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v. 29, n. 1, fevereiro a maio de 2021, p. 142-165
Recebido em 24 de setembro de 2020. Aceito em 10 de dezembro de 2020.



A intelligentsia de José de Souza Martins e outras questões agrárias

José de Souza Martins’ intelligentsia and other agrarian issues

 

DOI: 10.36920/esa-v29n1-9

 

orcid_id.png  Bruno Costa da Fonseca[1]

 

Resumo: Este artigo tem por intento elucidar parte da produção teórica do sociólogo José de Souza Martins, em virtude da discussão em torno do tema da Questão Agrária no Pensamento Social Brasileiro. Nas concepções clássicas de autores como Marx, Lenin e Kautsky, este debate, em certa medida, esteve atrelado ao tema da Revolução Socialista em países europeus. No contexto brasileiro, temos uma diversidade em torno das correntes pecebista, cepalina, do conservadorismo econômico e da Igreja Católica progressista, à qual Martins se mostrou simpatizante. Na visão de Martins, a Questão Agrária deveria ser concebida a partir da emancipação dos trabalhadores rurais diante da expansão do capitalismo no campo e a reforma agrária radical nunca foi a solução imediata para os problemas do campo. Para ele, a conquista da “terra de trabalho”, que foi também tema da Igreja Católica progressista nos idos da década de 1980, era mais promissora do que a intervenção marxista proposta pelo Partido Comunista.

Palavras-chave: Pensamento Social; Questão Agrária; mediação rural.

 

Abstract: (José de Souza Martins’ intelligentsia and other agrarian issues). This article is intended to clarify part of the theoretical production of sociologist José de Souza Martins due to the discussion on the theme of the Agrarian Question in Brazilian Social Thought. In the classic conceptions of authors like Marx, Lenin and Kautsky, this debate was tied – to a certain extent – to the theme of the Socialist Revolution in European countries. In the Brazilian context, we have diversity around the pecebista, cepalino currents, the economic conservatism and the progressive Catholic Church, which Martins was sympathetic to. In Martins’ view, the Agrarian Question should be conceived from the emancipation of rural workers as of the expansion of capitalism in the countryside and radical land reform was never the immediate solution to the problems of the countryside. According to him, the conquest of the “land of work”, also the theme of the progressive Catholic Church in the 1980s, was more promising than the Marxist intervention proposed by the Communist Party.

Keywords: Social thinking; Agrarian Question; rural mediation.

 

 

 

 

 

 

Introdução

Tratar o tema da questão agrária brasileira versada sob o espectro da necessidade ou não de uma reforma agrária se torna simplório, mas revela o estado de construção da opinião pública nos últimos anos, que coloca o Brasil em uma condição indubitavelmente dual, reflexo, por sua vez, da política do senso comum que busca engendrar o tema no bojo da dicotomia: “esquerda” versus “direita”. Não obstante, o fato é que este debate traz consigo uma complexidade aguçada no que concerne ao entendimento do processo de formação do estado brasileiro e se projeta em uma condição sine qua non na produção de conhecimento dentro da sociologia rural. Na intersecção da explicação dos fenômenos sociais que marcam a formação agrária de nosso país e da construção do imaginário popular daqueles que têm no mundo rural seu modo de reprodução social, o sociólogo José de Souza Martins se tornou um publicista incontornável.

Martins possui uma contribuição importante para a sociologia rural e para o Pensamento Social Brasileiro como um todo, entendendo, à luz de uma discussão conceitual e pragmática, que não é possível compreender a formação sociocultural do país sem entender as constantes mudanças arroladas no mundo rural. A sociologia de Martins se caracteriza intensamente por uma orientação investigativa em prol de uma intelligentsia enredada com a história e a experiência in loco, isto é, uma sociologia preocupada em problematizar a condição humana e reinventar a produção científica, com base no enfrentamento empírico e teórico. Herdeiro da trajetória intelectual de Florestan Fernandes, o autor retoma, aos seus moldes, o esforço de construir uma sociologia arraigada, apropriada para analisar as circunstâncias que se projetam na sociedade brasileira, evitando a incorporação descontrolada e sem viés crítico de teorias produzidas em outras condições históricas.

Martins, insaciável leitor de Lefebvre, reitera em seus trabalhos que o tempo de reprodução do capital é o tempo da contradição, mas não apenas da contradição comum dos interesses opostos, tal como pelas classes sociais, mas de temporalidades desencontradas e, dessa forma, de realidades sociais que se desenvolvem em ritmos diferentes, ainda que a partir das mesmas contradições históricas (MARTINS, 1997). Constitui essencialmente considerar as propriedades de uma chave explicativa do “desenvolvimento desigual do capitalismo” encontrada em Lenin, porém, através de um filtro teórico díspar, proposto por Lefebvre. Essa releitura e apropriação conveniente de Marx foi um esforço de Martins para recuperar o ‘lugar’ do método dialético.

Assim, a originalidade presente nas obras de Martins traz consigo um conjunto de propostas teóricas possíveis para compreender as singularidades do capitalismo brasileiro e suas implicações sobre as relações de produção, bem como sobre as relações de trabalho e terra constituídas no campo. É importante ressaltar que Martins chama a atenção em suas obras para o fato de que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil não seguiu o modelo consagrado na literatura especializada estrangeira e de que as determinações da origem do capitalismo entre nós não poderiam ser ignoradas se queremos compreender as suas contradições históricas e os bloqueios estruturais que até hoje nos desafiam a criar, mais do que imitar (MARTINS, 1979).

Existe, nas publicações de Martins, importância única no que compete à acuidade das determinações históricas no ajustamento de uma formação econômica e social, o que remete, por consequência, a uma valorização da dimensão da historicidade em seus textos. É possível perceber isso tanto nas reflexões sobre a produção não capitalista das relações de produção quanto na discussão sobre a presença de um dualismo que marca as interpretações da sociedade brasileira, ou mesmo na análise sobre as origens do campesinato no Brasil, ao qual Martins faz um esforço teórico-conceitual de destacar as diferenças com relação ao campesinato europeu (MARTINS, 1981). Trata-se de um exercício permanente de reflexão sobre o mundo rural, não como um mundo à parte, mas como parte do desenvolvimento capitalista fundamentalmente desigual. O capitalismo desigual traria uma preocupação primeira de se discutir a “margem” e não o “centro”, o “camponês” e não o “proletariado”.

Não obstante, Martins não esteve sozinho na produção de vias epistemológicas que buscassem compreender os fenômenos ocorridos no mundo rural. Sua concepção da Questão Agrária tem que ser entendida a partir do debate realizado com o marxismo e o leninismo clássico, além de autores importantes de nossa cultura política, tais como Alberto Passos Guimarães, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Moisés Vinhas, Celso Furtado, Ignácio Rangel, entre outros. Destarte, este artigo tem por intento apresentar a posição de Martins no diálogo com autores clássicos e nacionais, principalmente em virtude da discussão em torno do tema no Pensamento Social Brasileiro. Para tanto, buscamos na construção teórica da Questão Agrária uma síntese de alguns autores importantes da cena intelectual, sem pretensões de dar conta da vasta produção sobre o assunto.

