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v. 29, n. 1, fevereiro a maio de 2021, p. 21-38
Recebido em 17 de dezembro de 2020.



Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020)

 

 

Controvérsias com o reformismo democrático
Controversies in democratic reformism

orcid_id.png  Dora Vianna Vasconcellos[1]

 

Resumo: O artigo é uma homenagem a Raimundo Santos, professor e pesquisador que se dedicou à história das ideias e ao pensamento social brasileiro, com o objetivo de entender a relação entre a democracia e as mudanças sociais. Entre os temas de sua predileção estava a questão agrária, a atuação das esquerdas no século XX e a política. Raimundo se destacou no cenário intelectual brasileiro por abordar tais fenômenos sob o registro do reformismo democrático. Por esta razão, além de ser uma homenagem, o artigo trata também das controvérsias do reformismo democrático com a esquerda.

Palavras-chave: Raimundo Santos; pensamento social brasileiro; reformismo democrático; esquerda.  

 

Abstract: (Controversies in democratic reformism). The article is in honor of Raimundo Santos, professor and researcher who dedicated himself to the history of ideas and to Brazilian social thought, with the aim of understanding the relationship between democracy and social changes. The agrarian question, the role of the left in the 20th century and politics were among his preferred subjects. Raimundo stood out in the Brazilian intellectual scene for addressing such phenomena from the point of view of the democratic reformism. For this reason, besides being a tribute to him, the article equally addresses the controversies of democratic reformism with the left.

Keywords: Raimundo Santos; Brazilian social thought; democratic reformism; left.

 

 

 

 

 

Este artigo é uma homenagem a Raimundo Santos, professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Todavia é isso, mas não é apenas isso. É também um meio de interpretar algumas das controvérsias do reformismo democrático, posicionamento político a que Raimundo endossou ao longo de toda sua vida. Para além das divergências políticas a que faremos alusão ao longo deste texto, está o homem. Agradeço a Raimundo por seu amor às ciências sociais tê-lo feito me acolher como sua orientanda durante seus últimos 13 anos de vida, apesar de nossos diferentes posicionamentos políticos. Posso até dizer melhor. Por conta mesmo de nossas discordâncias é que fui aceita por este homem curioso que não gostava das polarizações na vida política, mas em sua vida pessoal se enriquecia sobremaneira com elas. Por isso, para não perder o hábito de nossas discussões, essa é mais uma das indagações que lhe direciono, não mais em forma de diálogo, porque infelizmente a morte é inelutável. Mas como uma homenagem a este homem acadêmico raro, que aceitava a diferença, e mesmo se alimentava delas.

Conheci o Raimundo em 2007, data que ingressei no curso de mestrado em Ciências Sociais do CPDA. Nesta época, ele estaria então com sessenta e poucos anos, tendo uma trajetória acadêmica bastante consolidada no campo da história intelectual e do pensamento social brasileiro.

Segundo seu próprio relato, seu interesse nas ciências sociais vinha dos seus anos de militância na juventude, sendo a política uma paixão marcante na sua vida. Raimundo concluiu mestrado em Ciência Política pela Facultad Latinoamericana de Ciências Sociales (1978) e doutorado em ciência política pela Universidad Autónoma de México (UNAN, 1984).

Sua vocação para os temas políticos rendeu-lhe estudos concernentes à transformação social e à democracia. Raimundo tinha nos autores clássicos das ciências sociais, principalmente no âmbito do marxismo e do reformismo, seus pontos de apoio. Do ponto de vista pessoal, sua paixão pela política custou-lhe um exílio no México, fato que lhe trouxe algumas marcas na vida acadêmica.

Extremamente preocupado com a circunstância política no verdadeiro sentido maquiaveliano da virtú, ele, não importando quais fossem as forças políticas atuantes, se conservadoras ou progressistas, colocava-se sempre partidário de um governo que tirasse proveito da conjuntura no sentido preciso de encontrar entre as forças contrárias sempre um interesse comum (MAQUIAVEL, 2015). No âmbito nacional, foi Carlos Nelson Coutinho quem lhe forneceu as bases teóricas para afirmar a institucionalidade democrática como um governo de colisão. Em termos mais políticos, isto quer dizer que o marxismo de Raimundo era tributário do realismo burguês, não sendo por isso propriamente de esquerda. Seu posicionamento político estava situado naquilo que o pensamento social brasileiro e a cultura política brasileira chamaram de reformismo democrático (COUTINHO, 2011).

Raimundo, ao contrário de mim, não via com bons olhos os acirramentos e polarizações políticas de tipo esquerdista. Depositava sempre suas esperanças na chamada fórmula do degelo da sociedade civil por meio de mobilizações políticas que se tornam atuantes à medida que o Estado esteja compactado ao mínimo (VIANNA, 1999).

Sua graduação em direito lhe trouxe a predileção pela política que acontece institucionalmente e sem rompimento com o status quo burguês. Daí sua crença nos direitos civis e políticos. Sua filiação ideológica marcadamente habermasiana fazia sua militância atuar no alargamento da esfera pública por meio da corporificação de leis que corrigem o excessivo privatismo e individualismo burguês, mediante a consolidação de um direito civil e político de corte notadamente liberal (HABERMAS, 2011).

Raimundo não era partidário de políticas sociais veiculadas pelo Estado porque tais políticas acabavam por redundar na cooptação política, com a sociedade civil se tornando refém de um Estado cada vez mais burocratizado, asfixiador das liberdades civis e políticas e do desenvolvimento das forças produtivas. Vale dizer que Raimundo tinha como referência um mundo dividido pela Guerra Fria, em que o Ocidente simbolizava as ricas e tecnológicas democracias representativas garantidoras das liberdades civis e políticas, e o Oriente corporificava o socialismo real existente, com uma economia planejada deficitária e um Estado totalitarista.

