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v. 29, n. 1, fevereiro a maio de 2021, p. 94-112
Recebido em 9 de novembro de 2020. Aceito em 21 de dezembro de 2020.



Juventude rural no Brasil: referências para debate

Rural youth in Brazil: references for debate

 

DOI: 10.36920/esa-v29n1-7

 

orcid_id.png  Leonardo Rauta Martins[1]

 

Resumo: Neste artigo, buscamos recompor a trajetória recente dos estudos sobre juventude rural no Brasil a partir da análise de trabalhos que são referência nesse campo de pesquisas. Objetivamos discutir em que medida dois postulados fundantes desse debate ainda são atuais: o primeiro, a oposição entre “projeto individual” do jovem e “projeto familiar”; o segundo, a dicotomia campo e cidade, manifesta no binômio “ficar ou sair” do campo. Esse exercício permite, de um lado, compreender a gênese dos estudos sobre juventude rural no Brasil e as transformações vivenciadas ao longo das últimas três décadas nesse campo de estudos, do outro, apontar novos caminhos para o estudo dessa parcela da juventude brasileira.

Palavras-chave: juventude rural; permanência no campo; políticas públicas de desenvolvimento rural.

 

Abstract: (Rural youth in Brazil: references for debate). In this article, we seek to remake the recent trajectory of studies on rural youth in Brazil from the analysis of works that are a reference in this field of research. We aim to discuss to what extent two founding postulates of this debate are still current: the first one, the opposition between the youth’s “individual project” and “family project”; the second, the countryside and city dichotomy, manifested in the binomial “stay or leave”. This exercise allows, on the one hand, to understand the genesis of studies on rural youth in Brazil and the transformations experienced over the last three decades in this field of research; on the other hand, it allows us to point out new paths for the study of this portion of Brazilian youth.

Keywords: rural youth; rural permanency; public policies for rural development.

 

 

 

 

 

Introdução

No Brasil, de acordo com o último censo populacional, existem 7,8 milhões de jovens entre 15 e 29 anos vivendo em áreas rurais (IBGE, 2010). Trata-se de um público bastante heterogêneo, ainda pouco analisado nas pesquisas acadêmicas. 

A gênese dos estudos de juventude rural no Brasil remonta à segunda metade da década de 1990. Durante muito tempo, estas pesquisas buscaram compreender os determinantes da saída dos jovens do campo e a repercussão desse fenômeno no processo de sucessão rural. Na segunda metade dos anos 2000, no contexto de implementação de políticas de desenvolvimento rural, os estudos de juventude rural passaram a se dedicar ao entendimento das causas da permanência dos jovens no campo. Essa mudança de enfoque decorre de transformações econômicas, sociais e políticas vivenciadas no rural brasileiro nas últimas décadas e, correlato, da consolidação da juventude rural como ator político de destaque no interior de importantes movimentos sociais rurais.

Ao recuperar as principais referências do debate contemporâneo sobre juventudes rurais, encontramos dois postulados com frequência referenciados: o primeiro, a oposição entre “projeto individual” do jovem e “projeto familiar”; o segundo, a dicotomia campo e cidade, manifesta no binômio “ficar ou sair” do campo. Nosso objetivo com este texto é discutir a atualidade desses pressupostos à luz da bibliografia de referência e de experiências próprias de pesquisa sobre o tema.

Consideramos juventude rural uma categoria genérica utilizada para se referir a um conjunto heterogêneo de jovens não urbanos[2] e que se manifesta de forma variada no território nacional. Essa categoria vincula-se diretamente a figurações socioeconômicas, identitárias, regionais e à participação política de jovens rurais em instâncias de lutas sociais pelas quais ganham relevância e visibilidade. Por isso, o mais adequado é tratar de juventudes rurais, no plural.

Van de Velde (2015), ao pensar de forma ampliada o estudo da juventude, elenca as três grandes abordagens nas quais podem ser agrupadas as pesquisas sobre este tema: prisma das idades, prisma das trajetórias e prisma das gerações. Essas perspectivas expressam uma forma particular de compreender o desenvolvimento da vida e nos fornecem pistas sobre o caminho percorrido por pesquisadores do tema juventude (rural) no Brasil.

Na primeira abordagem, de caráter macrossociológico, as idades estruturam não somente as trajetórias individuais como também a própria sociedade, dado que “ela faz referência às três idades da vida, articuladas em torno da centralidade da vida profissional: a juventude, a idade adulta e a velhice” (VAN DE VELDE, 2015, p. 11. Tradução nossa).

Esse tipo de enfoque aparece com frequência nos estudos sobre juventude no Brasil, sobretudo aqueles conexos ao tema da formulação de políticas públicas. Sob essa perspectiva, estão bem demarcadas a juventude, a vida adulta e a velhice. A categoria juventude aparece como fase anterior à vida adulta. Essa fase da vida é, em geral, precedida de alguma espécie de rito de passagem: o fim dos estudos, o casamento, a chegada de filhos ou, ainda, o acesso ao mercado de trabalho.