 

O debate sobre a Questão Agrária

Existe um vasto conjunto de conceituações sobre em que consistiria a terminologia Questão Agrária, a depender da ênfase pretendida. Na literatura política, por exemplo, ela está ligada especialmente aos problemas encontrados na concentração fundiária e de como isto se configura um empecilho para o desenvolvimento das forças produtivas, além da influência sobre os aspectos do poderio político de um país. Já para a sociologia, a Questão Agrária se configura nas formas em que se desenvolvem as relações sociais em torno da produção agrícola. Na geografia, comumente se utiliza a terminologia para explicar de que maneira os sujeitos se apropriam da natureza e como se dá a ocupação humana no território. A história, por sua vez, busca a partir dela o entendimento da evolução das lutas políticas e de classe para domínio e posse da terra (STÉDILE , 2005).

Em sua origem, a Questão Agrária emergiu no debate travado dentro do movimento operário europeu e tinha como cerne as discussões sobre a penetração do capitalismo no campo e uma possível aliança do movimento operário e do campesino para modificar as estruturas feudais prevalecentes no mundo rural (BAUER, 2007). As discussões em seu torno tiveram como principal ensejo as teorias socialistas que objetivavam transformar a agricultura capitalista em propriedades coletivas, fruto de um grande projeto revolucionário. A aliança entre o proletariado e o camponês tinha como desígnio um projeto de reivindicações imediatas de caráter democrático, a priori, que não necessariamente resultaria em um novo modo de produção, socialista (SANDRONI, 2013).

Diferentemente de Marx, que tinha o camponês como uma figura passiva de um projeto revolucionário do proletariado, Lenin via nele um potencial para alcançar a revolução socialista. Ele acreditava que a dominação do capitalismo sobre as formas tradicionais de produção estaria ligada à criação de um mercado híbrido, onde, ao mesmo tempo que o camponês era proprietário de terras, deveria se submeter às leis gerais do capital, vendendo sua força de trabalho no mercado. Para ele “[...] do ponto de vista teórico abstrato, a ruína dos pequenos produtores na sociedade em que a economia mercantil e capitalista se desenvolve significa [...] a criação e não a redução do mercado interno” (LENIN, 1982, p. 16).

Dentre as publicações pertinentes, os estudos do filósofo Karl Kautsky (1968) são pioneiros no que concerne a uma teorização da expansão do capitalismo no campo. Kautsky, apropriando-se de um revisionismo da teoria marxista, faz uma leitura bastante singular do campesinato alemão, pois, em sua concepção, o campesinato não poderia ser tratado como uma classe autossuficiente, tal como acontecia antes do capitalismo. Na visão de Kautsky, o capitalismo transformaria o camponês clássico, inclusive, tendo como possibilidade o seu desaparecimento como classe e a supressão de seus modos de reprodução social. Assim, o campesinato iria desempenhar um duplo papel na economia capitalista: num primeiro momento, teria que trabalhar para garantir a subsistência de sua família, contudo, também seria obrigado a produzir excedentes para obter capital, para poder sobreviver ao capitalismo.

Para entender as formulações da Questão Agrária em Kautsky, é preciso compreender também a sua proposição das possibilidades de transição socialista no meio rural. Para o autor, o campo só iria se desenvolver quando substituísse os métodos pré-capitalistas de produção – tais como a servidão e a escravidão – pelas cooperativas socialistas agrícolas, ou seja, grandes empresas coletivas e estatais que seriam responsáveis pelo processo produtivo no campo. Nas palavras de Kautsky, a propriedade individual seria um obstáculo que deveria ser contornado e a proletarização do campesinato era inevitável:

Depois que as cooperativas socialistas (porque então não se poderá falar de cooperativas proletárias) tenham demonstrado a sua vitalidade, que hajam desaparecido os riscos ainda hoje inerentes a qualquer empresa econômica, o camponês poderá perder o medo de proletarizar-se pelo abandono de seus bens, reconhecendo que a propriedade individual dos meios de produção só representa um obstáculo a nos barrar o caminho de uma forma superior de exploração, obstáculo de que se desembaraçará com prazer. (1968, p. 149)

No percurso de construção do conceito, existe certo consenso de que a definição sobre em que consiste a Questão Agrária tende a ser polissêmica, longe de uma definição única e geral. Em vias de uma crítica sobre a apropriação pelo campo teórico marxista e na tentativa de sua compreensão, Ricardo Abramovay salienta que, além do mais, é a expressão de conflitos políticos e só pode ser explicada em contextos políticos específicos. Para ele “[...] compreender a Questão Agrária exige um trabalho de história das ideias e de sociologia do conhecimento”. Logo, entendê-la está para além de examinar o grau de desenvolvimento técnico de um país, é preciso, ademais, entender a relação entre a agricultura e demais fatores da economia, num determinado período, assim como as características das relações sociais dominantes (ABRAMOVAY, 2013, p. 112).

Abramovay (1992), em uma tese bastante particular, diverge do marxismo presente em Lenin e Kautsky ao pautar a ideia de “paradigma do capitalismo agrário”. Segundo ele, nos países desenvolvidos, ao contrário do que foi preconizado, o capitalismo não suprimiu o campesinato, na verdade, a agricultura de base familiar teve uma participação expressiva na formação dos países capitalistas. Na noção de “paradigma do capitalismo agrário” a sobrevivência ou não do capitalismo dependeria de como se estabelece uma mudança na conjuntura socioeconômica determinada pelo desenvolvimento do capitalismo. Ou seja, para sobreviver ao capitalismo, o camponês se transforma em um profissional, ou melhor, em um agricultor familiar, e o que era antes um modo de vida tradicional se torna uma profissão. Desta forma, a ênfase na formulação de Abramovay não está no capitalismo que expropria o camponês, tal como preconizam os autores marxistas da Questão Agrária, mas na necessidade de sua adaptação que, por estar parcialmente integrado ao mercado, deve se adequar a uma nova realidade no que concerne à organização de sua produção.

O estudioso José Graziano buscou uma definição mais simples, ao trazer um debate relativo à sua diferenciação com a questão agrícola. Para o autor, per si, a questão agrícola se refere às mudanças ocorridas na agricultura, isto é, “o que se produz”, “onde se produz” e “quanto se produz”. A Questão Agrária, por outro lado, está preocupada com as transformações ocorridas nas relações sociais e de trabalho, evidenciando outras perguntas, por exemplo: “como se produz”, “de que forma se produz”. Se, por um lado, temos fatores como a quantidade e o preço dos bens produzidos para entender a questão agrícola, por outro, a maneira como se organiza o trabalho e a produção, além da qualidade da renda e emprego dos trabalhadores rurais, é importantes para compreender a Questão Agrária (SILVA, 1980).

Logo, existiria um espectro mais amplo da produção agrícola e sua influência sobre os modos de reprodução da sociedade que, pautada nas dimensões político-econômicas, origina a ideia de Questão Agrária. No máximo a produção agrícola nos revela dois padrões bastante distintos e dicotômicos presentes na agricultura brasileira: a agricultura familiar e a agricultura empresarial, ou o que chamamos de agronegócio. A primeira, arrolada pelo emprego da mão de obra familiar e pela diversificação da produção e, a segunda, por sua vez, pautada na produção da monocultura agroexportadora em grandes extensões de terra e pela tecnificação em massa dos processos produtivos no campo. Todavia, o tema está para além da dicotomia produzida pela produção agrícola.

O geógrafo Bernardo Mançano sugere o entendimento da Questão Agrária visto pela perspectiva da relação entre conflito por terra e desenvolvimento rural, os quais, segundo o autor, não podem ser considerados peças separadas de um jogo bastante complexo. Acionando a ideia de “conflitualidade”, o autor explica que os conflitos por terra, por serem territoriais, não podem ser compreendidos apenas pelo momento do enfrentamento entre classes ou entre camponeses e Estado. A noção de conflitualidade permite evidenciar que o conflito é um processo constante, alimentado pelas contradições e desigualdades que o capitalismo proporciona. “O movimento da conflitualidade é paradoxal ao promover, concomitantemente, a territorialização-desterritorialização-reterritorialização de diferentes relações sociais” (FERNANDES, 2013, p. 174). O conflito seria, então, parte integrante do desenvolvimento e coloca, portanto, em disputa, tipos diferentes de modelos de desenvolvimento territorial rural.