Nos meus primeiros encontros com Raimundo na época de meu mestrado – faria ainda sob sua orientação, um doutorado e pós-doutorado –, lembro-me de ter achado um tanto curioso aquele homem que se cercava de livros de Marx, mas para se afirmar um crédulo nas prerrogativas abertas pelo Ocidente. Nas minhas indagações de estudante, perguntava-me em que medida o pensamento de Raimundo encarna o legado deixado pelo marxismo?

Diante de um posicionamento tão diferente do meu, que tem nas ações revolucionárias sua grande inspiração, os debates políticos entre nós se tornaram fertilmente constantes. De minha parte, apegava-me cada vez mais aos africanismos e aos indigenismos campesinos e suas ações subversivas na América Latina. Raimundo, por sua vez, embora se voltasse para a realidade latino-americana, ainda considerava o modelo ocidental de ida ao moderno como o único paradigma válido justamente porque foi ele que deu acesso à democracia política (SANTOS, 2014).

Dois questionamentos que direcionei a Raimundo não deixavam de ser instigantes para mim: se o legado do Ocidente é a democracia representativa e os direitos civis e políticos, o que dizer dos fenômenos do fascismo, do colonialismo e do racismo, que são o exacerbamento da política ocidental? Por outro lado, o próprio Habermas testemunha em seus primeiros estudos haver uma censura na democracia ocidental no que diz respeito às políticas sociais (HABERMAS, 1990). Intrigava-me saber que função exercia o marxismo numa elaboração teórica tão próxima da postura liberal.

À medida que direcionava tais indagações a Raimundo, nossos estudos dirigidos se tornavam cada vez mais densos. Raimundo tinha uma norma para a vida pessoal. Ele gostava do debate político e da peleja. O que não deixava de ser um tanto curioso para quem politicamente era tão afeito à conciliação política. Ou seja, para quem evitava o conflito e as radicalizações. E foi assim que iniciamos nossa parceria que duraria por anos a fio, até o final de sua vida.

O interessante na trajetória acadêmica de Raimundo é que seu posicionamento político foi elaborado como uma herança da atuação política do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele tomava as análises dos autores pecebistas como referência obrigatória para entender a circunstância política de seu tempo e sempre acabava por classificar a atuação das esquerdas na atualidade como inconclusas justamente porque contrariavam a principal herança deixada pelo PCB: o reformismo democrático (SANTOS, 2009).

Diante de tal elaboração política surgiu a suspeita de que talvez Raimundo tivesse razão em dar um estatuto reformista ao marxismo ocidental. Afinal, no Ocidente de fato a ideia de revolução passou a significar o processo de “antecipação das reformas capitalistas”, num sentido político estreito da consolidação de uma democracia burguesa como primeira etapa de uma longa transição para o socialismo. Há que se atentar que para boa parte dos marxistas ocidentais, e aqui me refiro a Lucien Goldman, o socialismo apenas viria do surgimento de uma política aliancista entre indivíduos hierarquicamente desiguais, num sentido quase caritativo de Durkheim (DURKHEIM, 2015), embora o autor se referisse a possível harmonização dos interesses de todas as classes sociais num ideal comum (GOLDMANN, 1978). Poderia vir também num sentido mais economicista de socialização da produção por toda sociedade, num sentido mais adorniano e marcusiano (MARCUSE, 1968). Ou seja, a meta da socialização dos meios de produção deixou de ser uma necessidade histórica reivindicada pelo marxismo devido às benesses trazidas pelo industrialismo no Ocidente para todas as classes sociais. Daí o reformismo ter ganhado uma força incrível no Ocidente. Esses dois modelos de ida ao moderno definitivamente se revelaram como não mutuamente excludentes na medida em que ambos davam como certo a atenuação dos conflitos existentes entre as classes sociais.

Deste modo, quanto mais entrava em contato com Raimundo, mais fortemente me indagava que papel cumpria o marxismo em seu pensamento. A necessidade desta compreensão parecia me revelar as tergiversações de um marxismo que estava cada vez mais distante de uma verdadeiramente intenção esquerdista, tanto no Ocidente, como também aqui no Brasil. Tanto é que, no final de sua trajetória, quando o conheci, Raimundo me parecia cada vez mais próximo de autores críticos ao marxismo, tal como Habermas, embora continuasse a citar constantemente em seus textos os construtos de Marx. Raimundo era muito mais crédulo na democracia representativa do que um marxista pode ser.

Desta minha indagação, ele se redimia dizendo que seu marxismo residia na sua crença na política como meio de mudar o curso dos acontecimentos. Valia-se de Habermas para justificar sua ideia de que a democracia liberal poderia ter suas bases alargadas, seja por meio da esfera jurídica, seja por meio da esfera comunicativa (HABERMAS, 1990). De certo modo, ele discordava de Lênin quanto ao fim último da tática marxista. Se para o marxismo-leninismo o longo processo evolutivo ocidental desencadearia futuramente a revolução comunista, para Raimundo o fim último seria o próprio adensamento da democracia liberal (SANTOS, 2014).

Deste modo, não se pode entender o pensamento político de Raimundo se não atentarmos para o seguinte detalhe: para ele, o Ocidente referendou o marxismo-leninismo numa tática histórica acertada de consolidação da democracia liberal, sobretudo porque a promessa da revolução comunista perdeu fôlego nos países ocidentais. Teria acertado o Ocidente, sobretudo, ao não se desvencilhar do realismo burguês para dar prosseguimento ao que a sociologia contemporânea denomina de fim da História e em seu lugar instituir um dinamismo social em que as mudanças são pequenos rearranjos e disjunções. Esta seria a condição para a estabilidade do regime democrático de direito.

