação temporal, estabelecida na regulamentação anterior. Essa definição teve por referencial o conceito de grupos étnicos de Fredrik Barth [1969]/(2000) como forma de organização social que, neste caso, o estabelecimento de sua fronteira se dá por critérios de pertencimento definidos pelo próprio grupo. Isso significa que não compete a um agente externo à comunidade definir o que ela é e por quem é composta, a partir de um esquema classificatório, mas levar em conta a identidade construída pela comunidade ao longo de sua trajetória e da relação com outros grupos, o que se alinha à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Regulamentando o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, o Decreto no 4.887/2003 definiu as atribuições da Fundação Cultural Palmares e do Incra. Assim, coube à Fundação Cultural Palmares o reconhecimento dos remanescentes das comunidades dos quilombos, ao passo que o processo de identificação, delimitação, regularização e titulação dos territórios compete ao Incra. O Decreto também estabeleceu a elaboração de um plano de etnodesenvolvimento para essas comunidades.[7]

Deste modo, a primeira iniciativa para a abertura do processo de titulação como terra de quilombo corresponde ao reconhecimento da autoatribuição identitária de comunidade quilombola perante a Fundação Cultural Palmares. Até o ano de 2021, foram expedidas 2.811 (duas mil, oitocentas e onze) certidões de remanescentes das comunidades de quilombos, contemplando 3.471 (três mil, quatrocentas e setenta e uma) comunidades[8] no país (FCP, 2021). Tendo por referência a data de publicação da Portaria de reconhecimento no Diário Oficial da União (DOU), foi elaborado o Gráfico 1.

 

Gráfico 1 Certificação de Comunidades Quilombolas no Brasil entre 2004 e 2021

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Fonte: Fundação Cultural Palmares (2021).

 

O Gráfico 1 permite visualizar a evolução na certificação de comunidades quilombolas ao longo do tempo. Pode-se perceber que os primeiros anos após a assinatura do Decreto no 4.887/2003 correspondem ao período de maior intensidade na certificação de comunidades quilombolas no país, com outro momento de ápice no ano de 2013, seguindo tendência acentuada de queda a partir de 2019.

Por sua vez, foram abertos 1.805 (mil, oitocentos e cinco) processos de titulação de territórios quilombolas nas superintendências regionais do Incra, evidenciando a amplitude que essa política ganhou no país. O Gráfico 2 apresenta a evolução na abertura dos processos de titulação de territórios quilombolas no período entre 2003 e 2020.

 

Gráfico 2 Número de processos de titulação de territórios abertos entre 2003 e 2020

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Fonte: Incra (2021a).

 

No Gráfico 2, percebe-se que 9 (nove) comunidades quilombolas demandaram abertura de processo de titulação de seus territórios logo após a assinatura do Decreto no 4.887, no ano de 2003. Pode-se verificar que nos anos seguintes houve significativo número de solicitações de abertura de processos de titulação, com pico no ano de 2005, seguido de outro momento de ápice em 2013, com queda acentuada após 2017, antecipando-se à tendência da certificação de comunidades remanescentes dos quilombos.

No quadro nacional, o Nordeste concentra 56,6% das solicitações, correspondente a 1.022 (mil e vinte e dois) processos abertos, seguido do Sudeste, com 349 (trezentos e quarenta e nove) processos, enquanto a região Sul detinha 162 processos, o Norte 143 (cento e quarenta e três) e o Centro-Oeste 129 (cento e vinte e nove) processos. Entre os estados, o Maranhão e a Bahia se destacam com, respectivamente, 377 (trezentos e setenta e sete) e 293 (duzentos e noventa e três) processos abertos.

Existe uma diversidade de situações relativas à formação das comunidades remanescentes de quilombos no país e redes de relações entre antigos senhores, cativos e libertos que vem sendo retratada nas pesquisas acadêmicas.[9] Importa aqui registrar a emergência de uma potente demanda por regularização fundiária a partir do Decreto no 4.887/2003, passando a pressionar o Incra por ações que vão além da reforma agrária, cujos resultados alcançados serão apresentados na seção seguinte.

 

Os resultados alcançados

A emergência de uma potente demanda por ações de regularização de territórios quilombolas promoveu diversificação no público demandante das ações do Incra, assim como no escopo de sua atuação. Cíndia Brustolin (2009) aponta que, embora fosse considerada uma atribuição nova, a titulação de territórios quilombolas foi incorporada na estrutura já existente, integrando a Divisão de Ordenamento da Estrutura Fundiária, responsável pelo cadastro, regularização fundiária e cartografia. Da histórica missão de reforma agrária, o Incra passou a atuar na titulação de territórios quilombolas, incorporando antropólogos no quadro funcional para a condução desses processos.

Após quase vinte anos de assinatura do Decreto no 4.887/2003, apenas 171 (cento e setenta e um) territórios quilombolas obtiveram titulação, regularizando uma área de 1.042.794,4895 hectares, o que corresponde a 0,11 % do território nacional e contempla 17.515 (dezessete mil, quinhentas e quinze) famílias (INCRA, 2021a).

 

Gráfico 3 Territórios quilombolas titulados no país entre 1995 e 2020

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Fonte: Incra (2021a).