A antropóloga Delma Pessanha Neves propõe uma reflexão sobre o assunto como parte inerente de uma discussão maior: a questão social, crucial para entender as problemáticas ocorridas com a industrialização e a pauperização em massa, no contexto brasileiro. Segundo a autora, a questão social consiste em um “[...] termo agregador de um conjunto de problemáticas refletidas e difundidas para trazer à consciência pública, os problemas vinculados às condições de organização da vigente sociedade” ou, conforme também aponta, consiste na problematização de “[...] formas de integração e de inserção sociais, reformas políticas ou revoluções, alimentadas por diversos sistemas de ideias, pelos quais contradições são explicitadas”. Assim, fundada nas contradições da sociedade capitalista, a questão social recebeu algumas subdivisões, conforme ênfase atribuída a certos problemas sociais, como: a Questão Agrária, a questão urbana, a questão ambiental etc. (NEVES, 2017, p. 80).

Neste contexto, a relação entre o capitalismo, o uso e o controle da terra traz consigo um contíguo de problemáticas que podem ser consideradas como a Questão Agrária, mas que devem ser analisadas dentro de uma perspectiva maior, que é a da questão social, haja vista que a formação da sociedade brasileira e boa parte dos problemas que disto decorrem são frutos de nossa estrutura agrária. Assim, “[...] a Questão Agrária pode ser entendida como ex­pressão de modos de problematização das formas de expansão do capitalismo no campo. Como ela está diretamente relacionada com o modo de produção geral da sociedade, pode ser entendida como a relação do modo de produção da sociedade com o uso da terra” (NEVES, 2017, p. 82).

No intuito de transformar o conceito em termos práticos, mais palpáveis à luta prática que acontece no núcleo dos movimentos sociais, alguns autores preferem utilizar a expressão “problema agrário” ou “problema do campo” (STÉDILE, 2013). O geógrafo Bernardo Mançano é mais preciso e vai noutra direção, pois, para ele, a “[...] Questão Agrária não é problema em si, mas é problema da contradição inerente do sistema capitalista, que se movimenta e se perpetua por meio de seu paradoxo” (FERNANDES, 2013, p. 183). Atualmente, o termo vem sendo utilizado por instituições internacionais, como forma de propor saídas aos impactos sociais e econômicos ocasionados pela expansão do agronegócio no campo, mormente, fator original das crescentes misérias e desigualdades vividas pelos países periféricos (BAUER, 2007).

 

Questão Agrária nos clássicos nacionais

As principais discussões teóricas acerca do assunto no Brasil tiveram inicialmente como principais expoentes autores pecebistas, cepalinos, ligados à Igreja Católica, ao socialismo e a pensadores do conservadorismo econômico, ainda nos idos de 1960. São autores que, apesar de suas obras remeterem a um tempo longínquo de nossa história, ainda são importantes para entender a realidade do desenvolvimento do Estado brasileiro. Incontornáveis, ainda que em epítome, nos ajudam a compreender a formação, interpretação e solidificação do problema da terra no Brasil.

As publicações de Alberto Passos Guimarães, autor pecebista, está entre as mais importantes sobre o tema da revolução agrária no Brasil. Seus escritos se diferem de outros autores que tentaram dar conta da Questão Agrária pela forte influência marxista-leninista advinda de sua militância comunista. “Passos Guimarães confere centralidade à reforma agrária brasileira redistribuitivista (sic) [...]” (SANTOS, 2007, p. 92), ao passo que aponta a gênese, consolidação e fragilidade do modo de domínio do território brasileiro implantado por Portugal, assim como o protagonismo que o camponês deveria assumir no projeto revolucionário. Sua principal tese estava balizada na superação do que ele chama de “resíduos feudais”, isto é, segundo suas proposições, o latifúndio brasileiro se comportava como um tipo de feudalismo agrário, cujo capitalismo não tinha o poder de transformá-lo. As formulações de Passos Guimarães tinham por objetivo primeiro mostrar como se deu a ocupação do território brasileiro por um viés político-administrativo. Em Passos Guimarães, a transformação do modo de reprodução social no campo só poderia ser alcançada pela aliança entre os camponeses e os proletários, inerentes aos moldes leninistas de revolução. Nesse sentido:

O resgate da feudalidade e o combate às teorias do “capitalismo colonial” e do “capitalismo agrário” visavam revelar a incidência “nada inocente” dessas concepções, uma vez que a postulação de uma origem e evolução em sentido comercial-capitalista de nossa economia agrária tornava desnecessária a mudança de suas estruturas, debilitando a contemporaneidade da reforma agrária. (SANTOS, 1994, p. 53)

Especialmente na obra Quatro séculos de latifúndio, Passos Guimarães (1968, p. 24) assinala que o motivo da formação colonial brasileira ter sido assentada em bases feudais, foi uma transferência de instituições políticas por parte da metrópole, que tinha como objetivo assegurar o domínio sobre a exploração da terra. Em outras palavras, devido a uma decadência dos fidalgos em Portugal e à ascensão de um forte grupo mercantil, aos primeiros foi cedido o direito de exploração da colônia, configurando um sistema econômico mais atrasado do que o encontrado na metrópole. Desse modo, os fidalgos, à medida que perderam os poderes na metrópole, tentavam reproduzi-los na colônia, tal como afirma Passos Guimarães: “Desde o instante em que a metrópole se decidira a colocar nas mãos da fidalguia os imensos latifúndios que surgiram dessa partilha, tornar-se-ia evidente o seu propósito de lançar, no Novo Mundo, os fundamentos econômicos da ordem de produção feudal.”

O modo de produção colonial fundamentada no monopólio da terra demonstrava, segundo Passos Guimarães, um estágio de produção agrícola inferior, bem próximo dos modos de produção pré-capitalista europeus. Só que no caso brasileiro, ao invés de usar servos da gleba, foram utilizados escravos. Mesmo após a abolição da escravatura, pelo modelo de interpretação de Passos Guimarães, o país não perdeu suas características feudais, mantendo-se o modo de produção e organização da propriedade que vigorava na metrópole portuguesa.

Outro importante aspecto assinalado por Passos Guimarães foi o monopólio feudal e colonial da terra que se compunha pela garantia do poder por parte dos latifundiários, pautada em relações extraeconômicas. Este tipo de monopólio impedia que o trabalhador tivesse liberdade ao vender sua força de trabalho, já que estaria forçado e submisso às grandes fazendas, instituindo assim formas pré-capitalistas de renda como “[...] a renda trabalho, que obrigava o trabalhador à prestação pessoal de trabalho gratuito; ou a renda produto, que determinava que o trabalhador, em troca do uso da terra, desse ao proprietário da terra parte dos produtos que ele produzia” (RODRIGUES, 2005, p. 92). Nas palavras de Passos Guimarães, o poder extraeconômico é o que permitia que o feudalismo sobrevivesse, isto porque gerava um conjunto de relações coercitivas que obrigava o trabalhador a lavrar uma terra que não era dele.