Mas se Raimundo fazia referência a Lênin para exaltar o sentido claramente democrático burguês que as revoluções francesa, americana e inglesa assumiram no Ocidente, no caso brasileiro, a situação era outra. Lênin devia ser chamado num sentido mais sociológico de caracterização do atraso brasileiro (SANTOS, 2009). 

Em termos sociológicos, o ponto de vista de Raimundo para o Brasil continuava a ser leninista, sobretudo no seguinte aspecto: tal como Lênin supôs para o contexto da Revolução Russa de 1917, aqui o capitalismo era periférico. Recorrentemente ele gostava de fazer referência ao livro Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, de Lenin, para afirmar que, tal como na Rússia, no Brasil a população sofria não tanto do capitalismo, mas da insuficiência do desenvolvimento do capitalismo (LENIN, s.d.).

Assim como na Rússia, no Brasil a burguesia e o operariado não eram uma força política expressiva, tal como acontece nos países ocidentais industrializados. O Brasil teria uma classe operária e uma burguesia fracas demais para colocarem fim ao nosso atraso econômico. E para piorar, no nosso caso, também o campesinato era mal constituído, o que não acontecia na Rússia. Em razão de as elites agrárias brasileiras serem latifundiárias, elas instauram relações de trabalho extorsivas no campo. Daí o principal fato histórico brasileiro ser a ausência de um campesinato. Diferentemente do contexto russo e francês, a história brasileira teria como característica uma mão de obra migrante e de contato intermitente com a terra. Por sua vez, o Brasil teria também uma burguesia débil em função da situação colonial de nossa economia não permitir que a nossa indústria fizesse frente às manufaturas metropolitanas.

Por sua situação histórica suis generis de debilidade política dos atores revolucionários, Raimundo fazia referência ao leninismo para entender o contexto brasileiro num sentido diverso do caso russo, portanto. O Lênin de Duas táticas da social-democracia, livro recorrentemente referenciado por Raimundo, fazia uma distinção política clara entre a democracia parlamentar que os países ocidentais frequentemente dão origem e a democracia burguesa revolucionária que a Rússia deveria dar lugar, se a revolução consolidasse uma democracia representativa, com participação direta dos camponeses e do operariado. Na campo, a mercantilização da economia russa mediante a vigência da democracia representativa daria origem à proletarização da mão de obra no campo. Somente depois de passada esta etapa burguesa é que a agricultura se tornaria propriamente socialista.

Raimundo desfaz essa aporia ao considerar a situação política francesa, que tem uma democracia política mista e, no entanto, é o país de agricultura familiar.[2] Deste modo, a situação política francesa confirmava a ideia de Raimundo de que a república parlamentar não necessariamente revive relações feudais no campo. Afinal a agricultura francesa é de teor inegavelmente capitalista. Por esta razão, a modernização da agricultura vivida pela França foi considerada por muitos essencialmente democrática. Vale dizer que Marx, em O dezoito de Brumário, ao se referir ao caso francês, pontuou que a burguesia prescindiu do poder político para assegurar seu domínio econômico, dando origem a uma democracia parlamentar que tem no camponês sua base de legitimidade. É claro que ele não deixa de acrescentar que esta é um regime político essencialmente bonapartista, que é mais fruto dos anseios do campesinato conservador, ainda muito apegado à ideia de propriedade, do que do campesinato revolucionário, que pedia pelo fim das relações de vassalagem feudais e pela coletivização da agricultura (MARX, 1978).

Embora valorizasse sobremaneira o processo francês de mercantilização da agricultura conduzido pela burguesia parlamentar, Raimundo não via essa possibilidade como viável para a situação do Brasil, país cujos setores burgueses nacionais tinham uma relação fisiológica com o Estado, estando por conta disso constantemente em situação de atraso em a burguesia internacional.

O caso brasileiro comprovava o contrário, que era preciso primeiro superar o padrão colonial de nossa economia. Por isso, para Raimundo, a completa mercantilização de nossa economia se daria sob vigência da grande propriedade. Tal processo não necessariamente implicaria o fechamento do jogo democrático, porque traria como contrapartida o processo de proletarização da mão de obra no campo e a possibilidade dos desvalidos do campo serem representados politicamente. Munido dessas observações, Raimundo sustentou a interpretação de que o Brasil devia continuar a modernizar sua agricultura, sem necessariamente democratizar a estrutura fundiária. Deste modo, o leninismo de Raimundo é circunstanciado à realidade brasileira, característica que é marcante no reformismo democrático (SANTOS, 2009).

Raimundo endereçava uma crítica ao pecebismo de Alberto Passos Guimarães que se valia do leninismo para pontuar que dois tipos de desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira ainda eram possíveis, um revolucionário e, outro, reformista (SANTOS, 2007a).

O desenvolvimento capitalista revolucionário teria prosseguimento se o proletariado e os camponeses apoiassem as forças burguesas progressistas em sentido contrário ao latifundismo e claramente democratizante de consolidação da propriedade camponesa. Todavia, Alberto Passos Guimarães contextualizava o leninismo de acordo com a formação social brasileira e salientava que tal processo não se daria sem que antes não se concretizasse a luta anti-imperialista mediante a formação de uma frente ampla, com participação de burgueses, proletários e camponeses, que viabilizasse primeiro uma revolução agrária não camponesa. Deste modo, no caso brasileiro, seria necessário primeiro consolidar um capitalismo democrático-nacional que eliminasse os resquícios do escravismo no campo, num sentido claro de proletarizar a mão de obra do campo.