 

No Gráfico 3 pode-se verificar que o primeiro título foi emitido para a comunidade Boa Vista, no estado do Pará. Além desse, outros 5 (cinco) títulos foram outorgados pelo Incra no âmbito da Portaria no 307/1995. Entre o final dos anos 1990 e a assinatura do Decreto no 4.887/2003, a titulação esteve a cargo da Fundação Cultural Palmares e dos governos estaduais, tendo contemplado pequeno número de territórios. O momento de maior intensidade ocorreu entre os anos de 2006 e 2014, após a assinatura desse Decreto e contando com atuação dos órgãos estaduais, apresentando tendência de queda após esse último ano.

Deve-se mencionar que os distintos entes federados se alternaram na titulação de territórios quilombolas. Por meio de seus respectivos institutos de terras, houve atuação de governos estaduais, assim como de administrações municipais, como é apresentado no Gráfico 4.

 

Gráfico 4 Distribuição da titulação das terras de quilombo entre os distintos órgãos

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Fonte: Incra (2021a).

 

No Gráfico 4 é possível verificar que os governos estaduais foram responsáveis por cerca de 3/4 dos territórios titulados, compreendendo uma área de 816.185,8772 hectares. Entre esses, destacam-se o Iterpa e o Iterma, os quais efetuaram a titulação de, respectivamente, 58 (cinquenta e oito) e 38 (trinta e oito) territórios quilombolas. Já os órgãos federais, correspondentes ao Incra, Fundação Cultural Palmares e Secretaria do Patrimônio da União (SPU), foram responsáveis pela titulação de 42 (quarenta e dois) territórios, abarcando 204.615,6310 hectares. Por sua vez, 7 (sete) territórios foram titulados conjuntamente entre órgãos federais e estaduais, enquanto a titulação de um território ficou a cargo da Prefeitura Municipal de Santarém, no estado do Pará (INCRA, 2021a).

Ao se comparar o número de territórios titulados perante os processos abertos, percebe-se que a emissão do documento definitivo equivale a cerca de 10% dos casos. Buscando explicações para o baixo desempenho do Estado na efetivação dos direitos territoriais dos quilombolas, focaliza-se o estado do Rio Grande do Sul, em que foram abertos 105 (cento e cinco) processos de titulação de territórios quilombolas na Superintendência Regional do Incra até o ano de 2020. Desses processos, cerca de 2/3 ainda se encontravam na fase inicial, com poucas ações além do recebimento do número de protocolo por parte do Incra/RS. A Tabela 1 apresenta a distribuição dos processos de titulação de territórios quilombolas entre as etapas.

 

Tabela 1 Quadro da titulação de territórios quilombolas no estado do Rio Grande do Sul

 

Etapa

No de Processos

1

Fase Inicial

68

2

Elaboração do RTID

16

3

Contestação (análise e julgamento de recursos ao RTID)

7

4

Portaria de Reconhecimento

4

5

Decretação

3

6

Desintrusão

2

7

Titulação

5

 

Total

105

Fonte: Incra (2021a).

 

Segundo a Tabela 1, 16 (dezesseis) processos contavam com RTID elaborado, ou em andamento, e em outros 7 (sete) a etapa correspondia à contestação ao RTID. Por sua vez, em 4 (quatro) processos foi emitida Portaria de reconhecimento do território, ao passo que em outros 3 (três) houve assinatura do Decreto de área de interesse social e 2 (dois) se encontravam na etapa de Desintrusão. Até aquele momento, apenas 4 (quatro) comunidades dispunham do documento definitivo das terras: Família Silva, em Porto Alegre; Chácara das Rosas, em Canoas; Casca, em Mostardas; Rincão dos Martimianos, em Restinga Seca; enquanto a comunidade de Rincão dos Caixões, em Jacuizinho, contava com Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), encontrando-se na etapa final de titulação.

Das quatro comunidades tituladas, apenas uma obteve a documentação integral do território e, nas demais, a titulação foi parcial em virtude de ações judiciais. Foram movidas ações contra os processos das comunidades de Limoeiro, no município de Palmares do Sul, e Palmas, em Bagé, questionando o reconhecimento como quilombola e, na comunidade de Cambará, em Cachoeira do Sul, a questão se referia ao marco temporal. Em outras situações, as ações judiciais questionavam o valor da indenização, como no caso da comunidade Família Silva, na capital, enquanto a comunidade de Casca, em Mostardas, ainda aguarda a decisão judicial sobre parte de seu território. Por seu turno, a ação movida contra o processo da comunidade de São Miguel, em Restinga Seca, suspendeu a Portaria de reconhecimento do território, apesar de já ter sido emitido o Decreto, que corresponde à etapa posterior.

De acordo com os técnicos do Incra/RS, em qualquer etapa do processo de titulação podem ocorrer ações judiciais, sendo mais comum após a publicação do RTID, visto dar publicidade ao território reivindicado pela comunidade, ou quando não couberem mais recursos no âmbito administrativo. A instauração de ações judiciais evidencia que, ao dar entrada no processo de titulação de seu território no Incra, a comunidade quilombola pode entrar em disputa com atores que portam maior capital social, político e econômico.

A ocorrência de conflitos é outro fator que interfere no andamento dos processos de titulação de territórios quilombolas, podendo estar associado a tentativas de interferência externa. Em algumas situações, o conflito assumiu a forma de ação confrontacional ao Estado, como nas comunidades de Palmas, no município de Bagé, e de Rincão dos Negros, em Rio Pardo, em que fazendeiros tentaram impedir a atuação dos técnicos do Incra/RS quando esses efetuavam o levantamento fundiário.[10] Em ambos os casos houve intencionalidade dos fazendeiros na instauração do conflito, fazendo-se necessária a intervenção do MPF e da Polícia Federal, entre outros órgãos, para garantir a continuidade dos trabalhos.

