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v. 29, n. 2, junho a setembro de 2021, p. 278-303
Recebido em 7 de janeiro de 2021. Aceito em 28 de abril de 2021.



Formas de adaptação de produtores de café à liberalização mercantil:

proposta de uma tipologia analítica a partir de um estudo de caso na região das Matas de Minas

Forms of adaptation of coffee producers to the market liberalization: proposal of an analytical typology from a case study in the Matas de Minas region

 

DOI: 10.36920/esa-v29n2-2

 

orcid_id.png  Marisa Alice Singulano[1]    |    orcid_id.png  Sílvio Salej Higgins[2]




Resumo: O artigo trata de formas de adaptação desenvolvidas por cafeicultores ao contexto da liberalização mercantil. Analisamos o modo como os cafeicultores constroem suas estratégias de adaptação à nova conjuntura e as relações destas estratégias com a reconfiguração das formas de controle de mercado. Foi realizado um estudo de caso na região das Matas de Minas, tipicamente uma área de produção familiar, levando em conta o período pós-1990, sendo uma região ainda pouco considerada na literatura. A partir dos dados qualitativos da pesquisa, propomos um modelo analítico centrado na construção de uma tipologia de produtores, que visa descrever a diversidade de formas de adaptação ao novo contexto econômico e institucional definido pela liberalização. A análise é fundamentada na perspectiva neoinstitucional da sociologia econômica, focando nos processos de construção social das estratégias e estruturas de mercado, neste caso pautadas, fundamentalmente, pela questão da construção social da qualidade. Esta proposta de análise se contrapõe à perspectiva da economia dos custos de transação, principal modelo a nortear os estudos sobre sistemas agroindustriais ou agroalimentares no Brasil atualmente, oferecendo uma alternativa teórica e metodológica.

Palavras-chave: liberalização comercial; construção social da qualidade; sociologia econômica.

 

Abstract: The article addresses the forms of adaptation that coffee farmers adopt to the context of market liberalization. We analyze how coffee growers build their strategies for adapting to the new context and the relationship of these strategies with the reconfiguration of forms of market control. A case study was carried out in the Matas de Minas region, typically an area of family production, considering the post-1990 period, being a region still little considered in the literature. Based on the qualitative data obtained through the research, we propose an analytical model focused on the construction of a typology of producers, which aims to describe the diversity of ways of adapting to the new economic and institutional context defined by liberalization. The analysis is based on the neoinstitutional perspective of economic sociology, focusing on the processes of social construction of market strategies and structures, in this case guided, fundamentally, by the issue of the social construction of quality. This analytical proposal is opposed to the perspective of transaction cost economics, the main model to guide studies on agro-industrial or agri-food systems in Brazil today, offering a theoretical and methodological alternative.

Keywords: market liberalization; social construction of quality; economic sociology.

 

 

 

 

 

A liberalização do mercado internacional de café

A globalização e a liberalização mercantil concomitante, no final do século XX, condicionaram grandes mudanças no sistema agroalimentar, com severas consequências econômicas e sociais para as regiões produtoras e os agricultores que nelas vivem. No caso do café, uma das principais commodities agrícolas, a regulação dos governos nacionais e organismos internacionais perdurou até 1989 quando, com o fim do Acordo Internacional do Café que impunha o sistema de cotas de exportação, iniciou-se um período de livre mercado (BATES, 1997; AKYIAMA, 2001). A mudança nos padrões de consumo e na composição da demanda, juntamente com as mudanças políticas e econômicas decorrentes da liberalização, implicaram um reordenamento da cadeia agroindustrial, com efeitos diretos sobre o modo como os produtores se inserem no mercado ao construir suas estratégias de produção e de comercialização (TALBOT, 2004; DAVIRON; PONTE, 2005).

No caso brasileiro, o processo de redefinição institucional pós-desregulamentação do mercado de café é especialmente significativo. O Estado era um agente fundamental na cadeia por meio do IBC até o final da década de 1990.[3] Atualmente, o Brasil é o maior produtor e exportador de café, respondendo por cerca de 37% da produção e 35% das exportações mundiais, com uma produção de quase 65 milhões de sacas em 2018. Ao mesmo tempo é o segundo mercado consumidor, absorvendo cerca de 22 milhões de sacas no mesmo ano.[4]

Aproximadamente 80% da produção no país é proveniente da agricultura familiar, segundo dados do Ministério da Agricultura.[5] Minas Gerais é o principal estado produtor, respondendo por quase 50% da produção nacional.[6] A cafeicultura em Minas Gerais é uma atividade principalmente realizada por pequenos proprietários de terras, sendo que cerca de 89% dos produtores são proprietários e, destes, 63% possuem menos que 5 ha e 76% possuem menos que 10 ha com produção de café (IBGE, 2006).[7]

A região das Matas de Minas, com seus 63 municípios, ocupa 3% do território de Minas Gerais, responde por aproximadamente 24% da produção de café no estado e concentra mais de 30% dos produtores, o que demonstra a importância relativa dos pequenos produtores nesta região. Nas Matas de Minas se situam mais de 36 mil estabelecimentos agrícolas que cultivam café, o que corresponde a, aproximadamente, 35% dos estabelecimentos de todo o estado (IBGE, 2006). A produção de café nas Matas de Minas é feita predominantemente em pequenas propriedades familiares situadas em áreas montanhosas.

Este artigo visa contribuir para o entendimento do processo de adaptação dos cafeicultores ao contexto do mercado liberalizado, considerando o caso brasileiro e, especificamente, o da região das Matas de Minas, relativamente menos estudada que outras áreas produtoras no país. O objetivo deste artigo é analisar o modo como os cafeicultores constroem suas estratégias de adaptação à nova conjuntura, as relações destas estratégias com a reconfiguração das formas de controle e governança do mercado local, a partir de uma metodologia qualitativa e da elaboração de uma tipologia de produtores que visa expressar a diversidade de formas de adaptação. O texto está estruturado em quatro seções, além desta parte introdutória, sendo que na seção seguinte cotejamos duas teorias antagônicas disponíveis para a análise dos sistemas agroalimentares. Por um lado, a da Economia dos Custos de Transação (ECT) e, por outro, a da sociologia econômica neoestrutural que defendemos como fundamentação de nosso estudo. Em sequência, há uma seção sobre os procedimentos metodológicos da pesquisa e outra em que analisamos os dados referentes aos produtores e às mudanças na estrutura do mercado de café das Matas de Minas. Na última seção, procuramos extrair considerações da pesquisa indicando alternativas de análise dos mercados e sistemas agroalimentares.

 

Duas teorias antagônicas para a abordagem dos sistemas agroalimentares

Levando em conta diversos trabalhos sobre o Sistema Agroindustrial (SAG) do café, colocamos em questão a perspectiva dominante da ECT, cujo conceito-chave é o custo de transação e seu mecanismo explicativo à redução de incerteza a partir da adaptação das formas institucionais. Na definição de nosso modelo analítico, procuramos um diálogo crítico com a abordagem da ECT presente nesses estudos. Buscamos sustentar nossa crítica aos resultados obtidos pelos estudos de Zylbersztajn (1995) e Saes e Farina (1999), entre outros, a partir de nossos próprios achados de pesquisa.

