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v. 29, n. 1, fevereiro a maio de 2021, p. 6-9
Recebido em 14 de dezembro de 2020.



Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020)

 

 

Raimundo Santos, espesso
Raimundo Santos, ‘espesso’

Coletivo do CPDA

 

 

 

 

 

Nossa homenagem ao colega Raimundo Santos, falecido em outubro de 2020, é fruto de muitos e edificantes anos de trabalho em uma instituição, cuja equipe tem como missão manter um projeto coletivo. Raimundo chegou com essa perspectiva ao Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), nos anos 1980, vindo do então campus de Campina Grande da Universidade Federal da Paraíba, e para tanto não poupou dedicação. Aportou com seu jeito simples e discreto de ser para oferecer brilhante contribuição acerca do agrarismo brasileiro, fundamentado no pensamento social que no país se realizava em instituições e partidos, atento à realidade concreta que neles se refletia e se refratava, propondo novas perspectivas e novos parâmetros para análise, interpretação e avaliação desse “estilo de pensamento” como forma de cognição. Dizia-se um retratista de trajetórias intelectuais. Assim, também e como cientista político, buscava depurar a apreensão acerca dos movimentos sociais.

Dedicou-se com afinco, quase obsessão, ao mundo rural, debatendo, amiúde, com todos nós que nos debruçamos sobre estes estudos que se afirmam no campo da interdisciplinaridade. Dialogou com todos os colegas e com todos os múltiplos temas abordados no CPDA.

Pensamento social e repensadores do Brasil e da América Latina: nessa trilha, a literatura se lhe assombrava terreno fértil como fonte qualificada para informar e interpretar esse mundo. Quantas conversas, nas salas, corredores, cafés da tarde, sobre o povo do campo e a identidade nacional, a paisagem indomada do sertão, do interior, do altiplano, do pampa, do llano, antíteses enigmáticas do mundo dos letrados, paisagem, lugares misteriosos a serem descritos, analisados, revelados, transfigurados.

À revista Estudos Sociedade e Agricultura, a nossa revista, a menina de seus olhos, Raimundo dedicou-se de corpo e alma. Criou-a, juntamente com Luiz Flávio de Carvalho Costa, num momento em que poucos de nós acreditávamos na viabilidade do empreendimento. Inicialmente modesta, com poucas páginas, a ESA foi ganhando qualidade e melhorando sua avaliação no Qualis/Capes. A primeira edição, em novembro de 1993, já anunciava a ambição, numa apresentação feita a duas mãos: “Da experiência inicial, partiremos para melhorar a qualidade gráfica, aumentaremos a tiragem, ampliaremos a circulação, e, quem sabe, breve até, poderemos pensar numa melhor estruturação editorial com a criação de seções e de números mais tematizados.”

Meticuloso, fazia questão de acompanhar a produção de conteúdo detalhe a detalhe. Conhecia todas as regras editoriais e buscava obedecê-las, sempre tendo em mira uma melhor qualificação. Frequentador assíduo das reuniões sobre os periódicos científicos da Anpocs, Raimundo ali nos representava.

Quer em nossas reuniões de Colegiado Pleno, quer em suas apresentações em grupos de trabalho nos congressos, quer em sua representação na Anpocs com a nossa ESA, Raimundo sacava do bolso de sua camisa, geralmente em tom pastel, sua velha agenda. Todos brincávamos com seu hábito de fazer anotações nela, em pequenos papéis (guardanapos e afins) e até mesmo em suas mãos (que chamávamos de “palmtop”). Quando, em reunião, pedia para se inscrever, nos entreolhávamos e o riso já tomava conta dos rostos departamentais, pois sabíamos que seria um momento de gracejos e contribuições acadêmicas profundas. Um papel após o outro era sacado de seu bolso. Quando pensávamos que não teria mais, outro aparecia de um bolso que parecia não ter fim. Preenchido com suas anotações, os papéis eram generosos com Raimundo: sempre mostravam que havia mais um espacinho em branco onde ele poderia anotar algo. Sentar-se ao lado de Raimundo em uma reunião era um afago. Qualquer assunto se tornava mais leve diante dos seus comentários a miúdo e de suas atitudes excêntricas. Certa vez, precisou carregar seu celular, usado como relógio para não perder o horário de buscar seu neto na creche. Temeroso em esquecer o celular na tomada da sala, retirou um dos pés do sapato e colocou o aparelho para carregar dentro. Voltou para a sua cadeira, sentou-se e disse: “acho que não sairei somente com um pé de sapato...”.

