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v. 29, n. 2, junho a setembro de 2021, p. 332-354
Recebido em 16 de janeiro de 2021. Aceito em 28 de abril de 2021.



Reconquista da terra:
resistência e organização de camponeses ao final da ditadura empresarial-militar


Reconquer the land: resistance and organization of peasants at the end of the corporate-military dictatorship

 

DOI: 10.36920/esa-v29n2-4

 

orcid_id.png  Ricardo Braga Brito[1]


Resumo: Em fins de 1979 foi realizada uma ocupação de terra na fazenda São José da Boa Morte, em Cachoeiras de Macacu (RJ), com participação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cachoeiras de Macacu e da Comissão Pastoral da Terra. A fazenda já havia sido palco deste tipo de ação em 1961 e 1963, sendo expressiva outra que ocorreu mais uma vez em momento de redemocratização do Brasil. Por meio de entrevistas com lideranças e camponeses e análise de documentos sindicais, da repressão e jornalístico, buscou-se reconstituir o momento da ocupação e seus significados para o conjunto de atores que a realizaram, vinculando as estratégias de organização aos contextos local e nacional. Para isso, foi construída uma análise das estratégias de enunciação e ação coletiva dos camponeses, ressaltando as motivações e as experiências formativas, tornando possível ressaltar o papel de resistência e de organização de categorias sociais frequentemente invisibilizadas.

Palavras-chave: movimentos sociais; luta pela terra; ditadura empresarial-militar; Rio de Janeiro.

 

Abstract: At the end of 1979, the São José da Boa Morte farm in Cachoeiras de Macacu (RJ), was occupied by peasants organized through their Rural Workers’ Union and by the Pastoral Land Commission (Comissão Pastoral da Terra). The farm had already been the scene of occupations in 1961 and 1963, and its occupation was expressive once again at this moment of redemocratization in Brazil. Through interviews with leaders and peasants and analysis of documents of the union, of the repression and journalistic documents, we sought to reconstruct the time of the occupation and its meanings for the group of actors who occupied the farm, linking their organizational strategies with the local and national contexts. In this way, an analysis of the strategies of enunciation and collective action of the peasants was built, highlighting their motivations and formative experiences, making it possible to highlight the role of resistance and organization of social categories that are often invisible.

Keywords: social movements; struggle for land; corporate-military dictatorship; Rio de Janeiro.

 

 

 

 

 

Introdução

Tratamos neste artigo[2] da terceira ocupação de terra realizada na Fazenda São José da Boa Morte, localizada no município de Cachoeiras de Macacu (RJ), realizada em dezembro de 1979 e janeiro de 1980. Esta mesma fazenda já havia sido palco de ocupações em 1961 e 1963 por meio da organização dos camponeses juntamente com outras organizações (BRITO, 2018a). A hipótese apresentada é que as motivações referentes à escolha por este tipo de ação e continuidade dos camponeses nesta região, marcada por conflitos, guardam relação com as anteriores, mantendo em si uma perspectiva de ação e um enquadramento coletivo.

Para compreender de forma aprofundada a ocupação como forma de ação coletiva, precisamos traçar o seu histórico e caracterizar atores e organizações envolvidos nos conflitos do período, de modo a estabelecermos o conjunto de experiências e expectativas presentes. Deste modo, o centro da análise é o significado da luta pela terra entre camponeses organizados na Fazenda São José da Boa Morte, o qual se relaciona com a dinâmica do movimento camponês no estado do Rio de Janeiro em diálogo com o contexto nacional. Tal como apontaremos, houve nas ações em São José da Boa Morte a construção de um enquadramento coletivo (SNOW, 2004) que fez dos lavradores organizados agentes capazes de, por sua ação comunitária, libertar as terras das mãos dos grileiros. As ocupações, a organização dos lavradores e as articulações relativas à desapropriação da terra foram marcadas por experiências de violação das noções de justiça e das concepções de vinculação e uso da terra (MOORE JR., 1987; GRYNZSPAN, 1987; THOMPSON, 1998). Assim, as terras conquistadas pelo trabalho e pela organização dos lavradores articulavam desejos de autonomia na produção e de possibilidade de se estabelecer e garantir a reprodução material e social dos lavradores, interpretação e conjunto de práticas que dão significado à terra e ao seu uso e posse. Esse enquadramento se contrapôs ao entendimento dos grandes proprietários e grileiros da região, que viam na terra interesses especulativos e a constituição de áreas de turismo e/ou construção de áreas habitacionais.

Como veremos, a ocupação de 1979-1980 foi vitoriosa em reconquistar a desapropriação da terra, compondo de forma ativa um período de intensa mobilização de trabalhadores rurais no Rio de Janeiro (MEDEIROS, 2018). Esse período se relaciona com o momento de distensão política do regime militar, evidenciando a potência contida nas formas de ação coletiva de grupos camponeses que foram de suma importância para o processo de redemocratização (PALMEIRA, 1985; MEDEIROS, 2014). A desapropriação se deve à capacidade de organização e de amplificação da luta local pelas entidades envolvidas, mobilizadas por um grupo amplo de lavradores que traziam consigo a memória das ocupações anteriores e uma resistência marcada pelo desejo de conquistar e ficar na mesma terra. Este conjunto de ações e organizações e a socialização de um enquadramento de ação coletiva apontam para uma resistência teimosa, que merece análise mais fina a fim de captar as articulações e ações de camponeses e suas lideranças em períodos de repressão intensa (BRITO, 2018a).

A fim de analisarmos a formação e a atuação dos grupos mobilizados que lutavam pela terra, utilizamos documentos, entrevistas e referências bibliográficas. Procuramos colocar em diálogo a documentação oficial e a produzida por entidades representativas dos trabalhadores rurais, entendendo que cada uma destas documentações é produzida conforme a perspectiva das instituições que as geram.

Parte do material analisado são documentos produzidos pela Federação dos Trabalhados da Agricultura do Estado do Rio de Janeiro (Fetag/RJ), pela Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Cachoeiras de Macacu. Tais documentos se encontram no Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP) do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).[3] Ainda neste acervo, examinamos o material da Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização com importante participação no conflito analisado e com intenso trabalho no mapeamento de conflitos agrários em todo o Brasil, bem como a documentação do Subfundo Conflitos no Campo, do acervo CPT, alocado no Centro de Documentação Dom Tomás Balduino.[4] Também foi consultada a documentação do projeto Memórias Reveladas do Arquivo Nacional (AN), que contém um conjunto de documentos produzido durante o regime militar por diversos órgãos de segurança do Estado. Outras fontes oficiais do Estado, em particular nos órgãos de repressão, foram obtidas a partir do Fundo de Polícias Políticas do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), onde foram coletados e analisados prontuários, ofícios e relatórios elaborados pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Para reforçar a multiplicidade de perspectivas do conflito, também foram analisadas notícias de jornal veiculadas entre as décadas de 1950 e 1980, cuja relevância retrata o momento de realização das ocupações, trazendo consigo outras visões, relatos e entrevistas com atores fundamentais.[5] As notícias de jornal foram encontradas, principalmente, por meio da Hemeroteca Digital do AN.[6]

A partir desse amplo conjunto de documentos, buscou-se reconstituir as interpretações dos diversos atores que os produziram e compreender os períodos e fenômenos analisados. Tomando como base o método interpretativo de Ginzburg (1989), orientado para os indícios, foi possível captarmos na documentação elementos significativos para apreender as representações, as possibilidades de organização colocadas, a presença de signos culturais compartilhados, os limites impostos pela vigilância e repressão estatais, bem como as articulações com o movimento sindical rural. Como salientou Ginzburg (1989), a análise centrada nos dados marginais, orientada por um método interpretativo, permite aprofundar a compreensão das relações sociais, das expectativas e das formas de ação.