As análises orientadas pelo instrumental institucionalista, sobretudo aquele oferecido pela ECT, têm se difundido no meio acadêmico brasileiro e esta tem sido a mais influente referência nas pesquisas sobre sistemas agroindustriais ou agroalimentares. Não é nosso objetivo fazer uma revisão das pesquisas recentes, mas dialogar criticamente com perspectiva teórica desta linha. Assim, destacamos que o foco analítico de tais pesquisas é orientado pela Nova Economia Institucional que “contempla a análise das instituições que delimitam as regras do jogo nos mercados e na sociedade, bem como a análise das inter-relações das organizações por meio da Economia dos Custos de Transação (ECT).[8]

Um dos estudos pioneiros e referenciais nesse contexto é a tese de livre docência de Zylbersztajn, que analisa a coordenação do agribusiness brasileiro a partir de suas estruturas de governança por meio da Economia dos Custos de Transação, tomando o SAG do café para estudo de caso (ZYLBERSZTAJN, 1995). Zylbersztajn propõe a aplicação da “análise institucional discreta comparada” no estudo da coordenação do agribusiness. Esta análise se caracteriza pelo enfoque comparativo entre formas de governança alternativas alinhadas com os fatores teóricos determinantes destas formas, com base em critérios de eficiência, ou seja, minimização de custos de transação, conforme modelo analítico proposto por Williamson (ZYLBERSZTAJN, 1995, p. 33). Conforme o autor, a ECT permitiria avançar teoricamente e dar subsídios ao teste de hipóteses. Ou seja, a partir da aplicação da “análise estrutural discreta” aos SAGs, seria possível definir as estruturas de governança emergentes ou prevalecentes, que seriam as formas de coordenação otimizadoras ou que permitiriam mais eficiência, tendo em vista as características das transações e do ambiente institucional. Zylbersztajn considera que a forma de governança que tende a prevalecer no segmento das transações entre produtores de café é a forma cooperativa, a qual permitiria maior redução de custos de transação e, portanto, mais eficiência.[9]

Em relação à perspectiva analítica da ECT, em primeiro lugar, devemos apontar que os resultados de nossa pesquisa não confirmam as hipóteses deste modelo teórico, o qual tem se aplicado geralmente a regiões mais modernizadas, com produtores com perfil empresarial, diferentemente da área que consideramos. Retornaremos a este ponto adiante. Por ora, apontamos que a perspectiva teórica da ECT apresenta uma visão do mundo econômico que deixa de fora uma série de variáveis do mundo social que interferem na construção das estratégias dos agentes e na estruturação dos mercados. Acreditamos que tais variáveis são fundamentais para a nossa análise e, portanto, propomos recorrer à sociologia econômica neoinstitucionalista.

A perspectiva da ECT se fundamenta no pressuposto da “racionalidade limitada”, derivado da teoria organizacional. De outro modo, consideramos que a limitação da racionalidade não deriva apenas de aspectos cognitivos e da assimetria de informação, como quer a ECT, mas do próprio ambiente social, construído por normas sociais, redes de relações, entre outros mecanismos que fundamentam as escolhas. Conforme a perspectiva teórica que defendemos, os agentes econômicos podem operar com uma racionalidade instrumental no mercado, no entanto, a construção de suas estratégias é bastante mais complexa, dependendo de sua avaliação das possibilidades de ação no contexto social.

Segundo abordagens sociológicas de cunho neoestrutural e neoinstitucional, sobretudo na sociologia econômica, a ação econômica e os mercados são situados nos espaços sociais locais ou “campos” (Powell; Dimaggio, 1991). Esta perspectiva se caracteriza, de modo geral, por uma análise sociológica que se dá no nível intermediário das ordens sociais, considerando as esferas locais nas quais os indivíduos interagem a partir de significados compartilhados, ancorados em relações de poder objetivadas pela inércia institucional. Nesses espaços sociais, pode-se perceber claramente não apenas a influência das instituições sobre a economia, tal como o Estado e os padrões culturais, mas também como elas condicionam os comportamentos dos agentes econômicos dando sustento aos mercados. Alguns dos mais importantes expoentes nesta vertente da sociologia neoinstitucionalista que pauta sua análise dos mercados na noção de campo são Neil Fligstein (1996, 2001) e Pierre Bourdieu (2005, 2006).[10]

Outro ponto em que a abordagem sociológica se distancia daquela oferecida pela ECT diz respeito ao papel das instituições na análise. Para esta última vertente, as instituições são essencialmente redutoras de incerteza nas transações. Em uma perspectiva temporal, são pensadas a partir da questão da eficiência, ou seja, as estruturas de governança que propiciam melhor economia dos custos de transação são as que sobrevivem ao jogo concorrencial.

De outra forma, na perspectiva sociológica, as instituições não são simples redutoras de incerteza, mas podem ser pensadas como objetivando relações de poder. Nesse sentido, podemos considerar que os arranjos institucionais existentes não são essencialmente aqueles que permitem mais eficiência em termos de redução de custos de transação. Segundo Fligstein (2001), a preocupação maior da sociologia é compreender o processo de estabilização dos mercados, o qual depende das instituições. Dessa forma, as instituições não são vistas necessariamente como arranjos eficientes, mas arranjos relativamente estáveis ou eficazes. Contrário à visão eficientista da ECT, as instituições que estabilizam um mercado são aquelas que permitem às organizações permanecer no jogo da concorrência de forma eficaz, ainda que não consigam se desvencilhar de custos transacionais endêmicos e persistentes. A eficácia e não a eficiência é a condição de sobrevivência no jogo mercantil. A estabilidade econômica depende essencialmente de relações de poder e de aparatos culturais dos quais os agentes fazem uso em suas interações.

No que concerne à relação entre estratégias dos produtores e formas de coordenação de mercado, o elemento a se destacar é a ‘construção social da qualidade’ que aparece como uma chave interpretativa importante. No contexto da liberalização, a qualidade é parte indispensável das estratégias competitivas no mercado de café. No entanto, o investimento em qualidade não é simplesmente uma forma de gerar especificidade de ativos, nem apenas definidora de um subsistema orientado por tal característica, como propõe Zylberstajn (1995, p. 213).[11] Para a nova sociologia econômica, as escolhas, as avaliações e os julgamentos dos indivíduos que fundamentam a construção da qualidade e as transações decorrentes são estruturadas por relações sociais, essencialmente relações de poder, e orientadas por valores (FLIGSTEIN, 1996, 2001). Assim, a qualidade é elemento fundamental das normas e dos dispositivos tecnológicos que configuram as formas de coordenação de mercado, de que trata Fligstein (2001).

A escolha das Matas de Minas para a realização de um estudo de caso foi estratégica. Muitos estudos sobre a cadeia do café no Brasil, sobretudo aqueles considerados referenciais para o período pós-liberalização (ZYLBERSZTAJN, 1995; SAES, 1995; SAES; FARINA, 1999), consideraram as regiões mais avançadas em termos de organização, desenvolvimento tecnológico e investimento em qualidade. Em nossa pesquisa, adotamos outra perspectiva teórica e abordamos uma região que não figura entre os casos estudados nos principais trabalhos sobre o setor do café. Por ser uma região onde a fragilidade organizativa dos produtores e a comercialização com atravessadores, implicando altos custos de transação, têm sido endêmicas, além da baixa qualidade do grão ser um problema recorrente, as Matas de Minas desafiam o modelo da ECT que alinha formas de coordenação ou estruturas de governança emergentes apenas com características das transações, pretendendo produzir análises do tipo hipotético-dedutivo focadas em eficiência. Assim, não se poderia afirmar que as estruturas de governança emergentes tendem à maior eficiência, com redução de custos de transação. Esta hipótese não se confirma no caso estudado. Por meio de uma análise baseada em uma perspectiva teórica alternativa, procuramos demonstrar que o processo de mudança no mercado é propenso à estabilização por meio de um processo de diferenciação dos produtores a partir de suas estratégias construídas socialmente, as quais se relacionam a novas formas de coordenação mercantis.

Apresentamos de modo esquemático os fundamentos e a hipótese explicativa básica do modelo apoiado na ECT e daquele que defendemos, fundamentado na perspectiva neoinstitucional na sociologia econômica, de modo a evidenciar suas diferenças.

 

Quadro 1 Comparação entre a perspectiva da economia dos custos de transação e a perspectiva neoinstitucional na sociologia econômica aplicadas ao caso da reestruturação do mercado de café no contexto da liberalização

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Fonte: Elaboração própria.