Em outras situações, o conflito ganhou expressão na forma de eventos contrários à titulação de territórios quilombolas. No município de Sertão foi realizada a conferência “Nossa História, Nossos Direitos, Queremos Continuar Produzindo e Vivendo Aqui”, no ano de 2006. Esse evento resultou em um abaixo-assinado contra o processo de titulação das terras da comunidade de Mormaça, endossado por entidades como a Prefeitura Municipal, a Câmara de Vereadores, entre outras, o qual foi direcionado ao Incra e demais instituições.[11] Por sua vez, foram realizadas mobilizações contrárias à titulação do território da comunidade de Morro Alto, no litoral do estado, em 2013, como o bloqueio de uma importante rodovia. Essa mobilização ocorreu de forma simultânea a ações contrárias à demarcação de terras indígenas, articuladas nacionalmente[12] pela chamada Bancada Ruralista.[13]

Importa aqui registrar a disputa territorial envolvendo comunidades quilombolas, em que a ocorrência de conflitos foi um dos elementos acionados na construção de uma questão em torno da titulação de territórios quilombolas. Em que pese o caráter de política reparatória, a titulação de territórios quilombolas passou a ser intensamente problematizada, o que teve repercussões na implementação da própria política, conforme será abordado nas seções seguintes.

 

A construção social de um problema público

As ações de contestação ao Decreto no 4.887/2003 tiveram início logo após a sua assinatura. Uma dessas ações se deu no âmbito jurídico, questionando o procedimento desapropriatório previsto nessa norma e o critério da autoatribuição, entre outros aspectos. Instaurou-se uma disputa em torno da interpretação de dispositivos legais, dando publicidade a um debate que, até então, estava restrito ao espaço acadêmico e institucional de formulação da política pública.

Essa problematização faz pensar em como um ato administrativo do Poder Executivo se torna assunto de amplo debate público, envolvendo setores políticos, do Judiciário e organizações sociais? Na literatura, a emergência de questões na agenda pública é atribuída mais à dinâmica política do que aos atributos dos temas em pauta (FUKS, 2000). Isso converge à ideia de construção social do problema público,[14] o que pode se dar na disputa pela leitura de realidade, da qual os atos de publicização de conflitos fazem parte, envolvendo agência, intencionalidade e atribuição de sentidos.

Lançando mão da noção de arena pública, Daniel Cefaï (2011) a define como um palco no qual os atores se encontram para resolver situações problemáticas, com conotação de locus de embate e de encenação, mas que permite apreender o jogo de forças e de interesses. O autor sugere adotar uma controvérsia ou situação que perturba a ordem como ponto de partida da análise. Por esse ângulo, percebe-se que o Decreto no 4.887/2003 passou a ser intensamente problematizado, seja por setores políticos, da academia, bem como por organizações sociais. Um dos elementos introduzidos pela norma corresponde ao procedimento desapropriatório, quando incidir título de domínio de particulares sobre o território quilombola.[15] Esse procedimento está previsto na etapa de Desintrusão, levando à anulação de títulos de domínio e à remoção de ocupantes não quilombolas para restituir à comunidade quilombola áreas perdidas ao longo do tempo.

Outro aspecto a ser considerado na análise diz respeito à configuração temporal da arena pública. Mario Fuks (2000) propõe adotar o momento no qual um determinado assunto se torna alvo das atenções como ponto de partida temporal da análise, o que leva a identificar as primeiras ações contestatórias ao Decreto no 4.887/2003. Em 2004, o Partido da Frente Liberal, atual Democratas, instaurou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) na qual questionava: i) a regulamentação de dispositivo constitucional via Decreto; ii) a ampliação indevida de conteúdo do artigo constitucional; iii) a instauração de uma modalidade de desapropriação de terras não prevista na Constituição Federal; e iv) o estabelecimento do critério de autoatribuição para fins de reconhecimento como remanescente das comunidades de quilombos (BRASIL, 2004).

A ADI no 3239-9 contestou uma norma legal vigente, o que poderia levar à suspensão da atual política de reconhecimento dos direitos territoriais dos quilombolas, retornando ao estabelecido na regulamentação anterior. A ação despertou várias manifestações, cujo debate envolveu setores políticos, da academia e organizações sociais em uma batalha jurídica que durou 14 (quatorze) anos e teve desfecho em fevereiro de 2018, quando o STF a julgou improcedente. Por conseguinte, os questionamentos da ADI no 3239-9 se refletiram nas Instruções Normativas (INs) que disciplinam os procedimentos administrativos de titulação pelo Incra (SALAINI; FERNANDES, 2019).

Nessa batalha jurídica, entidades como a ABA assumiram a defesa do Decreto no 4.887/2003. Nos anos 1990, a entidade foi convidada pelo MPF para dar seu parecer em situações identificadas em pesquisas, ocasião na qual foi criado o GT sobre Terra de Quilombos (O’DWYER, 2002). As discussões travadas no âmbito do GT buscaram desconstruir a visão estática de quilombo, rompendo com a ideia de isolamento desses grupos e ressaltando seu caráter dinâmico, relacional e contemporâneo (LEITE, 2000). A ABA tem emitido documentos abordando os novos significados do termo quilombo na literatura, assim como pelos grupos sociais que mobilizavam esse termo.

