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v. 29, n. 1, fevereiro a maio de 2021, p. 15-20
Recebido em 17 de dezembro de 2020.



Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020)

 

 

Raimundo Santos, editor
Raimundo Santos, editor

orcid_id.png  Luiz Flávio de Carvalho Costa[1]

 

 

 

 

 

 

Uma má notícia nos pegou de surpresa em outubro de 2020: a morte de Raimundo Santos. Seus colegas souberam da gravidade da sua doença poucos dias antes do óbito, algo bem Raimundo – discreto e silencioso. Tive o privilégio de desfrutar de sua amizade por mais de 30 anos, e com ele compartilhar muitas atividades acadêmicas. Uma delas foi a criação e a editoria da revista Estudos Sociedade e Agricultura (ESA). No entanto, a responsabilidade pela publicação nestes 28 anos de existência esteve por mais de 16 anos inteiramente em suas mãos. Aproveitando a poesia do fado português, Raimundo agarrou a revista como se fosse uma criança: de forma protetora, amorosa, segura, firme e delicada. Portanto, falar de Estudos Sociedade e Agricultura é, em larga medida, falar de Raimundo Santos.

O periódico foi criado em novembro de 1993 no âmbito do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Nesse primeiro número nós escrevemos na apresentação:

Tomada a decisão de fazer a presente publicação há algum tempo, eis aqui o primeiro número de Estudos Sociedade e Agricultura, sobremaneira à espera de acolhida e colaboração dos colegas do CPDA e da comunidade da UFRRJ, para afirmar-se como um espaço de circulação de idéias na área das ciências sociais aplicadas ao estudo do mundo rural.

O começo modesto não esgota nossas pretensões, que são maiores. Da experiência inicial, partiremos para melhorar a qualidade gráfica, aumentaremos a tiragem, ampliaremos a circulação, e, quem sabe, breve até poderemos pensar numa melhor estruturação editorial com a criação de seções e de números mais tematizados.

 

Do começo modesto, porém pretensioso, a ESA chega hoje ao número 1 do volume 29. Nesses 28 anos de existência, sem interrupção e com periodicidade regular, a revista publicou centenas de artigos de centenas de autores, contou com muitos colaboradores entre membros de seu Conselho Editorial, pareceristas, revisores, diagramadores, digitadores, tradutores, trabalhadores de gráfica e distribuidores.

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Quando penso na trajetória da revista, tudo fica centrado na passagem do “começo modesto às pretensões maiores”. Nosso começo foi inteiramente artesanal. Tínhamos a nosso cargo praticamente todo o trabalho da revista (com exceção, naturalmente, da parte gráfica), incluindo a distribuição e a entrega das matrizes à gráfica impressas em nossa pequena impressora particular e o próprio acompanhamento gráfico, trabalho pouco visível, porém essencial para evitar surpresas ruins no final do processo. Nos seus primeiros números a revista teve a estreita colaboração de Mamede de Souza Freitas com seu cuidadoso olhar sobre a qualidade do texto acadêmico. Aprendemos muito com ele.

Naquele ano de 1993 dois impulsos nos colocavam em movimento: primeiro, o aumento da pressão por publicar os resultados de pesquisa, com a crescente valorização de artigos em periódicos. Adotávamos, meio a contragosto, os modelos das ciências duras e biológicas, em desfavor dos livros tão caros às humanidades. O sistema de recompensa orientava-se para os periódicos científicos, fosse para acumular créditos nos currículos individuais, fosse para avaliar os programas de pós-graduação do país, recompensa que se convertia em prêmios para os pesquisadores e para os programas de pós-graduação.

O segundo impulso foi tentar passar a barreira que os periódicos consagrados levantavam aos autores de instituições externas à sua própria origem. Essa barreira se erguia em dois obstáculos. Primeiro, muitos periódicos estabelecidos (falo sobre as áreas das ciências sociais) davam preferência por autores da própria instituição; segundo, o volume crescente de pesquisa encontrava poucos canais para dar vazão aos seus resultados. Se admitirmos que a publicação submetida à crítica de seus pares e sua divulgação é a última etapa da pesquisa, acumulávamos na área de humanidades no Brasil uma formidável quantia de pesquisas inacabadas.

Nos primeiros anos da revista tivemos aconselhamentos importantes do experiente editor Charles Pessanha. Primeiro, a atenção ao financiamento da publicação, lembrando que poucas revistas sobreviviam de recursos próprios. Essa preocupação deveria ser permanente, e nos alertava no sentido de que a taxa de natalidade dos periódicos científicos no Brasil vinha sendo alta, assim como a taxa de mortalidade. Destacava também o papel dos editores, cuja independência em relação à instituição onde estavam vinculados era vital para a tomada de decisões, para estabelecerem a confiança na neutralidade da publicação e evitarem um possível indesejado corporativismo. Pessanha advertia, igualmente, que o tempo de revistas científicas genéricas já havia passado. Recomendava-nos adotar a especialização. Quanto a esse ponto, o berço da ESA garantia essa qualidade. No início dos anos 1990, apenas a pioneira Revista de Economia e Sociologia Rural (Sober, 1978) e a Revista de Política Agrícola (Conab, 1992) abriam espaços especializados para a publicação de artigos científicos voltados aos temas rurais. Porém, ambas com dedicação menor aos aspectos sociais e culturais do chamado mundo rural, lugar que Estudos Sociedade e Agricultura propunha ocupar. Lembramos ainda que, em 1971, a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), organização de apoio à reforma agrária no Brasil, começou a publicar um boletim que deu origem à revista Reforma Agrária. Embora sem as características de periódico científico, ao lado de textos de sindicalistas, políticos e técnicos apareciam, igualmente, resultados de pesquisas acadêmicas relacionados à segurança alimentar, ao padrão de vida da população rural e aos problemas ambientais e de emprego no campo.