 

Metodologia

Nossa análise se fundamenta em um estudo de caso conduzido na região das Matas de Minas. Foi realizada pesquisa de campo em diversos municípios e comunidades rurais que compõem a região, onde foram feitas entrevistas com produtores, compradores e membros de organizações, e analisados documentos e legislações referentes ao período, à área da pesquisa e ao setor do café. A fase de coleta de dados qualitativos se deu entre os anos de 2012 e 2014, ao que se seguiu sua análise e sistematização durante o ano de 2015. Posteriormente, alguns dados estatísticos e informações gerais sobre o setor do café foram atualizados. Nosso horizonte histórico compreende a fase que teve início na década de 1990, tendo como marcos a extinção do IBC e o fim do AIC, e se prolongou até o momento da realização da pesquisa.

A estratégia do estudo de caso justifica-se, pois buscamos conhecer em profundidade um processo histórico contemporâneo, singular, em que há muitas variáveis em questão e que, portanto, demanda o recurso a várias fontes de evidências, e elaboramos previamente os direcionamentos teóricos da coleta e análise dos dados (YIN, 2001, p. 33). Conforme o desenho metodológico deste tipo de pesquisa, não pretendemos produzir inferências probabilísticas ou alcançar generalizações do tipo estatístico a partir de nossas conclusões. De outro modo, trata-se de testar a validade de uma perspectiva teórica e apontar alguns delineamentos em relação a uma realidade empírica bem definida no tempo e no espaço e que, eventualmente, possa nos auxiliar na interpretação de outros casos.

Realizamos no total 26 entrevistas institucionais, ou seja, com representantes de órgãos da burocracia pública e empresas público/privadas, organizações de representação de produtores e cooperativas.[12] Acompanhamos reuniões e assembleias de organizações e realizadas entrevistas semiestruturadas com seus dirigentes e representantes. Procuramos considerar exaustivamente as principais organizações públicas e privadas atuantes no setor cafeeiro nas Matas de Minas. Contudo, neste artigo, não exploramos diretamente o material colhido na pesquisa nas organizações e com seus representantes, ainda que ele nos ajude a compreender o contexto organizacional local.

Em relação às comunidades rurais, consideramos o contexto sociocultural dos produtores de café, como valores sociais, fatores geradores de confiança na produção e comercialização do café, controle social (sanções e punições ao oportunismo), relações de parentesco e de reciprocidade, entre outros elementos, que são essenciais para a compreensão de arranjos contratuais e da construção das estratégias econômicas, conforme nossa fundamentação teórica. Nestas comunidades, realizamos observação participante conforme a proposta de Becker (1997, p. 47), como a coleta de dados por meio da participação na vida cotidiana do grupo ou organização que se estuda, visando produzir descrições e fundamentar análises detalhadas de fenômenos e processos sociais. Na seleção das comunidades, procuramos realizar a observação onde também aconteceram entrevistas em profundidade. Realizamos observação participante em dez comunidades rurais distribuídas pelas diferentes áreas das Matas de Minas, nos municípios de Alto Caparaó, Araponga, Canaã, Carangola, Caratinga, Divino, Ervália, Espera Feliz, Manhuaçu e Manhumirim entre abril de 2013 e janeiro de 2014. As observações foram registradas em cadernos de campo e fotografias, para posterior análise em relação aos demais dados da pesquisa, como as entrevistas e documentos.

Quanto aos produtores e às unidades produtivas, elaboramos entrevistas semiestruturadas com produtores utilizando um roteiro focado nos custos de produção e nas condições, materiais e sociais, da produção e das transações de café. Para o detalhamento dos custos e de preços de venda, tomamos as safras 2012/2013 como referência. Além disso, buscamos reconstruir o histórico da relação produção/comercialização para cada unidade desde a década de 1990, conforme a memória dos entrevistados. Para a realização das entrevistas focando nas estratégias, selecionamos alguns produtores de acordo com indicação de membros de organizações e nossa experiência prévia na região. A seleção de entrevistados visou apreender a diversidade de situações de produção e comercialização de café na região, não havendo um limite predefinido de amostragem, conduzindo as entrevistas até o ponto de saturação de informações. Realizamos, ainda, 22 entrevistas semiestruturadas com produtores com distintas características no que concerne à produção e à comercialização.[13] Neste artigo exploramos o material colhido em campo, tanto nas observações em comunidades quanto nas entrevistas com produtores. No Quadro 2, apresentamos de forma resumida as dimensões investigadas.

 

Quadro 2 Dimensões investigadas e técnicas de pesquisa

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Fonte: Elaboração própria.

 

O mercado e os produtores das Matas de Minas

As informações coletadas foram trabalhadas por meio de análise de conteúdo. Após a fase exploratória, procedemos à organização dos dados a partir de critérios definidos pela metodologia e pelo referencial teórico da pesquisa. É importante ressaltar que um dos nossos focos se encontra no modo como os produtores se adaptaram às mudanças no contexto econômico e institucional definido pela liberalização do mercado de café, considerando como condicionantes o ambiente organizacional, o contexto sociocultural e os recursos materiais e sociais acessados pelos produtores, conforme a perspectiva teórica proposta. Assim, as informações coletadas com os produtores foram dispostas em uma planilha que discrimina: dimensão da propriedade, emprego de mão de obra, sistema produtivo e nível tecnológico, qualidade do café e produtividade, certificações, comercialização (incluindo praça, valores e tipo de contrato), custos de produção, participação em organizações, acesso à assistência técnica, formas de acesso a informações e a crédito. Estes foram considerados como critérios indicativos do processo de construção das estratégias, levando em conta os condicionantes materiais, sociais, culturais e organizacionais.[14]

Partindo para a fase de análise, primeiramente, agregamos os critérios que permitem diferenciar o tipo de unidade produtiva e do produtor, importante ao avaliar os recursos materiais que possam influenciar em suas estratégias.

Para a caracterização dos produtores e das unidades produtivas, utilizamos os seguintes critérios:

1) Dimensão da propriedade. Adotamos os limites definidos na pesquisa de Vilela e Rufino (2010) para três tamanhos de propriedade correspondentes a três tipos de produtor: pequeno, até 20 ha, médio, de 20 a 50 ha, e grande, acima de 50 ha.[15]

2) Mão de obra. Refere-se à modalidade predominante de mão de obra utilizada na propriedade. As principais modalidades de mão de obra empregadas são o contrato formal de trabalho, via Carteira de Trabalho e Previdência Social, a parceria agrícola e a mão de obra familiar. É importante destacar que na maioria dos casos é comum a utilização de mais de um tipo de mão de obra ao longo do ano, combinando a mão de obra familiar com a parceria ou a contratação no período de colheita, por exemplo.

3) Tecnologia. Consideramos que o padrão tecnológico dominante na cafeicultura brasileira hoje corresponde à utilização intensiva de insumos químicos e à mecanização de tantas etapas do processo produtivo quanto seja possível. Nas Matas de Minas, em virtude da topografia montanhosa, a mecanização do processo produtivo até a colheita é insignificante. Destacamos, assim, a mecanização do processo de pós-colheita que envolve os procedimentos de lavagem, descascamento, seca e beneficiamento do café. Desta forma, consideramos em nossa análise se os produtores adotam ou não esse pacote tecnológico composto por insumos químicos e mecanização de pós-colheita (no mínimo).

Estes critérios nos permitiram diferenciar os produtores entre aqueles de maior porte, que em geral fazem uso frequente de mão de obra externa à propriedade (via contrato de trabalho e/ou parceria) e de tecnologias de produção e pós-colheita, e aqueles de menor porte, que utilizam predominantemente a mão de obra familiar e com menor uso de tecnologia.