Por seu turno, os posicionamentos críticos ao Decreto no 4.887/2003 forneceram elementos à problematização. Entre as críticas, consta a alegação de instaurar uma clivagem na política de reforma agrária para negros e não negros (MARTINS, 2007), ou que corresponderia a uma “nova reforma agrária” (ROSENFIELD, 2010). Em que pese a inserção da titulação de territórios quilombolas no II Plano Nacional de Reforma Agrária (BRASIL, 2005), o procedimento desapropriatório previsto no Decreto não advém do descumprimento da função social da terra, conforme disposto no artigo 184, mas se ampara no artigo 216 da Constituição Federal de 1988, que prevê medidas protetivas ao patrimônio cultural brasileiro.

Sincronicamente, houve projeção de uma série de reportagens sobre comunidades quilombolas na mídia. De um assunto que alude aos livros de História do Brasil, verificou-se deslocamento no enfoque das matérias para um tom crítico à atual política de titulação de territórios quilombolas. Por volta de 2007, as reportagens passaram a levantar suspeitas sobre os procedimentos para aferição da identidade quilombola (BRUSTOLIN, 2009), seja em programas televisivos[16] ou em matérias de jornais (ARRUDA, 2007; SCHAEFER, 2012).

Neste seguimento, a mídia constituiu uma forma de publicização de conflitos, como nos casos de Mormaça, no município de Sertão, Morro Alto, no litoral, Rincão dos Negros, em Rio Pardo, situadas no estado do Rio Grande do Sul que, segundo os relatos, programas de rádio demarcaram posicionamentos contrários à titulação dos territórios dessas comunidades. Já o conflito envolvendo a comunidade de Palmas, em Bagé, chegou a estampar a primeira página de um jornal de circulação regional, no qual os fazendeiros publicaram matérias. A veiculação de matérias contou, ainda, com a criação de um blog ilustrado com notícias de jornais sobre o conflito em Morro Alto, audiovisuais, entre outros (COMUNIDADE AGUAPÉS, 2013). Pelos canais midiáticos, que incluem programas radiofônicos, televisivos, jornais impressos e em meio eletrônico, circularam as versões dos acontecimentos, em um esforço de constituição de uma opinião pública contrária à pauta dos quilombolas, convertendo-se em uma espécie de “caixa de ressonância” (CEFAÏ, 2011).

Além da visibilidade no cenário nacional, o ano de 2007 também foi marcado pela apresentação de propostas de mudança em atos normativos, como o projeto de Decreto Legislativo no 44/2007, visando sustar o Decreto no 4.887/2003 (CHASIN, 2009), e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no 161/2007,[17] que propõe a participação dos parlamentares na titulação de territórios quilombolas. Essa última proposição foi apensada à PEC no 215/2000, a qual visa submeter a demarcação de terras indígenas ao Congresso Nacional, para tramitação conjunta, evidenciando a disputa em torno da responsabilidade sobre tais políticas. Já no legislativo gaúcho foi apresentado o Projeto de Lei (PL) no 31/2015 (RIO GRANDE DO SUL, 2015), por deputado estadual que é ex-dirigente sindical. Alegando preocupação com a situação de pequenos proprietários de terra, o Projeto propõe a excepcionalidade de garantia da propriedade para a agricultura familiar ante a demarcação de terras indígenas e a titulação de territórios quilombolas no estado.

No intervalo entre as proposições, foram realizadas várias audiências públicas relativas ao tema, em que o estado do Rio Grande do Sul se tornou palco privilegiado. No ano de 2012 foi instaurada a Comissão Especial para Discutir a Situação das Áreas Indígenas e Quilombolas na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, a qual promoveu uma rodada de audiências públicas, contando com a participação de parlamentares, prefeitos municipais, vereadores, lideranças comunitárias, entidades de representação, entre outros, tendo sido produzido um relatório (RIO GRANDE DO SUL, 2012).

A realização de audiências públicas também demarcou os distintos posicionamentos em relação à titulação de territórios quilombolas por parte dos senadores do estado. De um lado, foi realizada uma audiência pública conjunta pelas Comissões de Agricultura da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, do Senado e da Câmara dos Deputados, em outubro de 2011 (MALLMANN, 2011), contando com a presença da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). De outro lado, a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos do Senado promoveu uma audiência pública na sede da casa legislativa gaúcha, em novembro do mesmo ano, da qual participaram várias lideranças quilombolas do estado. Poucos dias depois, foi convocada nova audiência pública pela mesma Comissão do Senado, desta vez na comunidade de Morro Alto (RS..., 2011). Essa audiência ocorreu no contexto da disputa referente às terras da comunidade, em que fora solicitado o envio do processo de titulação do território à Diretoria de Ordenamento Fundiário do Incra, em Brasília, enquanto os quilombolas reivindicavam o seu retorno à Superintendência Regional no estado.

A movimentação política relacionada aos processos de titulação de territórios quilombolas se estendeu à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) Funai–Incra 2,[18] instaurada no Congresso Nacional. As ações da Comissão se voltaram para os órgãos do Executivo encarregados, respectivamente, das políticas indigenista e fundiária, em que o laudo antropológico foi alvo de escrutínio (SALAINI; FERNANDES, 2019), colocando sob suspeita metodologias de trabalho e atacando os responsáveis pela elaboração de tais estudos. Presidida por parlamentar que possui base eleitoral no litoral do Rio Grande do Sul, a CPI Funai–Incra 2 analisou os casos de Morro Alto e de Rincão dos Negros no tocante à titulação de territórios quilombolas e suas diligências tiveram efeitos no andamento dos processos de titulação de territórios quilombolas.