Esta etapa de reestruturação capitalista democrática-nacional apresentaria um sentido claramente não camponês na medida em que os grupos agrários mobilizados seriam os assalariados e semiassalariados rurais e não os camponeses. O capitalismo se concretizaria no campo primeiro à moda norte-americana ou farmer, isto é, mediante um processo de reestruturação mercantil que proletarizaria a mão de obra para tornar possível sua arregimentação em sindicatos rurais.[3] Isso significa que a luta política no campo, num primeiro momento, seria marcada somente pela busca por melhores empregos e salários no campo.

A desintegração dos latifúndios e a consolidação da pequena propriedade camponesa apenas ocorreriam na segunda etapa da reestruturação burguesa, cujo teor seria mais democrático-popular. Deste modo, seria somente nesta segunda fase que o processo de desenvolvimento capitalista abriria espaço para uma política de reforma agrária de teor notadamente burguês, porque dirigida somente ao latifúndio improdutivo e não ao direito de propriedade em si.

Esta reestruturação capitalista realizada em duas etapas marcaria o que Alberto Guimarães denominou de desenvolvimento capitalista revolucionário, justamente porque eliminaria o latifundismo no campo.

Por sua vez, o outro tipo de desenvolvimento capitalista na agricultura, denominado por Alberto Passos Guimarães de reformista, permitiria que o latifundismo feudal cedesse espaço para o latifundismo-burguês, sem qualquer necessidade de uma reforma agrária no campo. É o processo histórico que chamamos normalmente de desenvolvimento capitalista junker.

Segundo Raimundo, este processo é também chamado de reformista, porque viabiliza a rápida mercantilização da agricultura e das relações de trabalho no campo sem grandes sobressaltos políticos. Quem mais deu representação política a esse tipo de desenvolvimento capitalista no Brasil foi Caio Prado Júnior, justamente porque ele não condicionava a saída junker ao ocaso da democracia no país. Pelo contrário, tal como Raimundo, Caio Prado Júnior achava que a vigência da democracia política no Brasil estava intimamente ligada à modernização reformista da agricultura (SANTOS, 2007b).

Para Raimundo, a saída reformista era a mais apropriada aos países de capitalismo periférico justamente porque a proletarização da mão de obra do campo por si só já suscitaria a formação de um mercado consumidor interno capaz de reverte o padrão colonial de nossa formação, cuja produção de matéria-prima comumente é toda voltada para fora.

Para ele, pontos de vista como de Caio Prado Júnior não seriam propriamente economicista, porque se reconhecia o perigo da via junker se tornar autocrática, isto é, uma revolução pelo alto. Daí Prado Júnior sempre reivindicar a necessidade de os partidos comunistas fazerem uma adequação entre teoria e prática, no sentido de aproximação do marxismo com o realismo burguês. Seria esta atuação política mais consequente, voltada para a luta das necessidades mais imediatas dos trabalhadores rurais, que permitiria ao Partido Comunista sempre incidir na vida política, tornando a democracia política mais representativa. A contrapartida dessa política mais próxima dos anseios burgueses seria a constituição de uma malha sindical no meio rural. Por permitir esse tipo de abertura política, a segunda etapa do desenvolvimento burguês, de caráter antifeudal, foi considerada tanto por Raimundo como por Caio Prado Júnior desnecessária historicamente (SANTOS, 2007c).

Na época em que eu o conheci, Raimundo estava fazendo uma autocrítica ao reconhecer que o anseio da reforma agrária sempre fora para ele uma meta descompassada com a realidade brasileira, uma utopia de caráter eminentemente conservador, já que levava ao divórcio entre teoria e prática e ao reboquismo das classes revolucionárias. Ao longo dos anos de convivência com ele, fui percebendo que Raimundo não estava só. Existia uma vertente interpretativa significativa no Brasil que se utilizava dos escritos de Lenin para referendar o reformismo democrático. Este era o caso do próprio Caio Prado Júnior e também de Ivan Ribeiro (SANTOS, 2007a).

Deste modo, inviabilizados os caminhos russo, francês e norte-americano, apenas sobraria para nós a consolidação do capitalismo pela via prussiana. Raimundo sempre se referia ao conceito gramsciano de revolução passiva para qualificar positivamente o prussianismo brasileiro (GRAMSCI, 1999). E, assim, imprimia aos construtos de Lenin um adendo, sugerindo que as questões sociais têm primazia sobre a política.

Na realidade, Raimundo negava as interpretações de Nelson Werneck Sodré de que no Brasil o capitalismo se desenvolve à moda prussiana, sob ação e influência do imperialismo (SODRÉ, 1979). Daí os restos feudais serem conservados e o monopólio da terra assegurado, à medida que o capitalismo penetra na nossa agricultura.

Raimundo criticava, sobretudo, André Gunder Frank, para quem as relações de trabalho de caráter servil no campo são relações capitalistas típicas de países colonizados, cuja função na divisão internacional do trabalho é fornecer matérias-primas aos países de capitalismo central a preços baixos.