Para boa parte dos jovens urbanos, os marcadores de ingresso na vida adulta estão associados ao término dos estudos e à entrada no mundo do trabalho. Já para os jovens rurais, o casamento se apresenta, por diversas razões, como o principal marcador dessa passagem. Contrário aos jovens urbanos, geralmente mais escolarizados, a inserção no mercado de trabalho dos jovens rurais ocorre, a rigor, ainda na infância. Logo, tal inserção é desprovida do seu caráter de “rito de passagem” – ao menos não no sentido atribuído em relação aos jovens urbanos. Crianças e jovens[3] que trabalham na terra não são considerados adultos só porque trabalham, não possuem independência plena, seus esforços se somam aos dos pais/responsáveis em torno da sobrevivência da unidade produtiva familiar. O que poderia se aproximar de uma inserção independente via trabalho seria a autorização familiar dada ao jovem para cultivar uma área para si dentro da propriedade familiar – autorização, em geral, só fornecida aos jovens homens quando estes necessitam acumular recursos financeiros para um futuro matrimônio (MOURA, 1978; SCOTT, 2001). Não é incomum que pessoas consideradas jovens, outrora atuantes em grupos desta faixa etária nas comunidades rurais, se afastem dessas atividades logo após o casamento por não se perceberem mais assim (BATTESTIN, 2009; MARTINS, 2019).

A segunda abordagem tratada por Van de Velde (2015) é o prisma das trajetórias. Nela, consolidada nos anos de 1990, a noção de “idades” cede espaço a de “biografias”, e a abordagem antes centrada em “ciclo” passa a focalizar as “trajetórias”. O pressuposto é relativamente simples : “(...) é analisando as trajetórias no seu desenvolvimento singular – mais do que nos seus esquemas coletivos – que a sociologia poderá explicar melhor as experiências da vida contemporânea (VAN DE VELDE, 2015, p. 20. Tradução nossa). A questão de fundo são os limites desse processo de individualização, sendo esse regime biográfico fortemente estimulado por instituições como as escolas e mesmo as políticas públicas.

A terceira e última abordagem é o prisma das gerações, que permite “(...) analisar as vidas individuais em uma perspectiva sócio-histórica mais ampliada e melhor explicar a evolução das nossas sociedades multigeracionais” (VAN DE VELDE, 2015, p. 30. Tradução nossa).

Essas três abordagens estão presentes em diversas pesquisas produzidas no Brasil sobre juventude, notadamente, juventude rural. As questões trazidas pela reflexão de Van de Velde (2015) cobrem uma dimensão das pesquisas sobre juventude rural, àquela vinculada à “juventude”, mas ainda deixam outra questão a descoberto, o “rural”. Isso se dá porque a categoria juventude rural é composta de duas palavras cuja definição envolve controvérsias no campo científico e no campo político. O que é juventude e o que é rural?

Esses questionamentos, de certa forma, percorrem os trabalhos analisados neste artigo. Eles devem ser lidos sob o signo das transformações pelas quais passou o país nas últimas décadas, em especial, aquelas que tiveram lugar nas áreas rurais. São mudanças em larga escala que reconfiguraram a estrutura agrária e produtiva e, por extensão, produziram novas relações sociais (MARTINS, 2019). Nos marcos de uma modernização conservadora, tais relações mantiveram-se assentadas na concentração da terra e na subalternização dos trabalhadores.

Se, de um lado, as últimas décadas foram marcadas pela reestruturação do patronato rural sob a égide da categoria agronegócio (LERRER, 2020), do outro, o processo de redemocratização abriu espaço para o surgimento de diferentes atores sociais organizados em torno da categoria agricultura familiar (MEDEIROS, 2010). Observa-se, a partir dos anos 1990, o surgimento de um novo ator político: a agricultura familiar. Uma categoria genérica que passa a agrupar um conjunto variado de sujeitos sociais (pequenos agricultores, seringueiros, indígenas, quilombolas, comunidades de fundo de pasto, pescadores artesanais etc.). A pressão de importantes movimentos sociais/sindicais rurais, estruturados ao redor dessa categoria política, produziu respostas do Estado às demandas históricas desses atores (terra, trabalho, crédito, previdência social, educação, saúde etc.).

A sistematização dessa nova categoria política – a agricultura familiar –, inaugurada nos anos de 1990, se aprofunda nos anos 2000, que constituem um marco da implementação de políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil, em especial, daquelas voltadas à agricultura familiar. Dentro de uma dinâmica de conciliação de classes, governos petistas, provocados por movimentos sociais rurais, conseguiram garantir algumas políticas públicas que elevaram sobremaneira a qualidade de vida no campo. Entre as políticas mais relevantes destacam-se a ampliação do Pronaf, o incremento em programas de reforma agrária, a expansão de programas de transferência de renda (Previdência e Bolsa Família), políticas de garantia de preço e de perdas nas lavouras, habitação rural, luz elétrica, educação do campo, entre tantas outras iniciativas que tornaram o país uma referência mundial no assunto (VALADARES et al., 2016). Esse é o pano de fundo dos estudos de juventude rural no Brasil e das alterações processadas em temas e enfoques de pesquisa que trataremos a seguir.

Para efeitos de organização do texto, ele foi dividido em duas partes, mais a introdução e as considerações finais. Na primeira parte, recuperamos autores fundantes desse debate no Brasil, destacando a proeminência da dinâmica do êxodo rural nessas produções. Na segunda parte, destacamos alterações conjunturais que possibilitaram o aumento da permanência dos jovens no campo, refletida na ampliação de estudos que tratam a questão da juventude rural desde essa perspectiva.

 

Debate recente sobre juventudes rurais no Brasil: estudos focados na saída dos jovens do campo

Weisheimer (2005), ao mapear os estudos sobre juventude rural da década de 1990 e início dos anos 2000, apontou a existência de apenas sete publicações, sendo três dissertações de mestrado, três artigos e um livro. De 2000 a 2004, verificou-se um aumento nesta produção: 43 publicações, dentre elas 15 dissertações de mestrado, 24 artigos, dois livros e duas teses de doutorado. Ou seja, os quatro anos da década de 2000 concentram um volume de produção bastante superior a toda década de 1990, o que sinaliza a consolidação deste campo de estudos.