Dada a intensidade da repressão exercida por órgãos de segurança do Estado e por agentes privados nas áreas rurais, trabalharmos apenas com a documentação de entidades representativas, em particular os sindicatos, apresenta lacunas. Foi comum a destruição do material por agentes repressores ou pelos próprios trabalhadores, marcados pela repressão e pelo medo. Deste modo, além do material documental também foram realizadas entrevistas com lideranças e camponeses sem posição de liderança. As entrevistas, assim como os documentos, revelam ainda indícios capazes de permitir o aprofundamento do conhecimento sobre elementos mais gerais. Por meio de sua análise, tal como aponta Bourdieu (2008), podemos captar os fundamentos reais do descontentamento e da insatisfação, as angústias e os medos, em suma, os diversos significados presentes nos pontos de vista dos entrevistados. Mediante a abordagem compreensiva das entrevistas e a sua profundidade como momento de interação capaz de esclarecer as diversas estruturas sociais pelas quais atravessam e são atravessados os agentes sociais, é possível apreendermos as motivações e os significados estabelecidos pela organização e pela ocupação como ação coletiva. As memórias captadas e trabalhadas por meio das entrevistas possibilitaram a reconstrução da ocupação em seus significados locais e suas relações mais amplas com o momento de redemocratização e retomada das organizações camponesas.

               

Breve histórico de conflitos fundiários e ocupações de terra na região

Recuperarmos a dinâmica histórica dos conflitos fundiários na região é fundamental para que possamos compreender os significados da organização de camponeses e suas formas de ação coletiva. A região da Fazenda São José da Boa Morte, analisada neste texto, foi palco de três ocupações de terra, cada uma delas indicando diferentes correlações de força. A reconstituição dessas ações foi realizada em trabalhos anteriores (BRITO, 2018a), de modo que interessa aqui retomarmos os elementos centrais que permitem entender a ocupação de 1979-1980 dentro do fio condutor geral que articula a experiência de organização e luta nesta região.

Apesar da divergência entre as fontes, entre 1954 e 1959 observamos a formação de uma Associação de Lavradores em Papucaia, Ribeira e São José da Boa Morte, áreas de Cachoeiras de Macacu caracterizadas pelo crescimento de despejos.[7] A organização desta Associação é marcada pelas denúncias de invasão de gado nas plantações e acusações de grilagem dos irmãos Coimbra Bueno,[8] donos da fazenda Agrobrasil, também conhecida como Fazenda São José da Boa Morte.

A formação de uma Associação de Lavradores local aponta para a articulação do movimento camponês em Cachoeiras de Macacu e a dinâmica estadual e nacional desta categoria. Ligadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), as Associações foram organizadas em áreas de conflito e se tornaram fundamentais na denúncia de grilagens e despejos nos anos 1950 e 1960 no estado do Rio de Janeiro (GRYNSZPAN, 1987). Apesar do caráter local, vinculado às demandas por terra de determinados grupos, as Associações se vinculavam à Federação das Associações de Lavradores do Estado do Rio de Janeiro (Falerj), compondo estratégias de atuação coletiva, identidades e linguagens próprias relacionadas à luta pela terra, pela reforma agrária e pela organização dos trabalhadores do campo. Segundo Medeiros (1995), as Associações e a Falerj se inseriram em um movimento de construção da identidade de classe, processo constituído em meio aos conflitos sociais e ao aparecimento político dos camponeses a partir de suas organizações.

Conforme trabalhado por Medeiros (1995, 2014), a organização de trabalhadores rurais e os conflitos existentes em grande parte do país compunham um quadro nacional de tensão social e disputa por representação do campesinato. Deste modo, um conjunto de entidades e organizações de trabalhadores do campo ampliaram o espaço público nos anos 1950 e 1960, modificando as concepções e práticas dos atores presentes, demandando direitos trabalhistas, terra, política de preços, direito de organização e acesso ao reconhecimento político.

Esta dinâmica também é observada em Cachoeiras de Macacu, sendo digna de destaque a capacidade de organização dos camponeses neste município e suas reivindicações por reforma agrária e acusações de grilagem direcionadas a grandes proprietários de terra locais. As tensões observadas na área rural do município se intensificaram com a formação do Núcleo Colonial de Papucaia em 1951, área limítrofe à fazenda aqui analisada. Tal como outros criados na Baixada Fluminense entre 1930 e 1950, o Núcleo Colonial de Papucaia foi fundado por Getúlio Vargas, e tinha o intuito de aumentar a produção de alimentos para consumo interno no Rio de Janeiro, então capital federal, distender os conflitos por terra e realocar migrantes e imigrantes[9] que se deslocavam entre áreas urbanas em crescimento e áreas rurais marcadas pelo fechamento das possibilidades de apropriação da terra aos lavradores.

A dinâmica de migração e de trabalho imprimida pelo Núcleo de Papucaia, além das novas formas de intervenção do Estado na região, em especial após o conjunto de obras de saneamento e construção de estradas, criou um movimento de especulação fundiária, grilagem e despejo dos lavradores que também atingiu os camponeses da Fazenda São José da Boa Morte. Segundo Grynszpan (1987) e Medeiros (2018), os conflitos por terra no estado do Rio de Janeiro estiveram intrinsecamente relacionados à formação dos núcleos coloniais: a valorização das terras no entorno dos núcleos, a quantidade de terras griladas e despejos de lavradores construíram situações de tensão nas áreas rurais.

No início dos anos 1960, lavradores que trabalhavam como meeiros na fazenda São José da Boa Morte foram despejados com o uso de armas de fogo, invasão de gado nas plantações e incêndios promovidos por grileiros.[10] A continuidade destas violências contribuiu para a realização das ocupações de 1961 e 1963. No caso da primeira, os lavradores se revoltaram contra quatro pretensos proprietários que cobravam taxas de matagem, pela exploração e corte das árvores da propriedade, trabalho necessário para iniciar a lavoura. A existência de tantos proprietários para a mesma terra levou ao questionamento da legitimidade dos títulos de propriedade e a acusação de grilagem.

Conforme em trabalho já analisado (BRITO, 2019), a construção da categoria de acusação grileiro foi elemento central na reconfiguração da relação de forças entre posseiros e proprietários de terra no período anterior ao golpe de 1964.[11] A experiência de conflito e o trabalho de mobilização e organização dos trabalhadores rurais neste período foram capazes de articular no que se refere à identidade “posseiro”, “camponês” e “lavrador” elementos comuns de existência material e de capacidade de luta e reversão das situações de sofrimento e miséria causadas pelos proprietários de terra (MEDEIROS, 1995). A transformação dos “proprietários” em “grileiros” recoloca a posição dos “posseiros” ao acusar aqueles de apropriação ilegítima de terras, portanto, de expropriação.

O caso aqui examinado aponta para a violação de determinadas normas socialmente estabelecidas e esperadas na base da experiência formadora do grupo social organizado: os despejos e as violências praticadas a despeito do pagamento de taxas e das relações de meia e parceria estabelecidas. O rompimento arbitrário, violento e unilateral das relações prévias de trabalho foi capaz de minar os vínculos tradicionais de dominação. Conforme observado por Moore Jr. (1987), uma mudança drástica, capaz de impedir o acesso aos meios de produção e reprodução da vida e das relações sociais e que rompe com as expectativas socialmente estabelecidas, tal como promovida pelo despejo, é capaz de gerar revolta. Esta revolta é marcada pela indignação tornada pública e socializada pelos grupos subalternos, revelando também uma economia moral, entendida por Thompson (1998) como conjunto de pressupostos morais, normas e obrigações sociais presentes e articuladores das experiências e expectativas sociais dos pobres. A privação e o desrespeito desses pressupostos foram motivação habitual para a ação direta nas análises do historiador inglês, mas também é possível percebermos estas motivações nas áreas rurais do estado do Rio de Janeiro (GRYNSZPAN, 1987; MEDEIROS, 2018).

