ESA_logo.png

v. 28, n. 3, outubro de 2020 a janeiro de 2021, p. 624-643
Recebido em 2 de agosto de 2020.  Aceito em 28 de agosto de 2020.



Os (re)significados do sertão em ‘Outros Cantos’ de Maria Valéria Rezende
The (re)signification of sertão in Outros Cantos by Maria Valéria Rezende


DOI: 10.36920/esa-v28n3-6



orcid_cinza.jpg  Renata Cristina Sant'Ana[1]

 

 

Resumo: Partindo de uma discussão sobre as origens do regionalismo na historiografia literária brasileira (CANDIDO, 1975, 2000, 2014), este estudo analisa a representação do espaço rural do sertão no romance Outros Cantos, da escritora Maria Valéria Rezende (2016). Sob a perspectiva antropológica de Darcy Ribeiro (2006) e das contribuições de Moreira (2016), discute-se os conflitos sociais oriundos de relações assimétricas de poder envolvendo as categorias hierárquicas de classe, a fim de compreender os novos contornos que delineiam o sertão nordestino no mundo globalizado e como esse espaço aparece ressignificado na literatura brasileira contemporânea (SANTINI, 2009, 2011, 2012, 2014).

Palavras-chave: literatura brasileira contemporânea; Maria Valéria Rezende; sertão.

 

Abstract: (The (re)signification of sertão in Outros Cantos by Maria Valéria Rezende). Based on a discussion about the origins of regionalism in the Brazilian literary historiography (CANDIDO, 1975, 2000, 2014), this study analyses the representation of sertão rural space in the novel Outros Cantos, by the writer Maria Valéria Rezende (2016). Based on the anthropological perspective of Darcy Ribeiro (2006) and the contributions by Moreira (2016), this paper debates the social conflicts arising from asymmetric power relations involving hierarchical categories of class to comprehend the new outlines that trace the northeastern sertão within the globalized world and how this space turns up resignified in Brazilian contemporary literature (SANTINI, 2009, 2011, 2012, 2014).

Keywords: Brazilian contemporary literature; Maria Valéria Rezende; sertão.

 

 

 

 

Introdução

O sertão, terra ignota, expressão clássica cunhada por Euclides da Cunha (2016), para se referir aos lugares desconhecidos, tidos como perigosos ou simplesmente como território do vazio, espaço que ainda não havia sido preenchido pela colonização devido à distância do litoral, por isso, considerado terra sem lei e lugar da desordem. Sertão construído no imaginário cultural nacional, a partir de obras clássicas da literatura brasileira, como Os sertões, de Euclides da Cunha (2016), Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2018), O quinze, de Rachel de Queiroz (2000), Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1994). Para além das agruras naturais implicadas pela seca, o sertão também se compreende como lugar de esquecimento, abandonado em seus limites, diante das transformações advindas dos processos de produção e da hegemonia econômica das regiões centrais em relação aos interiores do país.

Passados os séculos, entremeados pelos muitos processos de transformação rumo ao que se compreende como sendo o desenvolvimento e o progresso, chega-se a um século XXI globalizado, porém marcado por rastros de um processo histórico ocorrido de maneira desigual nas diferentes partes do globo. De um lado, áreas centrais e urbanas tomadas pela modernidade, de outro, os recônditos interioranos de países periféricos onde ainda coexistem o velho e o novo. Perante esta condição, temos o Brasil como país que não teve sua diversidade – geográfica, cultural, social – totalmente suprimida pela globalização, e que possui, ainda, muito de particular a ser representado na literatura. Assim, inserido nestes recônditos tem-se o sertão calcado na aridez de seu solo, na cultura e nas tradições de sua gente que resiste ao impedir o apagamento dos traços característicos de um lugar e de um modo de ser e de viver, que é o modo do sertanejo.

Em sua mirada para o sertão, a escritora Maria Valéria Rezende parece não ter perdido de vista esse lugar e essa gente, e, ao retornar ao povoado de Olho d’Água, por intermédio da personagem Maria, no romance Outros Cantos (REZENDE, 2016), conduz os leitores para dentro desse universo rico em imagens, histórias e símbolos ainda pouco difundidos para outras regiões do país, principalmente as mais centrais. A obra narra o retorno de Maria ao povoado (fictício) localizado no sertão do Nordeste brasileiro, para realizar uma palestra em um sindicato rural. Ao longo de sua viagem, a personagem vai revisitando as memórias de um tempo longínquo e difícil, vivido naquela região para onde havia sido enviada para trabalhar como professora do Mobral,[2] o programa de alfabetização de adultos, implantado pelo governo em meio ao período da ditadura militar no Brasil. Porém, na verdade, a ida da personagem Maria para o povoado de Olho d’Água fazia parte de um plano de ações de conscientização política, articulado com as organizações revolucionárias e os movimentos de resistência ao regime de ditadura.

