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v. 28, n. 3, outubro de 2020 a janeiro de 2021, p. 676-699
Recebido em 5 de junho de 2020.  Aceito em 21 de agosto de 2020.



Antagonismo e reciprocidade na (re)afirmação identitária dos geraizeiros: luta por território e agua no norte de Minas Gerais
Antagonism and reciprocity in the (re)statement of geraizeiros’ identity: fight for territory and water in northern Minas


DOI: 10.36920/esa-v28n3-8



orcid_cinza.jpg  Jonielson Ribeiro de Souza[1]

orcid_cinza.jpg  Sérgio Sauer[2]

 

 

 

Resumo: Este artigo, elaborado com base em pesquisa de campo realizada entre 2015 e 2017, tem como foco o estudo de conflitos socioambientais e territoriais, vivenciados por três comunidades geraizeiras do norte do estado de Minas Gerais. O texto parte da premissa de que a resistência e as lutas pela retomada territorial dos geraizeiros, iniciada por volta dos anos 2000, teve como estopim o agravamento da escassez hídrica. A tomada de consciência de que a diminuição da água, em suas fontes naturais, foi ocasionada pela presença dos extensos monocultivos de eucalipto nas chapadas e outras formas de degradações ambientais, levou às comunidades a se reorganizar e reafirmar sua identidade na luta por direitos. A construção identitária geraizeira é reafirmada no conflito, manifestado explicitamente a partir de antagonismos com grupos que usurparam seus territórios tradicionais. A forte coesão coletiva – mantenedora e intensificadora dos laços de reciprocidade, observada entre os comunitários na busca pela restauração hídrica e conservação da biodiversidade do Cerrado – tem levado ao entendimento de que a luta pela água passa a fazer parte desse constructo identitário.

Palavras-chave: comunidades geraizeiras; identidade; territórios tradicionais; água.

 

Abstract: (Antagonism and reciprocity in the (re) statement of geraizeiros’ identity: fight for territory and water in northern Minas Gerais). This article focuses on the study of socioenvironmental and territorial conflicts, experienced by three Geraizeiras communities in the north of Minas Gerais State. The text starts from the premise that the resistance and struggles for the territorial recovery of the Geraizeiros, which began around the 2000s, were triggered by worsening water scarcity. The realization that the decrease in water from its natural sources was caused by the presence of extensive eucalyptus monocultures in the plateaus and other forms of environmental degradation, led communities to reorganize and reaffirm their identity in the struggle for rights. The Geraizeira identity construction is reaffirmed in the conflict, manifested explicitly from an antagonism with groups that usurped their traditional territories. The strong collective cohesion – maintaining and intensifying reciprocal ties observed among community members in the search for water restoration and conservation of Cerrado biodiversity – has led to the understanding that the struggle for water is now part of this identity construct.

Keywords: Geraizeiras communities; identity; traditional territories; water.

 

 

 

 

 

Introdução

Este artigo apresenta reflexões sobre processos de resistência e lutas para a permanência ou retomada de territórios em comunidades tradicionais geraizeiras, especialmente resistências das comunidades Sobrado, Moreira e Raiz, localizadas no município de Rio Pardo de Minas (MG). É resultado de uma “participação observante” realizada entre 2015 e 2017 (SOUZA, 2017), sendo que o trabalho de campo foi conduzido com práticas etnográficas e participativas, como roda de conversa, entrevistas e caminhadas pelos territórios das comunidades, com itinerários e liderança dos próprios moradores.

Como a origem familiar (filho da comunidade Sobrado) e a militância geraizeira precederam à pesquisa acadêmica, a metodologia de “participação observante” expressa não só a inserção do pesquisador nos processos comunitários, como também a motivação dos estudos, advinda do autorreconhecimento identitário de geraizeiro. Esta observação sistemática é diferente da “observação participante”, que é um olhar acadêmico ativo e comprometido, mas externo. Nas trilhas de uma “etnografia ativista” (ALBERT, 2002, 2015), a participação observante dá à pesquisa empírica um olhar sistemático sobre a realidade observada, a partir dos objetivos acadêmicos, mantendo a centralidade metodológica da autodeterminação dos povos. Portanto, este olhar permitiu um estudo empírico sistematizado e coleta de dados, aprofundando conhecimentos em momentos reflexivos e organizativos, como reuniões das associações, ações diretas, conferências, cultos religiosos e festividades, cujas observações foram registradas em caderno de campo.

As caminhadas de estudo ou itinerários geográficos de pesquisa possibilitaram vivenciar in loco as áreas em conflito, promovendo mais interação com os interlocutores da pesquisa, que construíram os itinerários e lideraram as travessias pelo território. A presença física nas áreas em disputa fez emergir lembranças, memórias, informações, “causos” e histórias (registrados em vídeos, fotografias e depoimentos in loco). As caminhadas permitiram a formulação de questões e temas que não foram suscitados nas situações mais formais, como em reuniões, ou mesmo na roda de conversa e entrevistas. Memórias e histórias como enfrentamentos, nomes e/ou condição de cursos d’água (extinção de córregos, escassez hídrica), nomes de plantas, animais, antigas áreas de cultivos, rastros, condições dos solos, aromas, sonoridades foram sendo desveladas ou reveladas, com mais detalhes e de modo espontâneo, em travessias sem pressa pelo território (SOUZA, 2017).

É importante destacar ainda que esta “participação observante” atende com mais facilidade a algumas demandas e expectativas das comunidades geraizeiras. Estas, por exemplo, muitas vezes apontam temas ou reivindicam acompanhamentos. Entre os motivos para pesquisar as três comunidades, estava o fato de serem pouco conhecidas (as comunidades Raiz e Moreira se fazem pouco presentes nas pesquisas científicas). Este conhecimento é elemento fundante da identidade, tanto no autorreconhecimento como no (re)conhecimento pelo outro (estado, universidades, outras comunidades). Consequentemente, a produção acadêmica deve ser em prol do fortalecimento das lutas comunitárias. Para tanto, o compromisso ético e político com as lutas geraizeiras deve ser acompanhado de retorno (devolução) às comunidades no pós-coleta de dados e sistematização do conhecimento (ou finalização dos trabalhos), uma das demandas das comunidades e do movimento geraizeiro.

O ponto de partida são as reconfigurações identitárias e territoriais dessas comunidades, as quais são parte das resistências, lutas e buscas por direitos. As três se autodeclaram como comunidades tradicionais geraizeiras e reivindicam parte de seus territórios, notadamente áreas de antigo uso comum das famílias. Após quase 20 anos de luta, as reivindicações assumem, de forma mais enfática, a urgência de ações que possibilitem a recuperação da água, através de articulações intracomunitárias e institucionais (OLIVEIRA, 2017; SOUZA, 2017).

A comunidade Sobrado, após intensos conflitos contra a degradação ambiental promovida por um empresário em áreas de suas principais nascentes, conquistou uma Lei Municipal de reconhecimento e proteção de seu território em 2015. A comunidade Raiz vem criando estratégias que permitam retomar o território, denunciando grilagem de terras e degradação da natureza por empresas monocultoras de eucalipto. A comunidade Moreira está em um processo mais recente de explicitação dos conflitos, denunciando a ocupação por monocultivos sobre áreas comuns de chapada.

A resistência dessas três comunidades vem se dando com a união de forças de dezenas de outras que vivenciam conflitos semelhantes, e são apoiadas por instituições, formando uma grande rede de reciprocidade. A resistência e a busca por reconhecimento identitário e de novas territorialidades, segundo Almeida (2008) e Porto-Gonçalves (2006), fazem parte de perspectivas decoloniais, que caracterizam esses movimentos socioterritoriais.