Nesse sentido, Nelson Werneck Sodré – no contexto de sua militância dos anos 1950, no Clube Militar, e do seu ingresso no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) – contribuiu veementemente com o pensamento pecebista, e possui algumas conversões com Alberto Passos Guimarães, sobretudo, no que concerne à influência de características pré-capitalistas que agravariam a Questão Agrária no campo. Embora, outrora, tenha defendido que o Brasil vivia em uma espécie de “capitalismo colonial”, posteriormente reformulou seu posicionamento e teve em sua tese de “regressão feudal” grande importância analítica para o período. É importante ressaltar que Sodré, ao descrever as relações feudais no Brasil, não as coloca em pé de igualdade com as formas feudais europeias, ao contrário, em suas obras buscou as particularidades e nuanças pré-capitalistas da formação de nosso território.

As particularidades feudais apontadas por ele estão balizadas por três orientações, a priori:

[...] a do desenvolvimento desigual, relevante quando se focaliza a emergência do Brasil para a história, a ser levada em conta na discussão dos problemas históricos e a recomendar atenção cuidadosa na passagem do universal ao particular; a da "contemporaneidade do não-coetâneo" das formas sociais, dada a diversidade e extensão do país; e o aspecto da transplantação dos elementos que fundamentam a sociedade dos descobridores. (SANTOS, 1993, p. 1)

Sodré partiu da compreensão de que o modo de produção majoritariamente escravista, determinado pelas ligações mercantis voltadas para exportação e orientado por um processo de acumulação primitiva do capital, sofreu uma acentuada decadência econômica, que teve por consequência o definhamento de certos setores econômicos. Em detrimento dessa regressão, foram se solidificando relações de dependência próximas às de servidão. Quando se referiu ao feudalismo em suas obras, estava se referindo ao grande latifúndio com técnicas de produção extremamente atrasadas, ainda do século XIX, e o seu poder de dominação sobre a grande massa de trabalhadores rurais (SODRÉ, 1963).

Nas formulações sobre a Questão Agrária brasileira de Sodré, é importante salientar que a abolição da escravatura não resultou na absorção do trabalhador livre pelo mercado, isto é, os ex-escravos não se tornaram automaticamente trabalhadores assalariados. O avanço lento do modo de produção capitalista permitiu a coexistência do feudalismo e do capitalismo, fato que impossibilitou, em sua visão, o dito processo de “regressão feudal”. O combate e a superação do imperialismo e do mercado agroexportador feudal vieram pela afirmação da burguesia nacional com respectivo desenvolvimento da indústria nacional, que colocou o Brasil na trilha das exigências da ordem capitalista mundial. Com efeito, a condição de miséria e semisservidão que atingiu os camponeses deveria ser combatida pela reforma agrária, convergindo dessa maneira para as indicações teóricas de Passos Guimarães (BRESSER-PEREIRA, 1982), na erradicação dos grandes latifúndios pouco produtivos e, portanto, responsáveis pelo atraso industrial.

A superação do problema agrário e a eliminação dos restos feudais apareceriam no texto de Passos Guimarães, As três frentes da luta de classes no campo brasileiro (1960), evidenciadas com bastante clareza no papel dos protagonistas da reforma agrária, através de três frentes de atuações possíveis. A primeira consistiria na “frente dos assalariados e semiassalariados”, com a organização em associações de classe, despertando-os ideologicamente para a luta de classe; ademais, a constituição de uma “frente contra o latifúndio”, composta por uma grande massa de camponeses semifeudais e camponeses pequeno-burgueses e burgueses; e, por último, uma “frente de luta contra o imperialismo”, ainda mais ampla que as outras duas, que visava romper com o monopólio estrangeiro ou, noutras palavras, o imperialismo, que mantinha o poder segundo os interesses de grupos econômicos estrangeiros específicos. Nesse sentido, para o autor, existiriam dois caminhos possíveis para o desenvolvimento capitalista no campo brasileiro: o caminho reformista e o caminho revolucionário. Contudo, apenas uma destruição das formas pré-capitalistas (caminho revolucionário) de bases feudais inspiradas no antigo regime instituiria o desenvolvimento democrático apoiado no capitalismo de estado e na propriedade camponesa (GUIMARÃES, 2007).

Caio Prado Júnior (1966, p. 204), embora também pertencesse incialmente aos quadros do PCB, tinha uma visão contrária a de Passos Guimarães e de Werneck Sodré. Para o autor, a Questão Agrária brasileira estava posta nas condições sub-humanas vividas pelas relações de trabalho no meio rural. Com isso, a revolução estaria baseada em superar as contradições do capitalismo, que se materializava nas relações de trabalho. “Decorre daí o conflito básico nela presente – como aliás se verifica nos fatos – gira em torno da reivindicação, pelos trabalhadores empregados, de condições mais favoráveis de trabalho, como sejam melhor remuneração, segurança no emprego, tratamento adequado etc.”

Destarte, em Caio Prado Júnior, a reforma agrária teria um papel secundário, pois sua tese estava centrada na defesa da legislação social-trabalhista (DELGADO, 2005), haja vista que acreditava em uma crescente da força de trabalho assalariada.[2] O autor determina três características que impediriam a superação das contradições da sociedade e da economia brasileira: a grande propriedade latifundiária, a monocultura e o trabalho escravo, que são, via de regra, fenômenos que se complementam na história agrária do Brasil. Essas características projetavam uma apropriação da terra conflitante entre trabalhadores rurais e grandes proprietários de terra. A natureza dessa relação era definida, nas teses de Caio Prado Júnior, por uma forte assimetria de poder fundamentada na alta concentração de terra. Nos termos de Caio Prado Júnior:

Os grandes proprietários e fazendeiros, lavradores embora, são antes de tudo homens de negócio para quem a utilização da terra constitui um negócio como outro qualquer [...]. Do outro lado, para os trabalhadores rurais, para a massa camponesa de proprietários ou não, a terra e as atividades que nela se exercem constituem a única fonte de subsistência para eles acessível. (1981, p. 22)

Se, por um lado, tínhamos as teses de Passos Guimarães e Werneck Sodré de que o Brasil possuía resquícios feudais que impediam o pleno desenvolvimento nacional, por outro, Caio Prado Júnior não negava totalmente a influência do passado colonial, mas, para ele, o símbolo desse resquício estava na exploração do trabalhador assalariado no campo. Esse tipo de relação prevalecente, proeminente do período colonial, ao contrário do pensamento hegemônico dos pecebistas, para Caio Prado Júnior (1981, p. 22) tinha como protagonistas os proletários rurais. A revolução brasileira, nos escritos do autor, resolveria parte da questão na medida em que romperia a pobreza vivenciada pelos proletários rurais. “Se nos propormos analisar e corrigir a deplorável situação de miséria material e moral da população trabalhadora no campo brasileiro – e nisso consiste preliminarmente, sem dúvida alguma, a nossa Questão Agrária – é disso que nos devemos ocupar em primeiro e principal plano.”

Moisés Vinhas – outro autor pecebista –, na obra Problemas agrário-camponeses do Brasil (1968), fez parecer que Caio Prado Júnior era um autor isolado do quadro do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em uma apreciação direta, aponta diversas críticas aos postulados de Caio Prado Júnior, inclusive em sua leitura do leninismo. Para Moisés Vinhas, as contradições de Caio Prado Júnior estavam nos apontamentos de que o Brasil era um país dependente e subdesenvolvido, tal como aparece na obra A revolução brasileira, e de que não haveria a categoria de camponeses (pobres ou ricos), já que estes não seriam iguais aos camponeses clássicos europeus. Mas, em outras circunstâncias, Caio Prado Júnior afirmaria que o país é eminentemente capitalista. Moisés Vinhas indaga a partir dessa crítica qual seria a mudança ocorrida na estrutura social e econômica que deslocou o Brasil do mundo subdesenvolvido.