Gunder Frank era enfático ao pontuar que o Brasil revive constantemente o drama do pacto colonial. A exportação de matéria-prima a preços módicos para o centro do capitalismo e a importação de manufaturas a preços altos tornavam o nosso latifundismo cada vez mais recessivo no que diz respeito à exploração de mão de obra. É por esta razão que o capitalismo sempre reinaugura relações de trabalho servis no campo. Gunder Frank criticava especialmente o PCB quando este não reconhecia que o mal do Brasil era o próprio capitalismo. Sua tese é a de que o capitalismo é essencialmente colonialista e estrutura o mundo numa rede internacional composta de metrópoles-satélites que faz com que o capitalismo nos países colonizados seja não alodial do ponto de vista das relações de trabalho. Esta situação se repete também nos centros urbanos, porque o parque industrial dos países explorados é sempre colapsado pelas multinacionais, o que faz com que também nosso industrialismo seja débil e nossa população composta de uma massa sobrante que não se insere no sistema produtivo. Em razão de reconhecer esta situação como tipicamente capitalista, Gunder Frank sugere que em nada adiantaria fazer uma revolução burguesa no Brasil, uma vez que o país não sofre da falta de capitalismo, mas de seus excessos (FRANK, 1973).

Raimundo desconhece essa crítica que ressalta que a situação colonial e neocolonial dos países subdesenvolvidos era uma consequência direta da disseminação do capitalismo pelo globo. O PCB errava ao conceber a ideia de colonialismo, mas não de imperialismo. Tanto é que quando menciona a dependência dos países latino-americanos, africanos e asiáticos, trata-a como se fosse resultado de um atraso na difusão do capitalismo pelo mundo. Por esta razão, a solução que normalmente o PCB dá para o imperialismo ocidental é completar o processo de revolução burguesa nestes países, saída que acaba por piorar a situação de exploração do Terceiro Mundo, já que o capitalismo é essencialmente imperialista.

O que se quer ressaltar é que mercantilização da agricultura brasileira foi pensada pelos autores pecebistas e também por Raimundo por uma via farmer ou por uma via junker. Segundo Armênio Guedes, a distinção entre esses dois caminhos não existe. É uma mera fraseologia usada, num caso ou no outro, de acordo com o contexto histórico mais revolucionário ou reformista. Raimundo até reconhecia essa hipótese como verdadeira. Afinal, em ambos os casos, o que se propõe é uma revolução burguesa, embora de diferentes tipos. Só que Raimundo não ia além dessa constatação, pois. tinha a via junker como a mais viável para o caso brasileiro justamente por considerar que o reboquismo das classes populares e o fechamento da democracia política apenas acontecem quando a população rural abraça a bandeira da reforma agrária.

Ele desconsiderava a tese primeira do marxismo que afirma que o campesinato não deve nunca se deixar iludir pela conquista burguesa e imediatista de melhores empregos e salários, sob pena de deixar a história passar por cima de sua cabeça. Viria daí a situação de bonapartismo em que a luta de classes e o jogo democrático são suspensos. Prova disso é que Rosa Luxemburgo muito acertadamente reivindicou a defesa do espontaneísmo, tipo de luta política que não perde nunca de vista as ideias socialistas, justamente para manter a democracia sempre permeável às reivindicações das massas (LUXEMBURGO, 1967).

Mas esse erro crasso não seria peculiar a Raimundo e ao reformismo democrático, seja o junker ou o farmer. Estaria presente no próprio marxismo, com a ideia de Lenin de que o esquerdismo seria uma doença infantil do comunismo. Ao considerar a situação do atraso russo, Lenin criticava a ala mais esquerdista do comunismo russo que achava factível acontecer uma revolução propriamente socialista, sem a necessidade de nenhuma etapa democrático-burguesa. Esta foi a vertente mais radical do comunismo russo que Lênin e a historiografia ocidental pejorativamente batizaram de populista e que apressadamente relacionaram às ideias pequeno-burguesas (LENIN, s.d.). Nisto apenas não incluo também Georg Lukács e Ernest Bloch porque ambos tiveram o mérito de identificar o esquerdismo com os ideais camponeses. De todo modo, tanto Bloch (1973) como Lukács (1969) erraram tanto quanto Lênin ao supor que o esquerdismo é um tipo de utopismo que leva ao reboquismo.

Conforme ia conversando com Raimundo, eu chegava à constatação contrária, que o PCB, seja na sua versão farmer ou junker, é essencialmente distópico, estando mais próximo do liberalismo do que do próprio esquerdismo. Cada vez mais a hipótese de Armênio Guedes de que a distinção que o PCB e o próprio Raimundo faziam entre a via farmer e a via junker era uma mera fraseologia se revela cada vez mais verdadeira, sobretudo porque o capitalismo na agricultura é necessariamente rentista.

Por que não lembrar as críticas de Kautsky ao marxismo (KAUTSKY, 1968)? Ainda que Kautsky não fosse propriamente um esquerdista, ele acertou ao pontuar que o equilíbrio que o leninismo tenta estabelecer entre a pequena e a grande propriedade por meio de medidas de reforma agrária de teor capitalista é um erro histórico do ponto de vista do próprio marxismo, porque a primeira lei do capitalismo é a concentração das forças produtivas e da terra em poucas mãos. A concentração da terra é uma das condições sine qua nom para o lucro capitalista. Daí a pequena propriedade ser constantemente solapada pela grande por meio do processo de expropriação dos camponeses. Kautsky se referia também ao baixo incentivo político, financeiro, logístico e os poucos meios de distribuição que a agricultura voltada para subsistência recebe no capitalismo. Diante dessa constatação, ele apostou que o futuro da agricultura estava nas plantations. No entanto, a sua leitura me levou para o paradigma oposto, de que errava também a ala mais progressista do PCB ao crer numa via farmer e não socialista.