A primeira parte do artigo faz um apanhado dos principais impactos socioambientais dos monocultivos de eucalipto nos territórios geraizeiros. Caracterizado como encurralamento geográfico, espacial e cultural, reflete como esses empreendimentos devastaram a sociobiodiversidade do Cerrado e suas fontes de água, interferindo nos modos de vida e de produção dos Geraizeiros. A segunda parte discute a importância das questões simbólicas, culturais e identitárias em relação às terras e territórios, nos processos de reorganização comunitária e de enfrentamento ao encurralamento. A terceira parte traça um panorama sobre encurralamentos e processos de luta, vivenciados por cada uma das três comunidades estudadas. A conclusão faz uma interligação de como os mecanismos e as estratégias acessados pelas comunidades, na busca por direitos, articulam sentidos relacionados à territorialidade, identidade e luta pela água.

 

O milagre brasileiro nas covas de eucalipto: monocultura, degradação e encurralamento nos Gerais

O crescimento econômico vivido pelo Brasil, a partir de meados século XX, teve como base um modelo de desenvolvimento subordinado aos ditames dos países desenvolvidos. Tal modelo se fundamentou em um racionalismo que privilegia “[...] o crescimento, a acumulação e o aumento de produtividade, como fatores principais do desenvolvimento, secundarizando questões como equidade social, pobreza e manutenção dos recursos naturais com vistas a sustentabilidade” (BRITO, 2006, p. 44). O chamado desenvolvimentismo alcançou o apogeu no início da década de 1970, com o codinome de “milagre brasileiro”. O Estado então ditatorial foi um agente fundamental, com incentivos e investimentos públicos, perpetuando a lógica de um país destinado a ser produtor e exportador de matéria-prima (commodities), internalizando custos sociais e ambientais de produção (BRITO, 2006).

Sob essa ótica, no norte de Minas Gerais, foram implantados programas agropecuários e de silvicultura, a partir das demandas das indústrias siderúrgicas e de papel e celulose por matéria-prima como carvão vegetal e madeira. Empresas passaram a receber incentivos financeiros e fiscais, além de aportes legais e crédito para aquisição de terras, com o fim de implantar extensos plantios de eucalipto e pinus,[3] avançando sobre terras tradicionalmente ocupadas. As elites políticas e empresariais consideraram a região um “bolsão de miséria”, comprometido pelos efeitos da seca, portanto, sem capacidade de investir e “tornar produtiva” as “terras ociosas” das chapadas. Esta visão desconsiderou completamente as populações tradicionais – que utilizam as terras para produção (uso comum) e reprodução de modos de vida – e a biodiversidade do bioma Cerrado (DAYRELL, 1998; NOGUEIRA, 2009).

A noção de “milagre econômico” chegou às comunidades geraizeiras do norte de Minas com o nome de eucalipto, disseminando a ideia de um “pacote de progresso” com mais benefícios que o uso tradicional e comum das chapadas. O discurso de “milagre” e “progresso” daqueles empreendimentos foi imposto, evitando conflitos resultantes do choque de formas diferentes de uso territorial (uso voltado à acumulação de capital em contraposição ao acesso, uso e cuidado para a subsistência), resultando no encurralamento das comunidades geraizeiras (OLIVEIRA, 2017; SOUZA, 2017).

O norte de Minas reproduziu, em termos fundiários, uma mesma lógica imposta no âmbito do Brasil, ou seja, a ocupação e expansão da fronteira agrícola, baseadas na expropriação territorial das populações tradicionais, reproduzindo a lógica de colonização e a colonialidade.[4] Se deu com a formação e ampliação de imensos latifúndios, que utilizaram mão de obra escrava ou semiescrava, promovendo a concentração da terra e da renda, a exclusão, o empobrecimento da maioria da população e a desigualdade (SAUER, 2010), aprofundando a lógica colonial (PORTO-GONÇALVES, 2006).

Povos e comunidades tradicionais, como os geraizeiros, foram, e ainda são impactados por esses processos de expansão da fronteira agrícola, fundamentados em esquemas de poder, racionalidade e colonialidade.[5] A narrativa do progresso é a pretensa solução para a falta de desenvolvimento. Imposto de cima para baixo, imprime modos de pensar em diversos setores e camadas sociais, naturalizando determinado tipo de desenvolvimento ou noções vindas “de fora”, que desvalorizam e deslegitimam práticas (acesso e uso comum da terra e da natureza) e vivências históricas de populações tradicionais (NOGUEIRA, 2009).

Ainda no período da colonização, na região norte mineira, havia grandes extensões de terras sem “dono”, ou sem ocupação, tidas como terras livres, que foram sendo ocupadas com a dispersão de agregados de grandes fazendas e mineiros, já no fim do ciclo do ouro (BRITO, 2013). Misturas entre europeus, negros e indígenas, essas gentes ocuparam as veredas, planaltos, topos de morros, encostas, tabuleiros – os Gerais –, com base no princípio do trabalho e não na compra formal das terras. Prevaleceu a posse familiar, como espaços de morada e pequenos cultivos nas partes baixas (veredas), e o uso comum de grandes áreas de chapada para a criação de animais e práticas extrativas (NOGUEIRA, 2009).

Os geraizeiros vivenciaram um “processo de territorialização” (ALMEIDA, 2008), similar aos diversos povos e comunidades tradicionais, cujas relações com o lugar em que vivem extrapolam o âmbito material e econômico. Em relação ao espaço e à natureza, desenvolveram historicamente a articulação sustentável entre ecologia, produção, relações simbólicas e códigos de vida próprios, tornando o ambiente habitado familiar (NOGUEIRA, 2009). No entanto, as narrativas de progresso possibilitaram que os Gerais fossem totalmente ignorados nesses processos ditos modernizantes (SOUZA, 2017).

Faz parte das ideologias modernizantes desconsiderar, desvalorizar ou negar saberes, sistemas e formas de organização, de vivência e convivência de populações tradicionais. É a base para justificar por que os geraizeiros, por exemplo, perderam (e continuam perdendo) suas terras para a monocultura do eucalipto. O não reconhecimento das comunidades rurais e de suas dinâmicas sociais, inclusive por órgãos de governo, resulta em isolamento e invisibilidade histórica, levando-as a uma situação de marginalidade social, econômica e política, negando-as como sujeitos de direitos (BRITO, 2013).

Os monocultivos de eucalipto foram plantados sobre áreas com vegetação nativa do bioma Cerrado, primordialmente nas áreas de chapada, em áreas tradicionalmente utilizadas de forma comum pelas comunidades. O plantio extensivo do eucalipto, e outras atividades predatórias, não só privou o uso comum como comprometeu os recursos hídricos, a flora e a fauna. Isto impactou diretamente nas possibilidades de permanência dos moradores nesses locais, pois alterou suas fontes de subsistência, modos de vida, relações de trabalho, contribuindo para a limitação dos espaços produtivos e de vivência (DAYRELL, 1998; BRITO, 2013). Isto resultou em processos de encurralamento (SOUZA, 2017), reduzindo o território de vida dessas comunidades.

A dinâmica desses empreendimentos levou à situação, concreta e simbólica, de encurralamento das comunidades geraizeiras, tanto espacial-geográfico quanto do modo de vida (SOUZA, 2017). A imagem de um “curral” está presente, pois os moradores percebem a perda da liberdade de “campear pelos gerais” e a desestruturação dos modos de produção, convivência e expressão cultural. Segundo Nogueira (2009, p. 151), o encurralamento dos geraizeiros é o seu “[...] confinamento nas veredas e grotas, compreendendo normalmente o chão de morada, a chácara e as roças de beira d’água, mesmo que mantidas as áreas de plantio dos mantimentos”. Os sistemas tradicionais de produção perderam as chapadas, ou as “largas dos gerais”,[6] espaços que utilizavam para criação à solta de gado[7] e para extrativismo (DAYRELL, 1998), práticas produtivas que mantinham a vegetação nativa.