Desta forma, uma discussão restrita ao espaço acadêmico e institucional da formulação da política pública se irradiou para outras esferas. Nessa trajetória, a mídia, o Judiciário, o Legislativo estadual e federal constituíram frentes de problematização, fazendo com que uma questão transcendesse o âmbito de uma preocupação restrita e situada, ascendendo a problema público. Em seu conjunto, tais fatos interferiram no andamento de processos administrativos de titulação de territórios quilombolas, compondo uma das hipóteses explicativas para se encontrarem na mesma etapa há vários anos, assunto que será retomado na seção seguinte.

 

As repercussões da problematização na implementação da política

Da abertura do processo de titulação no Incra até a emissão do documento definitivo das terras percorre-se um longo caminho, delineado pela sequência de etapas do processo administrativo. Até o presente momento, apenas 171 (cento e setenta e um) territórios quilombolas alcançaram a titulação, havendo processos que se encontram na mesma etapa há vários anos.[19]

Vimos que, ao longo desse percurso, podem ser instaurados conflitos e ações judiciais que interferem no andamento dos processos administrativos de titulação. Outro fator diz respeito à construção de uma questão relativa à titulação de territórios quilombolas por meio de intenso debate e de ações contestatórias ao Decreto no 4.887/2003. Em função disso, levanta-se a indagação sobre como a construção de um problema social alusivo à titulação de territórios quilombolas repercute na implementação da política?

Voltando-se para as análises efetuadas, existe tendência em atribuir o baixo desempenho do Executivo federal na efetivação dos direitos territoriais dos quilombolas a aspectos inerentes à estrutura estatal e aos procedimentos administrativos. Ainda que tenham sido realizados concursos, as equipes técnicas nas superintendências regionais do Incra[20] se mostram insuficientes diante da demanda, além da condução dos processos de titulação requerer uma equipe multidisciplinar. Deve-se acrescentar os efeitos da CPI Funai–Incra 2 sobre o andamento dos processos que, no caso do Rio Grande do Sul, houve recomendação  de indiciamento de praticamente toda a equipe encarregada da regularização fundiária de territórios quilombolas e a instauração de uma sindicância interna na Superintendência Regional do Incra para apurar possíveis irregularidades em tais processos.

As entidades que efetuam o monitoramento da política de titulação de territórios quilombolas, como a Comissão Pró-Índio de São Paulo, têm chamado a atenção para a burocratização dos procedimentos administrativos (CPISP, 2018). Em novembro de 2007, a Fundação Cultural Palmares editou a Portaria no 98 que dificultou a inclusão de comunidades no Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos. Por seu turno, as sucessivas Instruções Normativas emitidas pelo Incra[21] foram acrescentando exigências à elaboração do relatório antropológico, uma das peças técnicas que compõem o RTID, impondo maior rigor no formato.

Além disso, em 2008 foi instituída a consulta a órgãos e entidades, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional (CDN), a Fundação Cultural Palmares (FCP), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e seu correspondente na esfera estadual, além do Serviço Florestal Brasileiro (SFB). Quando há conflito de interesse entre o pleito quilombola e tais órgãos, a exemplo da sobreposição de territórios quilombolas com Unidades de Conservação de Proteção Integral, os processos são remetidos à Câmara de Conciliação da Advocacia-Geral da União (AGU), podendo permanecer por longo período.

Na atualidade, a IN no 57/2009 estabelece as sete etapas do processo administrativo de titulação do território, em que a introdução de exigências tem sido criticada por dificultar o seu andamento (BRUSTOLIN, 2009) e pela hipervalorização de parâmetros objetivos na delimitação dos territórios (SALAINI; FERNANDES, 2019). Em 2017, por exemplo, foi determinada a inclusão da informação sobre as áreas efetivamente ocupadas pelas comunidades nos processos administrativos de regularização. Tais exigências podem ser reflexo não apenas das ações contestatórias ao Decreto no 4.887/2003, mas da difusão do medo de que a questão quilombola se tornasse algo incontrolável, atentando contra a coletividade através da ocupação de áreas de segurança nacional e de preservação ambiental. Para alguns autores, a difusão de um “alarde” no tocante à da questão quilombola, associada às exigências normativas do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sinaliza o enquadramento da regularização fundiária dos territórios quilombolas como tema de segurança nacional (BRUSTOLIN, 2009; ANJOS, 2011).

Associado às etapas, estão os prazos estabelecidos para os procedimentos. Da publicação do RTID, abre-se o prazo de 90 (noventa) dias para apresentação de contestações, estando previstos outros 180 (cento e oitenta) dias para o julgamento pelo Comitê de Decisão Regional (CDR) do Incra, com possibilidade de recursos em até 30 (trinta) dias a partir da notificação. Outro aspecto mencionado corresponde à demora na assinatura dos Decretos de desapropriação pela Presidência da República (CPISP, 2018). Algumas mudanças foram justificadas sob alegação de “dar segurança jurídica” aos processos administrativos de titulação de territórios quilombolas, sobretudo após a instauração da ADI no 3239-9.