Dentre as motivações e indignações dos lavradores organizados, a grilagem ocupa um espaço significativo. Ambos os movimentos de ocupação de 1961 e 1963 acusavam os Coimbra Bueno de grilarem terras públicas[12] que deveriam, na lógica articulada pelo movimento camponês, pertencer aos lavradores que nela trabalhavam: uma compreensão e uma lógica articuladoras da luta pela terra em âmbito nacional (MEDEIROS, 1995). A ocupação de 1963 foi capaz de comprovar a grilagem a partir da documentação do Instituto Nacional de Imigração e Colonização (Inic).[13] As terras reivindicadas pelos lavradores eram localmente conhecidas como “Duzentos Alqueires”, relevante por se tratar simplesmente da medição do terreno. Outros nomes, como Coco Duro e Marubaí, se referem à mesma região de fronteira entre a Fazenda São José da Boa Morte e o Núcleo, mas ficaram marcados na memória e na documentação os conflitos relativos aos Duzentos Alqueires do Núcleo Colonial sobre os quais diversos grileiros faziam avançar os limites de suas propriedades. O informativo enviado pelo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) à Presidência da República em 1966 confirma o que os lavradores haviam apontado anos antes: “A Gleba Duzentos Alqueires possui 172 alqueires geométricos, já integrados na área do Núcleo Colonial de Papucaia, adquiridos pelo Ministério da Agricultura em 14 de agosto de 1952 para a implantação daquela unidade de colonização”.[14]

Após dura repressão e continuidade dos despejos e violências, os camponeses conquistaram a desapropriação[15] da terra com a ocupação de 1963, organizada com a Associação de Lavradores e com o apoio do prefeito Ubirajara Muniz (PTB – Partido Trabalhista Brasileiro). É significativa a bandeira hasteada nas ocupações de 1961 e 1963: “Luta-se pela terra livre”,[16] expressão de um desejo pela terra camponesa, livre da subordinação aos grileiros e proprietários, expressão marcada pelo debate e pela organização da luta pela reforma agrária em todo o Brasil. Estas ações coletivas suspenderam o cotidiano do trabalho na lavoura e representam atividades espetaculares e públicas, contudo, também indicam o trabalho molecular de socialização e constituição do movimento social (PALMEIRA, 1985; MEDEIROS, 1995).

Além de suspender o cotidiano, a ocupação apresentava uma insubmissão que envolvia demandas do presente e do passado. Para Alcídio Salvador, secretário da Associação de Lavradores e liderança nas ocupações de 1961 e 1963, “o sentido da nossa luta não é libertar somente S. José da Boa Morte da exploração, e sim todo o Brasil”.[17] Para um lavrador identificado apenas como Pau de Arara: “Há quatro anos, 60 famílias tentaram se alojar nestas terras e foram tocadas a tiros.Muitas delas desapareceram. Nós agora vingaremos todos os humildes e perseguidos.”[18]

Importa ressaltamos que a recorrência das ocupações de terra no estado do Rio de Janeiro e em todo o país indica uma radicalização na luta pela reforma agrária que esteve em sintonia com o clima político da década de 1960 (MEDEIROS, 1995). Esta radicalização, pressionada pelas ações dos movimentos sociais, pressupunha que o acesso a terra só se realizaria com o papel ativo dos camponeses organizados. Não à toa, Arantes (2014) caracteriza a realização do golpe como extinção da política como dimensão de mudança. Segundo o autor, o regime ditatorial atuou de modo a impedir, sobretudo, a organização dos trabalhadores do campo e da cidade, ceifando o período de organização e atuação desses movimentos de trabalhadores.

Entre 1964 e 1979 foram diversas as alterações fundiárias e mudanças sociais no município, e podemos notar fragmentação das pequenas e médias propriedades e concentração da grande propriedade entre os anos 1960 e 1980. Conforme dados coletados dos Censos Agropecuários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é possível observarmos elevado crescimento dos estabelecimentos menores que 10 hectares, indicando um processo de fragmentação das pequenas propriedades, acontecendo simultaneamente à manutenção das dimensões das grandes propriedades com mais de 500 ha (Tabela 1).

 

Tabela 1 – Estabelecimentos por grupos de área (ha) em Cachoeiras de Macacu (1960-1980)

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Fonte: IBGE. Censos Agropecuários do Rio de Janeiro de 1960, 1970 e 1980.

 

Entre 1960 e 1980 os estabelecimentos de até 10 ha cresceram 445%, e sua área média diminuiu de 6,7 ha para 4,5 ha. Segundo classificação do Incra, o módulo fiscal do município é de 14 ha, de modo que áreas inferiores a esse número são consideradas minifúndios e, portanto, não podem proporcionar condições de sustento ao produtor e sua família.[19] Esta alteração da composição fundiária do município pode ser entendida também pelo controle político exercido sobre as organizações de trabalhadores da cidade e do campo.

O STR, construído com base na Associação de Lavradores, sofreu intervenção em 1964. Lavradores e lideranças foram presos,[20] torturados e perseguidos, inclusive lideranças urbanas, em especial as vinculadas ao Sindicato dos Ferroviários, com atuação expressiva e fortes laços com os camponeses (COSTA, 2015). O prefeito foi preso e teve seu mandato cassado. Nos primeiros anos da ditadura, a Fazenda São José da Boa Morte foi inserida, com outras propriedades desapropriadas pelos militares, no Projeto Integrado de Colonização de Papucaia, que teve como intuito aumentar a vigilância sobre os lavradores, impedir as formas de organização e produzir alimentos para abastecimento interno. Contudo, a desapropriação da São José foi cancelada, retornando para os antigos proprietários acusados de grilagem, a partir de uma decisão do Ibra em reunião com os proprietários, mas sem a presença do Sindicato.[21]

Conforme analisado por Medeiros (2014), a intensificação da repressão, em especial nas áreas onde houve maior mobilização, não significou mitigação dos conflitos, pelo contrário. A resistência se intensificou com o crescimento da expropriação e da exploração, impulsionadas por projetos de modernização do campo, pela expansão da colonização e da atividade de empresas no campo. O que observamos nesse período é que, após o momento inicial de intensa repressão, os STRs passaram a atuar empregando novas formas, reivindicando melhores condições de trabalho e construindo maior capilaridade, estratégia adotada pela Contag em âmbito nacional. A continuidade da atuação sindical se dava, em grande medida, pela persistência das reivindicações, voltadas para as necessidades mais básicas e imediatas, utilizando a própria legislação adotada e construída pela ditadura (MEDEIROS, 2014).

Além do movimento sindical no campo, a CPT se constituiu um ator importante na esfera nacional. Segundo Mainwaring (1989), a CPT nasceu da oposição de alguns setores da Igreja Católica à ditadura. Estes setores foram marcados por trajetórias eclesiásticas e leigas de aproximação com o cristianismo e o marxismo com base na Teologia da Libertação, buscando novas maneiras de luta e de libertação a partir do contato com a esquerda e do compromisso com a autonomia, a cultura e a luta dos pobres. Para Medeiros (2002), desde 1975 a CPT se constituiu pelo apoio à organização, à resistência e à defesa dos interesses dos trabalhadores rurais por eles mesmos, tendo sido de fundamental importância na construção das críticas às práticas dos STRs. Em Cachoeiras de Macacu, a CPT passou a atuar de modo significativo em 1977.