Os relatos coletados durante a pesquisa de campo,[8] inclusive vivenciados em caminhadas pelo território, destacam diversas situações típicas de encurralamento, com destaque para a escassez de água (SOUZA, 2017). As áreas do Cerrado, onde preponderam os monocultivos, são as chapadas, que são também espaços de recarga hídrica, pois recebem água das chuvas. A mata nativa nessas áreas permite a adequada infiltração da água nos solos, alimentando lençóis freáticos, nascentes e córregos, que surgem nas encostas. A substituição dessa vegetação por monocultivos exóticos, como é o caso do eucalipto, provoca desequilíbrios no balanço hídrico (SILVA, 2009).

Silva (2009) demonstra como a monocultura do eucalipto resulta nesses desequilíbrios hídricos, apresentando um cálculo com base na produção da biomassa. O Cerrado é considerado um bioma com baixa produção de biomassa, produzindo entre 10 e 40 toneladas por hectare, já a da monocultura do eucalipto produz mais de 300 toneladas. Como 2/3 da composição da biomassa é constituído por água, o eucalipto necessita de muito mais água para se desenvolver, retendo parte significativa da água que iria alimentar os lençóis freáticos (SILVA, 2009). Outra consequência dos monocultivos é o soterramento de nascentes, como relata Dona Clemência, da comunidade Raiz:

[...] foi na devoração deles é que as água cabou, porque eles pegô e desmatô, e gradeô terra, e aí veio a chuva, e as enxurrada desceu as barrancada de terra tudo pra dentro das nascente, que nunca mais nós vimo água, acabou com os pequizeiro, cabou com as fruta natural que tinha, cabô tudo. (Entrevista realizada em 16 de outubro de 2016)

Dona Clemência se refere ao fato de que o desmate das plantas nativas e os cortes das madeiras expõem os solos, os deixando sem cobertura vegetal. Assim, quando caem as chuvas, a água, ao invés de infiltrar no solo, provoca enxurradas e voçorocas, devido ao escoamento superficial, levando a terra solta para as encostas, justamente onde estão as nascentes (DAYRELL; DAYRELL, 2014). Nas três comunidades estudadas, foi constatada a extinção de dezenas de nascentes em seus territórios, fenômeno observado depois da expansão dos monocultivos (SOUZA, 2017). Durante caminhadas na comunidade Moreira, foi visualizada a intensa presença de voçorocas e grande quantidade de nascentes soterradas ou extintas. Em Sobrado e Raiz foram mostrados diversos leitos de córregos totalmente secos, os quais eram perenes antes da chegada dos empreendimentos. A extinção de nascentes – combinada com a diminuição do volume e a contaminação de cursos d’água – é um elemento fundante do encurralamento. A restrição espacial é aprofundada com a escassez hídrica, impedindo a reprodução social das comunidades e famílias (SILVA, 2007).

Uma consequência do encurralamento é a migração (êxodo rural), com especial gravidade na comunidade Raiz, em virtude da falta de condições e espaço para produzir ou acesso a outras fontes de renda, aliada à perda da liberdade. Alegam os comunitários que a proibição de pegar um feixe de lenha, mesmo que seco, na área de eucalipto – já que não tinham mais acesso ao Cerrado – está entre as “memórias mais doídas”. Isto está refletido nas falas, como a do senhor José:

[...] se a gente fosse panharuns pau de lenha pra poder ponhar no fogão, oh meu Deus do céu! Quantas pessoa lá que não teve que evinha com um feixe de lenha nas costa e teve que jogar no chão. E o cara [funcionário da empresa] falava assim: “agora cê pega e leva e joga lá dentro do eucalipto que é pra apodrecer lá e pra virar adubo na terra, porque não era pra tirar de lá de dentro”. (Entrevista realizada em 27 de abril de 2016)

Outras dimensões do encurralamento afetam diretamente o pastoreio e o trato com os animais de criação, como contou o senhor José:

Dentro dessa opressão que a gente sentia na firma lá tinha de todo tipo, tinha um homem (apelidado de “Ravengar” pelos comunitários), por exemplo, de Taiobeiras; que morava dentro da sede da empresa; que criava uns gado na sede da Replasa. E como a comunidade tinha o costume de criar as criação na solta, aí quando um gado da gente chegava lá, ele pegava e fechava no curral, sabe? Inclusive meu tio, por exemplo, aconteceu duas ou foi três vezes; a vaca pariu lá no mato, na chapada, desceu pra beber água. E aí ele pegou e prendeu a vaca; aí o bezerro morreu de fome na chapada, porque a vaca ficou presa no curral; não conseguiu ir lá dá de mamá ao bezerro né? Três dia, o suficiente pro bezerro morrer. (Entrevista realizada em 27 de abril de 2016)

Em Moreira, é destacada a perda da diversidade produtiva. A falta de água tornou impossível produzir em quantidade e variedade como há algumas décadas. Na comunidade Sobrado, tem destaque a contaminação da água até das torneiras das casas, em razão da criação de suínos nas proximidades das principais nascentes (SOUZA, 2017).

Há ainda encurralamento no âmbito cultural, pois foram identificados problemas e dificuldades nas práticas de sociabilidade e festejos tradicionais nas comunidades. O senhor Antônio, liderança da comunidade Água Boa II, relatou que a monocultura de eucalipto interferiu drasticamente na vivência familiar. O trabalho nas “firmas”[9] retirou jovens, pais e, em vários casos, também mães do convívio cotidiano do lar (êxodo para trabalhar; separação entre espaço de vida e de trabalho; migração; dificuldades de sucessão nas atividades tradicionais da família etc.).[10] Por outro lado, a presença de trabalhadores (pessoas de fora) nos espaços comunitários também vem gerando conflitos (SOARES, 2011).[11]

O encurralamento dos geraizeiros se tornou possível a partir de uma lógica histórica de invisibilidade das comunidades e modos de vida (OLIVEIRA, 2017), ou seja, a lógica colonial (negação do outro) permitiu desconhecer ou negar a existência (PORTO- GONÇALVES, 2006) e as práticas produtivas, afirmando que as chapadas estariam desocupadas ou com baixo aproveitamento. Essa invisibilidade favoreceu a invasão dos territórios tradicionais por empreendimentos monocultores, causador do encurralamento.

Consequentemente, invisibilidade, isolamento e encurralamento são causas e consequências, que se retroalimentam e negam direitos das comunidades geraizeiras (SOUZA, 2017). Invisibilidade e isolamento permitiram o desenvolvimento dos laços ancestrais, mas causaram o encurralamento. Este, por sua vez, tem sido também a motivação para as lutas e a busca por direitos tradicionais, especialmente o direito territorial. A invisibilidade histórica, algo comum entre diversos povos e comunidades tradicionais no Brasil, tem sido reforçada pelo mutismo jurídico em relação a esses grupos (SOUZA, 2017) e seus modos de relação com a natureza e territorialidade (SILVA, 2007).

 

Alteridade, antagonismo e reciprocidade na reconstrução identitária geraizeira

A Constituição de 1988 abriu possibilidades para o reconhecimento da diversidade sociocultural brasileira, de forma a incluir grupos com categorias identitárias e territoriais específicas, diferenciadas das formas convencionais respaldadas pela lei até então (SHIRAISHI NETO, 2009).[12] Como resultado de lutas sociais, surgiram instrumentos legais que fortalecem aspectos jurídicos relativos às populações tradicionais. Dentre os instrumentos legais, destacam-se o Decreto no 6.040, de 2007[13] e a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. No estado de Minas, a Lei no 21.147, de 2014, instituiu a Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.[14] Na esfera municipal, em 2015, foi aprovada a Lei no 1.629 – denominada Lei João Tolentino –, elaborada pela comunidade Sobrado, de Rio Pardo de Minas.