Denota-se um certo ecletismo nesta obra. Este ecletismo origina-se de um erro teórico básico: Caio Prado Júnior, neste livro, considera o Brasil um país capitalista, pois afirma que só há operários e burgueses no campo e na cidade, e, simultaneamente, diz ser um país dependente, atrasado ou subdesenvolvido. Daí as vacilações que surgem na apreciação dos fatos. Se é um país de­pendente, subdesenvolvido, a correlação de forças é uma; se é um país capitalista, a correlação de classes é outra; daí se originando, pois, as soluções diferentes em cada sociedade. (2005, p. 131)

Fora do quadro teórico dos intelectuais orgânicos do partido comunista, uma corrente teórica se destacou nestes estudos: a chamada “escola da Cepal”,[3] que teve, como um de seus principais expoentes, Celso Furtado. A fome e a produção agrícola eram temas centrais para Celso Furtado e, com efeito, elementos estruturantes da Questão Agrária no Brasil. Baseado no Plano Trienal 1963-1965, o autor afirma que haveria um caráter inelástico da oferta de alimentos, devido às pressões do crescimento da demanda urbana e industrial. A questão, para Celso Furtado, estava na industrialização em curso pós-revolução de 30 que era o processo central do desenvolvimento econômico do país.

O estímulo da produção agrícola, realizado por meio do crescimento extensivo da produção, trazia problemas graves para a formação nacional, gerando pobreza e miséria. Isto porque a base desse tipo de produção estava pautada em dois fatores de produção: a terra e a mão de obra. O primeiro fator de produção influenciava intensamente o segundo, à medida que a concentração fundiária ocasionava forte dependência da grande massa de trabalhadores rurais que não tinham alternativa a não ser vender sua força de trabalho em condições precárias – e, nesse ponto, as teses de Celso Furtado (1982, p. 119) iam de encontro às de Caio Prado Júnior. Dadas as técnicas rudimentares de produção, as empresas agrícolas tinham que explorar cada vez mais novas terras a fim de aumentar a produção dos bens agrícolas. Assim, “[...] em face dessa abundância de recursos, a extrema concentração da propriedade da terra permite à empresa agro-mercantil impor à população rural salários ínfimos; por outro lado, o baixo custo da mão de obra transforma-se em barreira à penetração do progresso técnico [...]”.

Resolver a Questão Agrária em Celso Furtado passava, indubitavelmente, pela reestruturação do setor rural. De outra maneira, incorria tanto em elevar o padrão de vida no campo e na cidade como fomentar o avanço tecnológico do processo produtivo rural. Nesse sentido, Celso Furtado se preocupou com a industrialização integrada das mais variadas regiões do país e, de forma especial, com a questão no Nordeste, que apontava para um atraso em relação à região Sudeste, obstáculo para o desenvolvimento nacional.

Ignácio Rangel, embora influenciado pela corrente de pensamento cepalina, se projetou em uma trajetória intelectual mais independente dos demais, todavia, formulou questões importantes sobre o problema agrário. Compartilhava das ideias de Celso Furtado ao ponderar que o Brasil precisava passar por uma reestruturação do setor agrícola, haja vista um projeto de desenvolvimento nacional em curso. Disso, decorria a necessidade de mudança no modo de vida dos pequenos produtores rurais, atentando-se para diversificação da produção, por meio da inovação tecnológica e econômica.

Outro ponto de inquietação de Rangel (2000, p. 172) estava na disposição e organização da mão de obra, mormente, fruto de uma superpopulação rural que tende a fluir para as cidades, agravando ainda mais a crise agrária. Porém o autor ressalta que a esta questão não se aplica uma explicação demográfica, ou seja, não havia superpovoamento absoluto. Na verdade, a explicação encontra lugar na formação de um excedente de mão de obra que o sistema econômico não tinha como absorver, afirma Ignácio Rangel. Apesar de não ver como solução primeira da crise a reforma agrária, propõe, tal como o pensamento hegemônico pecebista – principalmente Passos Guimarães e Werneck Sodré –, sua fundamentação em um tipo de resquício feudal. “A economia feudal, com sua notória estagnação tecnológica, tem no crescimento da população a sua forma dominante de crescimento, e é esse fato que define sua lei própria de população, com a tendência à expansão indefinida desta.”

Uma vertente mais conservadora da economia, que tinha como principal fundamentador o uspiano Delfim Netto, também protagonizou parte do debate sobre a Questão Agrária, contudo, por meio de um pensamento radicalmente contrário dos demais. Em suma, esta vertente polemizava as teses a favor da reforma agrária, principalmente, ao desconsiderar problemas em nossa estrutura fundiária e a crise instaurada nas relações de trabalho, no campo. Delfim Netto travou um debate contra a tese da rigidez da oferta agrícola defendida pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), propondo, ao contrário, um alto grau de funcionalidade da agricultura, no que se refere ao desenvolvimento do país, que estaria embasada pela: liberação de mão de obra para o setor industrial, não comprometendo a oferta de produtos agrícolas, expansão da exportação de produtos, emergência de mercados para produtos agrícolas e contribuição para capitalização da economia brasileira (DELGADO, 2001).

Por fim, a corrente progressiva da Igreja Católica que não se constituiu necessariamente em debates teóricos, mas importa assinalar, haja vista que Martins assumiria certa contribuição (e simpatia) com sua doutrina social. A Igreja assumiu, através da posição de alguns bispos progressistas, um papel importante na luta contra as injustiças e exclusão social no campo, mas, por outro lado, travou um embate com o PCB no que tange ao papel da mediação dos trabalhadores rurais. Desse modo, o tema ganharia uma visão teleológica, concebendo a terra como um bem essencial das condições de reprodução humana. “O foco da questão agrária nas Cartas Pastorais e manifestações do episcopado nos anos 50/60 foi a tentativa de aplicação da Doutrina Social da Igreja em contraste a uma realidade agrária de grave injustiça e exclusão social, então denunciadas pelo episcopado” (DELGADO, 2001, p. 160).

 

Formulações de José de Souza Martins

De certo, em Martins, a Questão Agrária é também um conceito polissêmico e dele derivam diversas outras questões ‘menores’ (reforma agrária, movimentos sociais, trabalho escravo etc.), as quais ele desenvolveu durante sua carreira como pesquisador. Outra hipótese é que Martins recorrentemente se baseia na literatura política clássica para definir:

[...] a Questão Agrária é, em termos clássicos, o bloqueio que a propriedade da terra representa ao desenvolvimento do capital, à reprodução ampliada do capital. Esse bloqueio pode se manifestar de vários modos. Ele pode se manifestar com a redução da taxa média de lucro, motivada pela importância da renda quantitativa que a renda fundiária possa ter na distribuição da mais-valia e no parasitismo de uma classe de rentista. (2000, p. 99)

No entanto, Martins faz ressalvas para o contexto brasileiro:

Não é manifestamente o caso brasileiro, ou não o é especialmente, embora também o seja de um modo indireto. O tempo da Questão Agrária é o tempo longo dos bloqueios, dificuldades e possibilidades a que o Estado faça uma revisão agrária de alcance histórico e estrutural, mais contida ou mais ousada. (2000, p. 99-100)

A contradição estrutural que o capitalismo produz origina, de um lado, a acumulação de riqueza e, de outro, a pobreza e a miséria. A Questão Agrária estaria, desse modo, vinculada à sujeição da renda da terra ao capital e à figura do camponês à margem desse processo. A expropriação do camponês, a compra e venda da terra e o assalariamento do trabalhador rural em condições precárias (quando não, escravas) são faces da mesma moeda, isto é, o mecanismo básico de expansão do capitalismo no meio rural. Em suma, seria a passagem de uma economia de excedentes para a apropriação e controle das terras pelo capital.