Ainda que os primeiros números de Estudos Sociedade e Agricultura tenham tido limitação de acesso, projetávamos que se daria em futuro próximo um salto qualitativo, com a melhoria da qualidade gráfica e com a criação e posteriormente com a nacionalização e internacionalização do seu corpo editorial. A revista foi se tornando mais visível e, com isso, muitos pesquisadores passaram a submeter seus escritos, criando um campo mais competitivo em favor da qualidade. Com a ampliação da circulação e o acolhimento de um número maior de autores de outras instituições, diminuímos o grau de endogenia para alcançar referências aceitáveis aos padrões técnicos.

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Outra tarefa que nos ocupou foi adicionar a revista aos índices acadêmicos. Sua indexação ao longo do tempo, indispensável ao alcance e ao aumento do impacto dos seus artigos, foi um marcador importante no reconhecimento da qualidade do periódico, atendendo aos índices básicos da publicação científica. Certamente, os procedimentos para a melhoria da qualidade da revista, conduzidos sobretudo por Raimundo Santos, ocorreram ao longo dos anos, e se pôde alcançar, finalmente, um nível de profissionalização que levou a publicação a se firmar como um periódico de ciências sociais de referência nacional dedicado ao estudo do mundo rural.

O CPDA e a UFRRJ (sua Reitoria e seu Decanato de Pesquisa e Pós-graduação) adotaram desde o início uma firme postura de apoio ao periódico, indispensável para que nossa publicação não fizesse parte da estatística da taxa de mortalidade. Durante toda a sua existência, além do CPDA e da UFRRJ, o financiamento veio de muitas direções. Com o risco de esquecer alguma contribuição, lembro da Rede de Instituições vinculada à Capacitação em Economia e Políticas Agrícolas na América Latina e Caribe (Redcapa), presidida por Wessel Eijkman, do Programa de Apoio a Grupos de Excelência (Pronex), coordenado por Francisco Carlos Teixeira da Silva, desenvolvido no âmbito do CPDA, e da ActionAid, coordenada por Jorge O. Romano. Na sua transição do papel ao texto digital, e na busca de ampliação de leitores sem domínio da língua portuguesa, ESA ganhou um espaço na plataforma SciELO Social Sciences: English Edition, graças ao apoio do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.

Com o avanço das tecnologias da informação foram criadas novas ferramentas de disseminação do conhecimento. Controles, fluxos, recepção, avaliação, feedback e, sobretudo, o acesso livre e imediato ao texto integral ganharam impulso mundialmente. Estudos Sociedade e Agricultura procurou acompanhar esse movimento. A ampliação do acesso à informação científica no país e no circuito internacional por meio de traduções de artigos para o inglês nos pareceu um caminho sem volta. Nesse sentido, foi criado um CDRom com os vinte primeiros números da revista, entendido como uma otimização da utilização dos recursos públicos e privados. Do papel ao texto digital foi um caminho natural – união da diminuição de custos com a ampliação do acesso ao conteúdo da revista. Finalmente, a revista tornou-se inteiramente digital, passou a ter periodicidade quadrimestral e ganhou os números do Digital Object Identifier (DOI).

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Desde seu primeiro número nas páginas de crédito esteve o nome de Raimundo Santos. Este volume diante do leitor é o primeiro em 28 anos em que seu nome não aparece como editor, pois a morte lhe chegou em outubro de 2020. Do ponto de vista intelectual, ele nos deu uma grande contribuição ao pensamento social brasileiro, à nossa cultura política e aos estudos dos movimentos sociais. Recentemente, um novo tema vinha despertando seu interesse – a literatura como fonte para a compreensão de nosso mundo rural. Raimundo produziu de forma fecunda e criativa dentro da sua sala caótica com grandes pilhas de livros e de papéis em equilíbrio precário.

Além da dor familiar, sua ausência tem sido triste para seus amigos e colegas. Seu jeito calmo, discreto e prudente, fala mansa, porém firme, às vezes quase sussurrando, orgulhoso de sua origem nordestina, seu apreço pela literatura, pelo cinema e pela poesia (um admirador de João Cabral de Melo Neto), sua pequena agenda abarrotada de papeizinhos, a palma da mão toda anotada por caneta para não se esquecer das tarefas e compromissos (seu palmtop), um humor fino e sutil, Raimundo era querido e admirado pelas pessoas em sua volta. Tive e tenho por ele um imenso carinho.

 

 

 

 

Como citar

COSTA, Luiz Flávio de Carvalho. Raimundo Santos, editor. Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020). Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 15-20, fev. 2021.

 

 

 

Luiz Flávio de Carvalho Costa

Professor aposentado pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).
flaviodecarvalho@icloud.com

https://orcid.org/0000-0001-5293-0486
http://lattes.cnpq.br/7747085854539947

 

 

 

 

 

 

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[1] Professor aposentado pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: flaviodecarvalho@icloud.com.