Tais dispositivos jurídicos são acionados pelas comunidades geraizeiras em seus processos de resistência e lutas contra o encurralamento, reivindicando direitos territoriais, nos termos estabelecidos pelo Decreto no 6.040, de 2007. Este decreto, que instituiu a Política dos Povos e Comunidades Tradicionais também definiu os territórios tradicionais como “os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas [...]. Porém o fosso existente entre os aparatos legais e sua implementação faz surgir contestações a morosidade, lentidão, burocracias e ineficiência do Estado no reconhecimento e demarcação de terras e territórios (OLIVEIRA, 2017).

Essa morosidade reforça o aparelhamento estatal hegemonizante que, historicamente, dicotomizou interesses públicos e privados, em uma “razão instrumental” (LITTLE, 2003) contra o reconhecimento de territórios e de direitos de comunidades tradicionais. Em contraposição, a “razão histórica” (LITTLE, 2003) dos movimentos emancipatórios de grupos tradicionais dá sentido às resistências e lutas identitárias e políticas (ALMEIDA, 2008). Nos termos do autor, formas associativas desses coletivos,

[...] agrupam e estabelecem uma solidariedade ativa entre os sujeitos, delineando uma “política de identidades” e consolidando uma modalidade de existência coletiva [...], correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e asseguram sua reprodução física e social. Em outras palavras pode-se dizer que cada grupo constrói socialmente seu território de uma maneira própria, a partir de conflitos específicos em face de antagonistas diferenciados, e tal construção implica também numa relação diferenciada com os recursos hídricos e florestais. Tal relação, de certa maneira, está refletida na diversidade de figuras jurídicas verificadas nos textos constitucionais, nas leis e nos decretos. (ALMEIDA, 2008, p. 72)

Segundo Almeida (2008), a (re)construção identitária, em processos de autorreconhecimento (ou autoidentificação), tem como base e resulta em territorialidades específicas, ou seja, jeitos de ser, viver e produzir no território. Esta construção social do território é parte fundante do que Porto-Gonçalves (2006) define como territorialidades emancipatórias, incluindo ações autodemarcatórias de espaços e lugares, ou seja, criação de território (SILVA, 2007).

Os atos de autodemarcação territorial – estratégia inaugurada pelos indígenas, que vem sendo acionada por outros povos e comunidades tradicionais – são realizados como mecanismo para garantir direitos, compondo processos de autorreconhecimento e construção identitária (OLIVEIRA, 2017). Com princípios metodológicos horizontalizados, baseados na participação protagônica de comunitários, e com o apoio de equipes técnicas, é realizado um trabalho de mapeamento do território, relacionando história e identidade do grupo, para sua posterior demarcação e georreferenciamento (ROCHA et al., 2016).[15] No caso dos geraizeiros, é um processo em que a comunidade reafirma sua identidade, expressando a reivindicação do território usurpado. Manifesta abertamente o conflito, expressando choques de interesses da comunidade e os de uma grande empresa monocultora, manifestando relações de antagonismo ostensivo (DAYRELL; DAYRELL, 2014; SOUZA, 2017).

Historicamente, os habitantes dos Gerais estabeleceram uma identidade territorial apoiada na paisagem (na relação com a natureza) em que viviam, e na contrastividade com outros territórios e identidades, como os povos da Caatinga. Segundo Nogueira,

[...] consistindo em agrupamentos de algumas ou muitas famílias mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, bem como pela convivência proporcionada por práticas de auxílio mútuo e atividades lúdico religiosas, para esses agrupamentos a questão da identidade geraizeira, enquanto tal, não estava colocada senão quando confrontados a grupos culturalmente distintos. Historicamente, a alteridade para os geraizeiros se fazia representar nos Caatingueiros – para quem trabalhavam na lavoura de algodão ou vendiam seus produtos nas feiras locais. (2009, p. 129)

Nessa alteridade, a alcunha “Geraizeiro Cacunda di librina” seria um chiste dado pelos catingueiros aos geraizeiros, os quais vinham das serras dos Gerais. Frequentemente cobertas pela neblina, umidade era gerada nas costas dos viajantes, também chamados de tropeiros (DAYRELL; DAYRELL, 2012). Como explicou Adeilson, liderança da comunidade Moreira, esse apelido era uma forma respeitosa de tratar quem vinha dos Gerais. Afirmou que “[...] a única coisa que eles [os catingueiros] caçoavam é que nos Gerais não se abria a roça para criação de gado; na Caatinga deixam o campo limpo; cada lugar tem um sistema, né? [...] Mas um precisa do outro” (entrevista em 16 de abril de 2016). O senhor Antônio, também da comunidade Moreira, lembra o tempo em que fora tropeiro: “Nós era bem recebido, moço! [...] Os geraizeiros lá tinha vez [...]. As mercadoria que nós levava sempre nós trabaiô enrriba da consciência também; as mercadoria de nós era boa; podia levar o tanto que fosse, que uma pessoa sozinha topava tudo [...]” (entrevista em 6 de novembro de 2016).[16]

As relações de sociabilidade entre geraizeiros e caatingueiros, inclusive com trocas mercantis (SABOURIN, 2011), marcam a alteridade histórica nos modos de vida nos Gerais. Além de contribuir para a construção identitária, baseada no encontro entre povos em contraste, as relações tinham como fundamento laços de reciprocidade entre os grupos e comunidades, inclusive que marcam a memória dos mais antigos (NOGUEIRA, 2009; OLIVEIRA, 2017).

Diferente das relações de sociabilidade, o encurralamento é expressão de antagonismos, conflito suscitado pela expansão dos monocultivos. Para entender os processos de autodenominações dos geraizeiros na contemporaneidade, é necessário compreender os “[...] mecanismos em ação na luta simbólica pela imposição dos critérios de reconhecimento coletivo da(s) identidade(s)” (NOGUEIRA, 2009, p. 119). Tomando a noção de Simmel de conflito como uma “interação vívida” e “força integradora”, este age como energia centrípeta entre comunidades afetadas, gerando coesão social e possibilidades concretas de autoidentificação, (re)construção identitária e sentido de pertencimento (SAUER, 2008, p. 253). O ajuntamento de forças coletivas em conflito, composto por dezenas de comunidades, imprime ao reconhecimento identitário sua força política na luta por direitos, fazendo da autodenominação do geraizeiro uma identidade política (SILVEIRA, 2014; SOUZA, 2017).

Esse processo de (re)construção identitária por meio do movimento sociopolítico promove a eficácia performativa da identidade, o que se traduz pela saída dos geraizeiros do anonimato político. Em um paralelo com os trabalhadores rurais da Paraíba, estudados por Novaes (1997), as mobilizações e lutas retiraram o campesinato[17] do isolamento e do anonimato político. A reafirmação da identidade se dá, portanto, a partir do antagonismo e contraposição,  manifesta por um conflito com o latifúndio (explícito no caso das lutas dos trabalhadores na Paraíba) e com monocultivos de eucalipto, servindo de mola definidora da identidade, combinando ou reforçando valores comuns partilhados anteriormente (SAUER, 2008; SOUZA, 2017).

A assunção política da identidade geraizeira ocorre a partir de enfrentamentos com as grandes empresas silvicultoras ou empresários locais, perfazendo uma relação de antagonismo em uma relação conflituosa de disputa e oposição manifesta politicamente (OLIVEIRA, 2017). É como consequência dessa relação antagônica que surge a necessidade ou a consciência da retomada territorial e luta por direitos, com base no autorreconhecimento e reafirmação da identidade geraizeira (SOUZA, 2017).

Alteridade e antagonismo se mostram como mecanismos de contraste reconstrutores da identidade geraizeira. O primeiro se refere à demarcação dos limites e sentidos territoriais e culturais construídos historicamente. O segundo gera, nos processos de disputas e resistências, coesão social e ressignificações, inclusive a descoberta de direitos (SAUER, 2008).