Naquele tempo, Maria era uma jovem militante que se utilizou desta oportunidade de trabalho como pretexto para ajudar a organizar e a preparar os trabalhadores sertanejos para a chegada de militantes que, como ela, acreditavam que a revolução só seria possível a partir da conscientização e da organização popular, em um movimento que partisse do interior do país e das classes historicamente esquecidas e subalternizadas, para daí poder se fortalecer e se expandir para os espaços centrais e de maior poder no país. Mergulhada no interior sertanejo, em um lugarejo sobre o qual nada sabia, Maria foi se deparando com as dificuldades existentes no cotidiano de uma gente pobre, habitante de um lugar esquecido e abandonado, vivendo, à sua maneira, costumes arcaicos e tradições locais, tão necessários à sobrevivência naquele local.

A respeito da palestra, que a levou a retornar à região, passados quarenta anos, a protagonista de Outros Cantos, Maria, relata:

Um sindicato de trabalhadores rurais, aliados a outras das muitas organizações populares hoje espalhadas sertão afora, como sonhávamos há quarenta anos, convocou-me a ajudá-los numa reflexão crítica sobre o pensamento dominante e a influência da mídia televisiva desde a chegada da eletricidade. Querem aprofundar as principais questões, a partir de sua experiência, para elaborar e lutar por uma proposta educacional adequada à realidade sertaneja. Alegram-me, fazem-me reviver, esses convites, provas da germinação das sementes tão custosamente metidas nas covas do passado. (REZENDE, 2016, p. 73)

Em virtude do processo histórico de ocupação das regiões interioranas do Nordeste brasileiro, que resultou na concentração das terras nas mãos de pequenos grupos, relegando parte da população à dependência e à submissão e aos desmandos daqueles que se tornaram os proprietários, o sertão tornou-se um lugar de muitas dificuldades envolvendo, além da escassez de água e de trabalho, relações de exploração e conflitos. Por estas razões, o sertão tornou-se um lugar de partidas, como narra Maria:

Dei-me conta, então, de que, talvez havia muitas gerações, não chegava um estranho para viver ali, naquele lugar escondidinho por onde ninguém passava, onde se acabava o caminho e era na direção contrária que corria o rio da vida migrante. Lá não se costumava chegar, de lá só se ia embora. (REZENDE, 2016, p. 16)

No contexto da migração interna no Brasil, é do sertão, compreendido como espaço interiorano, distante das regiões litorâneas, que, historicamente, parte muita gente com histórias semelhantes às das personagens presentes nos romances de Rezende, como foi o caso de Tião, o marido de Fátima, da diarista Alzira, de Luizinho, o filho da falecida dona Dasdores, e do Manoel de seu Tito, personagens de Outros Cantos (REZENDE, 2016).

Refletir sobre os modos como determinados espaços aparecem representados na literatura brasileira significa ter que se considerar os tipos de conflitos que neles se instalam, e a forma como vão sendo construídas as relações entre os indivíduos que neles se situam, bem como os elementos que integram as formas de ser e de viver em determinado meio. Sob este enfoque, compreende-se o espaço como local que abriga, nos limites de cada território, não apenas o solo que sustenta a vegetação característica do lugar, suas peculiaridades climáticas e paisagísticas, mas também os conflitos e os choques hierárquicos que se circunscrevem nas diferenciações entre os indivíduos e os grupos que nele se situam.

Como objeto representativo literário, o espaço é compreendido para além da concretude física que forma os cenários narrativos por onde se deslocam personagens e se desenvolvem suas ações. Assim, o espaço é também simbólico na medida em que valores culturais distintos são atribuídos àqueles que com a natureza física o compõem socialmente. Mais do que espaço físico, o espaço literário funciona como um tipo de metáfora que ilustra em seu chão os movimentos da história e as tensões estabelecidas pelos entrechoques políticos, econômicos e culturais que definem a vida social em tempos distintos.