Ressalte-se que a atuação do Incra tem sido objeto de disputa. De um lado, o órgão é pressionado por quilombolas[22] e pelo MPF para dar andamento aos processos de titulação de territórios. Em função da demora não justificada, foram instauradas Ações Civis Públicas contra o Incra e a União, cobrando judicialmente a conclusão de processos de titulação de territórios quilombolas, como no caso da comunidade de Mormaça, no norte do Rio Grande do Sul (INCRA, 2017). Tal fato demonstra a necessidade de intervenção do MPF para se obter celeridade nos procedimentos de titulação de territórios quilombolas, como apontado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo em relação aos estados do Maranhão, Minas Gerais e Pará (CPISP, 2018).

De outro lado, o Incra é alvo de ações de “bloqueio” aos procedimentos administrativos de titulação, como a judicialização de processos. Também existem formas de pressão exercidas diretamente por agentes políticos sobre o Incra visando interferir no andamento dos processos, o que configura interseccionalidade entre Poder Legislativo e Executivo. Exemplo disso correspondeu à CPI Funai–Incra 2, que investigou a atuação do órgão e representou uma tentativa de cerceamento de servidores e de pesquisadores, entre outros agentes.

No entanto, a CPI Funai–Incra 2 não constitui uma ação isolada, mas é parte de uma articulação de forças. Em seus estudos, alguns autores têm apontado a reação contrária à política de titulação de territórios quilombolas e as disputas internas no governo federal que repercutem na implementação da política (CHASIN, 2009). Se, de uma parte, estabeleceu-se uma rede[23] de pesquisadores, instituições e organizações do movimento negro, contando com o engajamento de agentes do Estado (BRUSTOLIN, 2009), de outra, formou-se uma potente articulação contrária à política de titulação de territórios quilombolas.

Isso significa que a trajetória de construção de um problema público instaura um horizonte de engajamentos (CEFAÏ, 2009). No que concerne ao Rio Grande do Sul, tem sido apontada a articulação de forças contrárias à política de titulação de territórios quilombolas sob duas estruturas que, apesar de aparentemente independentes, se interceptaram em vários momentos (BENEDETTI, 2020). Uma delas corresponde às entidades de representação rural, capazes de promover a circulação de versões sobre o tema e de encaminhar proposições. A outra é formada por relações políticas que se conectam a detentores de cargos eletivos. Exemplo de interceptação entre essas estruturas corresponde à ocupação de cargos eletivos por ex-dirigentes sindicais, facilitando o encaminhamento de proposições, como verificado na apresentação do PL no 31/2015 à Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.

Os fatos relatados evidenciam o efeito mobilizador de forças políticas da titulação de territórios, em que determinados atores buscaram se posicionar como porta-vozes na construção de um problema em torno dessa política pública. Em que pese a natureza relacional do poder, ocupar determinada posição, como em decorrência de um cargo eletivo, pode resultar em poder posicional pela maior capacidade de articulação. O conjunto articulado entre atores, posições relativas de poder e ferramentas para exercê-lo configura a estrutura de poder (MARQUES, 2006). Desta forma, ao tomar parte na arena pública os atores sociais portam diferentes estruturas de poder, gerando assimetria no processo de constituição e reconstituição de verdades,[24] em que algumas falas têm maior peso do que outras, podendo levar ao silenciamento de pautas.

No caso do Rio Grande do Sul, agentes políticos buscaram explorar a preocupação de pequenos proprietários de terra diante de processos de titulação de territórios quilombolas. Em razão da política de colonização implementada no passado, os conflitos relacionados à titulação de territórios quilombolas na região Sul envolvem, além de fazendeiros, agricultores familiares, os quais também disputam território com grupos indígenas (POLICARPO MACHADO et al., 2018). Levando em consideração a grande sensibilidade da agricultura familiar perante a opinião pública, esse contexto cultural influencia a dinâmica de ascensão de questões na arena pública (FUKS, 2000). Em função disso, levanta-se a hipótese de que, no estado, o envolvimento de agricultores familiares nos conflitos potencializou a construção de um problema público relacionado à titulação de territórios quilombolas.

Assim, as disputas em curso na sociedade se refletem na ação do Estado por meio de sucessivos bloqueios a determinadas pautas. Um desses bloqueios corresponde à imposição de cortes orçamentários, reduzindo os recursos disponibilizados para a regularização de territórios quilombolas, tal como alertado por entidades que efetuam o monitoramento da política de titulação de territórios quilombolas (CPISP, 2018). Entre os anos de 2010 e 2020, o orçamento do Incra para a ação de Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas sofreu drástica redução, como pode ser visualizado no Gráfico 5.

 

Gráfico 5 Orçamento para Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas (2010 a 2020)

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Fonte: Incra (2021b) via Lei de Acesso à Informação (LAI).

 

O Gráfico 5 apresenta a redução no orçamento do Incra para a ação de Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas, entre os anos de 2010 e 2020, no que se refere à dotação inicial (Lei Orçamentária Anual) e ao limite autorizado. Em uma década, tanto a dotação inicial quanto o limite autorizado sofreram redução de mais de 90%, em que o corte mais intenso ocorreu entre os anos de 2015 e 2016. Pode-se perceber que em 2010 o limite autorizado correspondeu praticamente à metade da dotação inicial, situação idêntica à verificada no ano de 2015.

A imposição de constantes cortes no orçamento do Incra impacta a capacidade de o órgão movimentar os processos de titulação de territórios quilombolas por restringir a execução de ações. Para exemplificar, em 2018 o órgão publicou 20 (vinte) RTIDs, o que foi reduzido para 9 (nove) e 7 (sete) relatórios nos anos de 2019 e 2020, respectivamente. A movimentação dos processos também é afetada pela redução dos recursos disponibilizados para o pagamento de indenizações das terras de particulares que se encontram sobrepostas ao território quilombola. Neste quesito, a maior redução ocorreu entre os anos de 2015 e 2016, em sequência ao momento de ápice na titulação de territórios quilombolas no país. A diminuição dos recursos para o pagamento de indenizações parece alinhar-se à visão de extrapolação no território reivindicado pelos quilombolas, presente na problematização dessa política pública, o que coincide com a mudança político-institucional verificada nesse último ano.