Tanto isso é verdade que nos países em que o capitalismo penetrou na agricultura por uma via farmer, como é o caso dos EUA, a terra não somente está concentrada e é monocultora, como a proletarização da mão de obra apenas não assume um caráter servil porque, por ser o centro do capitalismo, os preços das commodities são subsidiados pelo Estado. Essa possibilidade histórica se tornou possível à custa do imperialismo norte-americano e suas invasões bárbaras no Terceiro Mundo. Por outro lado, países como a França, que democratizaram o acesso a terra por meio das taxas de arrendamento, pagam o preço político de o capitalismo ter se tornado um modo de produzir cada vez mais inexorável, na medida em que os pequenos agricultores se tornam o último elo de uma cadeia produtiva essencialmente hierarquizada e subordinada aos ideais mercantis. E se a condição de vida de seus agricultores familiares se apresenta melhor do que a dos camponeses do Terceiro Mundo é porque também a França na geopolítica mundial é um país imperialista

Raimundo não reconhecia nenhuma dessas observações. Acreditava piamente que a democracia representativa poderia compensar o processo cada vez mais violento de concentração da propriedade pela vigência das leis civis e políticas progressivamente mais robustas. No campo, tal se daria com a extensão de uma malha sindical circunstanciada à busca por melhores empregos e salários, sem qualquer menção a uma política de reforma agrária.

Ao pensar a questão agrária atual, Raimundo referenciava autores, como José Graziano da Silva, que restringiam a democratização do campo a uma reforma agrária não essencialmente agrícola (SANTOS, 1998). Fazia referência também a Maria Nazareth Baudel Wanderley para dizer que cada vez mais o mundo rural se urbanizava no sentido de se tornar um mundo da vida não mais setorizado, mas multifuncional, principalmente com o fortalecimento do setor terciário promovido com crescimento das atividades turísticas e de moradia no campo (WANDERLEY, 2000). Tudo isso para demonstrar que a demanda por reforma agrária não é mais representativa do homem rural como se pensava nos anos 1960. No plano político institucional, concordava com Arilson Favareto para quem as políticas públicas direcionadas ao rural não deveriam mais provir do Estado, mas ter uma orientação ascendente, no sentido de serem formuladas pela sociedade civil de forma territorializada. A contrapartida dessa nova institucionalidade seriam medidas anticíclicas que diminuíssem cada vez mais o papel do Estado (FAVARETO, 2010).

A fórmula do degelo da sociedade civil atraía Raimundo por demais, sobretudo quando ele pensava na política de forma contextualizada. Ao olhar a história do século XX brasileiro, Raimundo concordava com Caio Prado Júnior que interpretava os momentos de efervescência política – o Estado Novo, a morte de Getúlio, em 1954, e o golpe de 1964 – como uma consequência direta da radicalização excessiva das esquerdas.[4] Raimundo considerava um erro crasso o imaginário de esquerda nacionalista do pré-1964 e a radicalização política que houve entre esquerda e direita.

Ele tinha como marco político a declaração de março de 1958 elaborada pelo PCB após o suicídio de Vargas. Neste documento, o PCB rompia definitivamente com a ideia da revolução nacional-libertadora inspirada na III Internacional. Após a declaração, cada vez mais o PCB passou a valorizar a democracia política e o que chamou de “nova política”. Isto é, uma política de compromissos com os liberais da União Democrática Nacional (UDN) e a visão de que o moderno chegaria ao Brasil de maneira evolutiva e demorada. Tal posicionamento não era novo, já havia sido elaborado por Caio Prado Júnior em março de 1935, época em que ele foi vice-presidente da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente política que reunia comunistas, socialistas e a ala “esquerda” do tenentismo, a partir de uma plataforma de combate ao fascismo, na época associado ao Estado Novo e ao Imperialismo. Todavia, o PCB apenas faz sua autocrítica e adota em definitivo um posicionamento mais próximo do que Raimundo pensava em 1958.

Vale lembrar que, em 1943, Luiz Carlos Prestes foi eleito secretário-geral do PCB. Com a redemocratização do país em 1945, em nome da união nacional, a ala prestista do PCB aproximou-se de Vargas numa tentativa de promover com ele a reconstitucionalização do país, bem como o processo de sucessão presidencial. No entanto, Vargas foi deposto.

Raimundo considerava essa postura oscilante do PCB em relação a Vargas um indício de que o excessivo estrangeirismo do PCB o fazia ser um partido péssimo em teoria, porque não conectado com a singularidade histórica brasileira (SANTOS, 2012). É somente após a declaração de março de 1958 que o PCB se reconcilia definitivamente com a teoria de Caio Prado Jr., mesmo que de forma não consciente, ganhando mais densidade política (SANTOS, 2001). Para Raimundo, na teoria de Caio Prado Júnior sempre esteve esboçada uma teoria da revolução brasileira num sentido acertadamente mais próximo de evolução histórica própria do Ocidente do que da transformação histórica em rupturas (SANTOS, 2007b).

Em termos históricos, é o posicionamento de Armênio Guedes que sintetiza politicamente o pensamento de Raimundo. Armênio Guedes, após a Declaração de março de 1958, elaborada pelo PCB, se opôs à radicalização política do pré-64, sendo contrário inclusive ao plano radical de reformas de base que estava sendo encampado por João Goulart. Tanto para Guedes como para Raimundo a radicalização política levou ao golpe de 1964.