Agregamos ainda os critérios que dizem respeito mais diretamente às condições do mercado e às estratégias de comercialização dos produtores, quais sejam:

 1) Adoção da contabilidade racional. Levamos em conta a existência ou não de uma contabilidade básica da propriedade, incluindo ao menos os custos de produção ou custos operacionais. Consideramos a contabilidade como um índice básico do nível de racionalização da atividade.

2) Investimentos em qualidade e certificação. Examinamos a existência de certificações da propriedade e/ou do produto e ainda se o produtor se dedica principalmente à produção de cafés especiais ou diferenciados. Entendendo que qualidade não se refere apenas a uma avaliação da qualidade de bebida do café, mas a diversos aspectos que se convertem em preços-prêmio no mercado, incluindo o que denominamos “cafés sustentáveis”, além dos cafés especiais.[16]

3) Comercialização. Ponderamos quais eram as principais vias de comercialização utilizadas pelos produtores, como os atravessadores locais, as cooperativas, bem como a opção de torrefação para comercialização da produção própria, exportações e vendas diretas a cafeterias, por exemplo.

Estes critérios nos permitiram diferenciar os produtores entre aqueles que estão em situação de maior adaptação às condições do mercado liberalizado, em que a eficiência e racionalidade, bem como a qualidade, são fatores competitivos importantes, e aqueles que se encontram em situação de menor adaptação às condições do mercado atual.

A partir da organização dos dados referentes às estratégias dos produtores, observamos combinações específicas de critérios, o que nos permitiu elaborar uma tipologia que representa a diversidade de modos de adaptação ao contexto do mercado liberalizado. Esta tipologia consiste na principal ferramenta analítica de nossa pesquisa. A construção da tipologia se fundamentou, assim, em critérios definidos com base na própria experiência de pesquisa, por se tratar de um estudo qualitativo em que as percepções dos próprios sujeitos muitas vezes conduzem nossa análise, bem como em nossa perspectiva teórica.[17]

A tipologia evidencia que a diferenciação entre os produtores nesta região não se dá apenas em relação ao tamanho da propriedade ou ao nível tecnológico, mas a partir dos modos como constroem suas estratégias. Estas, por sua vez, dependem de recursos materiais de cada unidade produtiva e de condições econômicas externas, bem como do contexto sociocultural. A tipologia identifica quatro categorias puras de produtores – “tradicional”, “sustentável”, “especial” e “empresário” –, que apresentamos de forma sucinta, no que se refere aos critérios que dizem respeito ao produtor e à unidade produtiva e às estratégias e condições do mercado:

 

Quadro 3 – Tipologia de produtores

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*A célula vazia se deve ao fato de que não encontramos produtores que correspondessem ao padrão de propriedade de maior porte e com menor nível de adaptação. Os produtores (com propriedades) de maior porte tendem a se adaptar configurando o tipo Empresário ou Especial.

Fonte: Elaboração própria.

 

É importante destacar que os casos reais são mais ou menos distintos dos tipos, podendo se situar entre duas categorias, por exemplo, compartilhando critérios de uma e outra. Enfim, trata-se de uma estratégia analítica que visa interpretar a situação dos produtores a partir dos condicionantes sociais, econômicos e institucionais, considerando, contudo, que estes são agentes capazes de definirem suas estratégias e se posicionarem em relação às condições anteriores, reestruturando o próprio mercado local.[18] É importante enfatizar ainda que o Quadro 3 não expressa todos os recursos e condicionantes, sobretudo socioculturais, de que cada tipo de produtor dispõe e que influencia em suas estratégias. Assim, discutimos a seguir cada tipo de produtor em detalhe visando tratar da influência do contexto cultural e das redes de relações sociais ou capital social de que dispõe na formação de suas estratégias econômicas.

Os produtores que nomeamos tradicionais encontraram dificuldades em se adaptar ao contexto pós-IBC. Alguns apresentam uma motivação tradicional para suas escolhas econômicas, expressas na fala comum na região: “meu avô fazia assim, meu pai fazia assim, então eu também faço”. Além do mais, estes produtores encontram dificuldades em se adaptar às novas exigências do mercado em termos de qualidade, diferenciação e tecnologia, muitas vezes por falta de recursos financeiros (acesso a crédito), assistência técnica e informação. Em geral, o tipo que denominamos tradicional corresponde a pequenos produtores familiares que produzem um café de qualidade mediana a baixa, sem capacidade para produzir cafés especiais ou diferenciados. Estes comercializam seu café via atravessadores ou compradores locais e não são membros de associações ou cooperativas. Tais produtores possuem fortes vínculos com as comunidades locais, onde predominam relações de confiança assentadas no parentesco. Alguns compradores de café ou atravessadores também estão inseridos nessas redes de relações locais, mantendo por isso laços estreitos e duradouros com os produtores, o que pode envolver a comercialização de café, empréstimos e adiantamentos em dinheiro, entre outras formas de transações e relações sociais. O trecho de uma entrevista a seguir com um produtor tradicional retrata os condicionantes materiais e sociais de sua escolha:

P: E como que vocês escolhem o comprador?

R: Ah são os conterrâneos mesmo, já conhece. É aquele que paga melhor e é de confiança né. (Entrevista com produtor tradicional realizada no município de Ervália em 14 jan. 2012)

As observações etnográficas permitem postular que muitos produtores se aproximam do tipo tradicional, o que se relaciona às características da própria região produtora, como o baixo nível tecnológico, organizativo e a predominância da comercialização de cafés commodity via intermediários. Contudo, em se tratando de uma pesquisa qualitativa não procuramos definir estatisticamente a parcela de produtores da região que corresponde a cada um dos tipos.

Os produtores de maior porte, via de regra, tiveram mais facilidade de se adaptar às mudanças pós-desregulamentação. Muitos desses já praticavam uma atividade um pouco mais tecnificada, já faziam uma contabilidade de seus negócios, entre outras medidas que são importantes para garantir a competitividade de seu negócio, sobretudo no novo contexto. Estes correspondem ao tipo de produtor que identificamos como empresário. De modo geral, os empresários possuem propriedades médias a grandes e contam com a maior parte da mão de obra contratada. Eles desenvolvem uma cafeicultura moderna e racional e com frequência fazem investimentos em qualidade do café. Com relação à comercialização, eles buscam diversos canais nos quais possam conseguir melhor remuneração, não estando, portanto, presos aos mercados locais. Alguns destinam sua produção majoritariamente para o mercado externo, fazendo negócios diretamente com exportadores. Alguns investem também na indústria própria de torrefação de cafés. E praticamente todos buscam se adequar às exigências legais e possuem uma ou mais certificações, além de serem membros de associações de produtores. O seguinte relato, de um produtor com este perfil das Matas de Minas, exemplifica as características dos produtores empresários:

Tem uma geração nova que está entrando, a minha geração, que eu considero a geração atual do café, dos nossos pais já acabou praticamente. Então um povo que saiu da faculdade, que já fala inglês e assim por diante. É a coisa mais normal você ter um filho do cafeicultor que já fez uma permanência qualquer no exterior e voltou, se ele vai ficar na fazenda, sei lá, é raro alguém estar querendo ficar na fazenda, ele já quer inovar, ele já sai da faculdade cheio de ideias mirabolantes na cabeça. Vai quebrar a cara num punhado de coisa, mas ele está com gás para fazer. Então, eu estou enxergando isso nessa geração nova, eles vão querer mudar. Mas, infelizmente, existe nessa geração ainda gente que assumiu... nós assumimos muito cedo fazenda e pessoas também que assumiram, a grande maioria que são jovens ainda, mas trabalham na mesma forma que os pais trabalhavam. Da mesma forma, obviamente, tem tecnologia de produção, inovaram muito, vai ter produtividade, todo mundo sabe de tudo, impressionante, o cara não tem formação nenhuma, mas ele sabe o princípio ativo, sabe disso, sabe daquilo, nome de produto ele sabe tudo de cor e salteado. Mas em questão comercial não andou um palmozinho. (Entrevista com produtor empresário que possui propriedade em Araponga, realizada em 5 abr. 2013)