Quanto às mudanças político-institucionais ocorridas no ano de 2016, o MDA foi extinto e o Incra lotado no gabinete da Casa Civil. Por sua vez, a reforma ministerial de 2019 extinguiu o Ministério da Cultura, vinculando a Fundação Cultural Palmares ao Ministério da Cidadania, enquanto o Incra passou a integrar a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A partir de então, o licenciamento ambiental das terras de quilombos deixou de ser atribuição da Fundação Cultural Palmares, cabendo ao Mapa formular as diretrizes e coordenar as ações de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de territórios quilombolas, pasta sob o comando de ex-parlamentar que possui vínculos com setores da agropecuária de conhecido posicionamento contrário à titulação de territórios quilombolas.

Do que foi exposto, constata-se a orquestração de forças contrárias à titulação de territórios quilombolas, em que disputas territoriais locais foram articuladas a ações contestatórias ao Decreto no 4.887/2003 e de obstaculização da atuação do Incra, órgão responsável pela implementação da política na esfera federal. Isso significa que as disputas em curso na sociedade brasileira se refletem na ação do Estado, por meio de sucessivas normatizações e da redução na alocação de recursos para viabilizar a implementação dessa política. No caso em estudo, a construção da titulação de territórios quilombolas como problema público se refletiu na conjunção de esforços para impor bloqueios sistemáticos à implementação da política pública.

 

Considerações finais

A emergência de uma potente reivindicação pelo reconhecimento e titulação dos territórios quilombolas passou a demandar, de forma crescente, a ação regularizatória por parte do Incra. Neste seguimento, a titulação de territórios quilombolas é a enunciação de uma nova legitimidade em termos de acesso a terra (BRUSTOLIN, 2009), na qual o procedimento desapropriatório previsto no Decreto no 4.887/2003 representou uma inovação no que se refere à política fundiária.

Neste trabalho buscou-se demonstrar os avanços no reconhecimento de direitos dos remanescentes das comunidades dos quilombos no país, como o estabelecimento de um marco regulatório para a titulação de territórios quilombolas. No entanto, essa medida tem gerado intenso debate, em que o uso da noção de arena pública permitiu evidenciar a construção social de um problema em torno da titulação de territórios quilombolas, como as ações contestatórias ao Decreto no 4.887/2003 e demais fatos que foram relatados ao longo do texto. Embora exista o reconhecimento do direito ao território, em uma perspectiva de reparação histórica, a sua efetivação ainda está distante, haja vista a imposição de bloqueios sistemáticos à implementação da política pública.

Portanto, mais do que a disputa no interior do aparato do Estado, apontada por alguns autores, é o embate que envolve o reconhecimento de direitos de minorias que repercute na implementação da política de titulação de territórios quilombolas. Ou seja, é a disputa instaurada na sociedade brasileira que se reflete na ação do Estado, na forma de sucessivas normatizações e dos investimentos realizados (ou da falta deles). Infere-se que a constituição da titulação de territórios quilombolas como questão de segurança nacional (BRUSTOLIN, 2009; ANJOS, 2011) é uma das faces de sua construção como problema público.

 

 

Agradecimentos

A autora agradece aos servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sobretudo ao antropólogo Roberto Alves de Almeida, pela disponibilização de informações que foram fundamentais para a análise, contudo ressalta que o conteúdo do texto é de sua inteira responsabilidade.

 

 

 

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Como citar

BENEDETTI, Adriane Cristina. Entre avanços e bloqueios: uma análise da política de titulação de territórios quilombolas. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 3, p. 699-726, out. 2021. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v29n3-8.

 

 

 

 

Adriane Cristina Benedetti

Indigenista Especializada da Fundação Nacional do Índio (Funai). Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

https://orcid.org/0000-0002-9979-5792
http://lattes.cnpq.br/0029842987167520
adriane.benedetti@gmail.com

 

 

 

 

 

 

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[1] Indigenista Especializada da Fundação Nacional do Índio (Funai). Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: adriane.benedetti@gmail.com.

[2] Por movimento negro entende-se a rede de entidades, ativistas, lideranças, políticos e intelectuais que lutam contra a discriminação racial, na perspectiva de movimento social como rede de atores de Mario Diani (1992).

[3] Cada processo aberto no Incra corresponde a um território quilombola, porém o mesmo território pode ser regularizado mediante vários títulos de terra. Em função disso, neste trabalho foi considerado o número de territórios titulados.

[4] Os processos de titulação de Mormaça, Morro Alto, Palmas e Rincão dos Negros constituíram os “casos exemplares” usados na pesquisa. Essa metodologia se distingue do estudo de caso por não selecionar uma determinada situação para analisá-la isolada e profundamente, mas contemplar diferentes situações que possam fornecer elementos “bons para pensar”, e sua escolha foi inspirada no trabalho do sociólogo mexicano José Manuel Arce (1999) que deu origem ao livro Vida de barro duro: cultura popular juvenil e grafite.