Aliada à identidade, a reciprocidade[18] seria outro mecanismo definidor da territorialidade acessado pelas comunidades geraizeiras. Contribui como aglutinador e animador dos laços coletivos, além de colaborar para o enfrentamento de adversidades. A reciprocidade, em regimes de uso comum,[19] é elemento importante na defesa dos direitos coletivos, perante os antagonismos externos (ALMEIDA, 2008). Ajuda na manutenção de domínios e usos comuns, diante da constante pressão capitalista para incluir os territórios no progresso (ou seja, no mercado de terras), gerando concentração fundiária, frequentemente por meios ilícitos, ou seja, grilagem de terras (SILVA, 2009).

A reciprocidade permeia o modo de vida geraizeiro em suas relações de parentesco, nas práticas produtivas, comerciais, religiosidade, manifestações culturais e organizacionais. As práticas produtivas e utilitárias são fundamentadas em regras tradicionais de uso compartilhado de bens comuns, como as chapadas na pecuária. Para a solta do gado, por exemplo, os moradores precisam uns dos outros nos cuidados com as criações, fomentando a reciprocidade (BRITO, 2013).

Na vida cotidiana, há o compartilhamento de bens, por meio de campanhas, leilões ou festas para arrecadação e doação para alguém mais necessitado, de bens alimentícios, vestuários, ou recursos financeiros para tratamento de doenças, trocas e compartilhamento como parte da reciprocidade (SABOURIN, 2009). Na comunidade Sobrado, os mutirões fazem parte da agenda mensal dos moradores, que se organizam geralmente para construção ou reforma de casas, limpeza ou reforma de estradas e desentupimento de canais de captação de água (OLIVEIRA, 2017; SOUZA, 2017), fomentando a reciprocidade que não se reduz a relações e simples troca de bens (SABOURIN, 2011).

A religiosidade também fornece um forte senso de partilha. À luz de uma religiosidade apregoada pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as resistências das comunidades geraizeiras vivenciam uma espiritualidade que sintetiza a fé com a luta por direitos (BRITO, 2013). Na união entre fé e política, doar e partilhar se tornam parte de uma moral cristã, na ideia de que não se pode ter uma sociedade justa na qual se opera o egoísmo. Festividades religiosas como as festas de São João, da Bandeira Roubada, Folia de Reis e do Divino são eventos de pura dádiva mútua que, mesmo sendo guardados momentos espirituais e ritualizados, são dedicados à alegria, regados a cantorias, danças e descontrações, fartura de alimentos e doações por parte dos organizadores (NOGUEIRA, 2009; SOUZA, 2017).

 Com as investidas dos empreendimentos econômicos predatórios e a expansão da fronteira agrícola (SAUER, 2010), as comunidades geraizeiras vivenciam processos de expropriação territorial e impactos socioambientais (BRITO, 2013). Estes interferem em todos os aspectos da vida, inclusive nos laços tradicionais de reciprocidade, pois a perda de território reduz a autonomia e a liberdade, além de diminuir a capacidade produtiva, em quantidade e diversidade. Como consequência, há diminuição da capacidade de comercialização e de partilha, fragilizando a reciprocidade (SOUZA, 2017).

Os movimentos de resistência fazem surgir outros níveis de reciprocidade, relacionados à organização política e de coletivos. A união de diversas comunidades geraizeiras, que viviam e vivem em situações de expropriação de seus modos de vida, formou o chamado Movimento Geraizeiro – Guardião do Cerrado. Este conta com a adesão e apoio de diversas instituições, incluindo articulações com outros povos e comunidades tradicionais,[20] que contribuem nas reflexões e discussão de estratégias, oferecendo ainda assessoria técnica e jurídica, além de colaborarem com as ciências da natureza, economia solidária etc.[21] Com a formação desse movimento, as comunidades geraizeiras transformaram a resistência em frentes de ação e lutas políticas, com manifestações reivindicatórias, ocupações, autodemarcações, denúncias etc. (OLIVEIRA, 2017; SOUZA, 2017).

O movimento luta por políticas públicas e por novos ordenamentos jurídicos, inclusive na esfera municipal, que atendam as especificidades, mas também luta pelo reconhecimento e proteção dos modos de vida (OLIVEIRA, 2017) e das relações de reciprocidade (SOUZA, 2017). As ações resultaram na recriação de territórios de uso comum, implicando compartilhamento de bens e gestão comuns. Mesmo que de modo parcial, a recriação identitária em territórios conquistados é realidade, como no caso da Vereda Funda, que implantou um Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE Veredas Vivas) em área antes destinada aos monocultivos (BRITO, 2013). A comunidade Água Boa II – juntamente com outras de municípios vizinhos – conquistou, em 2014, a decretação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável “Nascentes Geraizeiras”, protegendo mais de 47 mil hectares de remanescentes de Cerrado, que estavam ameaçados por empreendimentos e pelo avanço da fronteira agrícola (SOUZA, 2017).

 

As comunidades Raiz, Moreira e Sobrado: conflitos e estratégias por território e água

As comunidades Raiz, Moreira e Sobrado lutam, com base em processos de autorreconhecimento, como população tradicional geraizeira, em virtude de ameaças à manutenção física e cultural de seus territórios, resultante de empreendimentos econômicos que se instalaram em espaços de reprodução social e produtivos. O caráter pragmático desses autorreconhecimentos se manifesta como fundamento utilizado na luta por direitos ou na construção de projetos de leis, como alternativa para resolver seus conflitos socioambientais (SOUZA, 2016). Nesses processos, os elementos simbólicos e subjetivos de caráter tradicional – como modos de vida, religiosidade, relação histórica com o território, por exemplo – são mesclados com a realidade material – espaço produtivo, produção, água, áreas de uso comum etc. – e com os elementos de antagonismo, na manifestação de sua identidade e sentidos de territorialidade (BRITO, 2013). Esses elementos emergem e se materializam em lutas e resistências buscando realidades objetivas que favoreçam a permanência em seus territórios e manutenção de modos de vida (NOGUEIRA, 2009). Dona Clemência destaca a importância da água como elemento de ligação com o território, mas também como elemento essencial na deflagração do conflito:

Antes dessa empresa chegar, a gente tinha muita coisa; a gente tinha muita fruta, pequizeiro, mangabeira, rufãozeiro, muita fruta nativa da chapada. Depois que essa firma chegô, cabô tudo! Hoje existe algum pé n’algum lugar. E sobretodo é a água. O que mais me deixa triste com a chegada dessa firma é a água; porque no tempo que não tinha essa firma aqui, todo lado que nós oiasse tinha nascentezinha de água; inclusive aonde que eu moro era um lugar tão rico de água, tão rico, e hoje a gente óia [...] não tem nada de água. O lugar que era o rio pode plantar. (Entrevista realizada em 16 de outubro de 2016)

No caso de Raiz, é emblemática a incidência do eucaliptal sobre o território da comunidade, cujos limites chegaram até o quintal dos moradores. A área total apropriada pela empresa foi tão grande que quando os moradores se deram conta descobriram que até os espaços de moradia estariam em área irregular, segundo a empresa, pois estariam situados em sua área de reserva legal (SOUZA, 2017). A empresa alega que a comunidade seria, portanto, a invasora, sendo que declarou reservas ambientais[22] sem nenhuma consulta ou consideração aos moradores que estão ali há gerações. Além disso, a área restante de Cerrado é insuficiente para suprir a comunidade em suas necessidades, pois perderam espaço para criação, coleta de frutos e de lenha (SOUZA, 2016).