Frequentador assíduo de livrarias e sebos, sempre indicava e/ou oferecia novidades, novas ou antigas, o que se tornava motivo de riquíssimos diálogos sobre tudo, principalmente sobre utopias agrárias. Verdadeiras aulas informais.

Raimundo era também habitual presença no que hoje é o Estação Net Rio e costumava ficar na cafeteria, esperando a sessão ou, mesmo após ela, tomando um café. Vários de nós ali esbarrávamos com ele, sempre no final das tardes de sábado, nunca nas últimas sessões.

Apaixonado pela poética de João Cabral de Melo Neto, Raimundo inicia seu artigo “Dois estilos de interpelação camponesa”, citando “A palo seco” do poeta das coisas reais, do materialismo dialético, nas palavras de Félix de Ataíde, encontrando nesses versos a motivação para revisitar, a partir do pensamento social brasileiro, o agrarismo mais contemporâneo. Voltar à tradição intelectual, era para ele de grande valia no sentido da possibilidade de aproximação “de uma formulação política (expressão dessa rica tradição) da reforma do mundo rural por ela visto sob múltiplas faces”. Assim, também, mormente para cotejar “os tipos de inspirações que movimentam os contingentes sociais que ali labutam para se constituir em seres cujo destino não tem porque seguir os habitantes das cidades. Ou seja, o de viver um cotidiano de relações sociais e intersubjetivas complexas, como reclamava Gilberto Freyre, denunciando a marca mutiladora deixada pela escravidão nos nossos desvalidos rurais” (SANTOS, 2008).

Presenteava, de forma inesperada, os colegas com poemas. Um dia, sem avisar, trouxe ao colega e amigo John Wilkinson um poema fotocopiado de João Cabral de Melo Neto que John nunca tinha lido – “O cão sem plumas” – e o leu muitas vezes pelo ritmo e pelo som. Foi um presente e tanto:

Porque é muito mais espessa

a vida que se desdobra

em mais vida,

como uma fruta

é mais espessa

que sua flor;

como a árvore

é mais espessa

que sua semente;

como a flor

é mais espessa

que sua árvore.

...

Espesso,

porque é mais espessa

 a vida que se luta

cada dia,

o dia que se adquire

cada dia

(como uma ave

que vai cada segundo

conquistando seu voo). 

Pensamento social vinculado às questões do mundo rural brasileiro foi feito seu desígnio/ tema/inspiração/compromisso, e Raimundo o adotou com a competência militante de quem procura a fonte de apreensão sensível da realidade. Resulta dessa trajetória sua proposta mais recente: a criação do Grupo de Pesquisa CNPq Literatura, Ciências Sociais e Mundo Rural.

 

Nossa gratidão e saudades, Raimundo.

 

 

 

 

Referências

MELO NETO, João Cabral de. O cão sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007.

SANTOS, Raimundo. Dois estilos de interpelação camponesa. In: COSTA, Luiz Flávio de Carvalho; FLEXOR, Georges; SANTOS, Raimundo. Mundo rural brasileiro: ensaios interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica: Edur, 2008.

 

Como citar

COLETIVO DO CPDA. Raimundo Santos, espesso. Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020). Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 6-9, fev. 2021.

 

 

 

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