[5] O Grupo de Trabalho (GT) sobre Terra de Quilombos foi criado em 1994 e, no ano seguinte, foi publicado o primeiro Caderno da ABA sobre o tema, com textos de antropólogos que desenvolviam pesquisas em comunidades negras rurais em diferentes regiões do país (O’DWYER, 2002).

[6] Levando em consideração que este artigo focaliza o Executivo federal, propõe-se a atuação dos governos estaduais na regularização de territórios quilombolas como sugestão para novos estudos.

[7] Relacionado ao Decreto no 4.887/2003, foi lançado o Programa Brasil Quilombola em março de 2004 e, com a Agenda Social Quilombola, buscou integrar ações de diferentes ministérios no acesso ao território, infraestrutura, inclusão social e produtiva, entre outras medidas.

[8] A diferença de números é pelo fato de uma mesma certidão poder abranger mais de uma comunidade.

[9] Uma amostra dessa diversidade é retratada na Coleção Terras de Quilombos. Fruto da parceria entre o Incra, o antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a coleção traz a sistematização das informações contidas nos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID), estando disponível em: https://antigo.incra.gov.br/pt/memoria-quilombola. Acesso em: 28 maio 2021.

[10] Foi veiculada matéria no site do Observatório Quilombola (2010) sobre o conflito em Palmas, enquanto o conflito em Rincão dos Negros tornou-se notícia em jornal estadual (POLÍCIA..., 2012).

[11] Conforme documentos que constam no processo de titulação do território de Mormaça (INCRA, 2017).

[12] Segundo reportagem do Jornal Correio do Povo, foram realizadas mobilizações no Pará, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul. Nesse último estado, as ações se concentraram em torno da Terra Indígena de Mato Preto e da comunidade quilombola de Morro Alto, sendo estimada a participação de 4.000 (quatro mil) pessoas, entre agricultores, lideranças locais, políticos e entidades de representação rural (AGRICULTORES..., 2013).

[13] A Bancada Ruralista corresponde a um grupo informal de parlamentares vinculados a diferentes partidos, mas que convergem em termos de posicionamentos e de votos em temas relacionados à propriedade e ao uso da terra, como nas recentes definições sobre o Código Florestal (RIBEIRO, 2014).

[14] Mario Fuks (1998) fez uso da noção de arena pública no estudo da ascensão do meio ambiente a tema público no Rio de Janeiro. Apesar de ele utilizar a perspectiva construcionista na abordagem de conflitos ambientais, sua proposição com relação à construção social dos problemas públicos pode ser estendida para outras temáticas.

[15] O artigo 17 do Decreto no 4.887/2003 estabelece a titulação coletiva do território, de forma pró-indivisa e com cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade (BRASIL, 2003). A indenização também é aplicada aos títulos de domínio de quilombolas, obtidos via compra ou processos de usucapião, que serão anulados em prol da titulação coletiva.

[16] Veja-se, por exemplo a matéria: “O Jornal Nacional vai mostrar agora o resultado estarrecedor de uma investigação no Recôncavo Bahiano”, veiculada nacionalmente em 14 de maio de 2007, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_vEcbpMQeAU. Acesso em: 20 maio 2021.

[17] A PEC no 161/2007 propôs alterações no inciso III do art. 225 e no § 4o do art. 231 da Constituição Federal, bem como no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (BRASIL, 2007).

[18] Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou fatos relativos à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Incra. Houve duas fases, sendo a primeira de 2015 a 2016 e, a segunda, entre 2016 e 2017, em que a CPI Funai–Incra 1 foi extinta por decurso de prazo e seus documentos transferidos à CPI Funai–Incra 2 (BRASIL, 2017).

[19] Para exemplificar, o processo de Morro Alto foi aberto em 2004, mas ainda se encontra em fase de contestação ao RTID, mesma etapa na qual está o processo de Rincão dos Negros, iniciado no ano seguinte. Já os processos de Mormaça e de Palmas foram abertos em 2005 e contam com Portaria de reconhecimento do território, respectivamente, Portarias no 531, de 7 de outubro de 2015, e no 106, de 17 de fevereiro de 2017.

[20] Sobre o quadro de servidores do Incra, veja a matéria de Vera Batista (BATISTA, 2020).

[21] O Incra emitiu várias Instruções Normativas (INs) disciplinando o procedimento administrativo para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de territórios quilombolas. A IN no 57/2009 estabelece as seguintes etapas: 1) Fase Inicial; 2) Elaboração do RTID; 3) Análise e julgamento de recursos ao RTID; 4) Portaria de Reconhecimento; 5) Decretação; 6) Desintrusão; e 7) Titulação.

[22] Em outubro de 2011 quilombolas de Morro Alto ocuparam a sede do Incra/RS com vistas à pressionar o órgão a dar andamento no processo de titulação das terras da comunidade (GRUPO..., 2011).

[23] Faz-se uso da noção de rede de Boltanski e Chiapello (2009), como espaço aberto de interconexões, em que a conexão constitui um encontro, momento no qual se forma a identidade dos atores que estão estabelecendo a relação em um mundo conexionista, tal como se configura na atualidade.

[24] Para Luc Boltanski (2013), constroem-se versões da realidade com as quais lidamos. Ele efetua distinção entre realidade e mundo, em que a construção de realidade envolve regras e formato de provas, fruto de seleção e representação. As implicações dessa oposição são perceptíveis na crítica, se alterando entre a reformista e a radical, e no vigor da realidade, que não constitui uma grandeza estável, mas dependente do contexto histórico.