Vale dizer que, sob influência de Guedes, o PCB ajudou a fundar a tática de oposição à ditadura militar que para Raimundo era a mais acertada para as esquerdas, por estar mais de acordo com a ideia de revolução brasileira que Caio Padro Júnior legitimou. Vale lembrar que, em 1966, o PCB ajudou a fundar o MDB, partido que congregou remanescentes do PSD, PTB, PDC, PSB e dissidentes da UDN, e encampou o que Raimundo considerou ser uma luta pacífica pela redemocratização do Brasil. Ele se referia justamente a esta tática de coalizão que aproximou os comunistas brasileiros dos liberais e que deixava de lado a ideia de reforma agrária e as reformas de base. Raimundo apostava nas prerrogativas abertas pela democracia política e considerava a volta dos movimentos sociais, notadamente do movimento sindical do ABC paulista, do movimento estudantil e o surgimento do próprio MST, consequência direta da tática de coalizão. O próprio Partido dos Trabalhadores (PT) seria caudatário deste tipo de atuação política, daí Raimundo considerar um erro o PT em tempos mais atuais continuar a rechaçar, ao menos discursivamente, partidos como o PSDB, com quem, no fundo, deveria coligar.

Já no final de sua vida, circunstanciado aos tempos bolsonaristas, manteve a ideia da necessidade de uma política de coalizão ao interpretar o resultado da eleição de 2018 mais uma vez como erro da esquerda, que radicalizara demais nos governos petistas. Sempre se dirigia contra o que ele chamava de populismo da esquerda, que formula políticas sociais que contradizem as medidas anticíclicas e o realismo burguês e incorpora no Estado as demandas da sociedade civil, produzindo o engessamento dos movimentos sociais no sentido de institucionalizá-los demais.

Cada vez mais Raimundo se valia das análises anticíclicas de Celso Furtado para afirmar que a democracia continuava a ser um instrumento fundamental na solução dos impasses do subdesenvolvimento. Ambos elegiam a industrialização como ponto nevrálgico para a manutenção da democracia. Embora, com o golpe militar, tenham constatado que regimes políticos fechados não levam inevitavelmente ao estrangulamento econômico (SANTOS, 2020).

Raimundo fazia referência a Furtado para sustentar sua tese de que é possível haver modernização do subdesenvolvimento. Uma maior modernização e industrialização do país traria os centros de decisão para o interior do país, argumento que era base de seu reformismo. Todavia, pelo seu alto custo social, continuava Raimundo a administrar o capitalismo e tentar reformá-lo num contexto de vigência permanente das liberdades democráticas. Sustentava que a concretização de reformas graduais no regime democrático constituía o único caminho para alcançar o desenvolvimento e firmar no Brasil uma sociedade aberta e pluralista. Cada vez mais o capitalismo para ele se erigia como a única fórmula do progresso. Daí seu distanciamento em relação à teoria política marxista da dependência e ao paradigma do desenvolvimento não capitalista.

Raimundo conclamava que as esquerdas tomassem cada vez mais o Ocidente como modelo político, na medida em que as sociedades ocidentais apresentassem um interessante equilíbrio entre liberdade e desenvolvimento econômico. E apesar do seu leninismo circunstanciado à realidade brasileira, concordou com Furtado quando este ponderou que a doutrina marxista-leninista é normalmente usada no Brasil no sentido farmer, o que leva ao fechamento do jogo político. O mesmo acontecia quando a esquerda endossava o socialismo utópico.

Assim como Furtado, Raimundo considerava que o problema fundamental da atualidade era desenvolver técnicas que permitissem alcançar rápidas transformações nos padrões de convivência humana, mas de tal forma que mantivesse a sociedade aberta. Ele elogiava Furtado pelo fato de suas reflexões críticas sobre a experiência socialista terem sido a base de um desenvolvimentismo que soube preservar o clima de liberdades vigentes no país, diversamente das estratégias pecebistas, que queriam reformar o mundo rural por uma via farmer no pré-64 ou da esquerda que encampou o que ele chamava criticamente de socialismo utópico.

Naquela época do pré-64, Furtado supôs que a “realização” das reformas, dentre elas a reforma agrária,[5] pressupunha primeiro a modificação “pela base” da maquinaria administrativa estatal, a reforma do sistema fiscal e da estrutura bancária. Este programa de reformas anticíclicas continua ignorado na memória da esquerda atual, era o que lamentava Raimundo.

Continuava Raimundo observando o fato de que aqui, na condição de subdesenvolvimento, os atores sociais são débeis tanto nos estratos econômicos superiores como nos contingentes subalternos, por isso sempre coube ao Poder Executivo promover as mudanças do desenvolvimento econômico. O rápido aumento da máquina estatal, a urbanização do país e a consequente expansão das classes médias assalariadas teriam repercussões no plano político, não de pequena monta, por favorecerem o populismo de esquerda.

E citava Furtado para explicar que:

Tais ideologias, conhecidas sob a forma genérica de populismo, têm como linguagem comum aquilo que, no século XIX, se chamou de ‘socialismo utópico’, cuja essência está em acenar com formas de redistribuição do produto social, sem preocupar-se com a organização da produção”. (SANTOS, 2020, p. 77)

Descrevia Raimundo outros traços negativos do populismo, o que inclui governos fortes e ditatoriais, perda de conquistas sociais e erosão da força renovadora dos trabalhadores. A indefinição das classes trabalhadoras com respeito a seus próprios objetivos, que consiste na busca imediatista por melhores empregos e salários, deixa-lhes incondicionalmente a reboque de lideranças populistas, ponderava ele.

Deste modo, dirigia duras críticas ao pecebismo, quando este circunstancia o leninismo a um desenvolvimento capitalista farmer na agricultura, e também à esquerda, que cada vez mais nos últimos tempos estava referenciada ao socialismo utópico. Permanecia ele acreditando que tais posicionamentos políticos eram uma dissociação utópica da teoria marxista em reação ao realismo burguês, forma de ver que é um dos componentes do pensamento dialético marxista.