 

Ocupar mais uma vez

A partir deste histórico de lutas pela terra e de reivindicação pela libertação das terras das mãos dos grileiros, é possível apreender um enquadramento (frame) da ação coletiva. Tal como analisado por Snow (2004), os movimentos sociais são agentes ativos na produção e transformação destes enquadramentos, construindo significados de ações e interpretações coletivas capazes de desnaturalizar as experiências sociais, articulando as condições de infortúnio e miséria como injustas e como capazes de serem alteradas a partir da ação organizada do grupo social.[22] A realização da ocupação de 1979 por lavradores que também estiveram presentes nas ocupações anteriores e que ali se mantiveram presentes e atuantes indica a persistência desse enquadramento, transformado também em memória e identidade de um grupo.

Entre 1974 e 1978 os despejos haviam se intensificado. Em 1978, 16 famílias de lavradores da São José processaram a Companhia Agrobrasil e abriram ação demarcatória. Estas eram as últimas famílias que haviam conseguido resistir ao processo de expulsão e devolução de terras iniciado no imediato pós-golpe. No caso de ao menos uma delas, os lavradores que agora eram ameaçados de despejo haviam sido presos em abril de 1964 pelo regime militar e ali residiam desde antes do golpe.

Segundo a Fetag/RJ, a reversão da desapropriação gerou angústias para os lavradores, agravando a situação de pobreza e a concentração de terras no município:

De um modo geral a situação dos parceleiros[23] é de pobreza, desassistência, abandono, alguns poucos têm o título, e a maioria sequer sabe quando irá recebê-los. Os parceleiros temem que o Incra inclusive ceda às pressões dos fazendeiros vizinhos à área desapropriada, permitindo-lhes inclusive alterar as divisas e açambarcar áreas pertencentes ao projeto de colonização, e esse temor dos parceleiros se deve principalmente ao que aconteceu com a desapropriação de São José da Boa Morte. (Levantamento de Conflitos por Terra no RJ – 1979/1981, p. 18. Caixa 16. Fetag/RJ – 1964-1989. Acervo MSPP)

O documento aponta a existência de centenas de famílias que viviam às margens do Núcleo, trabalhando como assalariados e demandando um pedaço de terra na São José da Boa Morte, sendo significativo que o imóvel é ocupado “há mais de vinte anos por centenas de famílias de lavradores” que em 1964 conquistaram a desapropriação. Perdendo as próprias terras, estas famílias viram-se obrigadas a vender a força de trabalho “na redondeza” ou viver de parcerias, apontando para a permanência dos lavradores naquela localidade, agora em novas situações de dependência e de proletarização. Outras disputas entre pretensos proprietários e o drama vivido pelas situações de assalariamento e parceria e a pressão contínua dos despejos levaram o STR a realçar o caráter público das terras reapropriadas pelos Coimbra Bueno, destacando a função social prescrita no Estatuto da Terra e capaz de ser alcançada pelos lavradores.[24]

                               

Construindo a ocupação e versões de sua autoria

Em fins de 1979, cerca de 120 famílias de lavradores ocuparam a Fazenda São José da Boa Morte de modo a impedir a continuidade das ações de despejo. Conforme ressaltado pelos documentos e pela análise das ocupações anteriores, a recorrência das preocupações “morais”, presentes na indignação vivida com relação à quebra das expectativas coletivas, tais como a permanência na terra pública, e as alterações bruscas das condições materiais foram motivações presentes na realização da nova ocupação. A mobilização foi realizada a partir da ação de alguns lavradores que compunham a oposição sindical ao STR,[25] alguns dos quais haviam participado da ocupação de 1963. Contudo, nos relatos de inúmeros camponeses, nas notícias de jornal e nos documentos dos órgãos de segurança, o STR e a CPT são apontados, nas figuras do então presidente João de Jesus Pereira e do padre Johaanes Joachim Maria Van Leeween, conhecido como padre Joaquim, como os responsáveis pela ocupação. Segundo ambos, em entrevistas realizadas, CPT e STR entraram depois da ocupação já ter sido concluída, auxiliando na sua continuidade e de forma mais intensa após a prisão de 88 lavradores e do padre Joaquim em fins de janeiro de 1980.

Um agricultor[26] da São José que participou da ocupação e depois foi assentado, afirma que “seu Joãozinho [...] descobriu que essas terras aqui eram do Incra, não eram da fazenda”.[27] Segundo ele, a estratégia era ocupar para pressionar a desapropriação, pois “se nós não fizer uma pressão o Incra não vai tomar a providência”, de modo que, em dezembro de 1979, “entramos de foice, machado e fomos roçando, roçando, roçando”. Outro lavrador, ex-tesoureiro do sindicato, conta que neste momento entraram os “corajosos entre aspas, né? Ele queria um pedacinho de terra para ele. Porque a desapropriação era muito difícil, na época dos militares”.[28]

Apesar da importância dada à presença do STR, João de Jesus Pereira, que presidiu o STR entre 1972 e 1994, relatou o seu desgosto com a realização da ocupação, apontando a irresponsabilidade de seus opositores em insuflar esse tipo de ação, em especial o grupo de oposição sindical, ligado à CPT.[29] João compara a ocupação de 1979 à de 1963, associando a falta de embasamento legal das atuações de Ubirajara Muniz e da CPT à repressão e à violência sofridas pelos camponeses nos dois momentos. Segundo ele, a demanda por desapropriação realizada durante o seu período na presidência do Sindicato foi executada com “método” e “prudência”, baseada no Estatuto da Terra e, por isso, livre de violências.

A experiência e a prática sindical de João de Jesus Pereira foram consolidadas com base no modelo de atuação do movimento sindical durante a ditadura, caracterizado pela base legal para qualquer ação (MEDEIROS, 2018). A persistência deste modelo em sua memória aponta, simultaneamente, o caráter individual de sua lembrança e o contexto social mais amplo de sua formação e atuação. Lembrar é um ato atravessado pelas categorias e relações sociais, e a impossibilidade de reviver o passado do mesmo modo faz da lembrança um refazer da experiência, uma memória que se constrói por meio de inter-relações entre o que o indivíduo, o grupo e a tradição lembram (HALBWACHS, 2006; BOSI, 1994).

O padre Joaquim, da CPT local e atuante entre 1969 e 1989 no município, também afirma que a ocupação “não foi decidida junto da CPT. De repente aconteceu a ocupação [...] à revelia do Sindicato”. Segundo o padre, uma vez que já se tinha realizado a ocupação, a CPT auxiliou por meio de reuniões e assistência jurídica.[30] A atuação conjunta também foi apontada pelo ex-tesoureiro do STR, que em sua narrativa assume um ponto intermediário:

(...) nos anos 80 veio a desapropriação, com muita luta. Mas primeiro, a gente teve que invadir. (...) Nós entramos aqui, tinha dia que nós tínhamos 50 homens (...). Outra semana, nós tínhamos 80. Era tudo mato. Eram 4.824 hectares de terra. Era briga com sete fazendeiros latifundiários. Cada um queria mais. Mas era tudo mata. Mas da mata tiravam madeira. Muita madeira boa. E ganhar dinheiro e plantar capim, para gado. Que eles criavam boi; os fazendeiros. E aí sim, nós invadimos isso aqui. Para não falar invasão: era ocupação. (...) Foi um ano de luta, dentro do mato. (...) Nós vínhamos duas vezes por semana. E nós tivemos uma grande ajuda da Igreja. A Pastoral da Terra. Nós tínhamos um padre aí, que era muito homem mesmo. Macho. O Padre Joaquim. (...) Aí, foi catando as lideranças. E aí, você trazia de lá, dez; por intermédio do Padre Joaquim, que tinha as igrejinhas católicas também. Ele era uma das nossas pontes: “Olha, o povo vai invadir São José. Você está trabalhando aí? Vai lá. Se você não puder ir, eu venho te buscar.” E ia lá e buscava mesmo.[31]

Segundo documentos da repressão, os padres Joaquim e Agostinho Broek distribuíam folhetos sobre reforma agrária e abordavam o tema durante suas missas, tendo sido vistos arando a terra ao lado dos camponeses.[32] Os documentos, que explicitam o nível de vigilância empreendido pelos órgãos de segurança, também apontam para reuniões quase semanais entre os lavradores mobilizados, os padres e o presidente do STR.