O tipo que denominamos como produtor especial compartilha de muitas particularidades com o produtor empresário, como a racionalidade na administração dos negócios e o uso da tecnologia disponível, mas estes tipos não coincidem necessariamente em todos os aspectos. Essencialmente, os produtores especiais apresentam como característica distintiva a produção de cafés de alta qualidade o que, geralmente, leva à busca por certificações e a formas de comercialização diferenciadas, pois, na maioria das vezes, os cafés especiais são destinados à exportação ou ao ainda pequeno segmento de cafeterias nacionais ou de pequenas torrefações de cafés especiais. Mas estes podem ser produtores menores e com menos recursos e que não fazem um investimento tão alto em sua produção. Muitas vezes pela localização privilegiada de suas lavouras, em regiões propícias à produção de café, conseguem produzir cafés de alta qualidade sem grandes investimentos. Este tipo de produtor conta com uma reputação diferenciada na região, que com frequência é sustentada pelos títulos obtidos em concursos de qualidade de café.[19]

A quarta categoria identificada concentra pequenas unidades produtivas geridas pelo núcleo familiar e que compartilham os principais elementos dos produtores tradicionais. Porém, neste caso, a partir da influência das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Igreja Católica), ainda nas décadas de 1970 e 1980, houve um processo de organização em algumas comunidades rurais, com a formação de sindicatos de trabalhadores rurais e, posteriormente, associações e/ou cooperativas. A partir do final da década de 1980 somou-se a este processo a atuação de movimentos sociais e organizações ligados à agroecologia. Esses produtores passaram a se diferenciar dos tradicionais desde o momento que buscaram uma ruptura com os pacotes tecnológicos herdados da Revolução Verde e da assistência prestada pelo IBC e iniciaram experiências de produção orgânica e agroecológica. Essas novas práticas produtivas, no contexto dos mercados agrícolas pós-década de 1990, vinculam-se à demanda de consumidores, sobretudo nos países desenvolvidos, e passam a ser valorizadas por nichos de mercados como o mercado de café orgânico e o movimento de fair trade. Estes produtores conseguem comercializar nos nichos de orgânicos e do fair trade via cooperativas, além de acessarem outras formas de comercialização, como as redes de comercialização local ou circuitos curtos, além dos mercados institucionais, com apoio de políticas públicas.

Conforme nosso modelo teórico, as estratégias dos produtores são influenciadas pelo ambiente institucional/organizacional e pelo contexto sociocultural, o que é confirmado pelos dados da pesquisa. Para todos os tipos de produtores, encontramos diversos casos em que suas estratégias econômicas não podem ser consideradas como mera escolha racional. Por exemplo, para muitos produtores das Matas de Minas que correspondem ao tipo tradicional, a escolha de vender sua produção para determinado atravessador é definida essencialmente pela confiança e por laços sociais ligados a redes de parentesco e de reciprocidade internos às comunidades rurais, a despeito de melhores preços que poderiam encontrar em outras praças de mercado.

No decorrer da pesquisa em comunidade rural no município de Carangola, onde realizamos entrevistas com diversos produtores e observação participante, pudemos notar como as relações sociais influenciam nas formas de comercialização de café na região. Esta é basicamente uma comunidade familiar, na qual quase todos os moradores possuem vínculos de parentesco consanguíneo ou por aliança, constituindo um grupo altamente coeso, com forte solidariedade social e reciprocidade, o que tem impactos na organização do trabalho e na comercialização.

Com relação à comercialização, tal como de modo geral ocorre nas Matas de Minas, os produtores vendem para um intermediário local, que neste caso é também um produtor de café residente na comunidade e que possui relações de parentesco com vários outros moradores. Este intermediário compra o café de quase todos os moradores da comunidade e revende para compradores maiores situados nas cidades próximas. A justificativa dos moradores para vender o café para este comprador, além dos habituais argumentos de que é mais cômodo, em função da retirada do café na propriedade e do pagamento em geral à vista, refere-se ao fato de que ele é parente, logo, alguém em quem se poderia confiar. Também como em outras localidades das Matas de Minas, o intermediário empresta dinheiro a juros e faz adiantamentos para compra da produção. Nesta comunidade, ele exerce essa atividade cobrando juros de 4% ao mês dos moradores, inclusive dos parentes. Para alguns produtores com os quais conversamos, esta prática é pensada como uma ajuda em casos de necessidade, em que os produtores precisam de recursos para fazer a colheita ou arcar com despesas domésticas e não dispõem de outros meios.

Com relação à avaliação da qualidade do café, alguns produtores disseram não confiar totalmente na avaliação do atravessador, mas não se sentem capacitados para questionar. Conforme o relato de uma produtora desta comunidade: “pra nós só existe café que bebe e café que não bebe. Os compradores é que fazem negócio com nosso café”. Ou seja, o comprador pode adquirir um café como sendo ‘de bebida’, mas sabendo que se trata de um café especial, o venderem adiante com preços bem mais elevados do que pagaram.

É importante perceber as nuances e ambiguidades nas relações dos produtores com os intermediários. Em alguns momentos, os próprios produtores defendem a comodidade de vender para estes agentes, em outros, condenam as práticas irregulares por eles adotadas. Como explica uma agricultora da comunidade citada: “o ideal é que a gente tivesse uma cooperativa para poder vender o café, para não precisar do atravessador, mas o problema é que esse negócio de cooperativa é muito difícil, dá muito trabalho, e nós não estamos dando conta nem do serviço da lavoura”.  Assim, o atravessador aparece, como ouvi no relato de alguns produtores, como “um mal necessário”, e é a figura central da comercialização de café commodity e do mercado de café em geral das Matas de Minas.

Os produtores fazem uma escolha racional entre as possibilidades de comercialização de sua produção. Todos os produtores entrevistados disseram que, quando possível – ou seja, quando dispõem de recursos, principalmente tempo e informação –, levam amostras de café a mais de um comprador e procuram vender para aquele que oferece a melhor avaliação da qualidade e, consequentemente, o melhor preço. Não há continuidade e frequência nas relações contratuais na venda do café commodity. Na maior parte das vezes os produtores vendem parcelas de sua produção anual para diferentes compradores e, nas colheitas seguintes, podem vender para outros. O pagamento em geral é feito no ato da venda do café conforme a cotação e os mecanismos utilizados pelos compradores no mercado local, não havendo muitas vezes qualquer formalização jurídica dos contratos.