A documentação da área, em posse da empresa, é um dos aspectos contestados pela comunidade. As suas lideranças, como o senhor José (entrevista em 27 de abril de 2016), consideram no mínimo duvidosas as várias retificações de área realizadas em favor do empreendimento, contestação que também é feita por moradores durante reuniões (SOUZA, 2017). Tamanha extensão[23] da área expropriada só foi possível com o auxílio de mecanismos duvidosos de legitimação de posse, que até hoje recebe protesto dos moradores. Os indícios de grilagens – tendo por base os documentos cartoriais acessados, nos quais não se justificam as retificações ocorridas – demonstram como os meios jurídicos também são usados de forma ilícita para concentrar terras nas mãos de elites empresariais, contra camadas sociais em situação de invisibilidade (SOUZA, 2017).

Uma das estratégias adotadas no início das mobilizações, ocorridas por volta do ano de 2008, além de “parar máquina”,[24] foram ocupações em áreas cercadas pela empresa. Segundo explicou o senhor José, as comunidades montaram acampamento e realizaram plantios coletivos (entrevista em 27 de abril de 2016). As ações de resistência contribuíram para chamar a atenção das autoridades, explicitando o conflito, mas também alcançando determinados resultados práticos, como frear certas ações da empresa. Alguns desses atos, principalmente “paradas de máquinas” e “ocupações”, geraram processos judiciais e criminalização de moradores (SOUZA, 2017). O encurralamento espacial ou territorial se estendeu para o campo jurídico, inclusive as liminares judiciais afetaram até as crianças da comunidade.

A comunidade Moreira, além do monocultivo de eucalipto, foi afetada pela extração de manganês, entre 1970 e 1980, por empresas mineradoras. Essa atividade gerou grande exposição dos solos, provocando processos erosivos e assoreamento nos cursos d’água. Enormes quantidades de terra e pedra desceram as encostas, soterrando córregos e nascentes, intensificando a degradação causada pelo eucaliptal. O resultado foi a escassez de água, impondo sérias restrições à diversidade produtiva da comunidade (DAYRELL; DAYRELL, 2014). Como afirmou Adeilson,

As coisas vêm mudando muito rápido. Há uns quinze anos atrás, essa comunidade era muito diferente do que é hoje; se for observar o modo de produção e comercialização, mudou assim; fez assim oh (gestos de estralar os dedos) duma vez, né? Aqui [...] as famílias viviam basicamente da chácara. Cícero é prova viva; Lia é. Cícero tinha sua chácara aqui imensa; o pai dele ali tinha, todos tinha. Aí essa chácara produzia; todo sábado, o ônibus tinha que pegar o povo aqui e levar pra feira; a renda do povo era garantida. (Roda de conversa em 24 de abril de 2016, em Moreira)[25]

A abundância anterior propiciava a presença de chácaras em todas as casas da comunidade, onde se produzia uma diversidade de frutos e leguminosas. A restrição dos espaços para cultivos – visto que restaram poucas áreas com alguma umidade – fez com que a produção se concentrasse na mandioca, planta mais resistente à estiagem. Isso causou impactos sobre a renda dos moradores, pois esse cultivo possui uma única safra anual. A renda principal da comunidade também passou a ser anual, pois já não possui diversidade e quantidade de produtos para enfrentar a sazonalidade agrícola (SOUZA, 2017). Esse processo levou os moradores a denominar o cultivo da mandioca como “outra monocultura” (afirmação na roda de conversa em 24 de abril de 2016, em Moreira).

Os relatos demonstram como a falta de água afeta tanto a questão produtiva como a comercialização, impactando também nos laços de sociabilidade e reciprocidade, presentes nas relações com a feira local. Com a restrição produtiva, os moradores da cidade perderam parte de suas referências na obtenção de produtos vindos dos geraizeiros de Moreira, que conheciam e por quem já tinham estabelecidos laços de confiança mútua (SABOURIN, 2011; SOUZA, 2017).

Como resistência a essa situação, a primeira ação coletiva direta ocorreu em 2013, quando certa empresária, de posse de um registro de uma área de quase 160 hectares (conforme registros nos arquivos da Associação da Comunidade Tradicional Geraizeira do Moreira), começou a cercar uma área de eucalipto. Lia, complementada por outras lideranças presentes na roda de conversa, relatou:

Lia: Aí quando foi um dia, sem mais nem menos, chegaram assim; acho que foi até Dai [...] que tava passando na estrada aqui: “Oh, tá fechando estrada lá; [...] chegou uns lá que diz que é dono da chapada e tá fechando a estrada, já tá abrindo buraco [...]”Aí o povo [...] falou assim: “Ué, nós têm que fazer alguma coisa, porque nós num pode deixar cercar as estrada nossa. [...] Ué será que alguém que é dono do eucalipto?” Aí lembrou do que tinha sido conversado antes; porque a terra aí é nossa. E nós que tinha que lutar por ela e chega outro dizendo que é dono [...]

Cícero: Foi até uma aguilhada que deu, também! Aquela cerca lá foi uma aguilhada que deu pra, pro povo [...]

Adeilson: Acordar né, Cícero? [...]

Lia: Decidimos fazer uma reunião pra ver o que o povo achava [...] Só que nós não sabia como; o que nós precisava fazer [...]. Aí fomos buscar apoio no Sindicato [STTR/RPM], que tem experiência nisso [...] Aí orientou: “Cês vai lá e tenta barrar a cerca; a partir daí nós vamo apoiar no que precisar [...]”. Aí foi quando nós reunimos aqui e convidamos Vereda da Onça e São Camilo [duas comunidades vizinhas de Moreira], que todo mundo dependia da estrada. No outro dia, cinco e meia da manhã, nós já tava aqui; nós juntamo aqui mais de cinquenta pessoa [...]. (Roda de conversa em 24 de abril de 2016)

De acordo com os relatos, esse momento é considerado o início da resistência organizada, com vários embates com os invasores e tentativas de enfrentar o encurralamento. O cercamento de terras fechou estradas utilizadas pelos moradores, tanto de Moreira, como de comunidades vizinhas (SOUZA, 2016). Pelas informações dos moradores, essa área estava de posse da empresa Gerdau, o que gerou desconfiança sobre a legitimidade dos documentos utilizados para o cercamento (roda de conversa em 24 de abril de 2016).

Os buracos, abertos para fixar as estacas da cerca, passavam pelos carreadores, portanto, a cerca iria fechar as estradas, comprometendo a passagem dos moradores de diversas comunidades. Os moradores entendem que essa intromissão de uma terceira pessoa, reivindicando a área, foi um estopim – ou uma “aguilhada” – para que a comunidade passasse a agir mais concretamente para retomada do território. Portanto, a partir de 2013, a comunidade segue em processos organizativos e articulações na busca por alternativas, realizando, inclusive, a autodemarcação territorial e projetos de restauração ambiental e hídrica (SOUZA, 2016, 2017).

A comunidade reivindica 230 hectares de Chapada, que está plantada com eucalipto, em posse da Gerdau à época da pesquisa. O objetivo da retomada dessa parte do território, como enfatizam as lideranças, é torná-la uma área de reserva, recuperando a vegetação nativa e para uso comum com o extrativismo, conforme faziam tradicionalmente (SOUZA, 2016).

Em Sobrado, a degradação foi intensificada com a devastação causada por um empresário urbano, após aquisição de uma área no local em meados dos anos 1990 (OLIVEIRA, 2017). Como alegam os moradores, ele teria comprado uma área de aproximadamente 30 hectares, porém passou a explorar aproximadamente mil hectares, em áreas próximas a nascentes de um dos principais córregos, o Caiçara, que abastecem a comunidade. Essa era uma área de uso comum dos moradores, principalmente para extrativismo e coleta de água para as residências (SOUZA, 2016; OLIVEIRA, 2017).