A construção da narrativa da ocupação como guiada pelas ações do STR e da CPT não significa uma confusão nas lembranças e na construção da memória do período, mas nos aponta a presença de uma infrapolítica (SCOTT, 1990). Apreendermos uma luta política que se realiza de modo “infra” indica para a luta cultural e a expressão política dos subordinados que temem tornar públicas as suas vozes, realizando-se dentro dos espaços de discurso oculto e se formulando com relação às práticas e discursos públicos. Segundo Scott (1990), é na infrapolítica que as bases culturais da ação política mais visível são construídas, ressaltando o elemento molecular de constituição dos movimentos sociais.

Os lavradores ligados à oposição sindical foram apontados como líderes da ocupação, respondendo por invasão de terras e desmatamento.[33] Deste modo, parece-nos uma estratégia deste movimento camponês apontar grandes entidades organizativas como as responsáveis pela ocupação, evitando, deste modo, maiores repressões sobre os camponeses mobilizados. Assim, a infrapolítica foi elaborada pela leitura dos camponeses sobre o período de abertura política, indicando a sua percepção sobre as novas oportunidades de ação e ativação de estratégias de mobilização. Esta leitura não é gratuita, pois também indica a prática estatal de apreender lideranças como forma de enfraquecer movimentos contestatórios.[34]

As duas principais figuras na luta pela desapropriação da São José afastaram-se, em suas narrativas, da liderança da ocupação, apontando ora para a atuação dos lavradores, como fez Joaquim, ora para a atuação da oposição e a situação de improdutividade da terra, como fez João. Este fato também é indicativo do grau de organização dos lavradores desta região, evidenciando que não se tratava de uma população cujo nível de pobreza e miséria fazia dela alvo da ação subversiva dos inimigos da segurança nacional, leitura comum entre os militares.[35]

 

Significados da terra e economia moral da ocupação

O ponto de virada da ocupação foi a primeira repressão sofrida em 3 de janeiro de 1980, com a prisão de 11 lavradores pela polícia, acompanhada por um oficial de Justiça da Comarca local e do administrador da Agrobrasil, João Goiano, conhecido pela sua violência. Os lavradores foram levados ao asfalto e ameaçados de morte caso voltassem às terras da fazenda. Em relato colhido por Eliane Bastos, antropóloga e então assessora do STR de Itaboraí, município vizinho e vinculado à história de luta de Cachoeiras, um lavrador diz:

o tenente e alguns soldados iam atrás da fileira [de lavradores] apontando as metralhadoras, enquanto os demais soldados marchavam emparelhados a nós. Explicamos aos soldados, que andavam ao nosso lado, que trabalhávamos naquelas terras para sustentar nossas famílias e além do mais, elas não têm dono. Os soldados disseram que sentiam pelo nosso caso e também achavam que ninguém era dono dali. (...) [Quando acusado de estar roubando a terra dos outros, ele retrucou:] não conhecemos o dono da terra. Aqui não existe dono há mais de 15 anos (BASTOS, Eliane Cantarino O’Dwyer Gonçalves. A luta pela terra em “São José da Boa Morte”. [S.l.: S.n.], 198-b, p. 2. MSPP TRAB 0439 B327l – grifo no original).

O relato colhido por Bastos revela dois pontos essenciais na motivação da ocupação. O primeiro é o significado amplo da terra como local de trabalho, de existência e de sustento, significado que abrange um conjunto de relações sociais de vizinhança e de parentesco construído em meio ao cotidiano do campo. Este significado amplo é contraposto à imagem da terra como negócio, vazia ou tomada pelo gado, tornada fonte e reserva de valor. Se desde os anos 1950 os Coimbra Bueno soltavam gado como forma de expulsar meeiros e posseiros, nos anos 1980 eles tinham o projeto de transformar a fazenda em área turística, substituindo as lavouras e os camponeses por chácaras de turismo.

A tensão entre estes significados revela o segundo ponto: a percepção de uma terra sem dono “há mais de 15 anos” e de um conjunto de lavradores sem terra que precisam se submeter ao trabalho em terras de outros. Esta percepção foi expressa por lavradores da região em entrevistas: “E o mais é sofrimento e morrer na estrada e passando até necessidade. A gente doido pra ter um trechinho, pra sossegar, que a gente vivia tudo em terra dos outros”.[36] Outro lavrador, ameaçado de despejo em 1978 e depois assentado, cujo pai foi preso em abril de 1964, questionou a legitimidade da propriedade dos Coimbra Bueno: “parece que eles eram donos de muita terra lá em Goiás, pra que ter mais terra aqui?”.[37]

Está no cerne destas motivações um conjunto de categorias morais, especialmente vinculadas às noções de justiça e injustiça na ocupação e no uso da terra que marcam um imaginário, e um conjunto de práticas camponesas que salientam o significado da terra como local de trabalho e de vida. Esta argumentação esteve presente na luta pela reforma agrária em âmbito nacional (MEDEIROS, 1995, 2014) e local, e no enquadramento do movimento camponês, marcado pelo desejo e pela motivação de libertar as terras das mãos dos grileiros.

O significado dado à terra é elemento central da luta de classes e da formação de uma identidade coletiva destes grupos. Conforme apontado por Silva (2004) e Simonetti (2011), no centro da luta pela terra estão a possibilidade de autonomia e de controle da organização e da produção do trabalho de si e sua família. Segundo Simonetti (2011, p. 56), o que move diversos camponeses a lutarem pela terra é “a perspectiva de realizar na terra o trabalho livre e autônomo, onde possam ter controle do seu tempo e não serem mandados pelo patrão”. Este desejo, também entendido por Silva (2004) como possibilidade de enraizar-se na terra, encontra-se vinculado à busca pelo pertencimento e à recriação da história familiar e social, continuamente ameaçada pelos despejos e violências.

É significativa a presença do trabalho nas memórias relatadas e nos documentos. Padres, lavradores e lideranças estabeleciam nos ambientes de trabalho da lavoura a socialização de frustrações e expectativas, compondo uma experiência comum e uma identidade de grupo. Informações dos órgãos de segurança indicam a continuidade da articulação entre o movimento camponês local e as antigas lideranças.[38] Também é possível observarmos outros indícios, como a presença de lavradores que estiveram na ação de 1963 e participaram da oposição sindical em 1979, ou como no caso de uma das famílias ameaçadas de expulsão em 1978 que estiveram na terceira ocupação e que residia em Cachoeiras de Macacu desde as primeiras ações.

Como afirmou Thompson (2011, p. 10), “[a] experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais”. Tal experiência foi sendo construída como identidade formadora do grupo ao longo dos anos 1960 e, pelo que indicam os documentos e relatos, estava presente nos espaços possíveis de socialização dos anos 1970, como o sindicato, a Igreja, a CPT, as cooperativas e a própria vivência do cotidiano. Nestes diversos grupos foram sendo socializadas as imagens e os significados atribuídos à terra desde o ponto de vista camponês. Para Thompson (1984), o processo histórico de formação das classes sociais é composto pelo viver de homens e mulheres em suas relações de produção, vivenciando-as como situações determinantes, dentro de um conjunto de interações sociais, com uma cultura e uma série de expectativas herdadas.

Bosi (1994) observa na memória o “lastro comunitário” da práxis coletiva, fruto de uma construção interpessoal e semelhante às dimensões subjetiva e social do trabalho. Como afirma, “[o] grupo é suporte da memória se nos identificamos com ele e fazemos nosso seu passado” (BOSI, 1994, p. 414 grifo no original). A memória é, assim, vínculo social e individual, união do indivíduo ao coletivo ao confrontar, comunicar e receber novas impressões que dão consistência às lembranças. Libertar a terra dos grileiros é, então, projeto de vida que coloca a terra como fundamento de um modo de ser, pensar e estar no mundo conectado ao imaginário camponês.   