Ao analisar o espaço rural como palco da produção literária contemporânea, pode-se constatar sua baixa relevância comparada ao fato de que a grande maioria das narrativas atuais utiliza o meio urbano como espaço de desenvolvimento para suas tramas. Assim, tem-se o dado apresentado por Dalcastagnè (2012, p. 163) de que apenas 14,3% das obras literárias produzidas a partir da década de 1990 se passam no meio rural, o que aponta para a depreciação desse espaço no universo literário como reflexo do seu desprestígio também no universo social real. Este dado coloca em questão a divisão do Brasil agrário e urbano no tempo presente, de tal modo que esta ausência é percebida por Dalcastagnè (2012) como um dos grandes diferenciais entre a literatura produzida a partir dos anos 1970 e aquela que veio antes.

O projeto de modernização do início do século XX, que impulsionou o surto de urbanização nas regiões centrais do Brasil, pode ajudar a compreender esta configuração espacial da narrativa de nossos dias. Conforme observa Dalcastagnè (2012), o país se urbanizou e a literatura acompanhou a migração para as grandes cidades, de modo que o espaço da narrativa brasileira atual é essencialmente urbano, e quando acontece de a literatura incorporar o meio rural, isso se dá em uma perspectiva do sujeito da metrópole que retorna ao interior, reavivando as suas memórias, como é o caso do romance Outros Cantos (REZENDE, 2016). A fim de melhor compreender a representação deste espaço na literatura brasileira contemporânea, farei um breve retorno às origens do regionalismo, analisando seus contornos adquiridos na história da literatura brasileira, para então identificar o modo como o sertão aparece (re)significado no romance de Rezende (2016).

                                                        

As origens do regionalismo

As paisagens, os tipos humanos, os costumes e as tradições sertanejas começaram a surgir na literatura brasileira durante o romantismo do século XIX, como parte do projeto nacionalista de buscar elementos delineadores de uma identidade nacional ainda em processo inicial de construção. A crença de que nas paisagens dos espaços desconhecidos nas regiões interioranas do país se poderia buscar as raízes de nossa cultura, assim como se deu nas selvas com o indígena, levou à mitificação do sertanejo, de modo semelhante ao que aconteceu com o culto ao selvagem materializado na figura do índio. Assim, a tradição regionalista na literatura brasileira tem início com as preocupações românticas e suas miradas nacionalistas que inspiraram o indianismo, e, na medida em que o potencial mítico-heroico da figura indígena começa a dar sinais de esgotamento, o sertanejo entra em cena como tipo humano representante das regiões pouco afetadas pelas influências estrangeiras, visto que os centros urbanos já haviam sido contaminados pelo cosmopolitismo que caracterizou o século XIX.

De modo geral, a ficção regionalista surge de maneira a contribuir para a emancipação de modelos europeus e para a construção da nacionalidade em termos de representação identitária e cultural. Segundo Santini (2011), na historiografia literária o regionalismo aparece relacionado ao princípio do romance brasileiro, situado por Antonio Candido no interior do romantismo que toma a literatura como instrumento de construção nacional. De acordo com a autora, Antonio Candido (1975) cria um modelo de interpretação para o regionalismo, que é resgatado pela crítica para análise da prosa literária brasileira contemporânea. Esse modelo, Antonio Candido desenvolve no conjunto de sua obra, de modo mais específico no seu ensaio Literatura e subdesenvolvimento (CANDIDO, 2000), em que apresenta a ideia de que a produção regionalista se elabora a partir de dois momentos de definição da nacionalidade – o primeiro como sendo o da tomada da “consciência de um país novo” ainda que em vias de atraso, e o segundo como o da “consciência de subdesenvolvimento”, que é quando surge o romance social de 1930.

Mesmo tendo suas origens no romance romântico do século XIX, e sofrendo influências do realismo que desembocou nas produções pré-modernistas, principalmente com a publicação, em 1902, da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, é com o modernismo da década de 1930 e seu complexo quadro social, pintado em meio ao processo de industrialização e urbanização crescente, que o regionalismo se consolida na história da literatura brasileira. Com Euclides da Cunha, o sertão apareceu aos olhos do mundo e, posteriormente, com a geração de 1930, surgiram as narrativas mais preocupadas em denunciar as condições sociais, com tudo o que havia de marginal e de desumano nos interiores esquecidos do país. Nesse momento, a produção regionalista atinge seu estágio de plena maturação e, sob uma perspectiva ideológica, aliada a um projeto estético e a um olhar crítico de resistência, torna-se “difícil aceitar a teoria de que o mundo da ficção mantém vagos compromissos com a realidade do contexto, do ambiente sociogeográfico” (SANTINI, 2014, p. 119). Afinal, o que a historiografia literária nos apresenta é uma produção que sempre se manteve e, até hoje, como temos observado, permanece alinhada com as questões que envolvem a época de sua criação.