No entanto, como se procurou mostrar, a escolha dos produtores em vender sua produção aos intermediários está condicionada a alguns fatores, como a proximidade e os laços sociais locais e as relações de confiança que deles derivam. Assim, a racionalidade é limitada pelo próprio contexto social dos produtores. A seguinte fala de um produtor ilustra este argumento:

Com isso [a venda para os atravessadores] a gente perde muito dinheiro. Porque é assim, esses dias mesmo, o café poderia estar pagando até mais um pouco, pelo que estava passando na televisão. Mas aí [os atravessadores] ficam com a desculpa de que o café está melhor, o outro está pior, aí acaba pegando aqueles que estão mais apertados, num momento de colheita, no início, às vezes a pessoa está precisando de dinheiro, aí você vai lá ao [nome do atravessador] que é atravessador, acaba indo ali, confiando, e ele te passa um preço às vezes menor do que valia. Acaba que o produtor perde mais um pouco ainda nisso aí. É questão de você confiar, é porque geralmente você tem um preço melhor em outros, porque o pagamento é com oito dias, aí o preço costuma ser melhor. Mas tem horas que você confia e daí você toma prejuízo por não ir procurar o outro comprador, levar em outro lugar. (Produtor tradicional do município de Ervália, entrevista realizada em 22 mai. 2013)[20]

Para outros produtores, como no caso do tipo sustentável, a opção em produzir cafés orgânicos, a despeito de altos investimentos envolvidos na conversão para este modelo e de incertezas na comercialização via pequenas cooperativas, se deve a valores compartilhados comunitariamente, reforçados por movimentos sociais dos quais participam, e que envolvem aspectos de sustentabilidade, saúde e justiça social, como relata um entrevistado:

A melhor forma de acessar essas políticas é no coletivo. E não é diferente também na comercialização do café, eles têm que estar associados a uma associação ou uma cooperativa que possa fazer isso. Porque quando você vai exportar o produto, principalmente o café, você tem que ter volume. Duas coisas, você tem que ter volume e qualidade do produto. E como um agricultor individual, sendo agricultor familiar, ele não tem volume pra exportar, então ele tem que juntar, isso facilita. E quando você vai fazer negociação lá fora, a negociação via grupo, eles querem entender o histórico do grupo, como é que surgiu esse grupo, como esse grupo pensa na questão social, na questão ambiental, então tem uma preocupação maior com essa questão. [...] Nós temos hoje um grupo de agricultores, em torno de 26 agricultores neste município que trabalham com produção orgânica, sendo que destes 26 devemos ter 5 ou 6 com produção 100% orgânica, mas os demais não usam veneno, mas ainda usam adubo químico, trabalham com agroecologia. [...] Eu faço parte, minha propriedade é 100% orgânica. [...] Agora, veneno, isso é indiscutível. Nós devemos ter hoje, cerca de 80 a 90 agricultores no município de Araponga que só usam adubo químico, não usam agrotóxico. (Entrevista com produtor sustentável em Araponga, realizada em 23 out. 2013)

As estratégias dos produtores se correlacionam também com a organização do mercado local, entendido como um espaço social ou campo. Isso se dá fundamentalmente no processo de definição dos padrões de qualidade e de quem detém poder de manejar e impor tais padrões, os quais configuram dispositivos de controle das condições de troca.

No contexto pós-IBC, a qualidade é parte fundamental das estratégias competitivas no mercado de café. No processo de adaptação dos produtores às condições institucionais e econômicas, estes buscaram novas formas de produção e comercialização caracterizadas essencialmente por uma diferenciação dos cafés pela qualidade. Ao tratar da qualidade, nós a consideramos a partir de padrões construídos pelos agentes sociais que definem a ação econômica, formas de comercialização específicas, entre outros mecanismos que conformam regimes de controle dos mercados.

Acessar e ter domínio sobre os padrões de qualidade é uma parte importante na formação das estratégias dos produtores e depende de seus recursos (sociais, inclusive), interferindo em sua adaptação ao novo contexto do mercado. Estes padrões são influenciados pela situação do mercado global de café e por normas específicas adotadas no país. Mas colocá-los em prática depende das relações de poder que se institucionalizam no mercado local.[21] Muitos produtores não dominam os critérios e padrões de classificação, como demonstrado nos relatos e observações colhidos. Durante a pesquisa de campo, era frequente acompanhar negociações de cafés entre produtores e atravessadores, em que estes últimos, em seus escritórios, degustavam uma amostra de café e davam vereditos aos produtores como: “Seu café bebeu. Nova York hoje está pagando X.” A partir daí, informavam o preço aos produtores, que simplesmente podiam aceitar ou não, demonstrando desconhecer totalmente o que estas decisões significavam. Os produtores durante a pesquisa de campo relatavam com frequência o oportunismo por parte dos compradores diante do seu desconhecimento das condições de avaliação.

É certo que há uma grande assimetria de informação entre produtores e compradores acerca dos critérios que permitem a avaliação da qualidade do café. Mas é importante destacar que não se trata apenas desse problema e do oportunismo gerando custos de transação. Trata-se das condições sociais que garantem a certos agentes o controle de dispositivos de avaliação de qualidade, os quais, por sua vez, asseguram o poder no mercado. Diante da configuração do mercado local, os produtores buscam produzir e comercializar determinada qualidade de café que seja viável, que garanta alguma segurança, o que nem sempre representa uma solução eficiente, mas eficaz. Ou seja, trata-se de estratégias possíveis, conforme seus recursos e fatores do ambiente institucional e cultural ao qual estão sujeitos, visando se posicionar em determinado espaço ou nicho do mercado que assevere certa confiança. Esta segurança é um fator importantíssimo para compreender as condições de reprodução social destes produtores e da própria região, caracteristicamente ocupada por agricultores familiares. Assim, pode-se afirmar que no processo de adaptação dos produtores às novas condições do mercado de café, por meio de suas estratégias, ocorre uma diferenciação destes produtores – expressa na tipologia apresentada – que passam a ocupar nichos específicos do mercado, o que leva à formação de novas maneiras de coordenação, havendo também um processo de feedback destas estruturas do mercado sobre as estratégias dos produtores.

Em outros termos, podemos afirmar que a qualidade é o signo visível que relaciona os tipos de produtores com os mecanismos específicos de comercialização, institucionalizados como formas de coordenação referentes a nichos no mercado local. Enquanto a teoria econômica considera que o preço é a semiótica básica do encontro entre oferta e procura, a visão sociológica nos mostra que a qualidade pode ocupar este espaço. Os modos de alinhamento entre a coordenação no mercado local das Matas de Minas, conforme as qualidades dos cafés e os tipos de produtores são esquematicamente apresentadas a seguir:

 

Quadro 4 – Alinhamento entre tipo de produtor, qualidade do café e formas de coordenação mercantil

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Fonte: Elaboração própria.

 

A principal forma de comercialização dos cafés das Matas de Minas se dá por meio do mercado de commodity, o que no local se vincula à atuação de intermediários, implicando altos custos de transação em virtude da predominância do oportunismo pelos compradores. Apesar disso, esta estrutura de mercado prevalece, o que se explica em razão do poder que possuem os intermediários no mercado local. Estes agentes detêm e manejam a informação sobre as condições de comercialização, os protocolos de avaliação da qualidade e, com isso, definem regimes de controle do mercado que garantem a sua estabilidade. Os produtores que comercializam neste mercado, predominantemente o tipo tradicional, encontram dificuldades de adaptação ao contexto do mercado liberalizado e de acesso a apoios institucionais, o que explica em parte o fato de permaneceram comercializando por meio de intermediários. Mas, além disso, estes produtores possuem fortes vínculos sociais nas comunidades locais, que incluem atravessadores, o que ajuda a compreender a persistência desta forma de coordenação. Assim, a persistência das estruturas de governança ou formas de coordenação que implicam altos custos de transação no mercado de café na região das Matas de Minas pode ser melhor entendida considerando os padrões culturais, as relações sociais e de poder.

Uma contra-argumentação possível, da perspectiva da ECT, seria que as relações sociais locais funcionam como mecanismos institucionais que reduzem custos de transação. Mas não se trata disso. Os produtores reconhecem que é custoso vender para os atravessadores. Como foi relatado com frequência durante a pesquisa de campo, “o atravessador é um mal necessário”. Ou seja, apesar de um mal ou um custo, é necessário, pois muitas vezes é mais importante manter uma rede de relações que garanta segurança, ou simplesmente reproduzem-se as relações sociais e os papéis já bem estabelecidos.

As alternativas ao atravessador passam pela diferenciação do produto e também pela formação de organizações. O processo de emergência de organizações de produtores está diretamente relacionado com o processo de diferenciação pela qualidade dos cafés das Matas de Minas. Onde os produtores passaram a produzir cafés especiais foi preciso buscar alternativas de comercialização melhor remuneradoras. Assim, foram fundadas associações de cafés especiais para procurar fortalecer esses produtores, conquistar reconhecimento no mercado e encontrar alternativas de comercialização. A partir do momento que estas associações de cafés especiais passam a existir, funcionam como ambientes de aprendizado da qualidade, estimulando outros produtores a investirem na produção diferenciada dos seus produtos, o que evidencia a inter-relação entre as estratégias dos produtores e as formas organizacionais e de coordenação do mercado, bem como as relações entre os produtores.