 

Nova prisão e intensificação da luta

Segundo um lavrador entrevistado, após o “susto” dado pela polícia e pelo administrador da fazenda “nós voltamos mais nervosos ainda. Pra susto isso não adiantava”.[39] Também Joaquim apontou que após a primeira prisão, “o pessoal não tava com medo e voltou para ocupar” de novo.[40] Este retorno revela a dimensão teimosa da resistência que opta pela luta contínua e pela conquista daquilo que se sente como de direito dos trabalhadores rurais, fruto de um incessante trabalho de enquadramento (BRITO, 2018a). Como afirma aquele agricultor: “aí nós voltamos mais enfezados ainda”. O contexto de ampliação dos despejos, de surgimento de oposições sindicais, de retomada dos conflitos por terra e de lenta distensão política impulsionou a retomada da ocupação como repertório de ação coletiva e da reforma agrária ampla, massiva, imediata e com participação de trabalhadores nas tomadas de decisão, execução e fiscalização.

Em 30 de janeiro de 1980, 88 lavradores e o padre Joaquim foram presos. Os relatos apontam as arbitrariedades da ação policial, da Comarca e dos grileiros, ressaltando a prisão sem mandato judicial, ameaças ilegais de intervenção no STR, caso os posseiros não abandonassem imediatamente a área, tentativas de impedir a presença dos advogados do STR e ameaças de espancamento de lideranças e advogados.[41] Em razão do pequeno tamanho da delegacia e da manifestação de trabalhadores e familiares, a prisão durou pouco tempo. Dois relatos retratam a tensão daquele momento:

Durante este interrogatório foi formando uma multidão na rua. Inclusive com familiares dos lavradores das zonas rurais lá de Nova Ribeira e tal. E começaram a gritar e tal, né, e o delegado ficou apavorado. Eu tava perto da janela e olhei pra rua. [As pessoas do lado de fora gritaram:] “É o padre!”. O delegado: “Padre, se afasta que se não eles jogam uma bomba aqui dentro” [risos]. Aí ele pediu reforço... Em Nova Friburgo. Veio uma tropa de choque. Fecharam a rua... E à noite, era quase meia noite quando o juiz deu ordem para soltar a todos.[42]

Nós chegamos lá, fechamos aquela porcaria toda. Aí ligaram, veio polícia de tudo quanto era lado. Polícia entrava de qualquer jeito, nós nos enfiávamos no meio. Não deu quebra-quebra não, mas eles ficaram doidos com a gente. Foi muita gente pra soltar, já tinha 95 presos, se cada um da família fosse... foi até uma festa, pra mim foi uma festa.[43]

De um lado o medo da revolta popular, de outro, o relato da festa, presentes em mais de uma entrevista. A tensão fez parte também do relato de uma lavradora, que aponta a prisão e a ocupação como “pedra de tropeço”, termo bíblico[44] que no contexto indica o medo e a percepção da prisão como evento que desvirtua do caminho correto.[45] Esta lavradora aponta, em sua narrativa, ao mesmo tempo, a festa que fizeram quando soltaram os presos e o medo em relação à prisão de seu marido e o que aquilo poderia significar em seu futuro. A memória do período é marcada simultaneamente pela vitória que resultou da ocupação e pelos perigos inerentes à atuação coletiva, realçados pela violência sofrida nos anos 1960 e 1970. Esta tensão interna à lembrança do período pode ser compreendida com base em Portelli (2006), para quem as memórias são fragmentadas, internamente divididas e culturalmente mediadas, cabendo ao investigador apreender seus significados.

De modo mais ampliado, a pressão coletiva se tornou, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, a principal forma de atuação e encaminhamento das reivindicações adotada pela Contag, estimulando a mobilização e as ações de resistência (MEDEIROS, 2018). O final dos anos 1970 foi marcado pelo retorno da organização política e atuação contra o regime militar, desgastado pelo cenário de crise internacional e pressionado internamente por diversos movimentos sociais que tinham como pauta a abertura democrática e a participação social na política.

No que se refere às áreas rurais do estado do Rio de Janeiro, o momento foi de retorno das ocupações e manifestações em espaços públicos (MEDEIROS, 2018). Em todo o estado, a organização de trabalhadores rurais voltava a utilizar a ocupação como método de resistência e luta, a fim de alcançar a desapropriação de antigas e novas áreas de confronto. Esta perspectiva estava alinhada com as diretrizes de ação do sindicalismo rural fluminense, estabelecidas no III Congresso da Contag, de 1979. Combinavam-se atos públicos com entregas de relatórios e demandas, conjugando a luta prática com os limites determinados pela lei. A ocupação como ato coletivo recebeu maior legitimidade em um momento de novas oportunidades e estratégias de ação pelos movimentos sociais. O cenário dos anos 1980 revelou a possibilidade de um confronto político mais aberto, tornado público, em que as demandas dos grupos subalternos são explicitadas por meio do acúmulo de experiência relativa à estruturação das organizações e da memória da luta pela terra (PALMEIRA, 1985). Este contexto de novas oportunidades de mobilização só foi possível pela construção de redes e relações capazes de compartilhar entendimentos e formas de ação significativas para o grupo (TARROW, 2009).

Outro elemento que vale ser explicitado e aprofundado é a capacidade de articulação e amplificação da ocupação por meio da atuação da CPT, STR, Fetag/RJ e Contag, organizações que tiveram importante atuação molecular na região. O trabalho destas entidades foi fundamental para a construção da ocupação, transformando um evento local em questão pública e pressionando o governo federal pela desapropriação da terra. Foram realizadas missas públicas, manifestações no centro do Rio de Janeiro, articulações com deputados e vereadores, elaboração de cartilhas, circulação de notícias de jornal (BRITO, 2018a). Dado o esboço deste trabalho, não foi possível investir nesta análise, mas é imprescindível realçar que a conquista de novo decreto de desapropriação, assinado pelo presidente João Figueiredo em 22 de janeiro de 1981, só aconteceu graças à atuação conjunta e organizada destes órgãos representativos, mobilizados pela ação coletiva dos camponeses que mantinham vivo o desejo de tornar suas terras livres.

 

Considerações finais

A ocupação pode ser compreendida como um evento que condensa marcas morais, afetivas e materiais, e a de 1979 aponta uma memória de luta dos camponeses de São José da Boa Morte, indicando formas de resistência que mantiveram vivo o desejo de lutar pela libertação das terras, entendido aqui como elemento do enquadramento de ação coletiva socializado na região. A permanência deste quadro, das expectativas, das maneiras de atuação e de algumas famílias ao longo do tempo e em diferentes experiências de ocupação no mesmo local nos levou, em trabalho anterior, a ressaltar o caráter “teimoso” desta resistência (BRITO, 2018a). Esta característica salienta o papel ativo de camponeses organizados que conservaram o propósito de permanecer nas terras que consideravam suas.

A recorrência da ocupação como uma forma de ação coletiva também indica, pela dimensão temporal, a memória compartilhada e seu papel de vinculação entre passado e futuro (BOSI, 1994). Conforme analisado por Benjamin (2012), a redenção dos sofrimentos e derrotas dos oprimidos no passado é fundamental para compreender as lutas do presente e os horizontes do futuro. Procuramos, deste modo, trazer elementos para aprofundar a experiência de grupos camponeses durante o período da ditadura empresarial-militar. Os governos ditatoriais atuaram de modo a desfazer, ainda nos primeiros meses após o golpe, as formas de organização popular. A análise aqui proposta pretendeu valorizar a agência e a capacidade criativa destes grupos, aprofundando o conhecimento sobre as maneiras de resistência cotidiana em momentos de dificuldade para a organização coletiva.