Os anos de 1990 foram marcados por um ideário neoliberal, materializado na ausência do Estado em termos de políticas de suporte à agricultura familiar, com efeitos nocivos sobre as populações rurais, sobretudo os pequenos agricultores (dificuldade de produzir e comercializar a produção, rebaixamento dos preços, dependência de pacotes tecnológicos, ausência de uma política de crédito efetiva e endividamento das famílias, em muitos casos, levando à perda de patrimônio).

Havia uma percepção, por parte de agricultores e, igualmente, por setores da academia, de que se atravessava uma crise na agricultura. Em paralelo, verificava-se um crescimento do exercício de atividades rurais não agrícolas no campo, o que reforçava a ideia de crise, tornando ainda mais heterogêneas as situações vividas pelos agricultores de base familiar.

Nesse cenário, Carneiro (1998) salienta a dificuldade de delimitar com rigor a juventude, ultrapassando os limites da categoria demográfica, ou seja, de compreender este período da vida para além de aspectos normativos, biológicos ou jurídicos. Carneiro critica uma espécie de “limbo”, formado em torno da categoria juventude, manifesto na ausência de um qualificativo específico para os jovens que, em muitos casos, são rotulados como “estudantes”, “filhos de agricultores” etc. Para essa autora, isso faz com que um contingente significativo da população fique “como que na espera da maioridade para se tornar visível e qualificado como objeto de estudo” (CARNEIRO, 1998, p. 1). A crítica é igualmente direcionada a estudos que tomam a experiência juvenil apenas sob a ótica do trabalho. Interessa, em seu estudo, perceber como a categoria juventude rural “é afetada pelas mudanças e crises recentes do mundo rural e como essa realidade é reelaborada na formulação dos projetos individuais e familiares em contextos sociais e econômicos distintos” (CARNEIRO, 1998, p. 1).

Abramovay et al. (1998) tangenciam uma questão similar àquela tratada por Carneiro (1998), qual seja: as mudanças ocorridas nos padrões sucessórios no Sul do Brasil. O problema central, a questão da sucessão rural, baseava-se na preocupação acerca da continuidade dos jovens na agricultura familiar, em específico em atividades ligadas à produção agrícola, ocupando assim a direção do empreendimento familiar. Observava-se à época um duplo movimento: de um lado, jovens que deixavam a propriedade familiar e, de outro, jovens que permaneciam no campo, porém, exercendo atividades não agrícolas. Estes estudos também tinham como preocupação contribuir para a elaboração de políticas públicas de desenvolvimento rural.

Na pesquisa supracitada, os autores empreenderam um esforço de categorização das unidades produtivas/famílias investigadas, classificando-as em três grupos, levando em conta a renda domiciliar anual: agricultores consolidados, agricultores em transição ou agricultores em extinção (qualificados como exclusão). Os autores concluíram que as jovens migram do campo em maior quantidade que os jovens, sendo que integrantes da juventude pertencentes às famílias bem-sucedidas economicamente (com unidade produtiva consolidada) tendem a permanecer mais no campo do que aqueles em pior situação econômica (em exclusão).[4] Tanto os desejos dos filhos quanto os dos pais estão atravessados por esta variável econômica, isso tudo a despeito de outros elementos tratados pelos autores, como a alteração nos padrões sucessórios e diferenças de gênero.[5]

Castro (2005) é comumente citada por estudiosos de juventude rural. Em sua tese, realizada em alguns assentamentos da reforma agrária no estado do Rio de Janeiro, traz à cena uma conversa com a liderança do assentamento, que afirmava ser a ausência de jovens o maior problema daquele local. Para ela, há uma situação conflitiva que coloca em oposição jovens e indivíduos mais velhos dentro do assentamento. Essa situação caracteriza-se nos seguintes termos: de um lado, idosos sem condições de manter os lotes e o assentamento e, de outro, jovens sem interesse em assumir essa responsabilidade nas suas famílias e no assentamento (CASTRO, 2005). Assim, manifestam-se, no início da pesquisa, alguns dos elementos já referenciados pela literatura sobre a juventude rural: o suposto desinteresse dos jovens pelas atividades rurais e a atração exercida sobre eles pela cidade (questões a todo tempo problematizadas por esta autora).

Em Castro (2005), discute-se a relevância dos projetos de futuro dos/das jovens rurais. A autora busca a elucidação de elementos da condição juvenil, em específico, o que é ser jovem em um assentamento/acampamento rural na Baixada Fluminense. Castro almeja compreender os sentidos atribuídos pelos agentes investigados (não somente os próprios jovens) à categoria juventude, processo perpassado por disputas e que opõem, em alguma medida, pais e filhos, jovens e adultos. Na sua análise, destaca-se o peso da autoridade paterna, exemplificada no controle/vigilância do trabalho e do corpo da/do jovem, elementos de domínio não restritos ao espaço privado e frequentemente observados em espaços públicos. Dito de outra forma, o controle sobre os/as jovens exercido na esfera doméstica se reproduz com intensidade semelhante em instâncias coletivas que integram a vida no assentamento, notadamente a Associação. Assim, o conflito entre pais e filhos desloca-se do plano privado para o público, assumindo uma nova figuração: um embate estabelecido entre jovens e adultos não mais em torno de questões relativas à família ou às unidades produtivas, mas sobre questões concernentes à vida coletiva (programas de governo, atividades, investimentos, vida política etc.).[6]

Se, de um lado, adultos se queixam do desinteresse dos jovens em relação ao assentamento, do outro, os jovens, a todo tempo, relatam a desqualificação das suas intervenções por parte dos adultos que controlam as instâncias decisórias no assentamento. Observa-se, nesse sentido, um fenômeno de dupla desqualificação dos jovens (na vida pública e privada), tendo por base sua condição geracional.