Outro aspecto relevante e presente em boa parte das formulações – e em Martins não é diferente – é que existe uma convergência de que o camponês ou agricultor familiar são sujeitos centrais, quando se pensa a Questão Agrária. Centrais no sentido de serem os mais impactados, pois, na realidade, este protagonismo geralmente fica por conta das consequências (sejam elas boas ou ruins) que o capitalismo provoca sobre o mundo rural. Nos projetos de intervenção que tentavam resolver a Questão Agrária a partir de 1960, Martins se colocou ao lado da Igreja, pois para ele era o único projeto que tinha condições de dar voz aos excluídos do campo, ou seja, aos verdadeiros prejudicados pelos problemas da terra. Por isso, há debates travados por Martins contra a esquerda pecebista e seu projeto de revolução agrária.

O enfoque dado ao camponês, o entendimento particular da expansão do capitalismo e suas consequências, sobretudo, em seus trabalhos direcionados às regiões de fronteira, fazem de Martins um dos autores mais revisitados sobre o tema da Questão Agrária. Na fronteira, ele procurou desvendá-la através da peonagem, ou seja, um tipo de apropriação do trabalho humano, análogo ao escravo, que se dava pela acumulação de dívidas nas fazendas (MARTINS, 1994, 1996, 1997). A especificidade de seus estudos está, além do mais, pautada no desvendamento da contraditória expansão do capitalismo, materializada pela constante recriação de formas não capitalistas de organização do campo. Na obra Capitalismo e tradicionalismo (1975), Martins expõe aspectos elementares sobre a expansão capitalista no mundo rural, sobretudo em sua tese de que, ao invés do que se convencionava, relações sociais “arcaicas” não impediam o desenvolvimento pleno do capitalismo, pelo contrário, eram parte inerente de sua ampliação.

Contrariando algumas concepções clássicas sobre a Questão Agrária:

[...] não é preciso que as forças produtivas se desenvolvam em cada estabelecimento agrícola ou industrial em cada sítio ou oficina, a ponto de impor a necessidade das relações caracteristicamente capitalistas de produção, de impor o trabalho assalariado, para que o capital estenda suas contradições e sua violência aos vários ramos da produção no campo e na cidade. (1981, p. 14)

Destarte, a classe camponesa para Martins não tem nenhuma vinculação com as teses que propõem um tipo de “resquício feudal” (SODRÉ, 1963; GUIMARÃES, 1968), tal como encontradas em Alberto Passos Guimarães e Werneck Sodré, mas também não vão de encontro das formulações de Caio Prado Júnior de que estas tendem a ser condicionadas ao assalariamento imposto pela incidência do capitalismo no campo. Segundo Martins, o que dificulta entender a relação entre expansão do capitalismo e o modo de reprodução socioeconômica da classe camponesa está na imprecisão da definição e caracterização do nosso campesinato. O principal aspecto compreende o fato de que no Brasil não foi concedido ao camponês o direito a terra, restando a posse precária, a única alternativa possível de sobrevivência. O camponês se desenvolveu à margem do sistema escravista, latifundiário e agroexportador (ALMEIDA; PAULINO, 2000).

Martins não coadunava com a ideia de “quatro séculos de latifúndio”, e via na política de sesmarias vantagens em relação ao regime de propriedade da terra que a sucedeu. Isso porque, em sua concepção, o Regime de Sesmarias, ao manter o poder das terras nas mãos do Estado, possibilitava o controle e a reorganização das áreas improdutivas, reavendo as grandes concentrações de terras. Passos Guimarães via, por outro lado, a política de sesmarias como originária da crise agrária brasileira. Nas suas palavras: “Esclareça-se que as menores sesmarias eram, contudo, domínios imensos comparados com a capacidade de utilização de cada colonizador ou de cada família e longe se acham daquilo que razoavelmente estava ao alcance de um homem de medianas posses cultivar” (GUIMARÃES, 1968, p. 69). Para Passos Guimarães, nunca foi intenção da Corte Portuguesa praticar a democratização das terras com a política de sesmarias, ao contrário, tentava concentrar poder nas fazendas dos senhores de engenho.

A explicação de Martins estava no fato de que com a Proclamação da Independência, o Estado Novo passou algum tempo sem qualquer tipo de regulamentação efetiva da propriedade da terra e, posteriormente, com a promulgação da Lei de Terras de 1850, a Questão Agrária se agravou. Por um lado, a Lei de Terras reconhecia o direito de propriedade para aquelas já ocupadas e, por outro, destinava o controle pelo Império às não ocupadas, que só poderiam ser adquiridas, a partir de então, através da compra. Contudo, na visão do autor, a Lei não vinha para proteger os grandes fazendeiros, já que estes pouco dependiam das instituições públicas, mas objetivava limitar a formação de novas propriedades pela grande massa de trabalhadores livres que se formava com a abolição da escravatura, a posteriori.

Assim, a Questão Agrária, para Martins, passou a ser entendida por meio de um fenômeno paradoxal, tendo em vista que a transição do trabalho escravo para o trabalho livre não resultou na predominância do trabalho assalariado. O trabalho assalariado não se difundiu facilmente pelo Brasil; havia, na verdade, um modelo de sociedade transitória, provocando um lapso temporal de passagem com quase cem anos, afirma Martins. Desse modo, a expansão do trabalho assalariado nas cidades não ocorreu na mesma velocidade no campo, incorrendo em diferentes modalidades de servidão que marcam esse período de transição. Essa transição colocava, portanto: à medida que o trabalho era escravo, a terra poderia ser livre, porém, se o trabalho fosse livre, a terra teria que ser escrava, mantendo, com isso, o poderio dos grandes fazendeiros e latifundiários. Daí se origina a expressão “cativeiro da terra” que é tema de estudos de Martins, publicados em 1979. Neste ponto, a terra se torna verdadeiramente uma mercadoria.

 

Debates polêmicos acerca da Questão Agrária

O último meio século desmentiu diversas antevisões: da exacerbação da Questão Agrária, simbolizada nas disputas pela terra, às supostas tendências da concentração da propriedade fundiária e, mais ainda, as teses sobre “campesinatos”. Desaparecem assim alguns temas do passado, entre os quais a reforma agrária. (BUAINAIN et al., 2013, p. 115)

A título de complementação sobre o debate temos, numa outra ponta, algumas discussões mais atuais e polarizadas feitas pelo sociólogo Zander Navarro e outros pesquisadores (BUAINAIN et al., 2013). Navarro ainda não possui o peso necessário para influenciar a sociologia rural tal como Martins e outros publicistas clássicos, todavia, tem levantado um debate acalorado sobre uma possível superação da Questão Agrária no Brasil. Suas publicações um tanto ou quanto “polemizadoras” revivem alguns temas que circundam o problema agrário, tal como a necessidade ou não de reforma agrária.