As Matas de Minas, que era uma região identificada pelo baixo nível tecnológico e organizacional e pela baixa qualidade dos seus cafés, tem passado por um processo de reconstrução de sua reputação no setor cafeeiro. A alteração nos padrões de qualidade dos cafés da região foi parte importante deste processo, o que se deu a partir de esforços e investimentos dos próprios produtores e da formação de organizações locais, como associações e cooperativas, além do apoio de organizações de extensão e assistência técnica que fomentaram o processo de mudança tecnológica. Apesar de tratar-se de um processo em curso, pode-se apontar a tendência à estabilização do mercado local com base na formação de nichos e da diferenciação entre os produtores.

 

Considerações finais

Os processos de adaptação e enfrentamento dos cafeicultores ao contexto da liberalização envolvem uma mudança nas instituições do mercado, baseada na criação de outros regimes de controle que se fundamentam, principalmente, na construção de novos padrões de qualidade e novas formas organizativas. Os dados de nossa pesquisa demonstram que se trata de um mercado local ainda em processo de reestruturação. Não buscamos indicar o sentido do processo de estabilização, mas compreender as dimensões centrais desse processo, quais sejam, as estratégias dos produtores e as formas de coordenação mercantil emergentes, a partir de um modelo sociológico.

Este processo tem sido conduzido pela valorização da qualidade, o que é uma tendência do mercado no contexto pós-liberalização. Contudo, o modo como esta tendência influencia a configuração do mercado local depende de condicionantes socioculturais e institucionais que afetam diferentemente os produtores conforme sua própria posição neste espaço social. Os produtores não são agentes racionais indiferenciados, mas sim agentes sociais cujas estratégias comportam, obviamente, uma dimensão de instrumentalidade no ambiente mercantil, mas também são fortemente induzidas por valores, laços sociais, organizações, entre outros aspectos da estrutura social na qual se inserem. Com isso, o importante a se destacar com nossa tipologia é que os produtores são distintos e se diferenciam ativamente a partir de suas estratégias influenciadas pelo ambiente social. E, com isso, o mercado também se distingue nas formas de coordenação, entre as quais não elencamos as mais eficientes, mas as compreendemos como padrões em disputa que organizam o mercado.

Trata-se, portanto, de demonstrar a persistência dos contrastes entre os produtores e o processo de diferenciação nas estruturas de mercado, não a homogeneização no sentido de um mercado concorrencial e balizado pela eficiência. Com isso, nos posicionamos criticamente em relação ao modelo teórico dominante nos estudos sobre cadeias agroindustriais no Brasil, marcado pela perspectiva da ECT. Este modelo tende a considerar como residual a permanência de arranjos contratuais em que há altos custos de transação e o comportamento adaptativo dos produtores praticamente como espontâneo, em virtude do modelo de racionalidade da ação. Pelo contrário, o que encontramos nas Matas de Minas foi a persistência endêmica da comercialização via atravessadores e das desvantagens para o produtor na hora da formação do preço do grão. Além do mais, nos preocupamos em demonstrar a existência de condições, como o aprendizado a partir de redes de relações e os diferentes recursos ou capital de que dispõem os produtores, que influenciam no processo de adaptação.

Um dos elementos que se destaca no processo de construção das estratégias dos produtores e, consequentemente, em sua maior ou menor adaptação ao mercado liberalizado é o investimento em qualidade. Como procuramos demonstrar, há distintas qualidades que são construídas localmente conforme os recursos de que dispõem os agentes e a sua capacidade de conhecer e colocar em prática códigos e padrões balizados pelas normas nacionais ou internacionais do mercado de café. Estas distintas qualidades manejadas pelos agentes definem também as estruturas locais do mercado. Esperamos ter demonstrado como se constituem tais estruturas no caso das Matas de Minas. A partir de tais apontamentos, acreditamos que nosso trabalho possa se somar aos esforços de análise do sistema agroalimentar no contexto da globalização e de suas consequências sobre a vida dos agricultores.

 

 

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Como citar

SINGULANO, Marisa Alice; HIGGINS, Sílvio Salej. Formas de adaptação de produtores de café à liberalização mercantil: proposta de uma tipologia analítica a partir de um estudo de caso na região das Matas de Minas. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, p. 278-303, jun. 2021. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v29n2-2.

 

 

 

 

Marisa Alice Singulano

Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Econômico e Social da Universidade Federal de Ouro Preto (NUPEDES/UFOP).
marisasingulano@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9188-1661
http://lattes.cnpq.br/1475488319817262


Sílvio Salej Higgins

Professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista Produtividade PQ 2. Doutorado em Sociologia pela Universidade de Paris Dauphine, França, e em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no âmbito do Colégio Doutoral Franco-Brasileiro – Capes, Ministério da Educação do Brasil e Ministère de l’Éducation National da França.
sisahi@yahoo.com
https://orcid.org/0000-0002-3573-0578
http://lattes.cnpq.br/3698999001620631

 

 

 

 

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[1] Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Econômico e Social da Universidade Federal de Ouro Preto (NUPEDES/UFOP). E-mail: marisasingulano@gmail.com.

[2] Professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista Produtividade PQ 2. Doutorado em Sociologia pela Universidade de Paris Dauphine, França, e em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no âmbito do Colégio Doutoral Franco-Brasileiro – Capes, Ministério da Educação do Brasil e Ministère de l’Éducation National da França. E-mail: sisahi@yahoo.com.

[3] O IBC foi extinto em 1990 por meio da Lei Ordinária no 8.029 no governo Collor. Além da extinção do IBC, uma série de medidas liberalizantes adotadas no início desse governo tiveram consequências diretas sobre a cadeia do café, como a extinção da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater), responsável até então pela política de assistência ao setor produtivo, e a abertura comercial (FERREIRA; SOUSA; RUFINO, 2009).

[4] Conforme dados da OIC. Disponível em: http://www.ico.org/trade_statistics.asp?section=Statistics. Acesso em: 24 abr. 2020.

[5] Dados disponíveis em: http://www.cecafe.com.br/sustentabilidade/artigos/a-importancia-do-pequeno-produtor-para-o-setor-cafeeiro-20161109/. Acesso em: 24 abr. 2020.

[6] Conforme dados da Conab. Disponíveis em: https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/cafe. Acesso em: 24 abr. 2020.

[7] A utilização de dados do Censo Agropecuário de 2006 se justifica, pois no último Censo Agropecuário de 2017 foi excluída a seção com dados específicos sobre a agricultura familiar.

[8] Disponível em: www.pensa.org.br. Acesso em: 20 abr. 2020.

[9] Em estudos posteriores, conduzidos sob esta perspectiva, são mantidos os delineamentos teóricos fundamentais da Nova Economia Institucional, em especial da ECT, enquanto o foco na ideia de agribusiness perde espaço, buscando viabilizar a aplicação desta abordagem em estudos sobre setores da economia nacional para além dos sistemas agroindustriais. Para um conjunto de estudos de caso conduzidos sob a perspectiva proposta por Zylberstajn, a partir do neoinstitucionalismo econômico, pode-se consultar o site do Pensa em http://pensa.org.br/publicacoes/, que inclui os Cadernos Universidade do Café, uma coletânea de estudos produzidos a partir do escopo da Universidade do Café, um projeto da empresa italiana Illy Café, disponível em http://universidadedocafe.com/. Acesso em: 16 abr. 2020.