Os jovens do assentamento também estariam, a partir de múltiplos determinantes, encerrados entre duas escolhas antagônicas: ficar ou sair (da casa paterna ou do assentamento). Essa dicotomia entre os projetos de futuro dos jovens, explicitada por Castro (2005), se verifica, posteriormente, em outros autores, sendo utilizada para ressaltar uma espécie de conflito que percorreria a existência dos jovens rurais, sempre divididos entre estas duas escolhas. Tal conflito estaria motivado, principalmente, pela busca de autonomia em relação à autoridade paterna e o desejo de realizar-se profissionalmente. 

Carneiro (1998) já apontava para o desejo de autonomia dos jovens. Em seu texto, a autora destacou a oposição entre projetos familiares e projetos individuais, como se estes fossem na maior parte dos casos antagônicos e inegociáveis.[7] Em alguma medida, o binômio ficar e sair, tratado por Castro (2005), encontra-se presente no texto de Carneiro (1998), como o desejo dos jovens em torno de um ideal rurbano, ou seja, a vontade de usufruir o melhor de dois mundos: o acesso a políticas públicas, bens e serviços concentrados historicamente no espaço urbano e a tranquilidade, qualidade de vida, das relações familiares e de pertencimento associadas à vida rural. Não se quer com isso afirmar que estes espaços (rural e urbano) possam ser essencializados por estas características. Trata-se, na realidade, de como jovens rurais, em geral, caracterizam estes dois espaços.

Stropasolas (2002, p. 8) constata que os jovens rurais, “em busca de direitos de cidadania”, tais como saúde, educação, trabalho, lazer etc., transitam por diferentes espaços sociais “construindo uma matriz valorativa diversa e muitas vezes contraditória”; e, ao fazer isso, “ampliam o conceito de rural até a sede das pequenas cidades e complexificam, para quem vê de fora, os conceitos tradicionalmente atribuídos ao rural e ao urbano; sobretudo pelos agentes e instituições externas”. O autor enumera alguns elementos conjunturais que, em algum grau, aparecem em outros textos sobre juventude: o cenário de “crise” da agricultura familiar; as dificuldades em se obter renda nas propriedades de base familiar; a retenção da renda familiar nas mãos dos pais; a elevada migração campo-cidade, especialmente das jovens mulheres. Estes elementos, conjuminados, levariam a um processo de masculinização e de envelhecimento da população rural.

O autor supracitado, a despeito de considerar determinantes econômicos inerentes à realidade pesquisada, sinaliza outros elementos igualmente estruturantes e que perpassam a existência da/na agricultura familiar, a exemplo de fatores culturais que condicionam o jovem e a mulher ao desenvolvimento da produção agrícola familiar e das estratégias usadas pelas famílias visando a sua reprodução social. A migração juvenil identificada por Stropasolas e outros autores evidencia ao mesmo tempo o “possível comprometimento social da agricultura familiar” e “coloca em relevo as contradições e os conflitos, externos e internos, resultantes da forma singular e desigual de interação do rural com a sociedade global”, os quais, no limite, podem redefinir o sistema cultural no qual se insere a agricultura familiar (STROPASOLAS, 2002, p. 11).

Os conceitos de comunidade, família, terra, trabalho e casamento, subjacentes aos estudos sobre o campesinato, integram o caminho percorrido por Stropasolas. Esses elementos dão o fundamento das representações juvenis sobre o rural. Das conclusões do autor, destacam-se duas coincidentes a estudos posteriores na temática de gênero. A primeira, a indicação de que o acesso à educação, em especial, por parte das jovens, estaria associado à perspectiva de “mudar de vida” (a conquista de autonomia, o deslocamento para a cidade). A segunda, a hipótese de que as mulheres, ficando na unidade produtiva, tendem a reproduzir papéis subalternos similares àqueles exercidos por suas mães e avós.

Weisheimer (2009) contribui na discussão sobre juventude ao reelaborar antigas concepções e levantar novas questões. O autor confere destaque ao jovem rural, notadamente em relação a seu projeto profissional ou projeto de vida, a partir do qual busca compreender fenômenos mais amplos que envolvem a própria agricultura familiar. Somam-se à dimensão dos projetos juvenis alguns outros aspectos, tais como recursos materiais, processos de socialização e representações sociais. Para este estudioso, o “trabalho é a principal agência de socialização das novas gerações na agricultura familiar, transmitindo saberes, valores e uma ética do trabalho dos quais depende sua própria reprodução” (WEISHEIMER, 2009, p. 305).

O referido autor sinaliza também outros elementos importantes: 1) a falta de autonomia dos jovens rurais em relação à renda, em geral controlada pelo chefe da unidade produtiva – situação especialmente difícil para as jovens rurais que habitualmente se deslocam para atividades ditas não produtivas, como tarefas domésticas, de atenção à saúde familiar, de cuidados com hortas e pequenos animais; 2) a dificuldade de conciliar extensas jornadas de trabalho com atividades escolares e a maior escolarização das mulheres em comparação aos homens; 3) a diferença das variáveis sexo e idade na visão dos jovens em relação ao trabalho rural e às perspectivas em torno do processo de sucessão (em geral, jovens adolescentes e jovens mulheres guardam uma visão menos positiva no que diz respeito ao trabalho rural); e 4) as identidades mais comuns adotadas pelos jovens em processos de autoidentificação, como “jovem”, “jovem agricultor”, “jovem agricultor familiar”, “jovem trabalhador rural” e “estudante”, esta última utilizada, sobretudo, por adolescentes.