E em um de seus últimos textos, afirmou que

“o objetivo político a alcançar nos países subdesenvolvidos – isto é, o objetivo cuja consecução assegurará um mais rápido desenvolvimento econômico em uma sociedade democrática pluralista – consiste em criar condições para que os assalariados urbanos e a massa camponesa tenham uma efetiva participação no processo de formação do poder”. (SANTOS, 2020, p. 79)

A participação política das classes subalternas na democracia política estava condicionada, sem sombra de dúvidas, à aceitação do capitalismo tal como ele se desenvolveu no país, à moda prussiana. Afinal, a luta política acontece aqui, segundo Raimundo, no âmbito civil e político, com a sindicalização da população referida não à luta farmer ou socialista, mas à luta imediatista pela melhor incorporação no capitalismo.

De minha parte, à medida que o tempo passava mais me apegava ao comunismo igualitário de base indígena e africano que anseia pela coletivização da economia e da propriedade territorial, não à moda farmer, como queria a ala mais progressista do PCB, mas aos moldes da revolução cubana. Meus estudos cada vez mais comprovavam que o maxismo do PCB, por ser demasiadamente crédulo na democracia liberal, não soube arregimentar os indigenismos e africanismos da população brasileira e seu anseio comunista igualitário de uma ida direta ao socialismo, sem qualquer etapa histórica capitalista anterior. Comprovava isso pelo fato de sermos uma sociedade milenarista e sujeita a movimentos messiânicos que revelam o sonho da parusia e de realização de um paraíso terrestre no instante agora (VASCONCELLOS, 2020).

Diante desta diferença de percepção a respeito da consciência das classes subalternas, nossas divergências políticas tomaram rumos cada vez mais distantes. Eu me apegava à matriz indígena e africana de nossa formação social, enquanto Raimundo mais e mais se ocidentalizava. Mas, à medida que isso acontecia, nossas discordâncias no plano intelectual se traduziam no plano pessoal em uma amizade que se tornava mais perene e sólida. Pensamos durante os últimos treze anos de sua vida naquele minúsculo gabinete os dramas da história do Brasil do século XX de forma inegavelmente amistosa.

Sempre que ia ao CPDA, me lembrava da primeira coisa que ficou na minha cabeça quando entrei na sala dele. Na porta do gabinete, pendurada, estava a gravura de um árabe e de um palestino num abraço fraterno e afetivo. Intuitivamente pensei que ali teria a maior prova de minha vida, seria confrontada comigo mesma em minhas convicções. E Raimundo me propiciaria isso por meio de um confronto de ideias verdadeiro e profícuo, já que, para ele, a orientação consistia exatamente nisso. A formação da convicção política. Daí ele e eu nos darmos cada vez melhor, como dois congressistas rivais que, ao final da sessão parlamentar, deixam para trás as desavenças ideológicas para que reste somente o homem e suas afeições. Raimundo se foi e, com ele, um acadêmico singular. Um apreciador da diferença.

Na última vez que o vi, já muito abatido pela doença, permanecia em sua porta a tal gravura. Nela estava a inscrição paz e liberdade. Nesta pequena homenagem que lhe faço agora, vem-me a certeza. Tudo divide os homens, inclusive um pensamento, uma crença, uma opinião. A liberdade de Raimundo estava em transpor isso. Gostava de ficar na fronteira onde convergem as ideias, quase como uma ilha cercada de todos os mundos para que consigo resida a divergência e com ela a liberdade de pensamento.

 

 

 

 

Referências

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Como citar

VASCONCELLOS, Dora Vianna. Controvérsias com o reformismo democrático. Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020). Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 21-38, fev. 2021.

 

 

 

 

Dora Vianna Vasconcellos

Professora substituta do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Mestrado, doutorado e pós-doutorado em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).

doravianna.vasconcellos3@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-3856-6363
http://lattes.cnpq.br/4688818491754179

 

 

 

 

 

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[1] Professora substituta do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Mestrado, doutorado e pós-doutorado em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: doravianna.vasconcellos3@gmail.com.

[2] A França modernizou sua agricultura mediante o incentivo dos arrendamentos das terras cultiváveis. Deste modo a propriedade da terra continuou concentrada, mas os contratos de arrendamento permitiram o surgimento de uma agricultura familiar no país.     

[3] Alberto Passos Guimarães com o qualificativo farmer fazia referência a um terceiro caso de desenvolvimento do capitalismo na agricultura, o norte-americano. Nos EUA, a modernização da agricultura se deu mediante a marcha para o Oeste. Isto é, mediante a ocupação do solo favorecida pelo Estado, que acabou consolidando as chamadas plantations, que se diferem do latifúndio feudal brasileiro pelo seu alto índice de produtividade e mecanização. No que diz respeito à mão de obra, as plantations e favorecem a proletarização, por isso são reconhecidas como via farmer de desenvolvimento capitalista na agricultura. O latifúndio é economicamente atrasado em relação às plantations americanas porque sofrem com o padrão colonial da economia. A plantations seriam um tipo de agricultura de monocultura típicas de países de capitalismo avançado.   

[4] Outro autor pecebista referenciado por Raimundo foi Armênio Guedes. Adotando um ponto de vista um pouco diferente de Caio Prado Júnior, Armênio Guedes considerou um excesso de sectarismo do PCB não apoiar Getúlio Vargas no contexto 1954. Mas Armênio Guedes se desfez desse posicionamento após o governo de Juscelino Kubitschek, em 1955, e a elaboração da Declaração de março de 1958, pelo PCB.  

[5] Vale notar que Furtado defendeu a necessidade da reforma agrária no campo, mas num sentido mais desenvolvimentista de modernização dos latifúndios.