Em 1979 e 1980 as experiências individuais de desrespeito e violência foram mais uma vez retraduzidas e interpretadas como experiências coletivas, transformadas em fonte da ação organizada. A perseverança desta resistência, capaz de ter constituído um enquadramento de ação coletiva por meio da contínua mobilização, tornou possível ocupar e conquistar a desapropriação da terra em 1981, 15 anos depois da vitória alcançada na primeira desapropriação e 20 anos após a primeira ocupação. Desde 1981 a São José da Boa Morte tem se mostrado um importante assentamento rural, consolidando e viabilizando a reprodução social de gerações de camponeses, que construíram a si mesmos pela ocupação, pela luta pela terra, pelo desejo de libertar a terra dos grileiros e pela memória das derrotas e das conquistas do passado.

 

 

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Como citar

BRITO, Ricardo Braga. Reconquista da terra: resistência e organização de camponeses ao final da ditadura empresarial-militar. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, p. 332-354, jun. 2021. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v29n2-4.

 

 

 

 

Ricardo Braga Brito

Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).

ricardobraga.brito@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0220-7377
http://lattes.cnpq.br/2742939826813262

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: ricardobraga.brito@gmail.com.

[2] Versões preliminares deste artigo foram apresentadas em 2019 no XIII Encontro Regional Sudeste de História Oral e no 43o Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs). Este trabalho também é fruto da dissertação de mestrado (BRITO, 2018a), para a qual recebi bolsa de pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e da participação na pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”, coordenada pela pesquisadora Leonilde Servolo de Medeiros e financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), e que serviu para auxiliar os trabalhos de investigação da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e foi publicada em forma de livro, com artigos dos diversos pesquisadores que a compuseram (MEDEIROS, 2018; BRITO, 2018b).

[3] Disponível em: http://nmspp.net.br/. Acesso em: 20 jan. 2020.

[4] Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/cedoc/centro-de-documentacao-dom-tomas-balduino. Acesso em: 25 jan. 2020.

[5] A multiplicidade de perspectivas e narrativas também tem de ser apreendida no âmbito dos próprios jornais, que não podem ser homogeneizados na análise. Foram utilizadas reportagens do Ultima Hora, Diário da Noite, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, Novos Rumos, O Fluminense e Folha de S.Paulo. Estes jornais apresentam diferentes linhas políticas que conformam suas narrativas, escolhas de assuntos e aprofundamento das reportagens, bem como períodos de atuação e tiragem. Não é possível apontar todas essas posições, devendo-se considerar também as mudanças ao longo do tempo, como foram os casos do Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa e Folha de S.Paulo. que apoiaram o golpe de 1964 e depois formularam críticas e oposições em diferentes tempos e motivações.O Fluminense apoiou continuamente as políticas e os governos militares. Os jornais Ultima Hora e Diário da Noite assumiram posições de defesa ao getulismo, enquanto Novos Rumos era vinculado ao PCB. Para uma análise de cada um desses jornais, ver os verbetes produzidos pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV), disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo.

[6] Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 12 fev. 2020.

[7] “Lavradores e Trabalhadores Agrícolas Organizam-se em todo o Estado do Rio”. Ultima Hora, 29/9/1959, p. 3. “Associação dos lavradores em Cachoeira”. Ultima Hora, 31/10/1959, p. 3. Sobre a divergência das fontes, ver Brito (2018a, p. 73).

[8] Abelardo e Jerônimo Coimbra Bueno participaram da construção da cidade de Goiânia e das obras de saneamento e revitalização de diversas áreas da Baixada Fluminense na década de 1930. Jerônimo foi governador de Goiás e senador pela União Democrática Nacional (UDN) e, ambos, participavam das atividades do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), organização de empresários e militares que contribuiu com o clima de instabilidade social e política contra o governo de João Goulart, com a realização do golpe e com a construção de inúmeras políticas públicas adotadas pelo regime militar, entre elas, o Estatuto da Terra e suas normativas para a realização da reforma agrária e colonização (DREIFUSS, 1981; BRUNO, 1997). Sobre sua participação no Ipes: Acervo dos Órgãos de Informação do Regime Militar. Fundo Ipes. AN. BR_RJANRIO_QL_0_OFU_001_d0019de0023, pp. 276-277. Acervo dos Órgãos de Informação do Regime Militar. Fundo Ipes. AN. BR_RJANRIO_QL_0_OFU_007_d004de006, p. 115. Ver também Dreifuss (1981, p. 513).

[9] Para o Núcleo Colonial de Papucaia, foi estimulada a colonização por italianos, alemães e japoneses. Famílias oriundas do Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Ceará e Maranhão, bem como de outros municípios do Rio de Janeiro e localidades de Cachoeiras de Macacu também se dirigiram à região à procura de um lote (COSTA, 2015; BRITO, 2018a).

[10] “Meeiros expulsos lutam pela terra”. Diário da Noite, 28/12/1960, p. 19.

[11] Sobre a construção política e conflitiva das categorias de posseiro e grileiro, ver Grynszpan (1987).

[12] Outros pretensos proprietários também foram acusados. Contudo, os Coimbra Bueno concentravam maior quantidade de terra, tinham importância econômica e pública e estiveram presentes por três décadas nos conflitos aqui analisados, de modo que ressaltamos sua atuação.

[13] O movimento de 1961 já havia apontado isto, e o próprio Inic havia reconhecido o caráter público daquelas terras: “Fazenda de Macacu é do INIC”. Jornal do Brasil, 24/11/1961, p. 10. Fazia parte do repertório de ação do movimento camponês da época investigar e localizar as terras públicas indevidamente ocupadas e griladas por grandes proprietários, criando fatos públicos capazes de pressionar pela colocação de trabalhadores rurais e lavradores (MEDEIROS, 1995).

[14] “IBRA. E.M. no 61 para Presidência da República, 12/12/1966”. AN – Acervo Paulo de Assis Ribeiro (BR_RJANRIO_S7_CX078_PT001_d001de001, p. 12).

[15] Decreto no 53.404, de 13 de janeiro de 1964, assinado por João Goulart (PTB). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-53404-13-janeiro-1964-393579-publicacaooriginal-1-pe.html.

[16] “Macacu de novo em paz: polícia dispensada”. Tribuna da Imprensa, 24/11/1961, p. 3, Segundo Caderno.“Despejados os lavradores de São José da Boa Morte”, Última Hora, 02/12/1963, p. 1

[17] “Camponeses da Boa Morte lutam pela posse da Terra”. Novos Rumos, ano V, no 251, de 13 a 19 de dezembro de 1963, p. 2. Alcídio Salvador também retorna à mobilização dos camponeses em 1979 (ver Nota 37).

[18] “Igreja em ruínas é trincheira para a rebelião dos camponeses”. Ultima Hora, 12/12/1963, p. 3.

[19] Para a lista dos módulos fiscais municipais, consultar: http://www.incra.gov.br/pt/modulo-fiscal.html. Acesso em: 1 dez. 2020.

[20] Para lista dos que foram presos em Cachoeiras de Macacu no imediato pós-golpe, ver Brito (2018a). Neste trabalho há também lista dos presos em 1961 e 1980.

[21] Desde 1965 estava acordada e autorizada a exclusão de áreas desapropriadas da Fazenda São José da Boa Morte. Em 1967 o Decreto no 60.807 excluiu outra parte da desapropriação, reduzindo o que anteriormente fora estabelecido como área de reforma agrária. Em 1974, Lourenço Vieira da Silva, então presidente do Incra, e Jerônimo Coimbra Bueno realizaram um termo de acordo excluindo as terras da Agrobrasil do Decreto de desapropriação da São José da Boa Morte. Ver: Incra. “Processo de desapropriação da Agrobrasil Empreendimentos Rurais S/A e outros”; 4o volume, p. 925. MEMO/SR(07)/J/nº 541/2000. Código 77.409. Número de Identificação: 54180.000936/00-44; 936/2000; 6 volumes.