Wanderley (2007) investiga os desejos dos jovens em relação a seu futuro, principalmente o local de moradia e a profissão. Embora trabalhe com a definição estabelecida no censo sobre o que é rural e urbano com vistas a definir o plano amostral da pesquisa, salienta a fluidez cada vez maior entre estes espaços, admitindo inclusive que a sede de pequenos municípios integra o mundo rural.[8] Juventude, para esta autora, compreende o 

[...] momento do ciclo da vida, caracterizado como um período de transição entre a infância e a vida adulta. Culturalmente determinada, a demarcação desta etapa da vida é sempre imprecisa, sendo referida ao fim dos estudos, ao início da vida profissional, à saída da casa paterna ou à constituição de uma nova família ou, ainda, simplesmente a uma faixa etária. (WANDERLEY, 2007, p. 22)

 

A definição proposta por Wanderley reflete as dificuldades de se delimitar, conceitualmente, quem são os jovens rurais, o que implica necessariamente a apreensão de uma dinâmica social complexa e relacional situada entre a casa (família), a vizinhança (comunidade) e a cidade (o mundo urbano-industrial). Estes se constituem espaços sociais e instâncias socializadoras com capacidade de moldar projetos de vida e perspectivas de futuro dos jovens. Tais temáticas são centrais, pois decorrem de momentos/intervalos em que os traços da condição juvenil podem se apresentar de forma mais clara ao pesquisador.

O acesso dos jovens a terra aparece, em Wanderley (2007), como um dos principais limitadores a sua permanência no campo, problemática contornada pela migração temporária ou definitiva.[9] A perspectiva de migrar do Nordeste para outras regiões é bastante expressiva, especialmente em relação aos jovens, como também para a sede do município ou para uma cidade vizinha. Tal expectativa nasce no jovem mediante a constatação de que em seu espaço de origem não é possível realizar o projeto de vida almejado. Essa percepção é derivada, sobremaneira, da ausência quase absoluta do Estado em termos de políticas públicas. 

Esse e outros trabalhos de Wanderley (WANDERLEY, 2006; PAULO; WANDERLEY, 2006) sobre jovens somam-se aos de pesquisadores já referenciados na construção de uma tipologia de contextos situados no tempo e no espaço, uma vez que estudos de caso dão a tônica das pesquisas realizadas dentro da temática de juventude rural no Brasil.

Os autores citados nesta seção guardam muitos aspectos em comum, entre os quais está a preocupação com o fenômeno da sucessão rural. A partir desta questão central, nota-se, em um primeiro momento, o esforço de delimitar a categoria juventude rural e situá-la no contexto de crise da agricultura familiar, durante o qual estes primeiros estudos foram escritos (CARNEIRO, 1998; ABRAMOVAY et al. 1998). Essa delimitação passa, necessariamente, pela discussão de determinadas variáveis, como gênero, idade e região, que interferem diretamente nas expectativas juvenis em relação à agricultura e à permanência ou não desses atores no campo (CARNEIRO, 1998; ABRAMOVAY et al., 1998; STROPASOLAS, 2002; WEISHEIMER, 2009). Além de fatores estruturais, como terra e trabalho, outros são colocados como determinantes na construção de projetos de vida e de futuro que tenham as áreas rurais como local de sua realização: a educação e a construção de relações familiares mais autônomas (STROPASOLAS, 2002). Cabe ainda sinalizar que a juventude rural deve ser compreendida na sua relação com o outro, com o adulto e com o espaço urbano, sendo esta identidade construída também na relação com diferentes espaços de socialização: a família, a comunidade, a escola etc. (WANDERLEY, 2007).

 

Debate recente sobre juventudes rurais no Brasil: estudos focados na permanência dos jovens do campo

Castro et al. (2009) assinalam os anos 2000 como ponto de inflexão no debate sobre juventude rural no Brasil. Surgem, em diferentes movimentos sociais rurais, ações específicas e sistemáticas com foco na juventude. A título de exemplo, as autoras citam: o I Congresso Nacional da Juventude Rural, organizado pela Pastoral da Juventude Rural (PJR) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); os Encontros de Juventude do Campo e da Cidade, organizados pelo MST em diferentes estados nos anos 2002 e 2006; os Acampamentos da Juventude da Agricultura Familiar, realizados pela Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf Sul) em 2003 e 2006; o Seminário do Programa Jovem Saber, conduzido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) no ano de 2006; o VI Campamento Latino-Americano de Jóvenes e o I Seminário da Juventude da Via Campesina, ambos realizados em 2006. Acrescentaríamos a esse quadro, as seis edições da Jornada Nacional do Jovem Rural, realizadas de 2005 a 2015 pela Rede Jovem Rural,[10] e as quatro edições da Jornada (Inter) Nacional da Juventude Rural, realizadas entre 2007 e 2015 pela Contag. 

Esse período também foi marcado pela institucionalização do debate sobre a juventude nos principais movimentos sociais rurais, com a constituição de coordenações, conselhos ou comissões de juventude e, no plano externo, a criação de estruturas para tratar do tema juventude em governos estaduais e, posteriormente, no governo federal, com a criação, no ano de 2005, da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ). Esse contexto de expansão do debate em torno da juventude, em específico, da juventude rural, teve rebatimentos na academia, com a ampliação do número de estudos acerca da temática e o seu redirecionamento para a compreensão da permanência dessa juventude no campo.