Com a drástica diminuição no fluxo hídrico nos córregos e nascentes, em 2002, os moradores detectaram que a causa vinha de diversas atividades do dito “posseiro” (OLIVEIRA, 2017). Esse realizou desmate de extensa área nativa próxima a córregos para a produção de carvão, abertura de pastos e criação de porcos, inclusive próximo à nascente do córrego Caiçara. O desmatamento e a criação geraram contaminação e assoreamento dos cursos hídricos, que eram utilizados pelas famílias, inclusive de comunidades vizinhas. Após infrutíferas tentativas em dialogar ou negociar com o empresário, os moradores partiram para denúncias por crime ambiental e protestos, o que infelizmente não impediu a continuidade das atividades predatórias (SOUZA, 2017). No entanto, após quase 10 anos desses embates, resultado de audiências judiciais e negociações, inclusive envolvendo a Prefeitura local, ficou acordada uma permuta de área, ocorrendo a saída do dito posseiro (OLIVEIRA, 2017). Contudo, como a negociação não foi finalizada com uma definição formal, as ameaças e processos judiciais pela reintegração de posse voltaram a perturbar a comunidade (SOUZA, 2017).

O longo processo de organização e resistência levou os moradores de Sobrado à decisão de propor um Projeto de Lei Municipal de Iniciativa Popular.[26] O objetivo era garantir a proteção e o reconhecimento (formal e legal) de seu território geraizeiro, desenvolvendo um processo de autorreconhecimento identitário como população tradicional (SILVEIRA, 2014).[27] Propostas e possibilidades de criar uma unidade de conservação (como as legalmente reconhecidas como parques ou reserva extrativista) foram discutidas, mas não foram aceitas, pois não preveem controle autônomo por parte da comunidade (SOUZA, 2017).

A proposta original do projeto de lei abrangia todo o município, abarcando todas as comunidades geraizeiras (SILVEIRA, 2014). Porém isso foi vetado pelos poderes públicos durante os trâmites na Câmara Municipal, ficando restrita à comunidade Sobrado. Consequentemente, o movimento geraizeiro estuda formas e propostas para ampliar a abrangência dessa medida para outras comunidades (OLIVEIRA, 2017).

A Lei Municipal no 1.629, de 10 de abril de 2015 (denominada Lei João Tolentino), busca valorizar e reconhecer Sobrado como comunidade tradicional geraizeira. Isto inclui a proteção de seu território de ações predatórias, que comprometam a biodiversidade e as fontes hídricas, além de prever a posse efetiva do território ao coletivo. Para isso, seus costumes e tradições deverão ser valorizados, devendo ser assegurada a permanência da comunidade em seu território e a proteção diante de conflitos e de empreendimentos na comunidade (SILVEIRA, 2014; OLIVEIRA, 2017).

O diferencial da Lei João Tolentino, em relação a outros mecanismos jurídicos, é que aprofunda a especificidade da situação geraizeira, em suas relações territoriais e modos de vida, no âmbito legal. Aspectos contraditórios, explícitos nos vetos ou na inclusão de condicionantes, acabaram fragilizando ou mesmo não preservando todos os interesses reais e originários da comunidade (OLIVEIRA, 2017; SOUZA, 2017). No entanto, é fundamental ressaltar que a proposta de um projeto de lei municipal é um mecanismo inovador criado pela comunidade. Esta luta e experiência podem abrir caminhos para avançar na autonomia comunitária, na reconstrução identitária, nas retomadas territoriais, não só para a comunidade Sobrado, mas para outras comunidades em Minas Gerais (OLIVEIRA, 2017; SOUZA, 2017).

 

Conclusão

Nos caminhos percorridos pelas comunidades geraizeiras Raiz, Moreira e Sobrado, fica explícita a pressão fundiária exercida sobre os territórios pelas grandes propriedades e cultivos de eucalipto, portanto, está claro também a resistência ao encurralamento e buscas pela retomada territorial. Nessas lutas e resistências, acessam a ancestralidade, como forma de expressar sua identidade tradicional na luta pelos direitos a um modo de vida sustentável em seus locais de origem. Para atingir tal objetivo, no entendimento dos geraizeiros é essencial recuperar a gestão autônoma e comunitária do território, o que permitirá o uso adequado de forma a evitar degradações que vão contra a existência desses povos.

Os elementos identitários destacados são de fundamental importância para a aglutinação coletiva a favor da luta. Elementos comumente entendidos como subjetivos, como religiosidade, relação cosmológica com o território, manifestações culturais etc., se mostram essenciais nos processos de conscientização e identificação dos moradores com as propostas de ações a favor das retomadas, se tornando realidades palpáveis. No entanto, a reconfiguração identitária e territorial é reafirmada também a partir da relação antagônica com os que usurparam parte de seu território: Raiz e Moreira, empresas monocultoras; Sobrado, empresário local.

A água é o elemento essencial a ser protegido e recuperado, para que se alcancem esses objetivos. Em todas as comunidades estudadas, é a sua falta que pulula nas falas dos moradores quando se referem à invasão e à permanência dos grandes empreendimentos em seus territórios. O direito a permanecer na terra onde nasceram, a manter e reproduzir seus modos de vida depende intrínseca e primordialmente do acesso a ela. Medidas paliativas, como cisternas, poços artesianos e caminhões-pipas, se contribuem para tal acesso, têm clara limitação nesse sentido, pois são de alto custo social e econômico e não oferecem nem a qualidade necessária nem segurança futura no abastecimento.

As comunidades reivindicam seus territórios com o intuito, como os próprios geraizeiros dizem, de “plantar água”. A recuperação de nascentes, córregos e rios é que dará segurança hídrica para consumo humano e cultivos em escala sustentável. Tal recuperação será possível com a regeneração da vegetação nativa em áreas críticas, como na borda de chapadas e próximas a nascentes, o que cria possibilidades de realimentação hídrica dos lençóis freáticos. Há, portanto, um imbricamento entre a questão territorial – que em uma visão mais imediatista se restringiria a beneficiar as comunidades em luta – e a questão da água, que deve ser entendida como algo que beneficia a todos, para além das comunidades. Suas resistências engrossam o chamado “novos movimentos sociais” que vêm trilhando caminhos reveladores da necessidade de uma “outra reforma agrária”, ou outras políticas fundiárias que reconheçam a diversidade das territorialidades e dos direitos, no estado de Minas e no país, e considerem também a questão hídrica.

A luta dos povos e das comunidades tradicionais tem tido resultados, como nos meios legais, que têm auxiliado na sua saída da invisibilidade. Das normas jurídicas à realidade prática ainda há muitos passos a serem dados, no que concerne à retomada e ao reconhecimento territorial. Mas as comunidades, através da formação de redes de apoio mútuo, criam e recriam estratégias de reapropriação de seus territórios, como a autodemarcação, criação de leis, e relatórios antropológicos e ambientais. E, no mínimo, fazem transparecer os impactos sobre o meio ambiente e sobre suas vidas por meio de conflitos que, por sua vez, pressionam os poderes públicos a formularem mecanismos de reconhecimentos de outras identidades e territorialidades tradicionais.

 

 

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Como citar

SOUZA, Jonielson Ribeiro de; SAUER, Sérgio. Antagonismo e reciprocidade na (re)afirmação identitária dos geraizeiros: luta por território e água no norte de Minas Gerais. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 676-699, out. 2020. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v28n3-8.



 

Jonielson Ribeiro de Souza

Doutorando no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (PPGIPC/FCS/UFG).

jonielsondesouza@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7035-9914
http://lattes.cnpq.br/0008902073655939

Sérgio Sauer

Professor na Faculdade UnB de Planaltina (FUP), no Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPG-Mader) e no Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS), da Universidade de Brasília (UnB). Doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).

sauer.sergio@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2014-3215
http://lattes.cnpq.br/2783679231462590

 

 

 

 

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[1] Doutorando no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás (PPGIPC/UFG). E-mail: jonielsondesouza@gmail.com.