[10] As abordagens neoinstitucionalistas ou neoestruturalistas na sociologia dos mercados podem ainda ser consideradas como convergentes à teoria dos “mercados de produtores” desenvolvida por Harrison White (1981). White propõe que o foco analítico se situe nas relações entre os produtores, que seriam responsáveis pelos processos de estabilização dos mercados, em lugar das relações entre oferta e demanda. Segundo o autor, nos mercados, cada produtor se orienta em suas estratégias pela observação dos demais produtores e não pela especulação sobre as reações hipotéticas dos compradores às suas ações. A preocupação central de White está nos processos de reprodução e estabilização de mercados que se dão pelo posicionamento relativo dos produtores em termos dos preços/qualidade de seus produtos. Os mercados emergem, assim, como estruturas relativamente estáveis de papéis com nichos específicos ocupados por cada firma ou produtor. Deste modo, os mercados são estruturas sociais nas quais os produtores reproduzem seu próprio conjunto de ações e sua posição relativamente aos demais produtores.

[11] Consideramos, diferentemente dos estudos do Pensa, que a qualidade não se refere apenas a um ativo específico que define um subsistema ou nicho de mercado. A discussão sobre a qualidade na sociologia econômica e em abordagens institucionalistas distintas da ECT, principalmente de orientação francesa, como a Teoria das Convenções, é bem desenvolvida e enfatiza a construção social dos atributos dos bens e a pluralidade das formas de avaliação da qualidade. Ainda que não tenhamos nos detido nesse debate, é importante referenciá-lo por tratar de um aspecto fundamental na análise dos sistemas agroalimentares contemporâneos. Nesse sentido, as contribuições de Eymard-Duvernay (1989), Callon (2000), Pecqueur (2001), Montagnon (2006) e Karpik (2010), são fundamentais e não exaustivas.

[12] Realizamos quatro entrevistas em Belo Horizonte, com representantes da Seapa, da Emater, do IMA e do setor de agronegócio do Sebrae. As demais entrevistas foram elaboradas nos municípios de Araponga, Canaã, Caratinga, Ervália, Espera Feliz, Lajinha, Divino, Manhuaçu, Manhumirim, Varginha (que não está nas Matas de Minas, onde foi entrevistado um antigo técnico do IBC) e Viçosa.

[13] As entrevistas foram realizadas entre 2012 e 2014 em diversas comunidades rurais e nas sedes dos seguintes municípios: Araponga, Cajuri, Canaã, Caratinga, Carangola, Divino, Ervália, Espera Feliz, Manhuaçu, Manhumirim e Viçosa.

[14] Durante a pesquisa realizamos entrevistas semiestruturadas com os produtores selecionados cujo roteiro incluía questões sobre o histórico da propriedade e/ou da família do produtor, sobre a produção (como localização, tamanho da propriedade, tipo de mão de obra empregada, uso de diversos tipos de tecnologia de produção, de colheita e de pós-colheita, volume colhido, produtividade, características do café, incluindo tipos e investimentos em qualidade). Sobre as condições de comercialização, os questionários abordavam temas como a relação custos de produção/preços, quantidades comercializadas nas duas últimas safras, escolha da praça e dos compradores, tempo decorrido entre a colheita e a venda, condições dos contratos, se formais ou não etc. Além disso, questionamos os produtores sobre o acesso a financiamentos, assistência técnica, apoio de instituições e/ou participação em organizações, relações com as comunidades, redes de relações sociais (incluindo os compradores, outros produtores etc.), e se estas relações implicavam troca de informação, cooperação, concorrência, conflitos. É importante destacar que estas informações, obtidas nas entrevistas, foram contextualizadas a partir dos dados da observação participante nas comunidades.

[15] A opção pela metodologia adotada por Vilela e Rufino (2010), a despeito de outras, inclusive oficiais, se deve ao fato de que o estudo foi realizado na mesma região considerada por nossa pesquisa e reflete melhor sua estrutura fundiária, com propriedades de pequenas dimensões e estratos com pequena diferenciação.

[16] Adotamos a expressão “cafés sustentáveis” utilizada por Souza (2006) em sua pesquisa para se referir aos cafés orgânicos, do fair trade e sombreados. Em nossa pesquisa, a categoria inclui os cafés orgânicos ou agroecológicos e os cafés do fair trade, não havendo uma produção significativa de cafés sombreados nas Matas de Minas. Com relação ao tipo de café produzido, também adotamos o termo “sustentável” para caracterizar um tipo de produtor das Matas de Minas.

[17] Em relação à perspectiva teórica, a opção por uma classificação que se pauta em estratégias ou no tipo de racionalidade dos produtores, ou, mais especificamente, no modo de construção social das ações econômicas e em suas consequências estruturais, encontra fundamentação na sociologia econômica neoinstitucionalista, a exemplo de autores como Bourdieu (que expressa a ideia de um comportamento econômico socialmente orientado por meio da noção de habitus) e Fligstein (que considera a ação social e, sobretudo, a capacidade dos atores de motivarem outros atores produzindo estabilidade nos campos, por meio da noção de habilidades sociais). Outra referência importante a ser considerada no estudo de racionalidades entre agricultores é o clássico estudo de Abramovay (2007). O autor trata dos limites da racionalidade para além de fatores internos à unidade produtiva ou da existência de mercados não concorrenciais, mas a partir dos contextos culturais em que se inserem os produtores, valendo-se da inspiração da antropologia dedicada aos estudos do campesinato.

[18] É evidente a inspiração weberiana no modelo metodológico de construção de tipos puros, tratando-se mais propriamente da influência weberiana na sociologia econômica contemporânea. A esse respeito, Swedberg (2005) destaca a importância de Weber como formador da sociologia econômica. O autor reforça que a metodologia sociológica dos tipos proposta por Weber é especialmente aplicada em sua teoria da ação, dando conta da interpretação dos significados que orientam em sua definição subjetiva (SWEDBERG, 2005, p. 55).

[19] No leilão subsequente ao concurso nacional da Abic de 2012, em que o primeiro lugar foi de um pequeno produtor das Matas de Minas, cada saca de um microlote deste produtor foi arrematada por R$ 3.000,00. Disponível em: http://www.abic.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=256. Acesso em: 31 jan. 2015.  Naquele momento, a saca do café padrão B/C, do tipo 6, de bebida dura, estava cotada em cerca de R$ 323,00, conforme informações do Centro do Comércio de Café do Estado de Minas Gerais. Disponível em: http://www.cccmg.com.br/cotacaocafe.asp?paginas=cota%E7%E3o%20do%20caf%E9&consultar=true. Acesso em: 31 jan. 2015.

[20] A confiança é um elemento fundamental nas abordagens sociológicas da economia e foi destacada por Granovetter (2007) por expressar a influência das instituições e das relações sociais sobre os comportamentos.

[21] Basicamente, a classificação dos cafés segue as normas definidas pela Classificação Oficial Brasileira dos Cafés expressa na Instrução Normativa no 8 de 2003 do Mapa, que define o regulamento técnico de identidade e de qualidade para a classificação do café beneficiado grão cru, mas há classificação específicas adotadas por certos traders no mercado. De todo modo, a classificação de qualidade é fundamental para a definição dos preços o que, no caso dos cafés commodity, tende a se dar a partir da referência de cotação da bolsa New York Board of Trade (NYBOT), atualmente denominado ICE Futures. Contudo, na região das Matas de Minas, a classificação dos cafés commodity frequentemente diferencia apenas os cafés “de bebida” (correspondente aos cafés de bebida dura e superiores, de melhor qualidade) dos cafés que “não beberam” (cafés do tipo rio ou riado, de pior qualidade), e os preços dependem não apenas da referência do mercado, mas de diversos fatores definidos localmente, incluindo-se a reputação do produtor e do comprador, as quantidades comercializadas, relações sociais entre compradores e produtores etc.