Brumer (2007) salienta a recorrência de dois temas: de um lado, o debate em torno da migração juvenil e, de outro, as dificuldades inerentes ao processo de sucessão na agricultura familiar. O elemento inovador do seu trabalho é a reflexão quanto à necessidade de se alterar o enfoque dos estudos a respeito de jovens rurais no Brasil, passando a focar na permanência e não na saída dos jovens do campo. Nas suas palavras, “dado o avanço dos conhecimentos sobre tendências migratórias e a visão dos jovens sobre a atividade agrícola, parece importante a inversão da questão, procurando examinar as condições que favoreçam sua permanência” (p. 41).

Ao menos dois elementos conjunturais colaboram para a proposição de Brumer: o primeiro, o robustecimento de ações da juventude rural organizada, demandando políticas públicas e condições para permanecer no campo; o segundo, a melhoria das condições objetivas de vida da população rural, derivada do aumento do salário mínimo, de programas de transferência de renda, de políticas de incentivo à produção e à comercialização, entre outras políticas públicas implementadas por governos de centro-esquerda em período recente.

O projeto de pesquisa Juventude rural: permanência no campo e reprodução social da agricultura familiar, conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2014 e 2017, se insere no conjunto dos trabalhos que passaram a seguir o proposto por Brumer (2007). Neste estudo, o Ipea buscou compreender os principais elementos que dão suporte à permanência dos jovens no campo. Seu objetivo principal era transcender a dinâmica de estudos de caso e seus localismos e, assim, alcançar uma compreensão mais ampla da dinâmica que envolve esse segmento que se convencionou chamar juventude rural.

Na primeira publicação desta pesquisa, Valadares et al. (2016) demonstraram que nas últimas duas décadas houve um aumento das taxas de permanência no campo em quase todas as regiões do país, à exceção do Sudeste, que historicamente apresenta taxas de urbanização exponenciais, seja pela conversão recorrente de parcelas do território rural anexada ao espaço urbano, seja pelos efeitos de atração exercidos por estas cidades, fenômeno já há muito estudado na literatura sobre migrações. 

Há de observar que os estudos de juventude, sob a influência da dinâmica do êxodo rural que marcou o Brasil nas últimas décadas, não alteraram sua rota, persistiram, a sua maior parte, no destaque dado à saída dos jovens do campo e às eventuais implicações desse fenômeno nos processos de sucessão rural, mesmo diante de alterações estruturais e conjunturais na última década e meia. Além do aumento das taxas de permanência, registrado nos censos de 2000 e 2010, houve em paralelo, como já mencionado, o surgimento de importantes ações de juventude rural, articuladas a partir de diversos movimentos sociais rurais já existentes (VALADARES et al., 2016).

Conhecidas as alterações conjunturais citadas, buscamos verificar se elas reverberaram na academia e levaram a um debate sobre a permanência dos jovens no campo. Realizamos buscas por meio de palavras-chave na base de dados da Capes, na seção periódicos e no banco de teses e dissertações. O objetivo não consistia, desde o princípio, no exame exaustivo desse material, mas tão somente selecionar alguns trabalhos e, a partir deles, compreender as linhas de trabalho seguidas/defendidas por seus autores e os pressupostos nos quais se baseavam. A busca restringiu-se ao período que vai da publicação do texto de Anita Brumer (2007) até a deposição da presidente Dilma (2016). Compreende, desse modo, o interregno entre a manifestação da necessidade de discutir a permanência dos jovens no campo e o início de um cenário de drástica redução das políticas de apoio à agricultura familiar, com implicações diretas sobre a referida permanência.

A busca por textos em periódicos, com base na associação das palavras “permanência” e “campo”, “permanência” e “rural”, “ficar” e “rural” e “permanecer” e “campo” produziu resultados pouco significativos em termos numéricos. Apenas três textos tratavam diretamente da permanência dos jovens no campo. São eles: “Entre o campo e a cidade: estratégias organizacionais visando a permanência do jovem no campo” (BRENNEISEN, 2008); “Influências na decisão do jovem trabalhador: partir ou ficar no campo”, de autoria de (PANNO; MACHADO, 2014); “Permanecer ou sair do campo? Um dilema da juventude camponesa” (RABELLO; OLIVEIRA; FELICIANO, 2014). Nota-se que estes textos selecionados, já em seus títulos, anunciam o veio tributário dos trabalhos de Castro (2005, em diante), ou seja, posicionam os jovens num dilema perene entre a permanência e a saída do campo. Desconsideram, portanto, dois fenômenos que fazem parte da experiência contemporânea da juventude rural: o primeiro, a radicalização da proximidade/simbiose entre o espaço urbano e o rural, possibilitada pela expansão da rede de transporte e o advento das novas tecnologias da comunicação. O segundo, a importância que experiências de migração e trabalho urbano possuem na conformação de projetos de futuro da juventude rural, em especial aqueles que têm o rural como espaço de sua realização.   