Zander Navarro tem organizado algumas publicações com o objetivo de demonstrar um conjunto de evidências sobre as mudanças estruturais ocorridas no mundo rural há pelo menos 50 anos, que implicariam um novo padrão agrário e agrícola no país. Esse novo padrão, em sua visão, está pautado no intenso aumento da produção agrícola tecnificada, por um lado, e a escassez de mão de obra, por outro, seja pela migração e atração pelas cidades, seja pela falta de mecanização do processo produtivo que “encurrala” os médios e pequenos produtores. Outrossim, um processo de urbanização do campo brasileiro tende a provocar um esvaziamento paulatino do meio rural.

Em seu artigo intitulado “Por que não houve (e nunca haverá) reforma agrária no Brasil” (NAVARRO, 2014, p. 702), o autor traz uma problemática bastante controversa sobre a origem e apropriação da conceituação de Questão Agrária. Para ele, é preciso ter clareza do uso do termo vinculado de forma errada e distante de sua gênese. Um exemplo seriam as invasões ocorridas nas propriedades rurais de grandes empresários que, apesar de relativamente analisadas como uma questão passível de ser resolvida, em verdade, não teriam nenhuma ligação, por uma simples definição conceitual. Em epítome, “[...] o debate sobre a Questão Agrária, em sentido mais amplo e conceitual, é prerrogativa do pensamento socialista e suas diversas tradições, pois pretende contribuir para a crítica mais geral ao capitalismo”.

Para Navarro, a Questão Agrária de origem marxista foi vista por muitos estudiosos como a teoria geral de explicação da sociedade, mas esta, ressalta o autor, tem lacunas em sua própria construção epistêmica. Somente com a crítica ao próprio marxismo, a partir de 1970, é que ela pode ser revista e suas bases argumentativas explicadas a contento. No Brasil, entretanto, houve uma interpretação majoritariamente baseada nos preceitos marxistas-leninistas, ignorando uma releitura por parte da literatura internacional que traria uma revolução teórica sobre os processos de expansão capitalista no campo, afirma Navarro.

Dessa forma, a resolução prática relativa à Questão Agrária no Brasil seria, para muitos autores, a reforma agrária, compreendida como uma mudança radical, estrutural e fundiária do país. Nesse sentido, Navarro elucida que nunca houve reforma agrária no país, fato que é um consenso entre os estudiosos. Conforme o autor, o conceito de reforma agrária, em sua forma técnica, consiste num ato irrecorrível de transferência de diretos de uma determinada propriedade privada para desapropriação, portanto, isso só seria possível através da atuação do Estado. No Brasil, o documento que daria legalidade a uma suposta reforma agrária seria o Estatuto da Terra de 1964, criado com o Golpe Militar. O Estatuto não definiu a transferência irrecorrível da terra, mas, numa via contrária, da compra de terras através de títulos da dívida agrária. Por essa lógica, no Brasil ocorreu apenas a execução de programas governamentais pontuais para aquisição de terra e redistribuição a famílias pobres interessadas nos loteamentos, o que não configuraria uma reforma agrária em sua essência.

Todavia, o ponto crítico da concepção de Navarro está na negação de uma Questão Agrária pós século XXI:

As regiões rurais do Brasil, contudo, mostram que praticamente não existe mais uma Questão Agrária no Brasil, mesmo que os padrões de desigualdade social permaneçam praticamente intocadas, ilustrados pela distribuição de propriedade fundiária (um dos índices de Gini[4] mais altos do mundo). Se considerado o fator apenas terra, teoricamente uma situação geradora de conflitos sociais permaneceria como a marca principal das regiões rurais, mas esta não é mais a contradição que tenha a mesma dimensão do passado e gradualmente nos acostumamos com este padrão fundiário. (2014, p. 711-712)

Navarro apresenta alguns fatores que seriam evidências da marginalização ou de uma mutação radical da Questão Agrária no Brasil:

a.    Urbanização: os dados mais recentes apontam para 15,6% de brasileiros vivendo em regiões rurais. Para Navarro, a tendência é que este número diminua muito.

b.    O atual Programa de Reforma Agrária assentou mais de um milhão de famílias sem mudar, contudo, o índice de concentração de Gini.

c.    Os preços dos produtos exportados cresceram absurdamente e a demanda externa por alimentos aumentará ainda mais.

d.    Nenhum país possui potencialidade de crescimento como o Brasil. O autor sugere ainda a expansão de fronteiras agrícolas das regiões não ocupadas produtivamente.

e.    Aumento da demanda por produção de biocombustível no mundo.

f.     Crescimento de uma sociabilidade capitalista no campo, bem como a ampliação e o crescimento da complexidade das cadeias produtivas, movendo, com efeito, a matriz de eventuais conflitos para os centros urbanos.

Martins – nesta mesma obra, na qual Navarro propõe a supressão da Questão Agrária, pós século XXI – tem uma preocupação atemporal em relação à leitura que a sociologia rural faz sobre os processos no campo. No artigo intitulado “A modernidade do ‘passado’ no meio rural” (2014), Martins trava um diálogo sobre a compreensão dos problemas e dos êxitos da pequena propriedade rural, a partir de uma chave analítica que tem como principal pressuposto a modernização agrícola no campo. Se, por um lado, Navarro (BUAINAIN et al., 2013) propõe a tese “A história não terminou, mas o passado vai se apagando” – dentre sete teses[5] possíveis acerca das novas dinâmicas no mundo rural, que marcariam a entrada em um novo processo histórico –, Martins, por outro lado, propõe cuidado analítico e metodológico ao evidenciar certas circunstâncias a partir de um modelo linear de visão do mundo. Em vista disso, contornar a realidade social do campo, ao custo da retórica de que existe uma temporalidade histórica subjugada pelo tempo do grande capital e pela reprodução ampliada do capital, incide em uma imprecisão gnosiológica. Seria sobrepor juízo de valor ao juízo da realidade, contradizendo os valores fundantes da ciência.

Diferentemente de Navarro, Martins não coloca a inovação tecnológica como algo imperativo ao campo. Pode até ser do ponto de vista da produtividade e expansão agrícola, que em números reais são protagonizadas pelo agronegócio brasileiro. Mas, em verdade, o fenômeno é mais complexo. O argumento de Martins é que a inovação tecnológica não pode ser justificada apenas pelo impacto que causa sobre a produção agrícola, haja vista que este impacto pode ser negativo, a depender de quem olha. “A desorganização social oriunda da modernização econômica pode ser perfeitamente compreendida como fator de anomia e crise social, e de fato assim é. O que é econômico e momentaneamente lucrativo não é, necessariamente, o que melhor expressa os valores sociais relativos à constituição do humano [...]” (MARTINS, 2014, p. 24).

A mesma tese de Navarro sobre o fato de que “a modernização tecnológica impõe um novo padrão agrícola e agrário sobre o mundo rural” deve ser compreendida por outra lógica: a do agricultor familiar, afirma Martins. Segundo Martins, se, por um lado, há uma intensificação dos processos produtivos, levando a um progresso (relativo) econômico, por outro, o que se vê é um retrocesso social vivido no país há mais de meio século. “A ditadura ideológica do econômico devasta, não só desorganizando as sociedades tradicionais. Devasta, também, na destruição do capital social representado por um saber centenário, de relativamente pouca eficiência econômica e de grande eficiência social” (MARTINS, 2014, p. 25). Desse modo, o que de imediato pode ser considerado altamente lucrativo, ao longo do tempo pode trazer grande prejuízo socioeconômico, mas isso, certamente, não entra no cálculo da produtividade moderna advinda do capitalismo.