[2] Professor na Faculdade UnB de Planaltina (FUP), no Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPG-Mader) e no Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS), da Universidade de Brasília (UnB). Doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: sauer.sergio@gmail.com.

[3] Em Minas Gerais, o governo federal implantou dois programas de empreendimentos florestais: o Plano Siderúrgico Nacional a Carvão Vegetal e o Programa Nacional de Papel e Celulose. Também criou, em meados dos anos 1970, o Fundo de Investimentos Setoriais (Fiset), com a finalidade de subsidiar atividades reflorestadoras e outros ramos (DAYRELL, 1998; NOGUEIRA, 2009; BRITO, 2013).

[4] Colonialismo “[...] se entiende típicamente como relación política y económica que involucra la soberanía de un pueblo o nación sobre otro en cualquier parte del mundo” (WALSH, 2012, p. 66), mas colonialidade é o padrão de poder, exercido a partir da colonização europeia sobre outros países. A colonialidade é a permanência das relações e estruturas de poder, em uma subalternização pela racialização, que se mantém na contemporaneidade (WALSH, 2012).

[5] O poder colonial, ligado ao capitalismo mundial, tem como base o controle e domínio de povos vistos como inferiores (evocando, inclusive, noções de raça e racismo), com a naturalização das relações de subordinação (WALSH, 2012). Portanto, projeto decolonial é aquele que “[...] pretende visibilizar y enfrentar la matriz colonial de poder [...]”, ou seja, a própria “colonialidad de poder(WALSH, 2012, p. 66).

[6] “Largas dos gerais” é outra expressão usada pelos geraizeiros em referências às áreas de chapada.

[7] O gado era criado ‘à solta’ nas chapadas, área comum usada pelos moradores, principalmente na época das chuvas, sem uso de currais ou cercados. Portanto, o modo de produção está baseado no controle dos animais e não no controle da terra (NOGUEIRA, 2009).

[8] Conforme mencionado na Introdução, o levantamento sistemático de informações foi realizado por meio de seis (6) entrevistas, uma roda de conversa na comunidade Moreira e cinco (5) caminhadas em Sobrado e Moreira. A roda de conversa possibilitou trocas e complementos entre as/os participantes, sendo que temas e narrativas foram conduzidos pelos próprios. Trocas e interações trouxeram nuances, revelações e interesses, além de participações com a intercalação de vozes, acréscimo de detalhes, corroboração, reforços de pontos considerados importantes entre os próprios interlocutores. As entrevistas individuais seguiram um roteiro semiestruturado e possibilitaram realçar narrativas e informações relevantes, sendo que os informantes detinham saber acumulado, tanto sobre processos de luta (como no caso de lideranças), quanto sobre conhecimentos tradicionais (como no caso de anciães e anciãos), reconhecidos pelos comunitários.

[9] “Firma” é o nome comumente dado pelos moradores locais às empresas monoculturas de eucalipto.

[10] Este registro foi realizado durante o Seminário da Agricultura Familiar (STTR/RPM) com depoimento coletado no dia 22 de julho de 2016.

[11] Soares (2011) analisa como “forasteiros”, a maioria vinda de outros estados, provocaram o surgimento de confusões e brigas durante os reisados da comunidade Vereda Funda, também município de Rio Pardo de Minas, causando a interrupção do evento em diversos momentos.

[12] Segundo Shiraishi Neto (2009, p. 14), “[...] a Constituição Federal de 1988 foi um marco importante, uma vez que reconheceu de forma explicita a existência social dos povos indígenas e quilombolas (arts. 231 e 68 do ADCT da CF), retirando-os da ‘invisibilidade jurídica’ e diferenciando-os dos demais trabalhadores rurais. Extensivamente, esse processo permitiu que outros grupos sociais, também, pudessem ser reconhecidos pelo Estado”.

[13] O Decreto no 6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) e estabeleceu as definições legais, os definindo como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

[14] A Lei no 21.147 foi regulamentada pelo Decreto no 47.289, de 20 de novembro de 2017, que permitiu ao Estado o reconhecimento oficial da identidade geraizeira das comunidades como Sobrado, Moreira, Água Boa, Raiz e Vereda Funda, todas do município de Rio Pardo de Minas, através da Certificação de Autodefinição Identitária, em 11 de julho de 2018.

[15] Mais detalhes sobre princípios metodológicos e formativos e direitos reivindicados nas autodemarcações territoriais, ver Rocha et al. (2016), Oliveira (2017) e Souza (2017).

[16] De acordo com o entrevistado, os geraizeiros levavam para a caatinga produtos como farinha, polvilho, óleo de pequi, rapadura, dentre outros.

[17] Para uma discussão conceitual sobre campesinato e povos e comunidades tradicionais, apropriação da natureza e ressignificações identitárias, ver Silva (2007), mas também Shanin (1973) sobre a natureza e a lógica da economia camponesa.

[18] Segundo Sabourin (2011, p. 21), “[...] do ponto de vista antropológico, o princípio de reciprocidade corresponde [...] a um ato reflexivo entre sujeitos, a uma relação intersubjetiva e não somente a uma simples permuta de bens ou de objetos”.

[19] No caso dos geraizeiros, o regime de uso comum é manifestado de forma mais explícita no uso das chapadas, onde não há apropriação privada do território nem dos recursos naturais, mas práticas produtivas com a utilização comunitária da natureza (pastagens, extrativismo etc.) (SOUZA, 2017).

[20] No Norte de Minas, formou-se a Articulação Rosalino, que reúne indígenas, quilombolas, geraizeiros, vazanteiros, catingueiros, ribeirinhos, apanhadeiras de flor, dentre outros, na articulação de frentes de luta e resistência para proteção, reconhecimento de seus modos de vida e retomada territorial. O nome é referência ao Cacique Xacriabá, Rosalino Gomes de Oliveira, assassinado a mando de fazendeiros durante processos de retomada territorial, no município de São João das Missões, em 1987 (SOUZA, 2017).

[21] Dentre as instituições parceiras estão o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas, o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais (CAA/NM), as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Embrapa Cerrados, várias universidades, dentre outras entidades e organizações da sociedade civil (SOUZA, 2017).

[22] Com a flexibilização das normas e restrições do Código Florestal, alteradas em 2012, o estabelecimento do Cadastro Ambiental Rural (CAR) tem sido usado, via averbação de reservas ambientais, como um mecanismo para expropriar terras e legalizar a grilagem (SAUER; FRANÇA, 2012).

[23] De acordo as Certidões de inteiro teor e registros cartoriais das áreas, foi comprado inicialmente um total de 289 hectares, tendo sido retificado para 11.845 hectares, ou seja, um aumento de quarenta vezes, aproximadamente (SOUZA, 2017).

[24] “Parar máquina”, como explicou o senhor José, da comunidade Raiz, é uma tática usada, com a presença de muitas pessoas, com o fim de barrar, mesmo que temporariamente, o funcionamento de máquinas e veículos das empresas que estão no cultivo do eucalipto, em atividades como desmate, destocamento, transporte, corte etc.

[25] Cícero e Lia, lideranças comunitárias, também participaram da roda de conversa, realizada na comunidade Moreira no dia 24 de abril de 2016.

[26]A iniciativa popular consiste na apresentação de um projeto de lei à Câmara de Vereadores, subscrito por, no mínimo, cinco por cento do eleitorado do município. Esses projetos são regidos pela Lei no 9.709/1998. Após várias negociações, inclusive com o Poder Executivo municipal, vetos de vereadores na tramitação na Câmara, o projeto foi aprovado como Lei Municipal.

[27] Para mais detalhes, ver Silveira (2014), que faz um minucioso registro desse processo, relatando as reuniões, discussões, negociações até a decisão e elaboração do projeto de lei.