O maior volume de textos relativos à permanência no campo pode ser encontrado no banco de teses e dissertações da Capes. Realizamos uma seleção preliminar com as palavras-chave “juventude rural”, “jovens rurais” e “jovens do campo”. O maior número de trabalhos continha o termo juventude rural (123 registros), seguido de jovens rurais (105 registros) e jovens do campo (34 registros). A procura através dessas palavras-chave implicou o aparecimento de textos repetidos. Desses materiais, selecionamos aqueles que englobam em seus títulos a expressão “permanência no campo”, totalizando de 13 dissertações de mestrado, distribuídas de maneira quase uniforme de 2007 a 2016, produzidas em centros de pesquisa localizados nas mais diversas regiões: seis na região Sul, um no Centro-Oeste, quatro no Nordeste e dois no Sudeste, não havendo nenhum na região Norte. Desses textos, três não puderam ser acessados (duas dissertações do Nordeste e uma do Sudeste), pois não estavam na plataforma nem foram encontradas no banco de teses e dissertações das suas respectivas universidades.

Esses dez textos se detêm no estudo de fatores que seriam determinantes para a permanência dos jovens no campo. As análises cobrem realidades muito localizadas, assumindo a forma de estudos de caso. Entre os fatores que incidiriam sobre a permanência são indicados: renda, acesso a terra, relações intrafamiliares, acesso a políticas públicas, educação diferenciada, autonomia e proximidade com o espaço urbano. 

Esses estudos, em geral, tratam o processo da permanência sob a lógica da excepcionalidade e, desse modo, acabam por naturalizar o fenômeno do êxodo, admitindo implicitamente que a saída do campo seria o “caminho natural” a ser seguido por filhos e filhas de agricultores. Estes autores também sinalizam o caráter volátil da permanência e da saída dos jovens do campo, ou seja, a migração faz parte das trajetórias juvenis (a intensidade desse fenômeno é que varia de acordo com as condições sócio-históricas próprias de cada região).

Em alguns desses trabalhos, como os de Kummer (2013), Silva (2013), Morais (2014) e Silva (2015), o leitor acessa uma revisão bibliográfica do tema juventude conjugada à análise de situações concretas. Já Silva (2013), ao tratar da permanência de jovens mulheres no campo, traz para o debate duas questões centrais: a primeira, a autonomia financeira conquistada pelas jovens por meio de seu engajamento em atividades produtivas na unidade familiar; a segunda, o nível de formação dessas jovens, a maior parte com Ensino Superior completo ou em alguma fase deste. Tais elementos sinalizam mudanças substantivas que ocorreram no campo na última década e meia, e que incidiram sobre a permanência no campo e a qualidade dessa permanência. São exemplos, o aumento do crédito rural, a criação de programas de compra de produtos da agricultura familiar, o aumento da renda, o maior acesso à educação por meio da interiorização das universidades, da ampliação da presença dos institutos federais e da melhoria do transporte escolar etc.

A despeito da particularidade de cada um dos objetos de pesquisa, ao se examinar essas dissertações verifica-se um conjunto de autores/as que sustentam suas análises com os mesmos argumentos, tendo como fontes: entre os autores brasileiros, Elisa Guaraná de Castro, Maria José Carneiro, Maria de Nazareth Baudel Wanderley, Anita Brummer, Ricardo Abramovay, Nilson Weishemer e Valmir Luiz Stropasolas; entre os autores estrangeiros, Pierre Bourdieu e Patrick Champagne. 

Nas dez dissertações analisadas, não se observa nenhum esforço de seus autores no sentido de elaborar uma concepção de cunho fenomenológico sobre o que significaria a permanência no campo para os jovens concernidos. As abordagens são tributárias do dilema “ficar ou sair” inaugurado por Castro (2005), com o foco nas razões dessa permanência. Na medida em que privilegiam a análise qualitativa, não se observa o uso sistemático de bases censitárias; o seu uso poderia auxiliar na compreensão da dinâmica populacional para além dos casos trabalhados (englobando a região, estado ou país).

Além disso, ao insistir na dicotomia “ficar ou sair” como escolhas excludentes, os autores acabam por cristalizar uma situação que é complemente dinâmica e mutável e pode não ser definitiva. Vários são os exemplos de jovens que saíram do campo em algum momento de suas trajetórias e mais tarde retornaram. O êxodo da juventude não é um fenômeno natural, tampouco inevitável. O Estado tem o papel fundamental de criar as condições para que os jovens enxerguem o campo enquanto o espaço de realização de seus projetos de vida e futuro. Isso pode servir tanto para favorecer a permanência dos jovens nesse espaço, como para atrais aqueles que porventura tenham migrado.

Por fim, é plausível afirmar que a permanência se dá em função de diversos fatores, que incidem de forma correlacionada nos âmbitos objetivo e subjetivo. Muito embora reconheçamos o papel de condições estruturais, como a terra e o crédito, para a permanência, a experiência concreta de jovens de áreas rurais aponta para outros elementos que influenciam na elaboração dos projetos de futuro destes jovens, entre os quais a educação.

 

Considerações finais

A leitura dos primeiros trabalhos acerca do tema juventude rural no Brasil sugere que seus autores guardam, no tratamento do tema, muito mais pontos em comum do que divergências. A rigor, estes estudos caracterizam-se pela abordagem de realidades muito localizadas, concentradas essencialmente no centro-sul do país, elemento recentemente contornado a partir do incremento de estudos que abordam outras realidades, sobretudo, no Nordeste. Os temas êxodo rural, envelhecimento e masculinização aparecem com muita frequência nos primeiros trabalhos sobre juventude e isso parece estar relacionado não somente à realidade encontrada nas pesquisas de campo, mas, sobretudo, à forma como foram construídos os problemas de pesquisa.