Martins também desenvolve uma reflexão sobre a outra justificativa para a erradicação da Questão Agrária brasileira: a urbanização do mundo rural. O autor reitera em vários exemplos a capacidade das comunidades tradicionais de se reinventarem perante a expansão do capitalismo no campo. Estas têm o poder de ser conservadoras nos costumes e tradicionais em sua organização social, mas, à medida do possível, inovadoras na economia, criativas e empreendedoras para superar as adversidades impostas (MARTINS, 2000). “Num mundo rural cada vez menos rural, sem ser necessariamente cada vez mais urbano, o que a valorização ideológica do moderno e urbano define como atraso e como passado precisa ser revisto à luz do que é próprio das ciências sociais.” Em uma crítica mais aguda à categorização de uma possível urbanização do mundo rural, Martins salienta que “[...] as categorias servem para construir a compreensão científica, não para impedi-la” (MARTINS, 2014, p. 28).

A persistência de certos costumes nas pequenas propriedades rurais não configura necessariamente atraso, tal como entendido como a contradição do moderno. Indica que dentro de uma dialética da transformação social há uma retardação de certas relações sociais. Martins dá o exemplo também da grande empresa rural que, apesar de ter se modernizado acentuadamente no último meio século – concordando com Navarro –, do ponto de vista da política, se coloca como extremamente conservadora e arcaica. Isso é fruto da dialética do processo social que incide sobre as transformações. Por esses motivos:

Os agentes econômicos da agricultura familiar, ou pequena agricultura como já foi chamada, diferem do grande empresário rural, não pelo tamanho, mas pelos valores sociais e pela lógica social, econômica e política que os norteia, que é outra. Eles podem ver e valorizar a terra que lhes está cotidianamente perto, diversamente do grande empresário que se relaciona com a terra pela mediação da renda fundiária, de uma abstração. O pequeno a vê como mediação e condição de um modo de vida, pode ver nela a poesia que nela há. Vê também na perspectiva do valor de uso. O grande a vê como instrumento de uma relação racional de interesse, uma relação seca e puramente instrumental. Vê na perspectiva do valor de troca que pode produzir. (2014, p. 30)

Martins concorda com Navarro ao encerrar o tema da reforma agrária (sobretudo, do ponto de vista radical e profundo) como um projeto viável para equacionar as desigualdades sociais que assolam a historiografia agrária brasileira, mas não coloca a Questão Agrária como progenitora ou – na pior das interpretações – como sinônima da primeira, já que esta transcende os limites conceituais da reforma agrária socialista tal como pensada em sua origem. Também, por mais contraditório que pareça, o “passado” reside no presente, testando a todo momento as teses que buscam na cronologia linear da expansão do capitalismo no campo como explicação única.

 

Considerações finais

A Questão Agrária em Martins é fundamentalmente marcada pela herança dos trabalhos de Florestan Fernandes, os quais, em termos gerais, propõem uma tese de que só conseguiremos entender o capitalismo brasileiro se, consubstancialmente, entendermos as raízes de sua dependência histórica da concentração fundiária e o conflito social que desta é decorrente. Nestes termos, a história do Brasil é marcada por esta dependência.

Em um de seus trabalhos mais recentes – provavelmente o último em que tratou sobre o tema, mesmo não sendo o central, Martins coloca bem precisamente: “Em termos clássicos, a Questão Agrária existe quando a renda fundiária compromete a racionalidade do capital e inviabiliza a expansão do capitalismo no campo. No caso brasileiro, o que é concebido como Questão Agrária é a questão social gerada pela concentração fundiária” (MARTINS, 2016, p. 737). Por isso mesmo, ao olharmos para a conjuntura das obras de Martins, vemos pequenas peças que formam um grande quebra-cabeça sobre os problemas sociais que são decorrentes da concentração fundiária e, mais especificamente, sobre a expansão capitalista no campo.

Nesse trajeto de montar o quebra-cabeça da situação agrária brasileira, Martins foi bastante fidedigno aos métodos científicos que, aliás, são marcas registradas dos seus trabalhos. Apontamos, porém, três aspectos que são dignos de uma revisão específica em trabalhos futuros: i) o método dialético de Marx, do qual Martins se apropria num diálogo constante com as obras de Henri Lefebvre. Trata-se de uma dialética viva, contextualizada e sem preconcepções; ii) os seus trabalhos nas regiões de fronteira, que são verdadeiras intersecções etnográficas-sociológicas, orientadas por uma concepção metodológica do lugar de fala dos sujeitos; iii) e o que ele chamou de “recurso metodológico do corte analítico no processo social mais amplo e mais demorado”, que consiste na busca por processos sociais pendentes, analisando-os por meio dos protagonistas mais visíveis, tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), os governos etc. A sofisticação e inovação metodológica, aliadas à sua criatividade metodológica surpreendem.

Importa ressaltar que a Reforma Agrária radical nunca foi a solução imediata para os problemas do campo, na visão de Martins. Para ele, a conquista da “terra de trabalho”, que foi também tema da Igreja Católica progressista nos idos da década de 1980, era mais promissora do que a intervenção marxista proposta pelo Partido Comunista. Posteriormente, Martins rompe com as pressuposições da Igreja Católica e vê na política de retomada do território brasileiro do governo de Fernando Henrique Cardoso uma possibilidade real de resolver parte da Questão Agrária. No início dos anos 2000, com a eleição do Partido dos Trabalhadores (PT), Martins adverte que o maior erro dos movimentos sociais e da Igreja foi ter feito de Lula o “Messias” que iria dar cabo da “promessa”. O PT da base foi substituído pelo lulismo, e este debate ficou de lado. Por fim, não procuramos neste artigo a exegese da produção intelectual de Martins, mas lançar pistas sobre o diálogo que travou com outros teóricos, acerca do tema da Questão Agrária no Brasil.

 

 

 

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Como citar

FONSECA, Bruno Costa da. A intelligentsia de José de Souza Martins e outras questões agrárias. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 142-165, fev. 2021. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v29n1-9.

 

 

 

 

Bruno Costa da Fonseca

Professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Conflitos Ambientais, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal de Viçosa (PACAB/UFV) e do grupo de pesquisa Pensamento social e cultura política (UFRRJ). Doutorado pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).
brunodogma@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-8379-5050

http://lattes.cnpq.br/0149445495540019

 

 

 

 

 

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[1] Professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Conflitos Ambientais, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal de Viçosa (PACAB/UFV) e do grupo de pesquisa Pensamento social e cultura política (UFRRJ). Doutorado pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: brunodogma@gmail.com.

[2] Passos Guimarães faz uma alusão bem direta a este ponto em um debate com as teses de Caio Prado Júnior: “Não participo da convicção do companheiro Caio Prado Júnior, de que os assalariados estão em absoluta superioridade no campo e de que as formas assalariadas já estão predominando de modo incontestável em todos os setores da produção agrícola” (2007, p. 145).

[3] A escola de pensamento cepalina, oriunda da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe se constitui um conjunto de estudos que tinham como premissa orientadora a relação entre desenvolvimento econômico e industrialização no país.

[4] O Índice de Gini consiste em um modelo matemático para mensurar o grau de concentração de renda em uma determinada sociedade.

[5] As sete teses propostas por Zander Navarro estabelecem, em sua visão, os fenômenos empíricos que asseguram sua afirmação sobre o findar da Questão Agrária. São elas: I – uma nova fase do desenvolvimento agrário; II – inovações na agricultura – o maior de todos os desafios; III – o desenvolvimento agrário bifronte; IV – a história não terminou, mas o passado vai se apagando; V – da modernização às novas tarefas; VI – a ativação de uma relação perversa; VII – rumo à via argentina de desenvolvimento (BUAINAIN et al., 2013).