[22] A análise de Snow (2004) se baseia no conceito de enquadramento de Goffman (2012), para quem a realidade vivida é adaptada e “encaixada” (embedding) nos quadros de interpretação (frame). O trabalho de enquadramento significa a produção, reprodução e adaptação de significados durante a interação. O collective action frame de Snow (2004) implica analisar o processo de construção de significados de modo a ativar aderências, transformar expectadores em apoiadores do movimento e extrair concessões dos grupos antagônicos, desmobilizando-os.

[23] Parceleiro é a denominação estabelecida pelo Estatuto da Terra para os beneficiários das políticas de reforma agrária e colonização. No caso da citação, a Fetag/RJ se refere ao Condomínio Agropecuário de Marubaí, criado em 1969 na área de conflito analisada.

[24] Ofício no 28/1979 do presidente do STR de Cachoeiras de Macacu, João de Jesus Pereira, ao presidente da Fetag/RJ, Eraldo Lírio de Azeredo, em 8/8/1979, MSPP/Sr.SC.frj.ocp – Pasta II.

[25] O termo foi utilizado nos anos 1970 para caracterizar grupos críticos à ação sindical que se estruturara durante a ditadura militar. Esses grupos procuraram estruturar chapas e assumir a direção dos sindicatos, tanto urbanos quanto rurais. A partir da metade da década de 1970 esses grupos passaram a acumular mais forças políticas, inclusive com o apoio da CPT, e pressionar os sindicatos rurais, impactando nas suas diretrizes de atuação.

[26] Em virtude dos dados sensíveis presentes nos relatos, os nomes dos lavradores foram omitidos. Algumas entrevistas foram realizadas para a pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)” (MEDEIROS, 2018) e estão sinalizadas nas notas correspondentes. As demais foram feitas para a pesquisa de mestrado (BRITO, 2018a).

[27]Agricultor de São José da Boa Morte. Entrevista concedida em sua residência a Ricardo Braga Brito em São José da Boa Morte, Cachoeiras de Macacu, em 1/11/2017.

[28]Aposentado, antigo tesoureiro e dirigente do STR, morador de São José da Boa Morte, em entrevista concedida em sua residência a Ricardo Braga Brito e Fabrício Teló, em 9/11/2014. Esta entrevista foi realizada para a pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”.

[29] João de Jesus Pereira, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cachoeiras de Macacu de 1972 a 1994, entrevista concedida a Ricardo Braga Brito em seu escritório, em 21/12/2017, em Cachoeiras de Macacu.

[30] Padre Joaquim. Entrevista concedida a Ricardo Braga Brito, Fabrício Teló e Leonilde Servolo de Medeiros em 9/7/2015, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Esta entrevista foi realizada para a pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”.

[31] Aposentado, antigo tesoureiro e dirigente do STR, morador de SJBM, em entrevista concedida em sua residência a Ricardo Braga Brito e Fabrício Teló, em 9/11/2014. Esta entrevista foi realizada para a pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”.

[32]  “Invasão de terras em Cachoeiras de Macacu”. Informação no 6/1980. Documento de 24/1/1980. DGIE, Secretaria de Estado de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Aperj. Municípios 152-C Cachoeiras de Macacu, p. 236-235. Acervo Projeto Memórias Reveladas/AN ARJ_ACE_2256_80; Acervo Projeto Memórias Reveladas/AN ARJ_ACE_2234_80.

[33] “Posseiros nada resolvem no Incra”. O Fluminense, 1/2/1980; “Posseiros e padre vão ao Rio protestar contra prisão”. Folha de S.Paulo, 1/2/1980.

[34] Ver, por exemplo, a distinção de pena para os “cabeças” e os “demais agentes” de práticas subversivas presente no artigo 3o da Lei de Segurança Nacional. Lei no 1.802, de 5 de janeiro de 1953, Diário Oficial da União – Seção 1 – 7/1/1953. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1802-5-janeiro-1953-367324-publicacaooriginal-1-pl.html.

[35] Esta leitura pode ser observada no Inquérito Policial Militar que originou o Processo no 7.477/1969, instalado após o golpe, com o objetivo de investigar as ocupações de 1961 e 1963 e extirpar os focos de organização política. Para uma análise deste IPM, ver Brito, 2018a.

[36] Agricultor de São José da Boa Morte. Entrevista concedida a Ricardo Braga Brito em sua residência, em São José da Boa Morte, Cachoeiras de Macacu, em 1/11/2017.

[37] Lavrador de Marubaí. Entrevista concedida a Ricardo Braga Brito e Fabrício Teló em sua residência, em Marubaí, Cachoeiras de Macacu, em 12/2/2015. Esta entrevista foi realizada para a pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”.

[38] São relatadas reuniões com a presença de Ubirajara Muniz, Alcídio Salvador e José Custódio de Souza, vereador eleito pelo PTB em 1962. Ver: “Informativo no 06/1980 de 2/1/1980”. DGIE, Secretaria de Estado de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Aperj. Fundo de Polícia Política. Municípios 152-C Cachoeiras de Macacu, p. 255-253. “Palestra e noite de autógrafos em Cachoeiras de Macacu. Informe no 025 – 20/81/PM-2/PMERJ”. Documento de 22/1/1981. Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Aperj. Fundo de Polícia Política. Municípios 152-C Cachoeiras de Macacu, p. 327. “Ato público de lavradores em Papucaia – ‘DIA DE LUTA PELA TERRA’. Informe no 082 – 20/81/PM-2/PMERJ”. Documento de 11/2/1981. Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Aperj. Fundo de Polícia Política. Municípios 152-C Cachoeiras de Macacu, p. 355.

[39] Agricultor de São José da Boa Morte. Entrevista concedida a Ricardo Braga Brito, realizada em sua residência, em São José da Boa Morte, Cachoeiras de Macacu, em 1/11/2017.

[40] Padre Joaquim. Entrevista concedida a Ricardo Braga Brito, Fabrício Teló e Leonilde Servolo de Medeiros, em 9/7/2015, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Esta entrevista foi realizada para a pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”.

[41] “Polícia prende padre e oitenta posseiros”. Folha de S.Paulo, 31/1/1980. Nota de apoio e solidariedade aos lavradores de Cachoeiras de Macacu assinada pela Fetag/RJ e seus sindicatos filiados, e pelos sindicatos da Unidade Sindical, s/d. MSPP/SrSC.frj.ocp – Pasta II.

[42] Padre Joaquim. Entrevista concedida a Ricardo Braga Brito, Fabrício Teló e Leonilde Servolo de Medeiros em 9/7/2015, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Esta entrevista foi realizada para a pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”.

[43] Agricultor de 80 anos. Entrevista concedida a Ricardo Braga Brito e Fabrício Teló, em sua residência, em 8/11/2014, em Gleba Nova Ribeira, Cachoeiras de Macacu/RJ. Esta entrevista foi realizada para a pesquisa “Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”.

[44] 1 Pedro 2:7-8: “Assim sendo, para vós, os que credes [na Palavra de deus], ela é preciosa, mas para os que não creem, ‘a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a principal, a pedra angular’, 8e, ‘pedra de tropeço e rocha que causa a queda’; porquanto, aqueles que não creem tropeçam na Palavra, por serem desobedientes, todavia, para isso também foram destinados”. Disponível em: https://bibliaportugues.com/1_peter/2-8.htm.

[45]Agricultora aposentada. Entrevista concedida a Ricardo Braga Brito em sua residência, em Marubaí, Cachoeiras de Macacu, 1/11/2017.