Na realidade, as conclusões a que os estudos pioneiros de juventude rural no Brasil chegaram podem ser observados, em maior ou menor grau, na produção de trabalhos subsequentes realizados por outros autores, ou seja, os “achados” de pesquisa, relativos a uma dada realidade, assumiram em certas circunstâncias o estatuto de pressuposto. Assim, a análise dos principais textos de juventude rural, produzidos entre segunda metade da década de 1990 e os anos 2010, revela uma ausência de caráter heurístico em determinados procedimentos teórico-metodológicos, uma vez que, os mesmos pressupostos, aplicados em diferentes situações de pesquisa, chegam a conclusões muito similares.[11]

Transformações recentes pelas quais o país passou, fruto da criação de um amplo arcabouço de políticas públicas de desenvolvimento rural, ampliaram o acesso dos povos do campo a direitos de cidadania. O investimento do Estado em políticas públicas teve efeito direto na melhoria da renda e da qualidade de vida da população rural, influindo no aumento das taxas de permanência da juventude no campo. Em paralelo, verificou-se o fortalecimento de ações de juventude rural protagonizadas por importantes movimentos sociais, com efeitos sobre a produção acadêmica acerca do tema, em especial a maior atenção dada à permanência dos jovens no campo.

Experiências de pesquisa que tivemos recentemente (VALADARES et al., 2016, 2017; MARTINS, 2019) mostram a necessidade de relativizar a dicotomia “projetos individuais” e “projeto familiar”. Os projetos de futuro construídos pela juventude rural na contemporaneidade não são necessariamente opostos aos desejos de suas famílias. Trata-se de um tema negociado no interior das famílias e desenvolvido a partir do “campo de possibilidades” destes sujeitos. Nossa experiência em campo sugere que a família, no geral, tende a exercer o papel de suporte dos projetos de futuro dos jovens e não de censor dessas “escolhas”.

Por fim, a dualidade “ficar” ou “sair” tem cada vez menos a força antagônica que possuía em décadas anteriores, quando sair do campo era quase sempre uma escolha definitiva. “Ficar” e “sair”, na atualidade, são momentos que não são mutuamente excludentes e estão inscritos nas trajetórias individuais de muitos jovens. São itinerâncias que ajudam a moldar e compor o fenômeno contemporâneo da permanência dos jovens no campo.

 

 

Referências

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Como citar

MARTINS, Leonardo Rauta. Juventude rural no Brasil: referências para debate. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 94-112, fev. 2021. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v29n1-7.

 

 

 

 

Leonardo Rauta Martins

Doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), com estágio sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França, pelo Programa de Doutorado-Sanduíche no exterior (PDSE-Capes).

rauta.martins@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-4595-0822

http://lattes.cnpq.br/8652441698463693

 

 

 

 

 

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[1] Doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), com estágio sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França, pelo Programa de Doutorado-Sanduíche no exterior (PDSE-Capes). E-mail: rauta.martins@gmail.com.

[2] Os dados da População Economicamente Ativa (PEA) apontam para uma forte correlação entre domicílio rural e exercício de atividade agrícola. Contudo, ao buscar definir quem é o jovem rural, pelo menos dois outros fatores devem ser considerados: o primeiro, a existência de sujeitos que moram em áreas rurais e exercem atividades de natureza não-agrícola; o segundo, os sujeitos que moram em áreas urbanas e se deslocam diariamente para o exercício de atividades rurais. São sujeitos que podem acionar essa identidade de jovem rural ou serem identificados como tal em razão da natureza de seu domicílio, da natureza de seu trabalho, ou a mescla de ambas as situações.

[3] No Brasil, o Estatuto da Juventude estabelece as seguintes classificações para juventude: jovens adolescentes (15-18 anos), jovens-jovens (19-24 anos) e jovens adultos (25-29 anos). Isso nos ajuda a pensar especificidades dentro de grupos reconhecidos socialmente como relativamente “homogêneos”.

[4] O acesso à renda própria também aparece com um dos determinantes apontados pelos jovens para permanecer ou não nas áreas rurais nas pesquisas de Carneiro (1998) e Castro (2005).

[5] O suposto “desinteresse” das moças no que se refere à atividade agrícola relaciona-se à divisão sexual do trabalho familiar que valoriza tarefas masculinas em detrimento das tarefas femininas, quase nunca encaradas como trabalho e sim como “ajuda”.

[6] A autora designa esse fenômeno de “extensão da autoridade paterna para os espaços coletivos”.

[7] Castro (2005) trata de um processo de interpenetração nas formas de ver o processo de sucessão, entrecortadas pelo desejo de verem os filhos assumir o negócio da família ao mesmo tempo que desejam para os filhos um serviço menos penoso. Logo, são múltiplas as formas de se relacionar com a terra, de pensar projetos de futuro.

[8] Uma problematização acerca da classificação entre rural e urbano no Brasil, cf. Valadares (2014), Araújo (2012).

[9] Em alguns casos, a renda produzida por membros do grupo familiar fora da propriedade, em situação de migração temporária ou definitiva, possibilita os recursos necessários para a manutenção ou investimento nessas unidades produtivas.

[10] A Rede Jovem Rural é uma iniciativa patrocinada pelo Instituto Souza Cruz e visa articular e promover a troca de experiências entre um conjunto de instituições que atua diretamente com a juventude rural. Integram essa rede: Associação Regional das Casas Familiares Rurais do Sul do Brasil (Arcafar Sul); Centro de Desenvolvimento do Jovem Rural (Cedejor); Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (Mepes); Movimento de Organização Comunitária (MOC); e Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta).

[11] Para uma discussão sobre disposição experimental e hábitos teórico-metodológicos rotineiros, cf. Lahire (2004).