Já em 1945, com a suposta superação do elemento local, devido à busca de uma universalidade que parte do regional, tem-se uma nova guinada na literatura brasileira que traz o centro da atenção para o formato estético das produções, porém, sem ignorar a preocupação com as temáticas, percebe-se certa cisão entre a preocupação social e a elaboração estética. Esta mudança é compreendida por Antonio Candido (2014, p. 138) como passagem de “literatura de incorporação” para a “literatura de depuração”, que tem em Guimarães Rosa o expoente maior do chamado super-regionalismo, que significou não apenas a superação do regional, mas também “o paradigma de interpretação crítica do elemento regional na prosa brasileira” (SANTINI, 2011, p. 74).

Sobre as publicações contemporâneas de feições regionalistas, vê-se, segundo Santini (2009), uma recusa do termo regionalismo por parte dos escritores que, embora publiquem textos de natureza regionalista, não querem ser vistos sob uma ótica aparentemente passadista. Autores como Milton Hatoum, Ronaldo Correia de Brito, Maria Valéria Rezende, dentre outros, costumam se posicionar negativamente em relação ao regionalismo e à possibilidade da inserção de suas obras em um paradigma regionalista de representação. Porém, há que se discutir sobre a noção de que os traços regionalistas que surgem nas produções literárias contemporâneas, em especial, aqueles relacionados ao espaço e à gente do sertão, sejam pensados, de acordo com Santini (2014), a partir de uma perspectiva que compreende essa manifestação como uma atualização do romance regionalista na ficção brasileira. Santini (2014) defende a necessidade de se refletir sobre a existência de um novo romance regionalista, ou uma prosa regionalista erigida a partir de outros modos de representação como o que vemos em Outros Cantos (REZENDE, 2016).

A permanência da noção de regionalismo, em parte, ainda que minoritária, nas narrativas atuais, demonstra que a força dessa manifestação literária persiste na medida em que se mantém a influência e o vigor da expressão marginalizada que vai contra a corrente da cultura urbana dominante. Tem-se assim uma representação, ainda que simbólica, das dimensões socioculturais de um espaço, no caso, o sertão, que mantêm peculiaridades nos níveis geográficos e econômicos que os colocam em posição de marginalidade em relação aos lugares centrais do poder econômico, portanto, lugares hegemônicos. Desta maneira, a representação do espaço desigual que se apresenta nas narrativas produzidas neste nosso tempo reflete as fraturas de um modelo de desenvolvimento que não funcionou de maneira uniforme, deixando exposta a desarmonia espaço-temporal que ressoa na articulação fragmentada entre o moderno e os resquícios do arcaico.

A respeito da produção literária contemporânea, Santini (2011) considera que, como forma tributária do subdesenvolvimento econômico, as obras de cunho regionalista sustentam-se na incorporação estética de regiões em que a globalização não se realizou de modo homogêneo. Assim, elementos da cultura popular e do cotidiano dos habitantes destes espaços, onde a modernidade não se cumpriu, são incorporados pelas narrativas deixando à mostra as falhas e contradições de um projeto globalizante incompleto que se apresenta na literatura atual, segundo Santini (2011), como rasuras das culturas de massa e erudita.

 

Agora o tempo é outro

No romance contemporâneo Outros Cantos (REZENDE, 2016), mesmo com os muitos anos que distanciam os fatos que direcionam a personagem Maria ao sertão pela primeira vez, há uma aproximação com o motivo que a leva de volta à região, pois trata-se de atuações e encontros que, ainda hoje, buscam promover a mudança a partir da reflexão e da conscientização, como, outrora, a personagem se propusera a fazer. Assim, percebe-se que o trabalho ligado à educação é uma constante nos dois tempos que decorrem de modo paralelo no romance. Do povoado de Olho d’Água Maria guardou lembranças que se reavivaram em sua memória e que vão sendo contadas ao leitor como uma história de chegada a um lugar de tantas partidas:

Há mais de quarenta anos carrego esse canto em algum socavão da alma que agora se ilumina. Os faróis deste carro velho são tão fracos que não mostram nada do caminho, nada me distrai das imagens que voltam da minha primeira tarde naquele outro sertão[...] Eu fazia trinta anos no dia em que me meti pela primeira vez nessa aridez. [...] Vejo-me outra vez jovem ainda, sentada sobre o tronco de um coqueiro decepado e deitado em frente à casa que me cabia, naquele povoado cujo nome explicava a razão de sua existência, tão longe de tudo: Olho d’Água, como tantos outros mínimos oásis espalhados pela vastidão das terras secas. (REZENDE, 2016, p. 10 – grifos nossos)

Como uma alusão à lágrima, ou aos raros fiapos de água que jorravam de algum buraco milagroso no meio da terra seca, tem-se o nome do povoado – Olho d’Água –, lugar de sofrimento, mas também lugar de vida e de salvação, se não do corpo, ao menos da alma, um oásis em meio à escassez daquele outro e velho sertão. Rezende (2016) se utiliza de uma escrita com traços memorialísticos, que remete a tempos difíceis vividos no país, elaborada a partir de uma perspectiva contemporânea, atenta aos movimentos da história e seus desdobramentos nos modos de viver e nas formas de representar.

Por meio do elo que conecta o presente ao passado, o que se observa é uma atitude, por parte da escritora, de introjetar em seu texto prenúncios de que os modos de representação na literatura mudaram. Ao revisitar a história através dos espaços e dos personagens sertanejos, atentando para os traços que os definem como elementos constitutivos da narrativa e como categorias de análise, Rezende (2016) atualiza e possibilita a permanência do sertão e dos seus significados na literatura brasileira contemporânea.

No romance Outros Cantos, a protagonista Maria segue sua viagem observando o caminho, e já próxima ao antigo povoado de Olho d’Água se põe a pensar em como estariam aquele lugar e as pessoas com quem ela conviveu e aprendeu tantas coisas. Ela se questiona sobre a permanência destas pessoas no povoado, se teriam suas vidas melhorado, se, quem sabe, hoje, viveriam com mais dignidade e liberdade. Maria fica pensando também nas crianças daquele tempo, que já tendo se tornado adultas hoje, talvez, não estivessem mais vivendo por lá:

A estrada por onde vou hoje passará a menos de uma légua daquele lugar que talvez ainda se chame Olho d’Água e abrigue um povo mais livre, junto a cada casa uma cisterna, como as que vi espalhadas ao longo deste trajeto antes de escurecer, novinhas, brancas, na forma de um peito materno, recebendo a água das biqueiras do telhado, no inverno, dando de beber aos filhos, no verão. Talvez. Mas esta mesma estrada pode ter sido a rota de fuga para todos eles e, quem sabe, já não estão lá os homens que, ainda meninos, me saudavam risonhos e me chamavam Maria. (REZENDE, 2016, p. 15)

Nas paradas feitas pelo ônibus, Maria se punha a observar as pessoas que embarcavam e confirmava suas impressões, fazendo referências aos problemas que as acometiam no passado e que não demonstram mais suas marcas nos corpos sertanejos, como as verminoses, as queimaduras na pele, causadas pelo trabalho expostos ao sol, e arranhões provocados pela vegetação espinhosa ou pelo trabalho nos canaviais:

Sua cara não engana, são sertanejos como eram aqueles, mas já não tem a barriga inchada, a pele encardida e arranhada como os de quarenta anos atrás. Minha razão me diz que estes de agora vivem melhor e devo alegrar-me por isso. (REZENDE, 2016, p. 17)

Do ponto de vista geográfico, regiões interioranas como o sertão, com suas características físicas marcadas, principalmente, pela adversidade climática, aparecem acopladas a um quadro político determinante das condições econômicas e definidoras da circulação desigual dos bens materiais e simbólicos, tidos como necessários ao desenvolvimento e ao que se compreende como sendo a modernização. Devido à tomada de consciência da complexidade do problema implicado na desigualdade das condições de vida entre regiões centrais e periféricas, e como forma de reação a tal condição, os traços regionalistas se apresentam na prosa contemporânea retomando o passado através de uma lógica que o contrapõe ao presente, em um movimento compensatório em relação ao mercado e suas imposições de comportamento e de consumo. Nesse sentido, a narrativa de Outros Cantos (REZENDE, 2016) oferece ao leitor o sertão em duas perspectivas temporais – ora rememorando o velho sertão, ora apresentando as transformações ocorridas com o passar dos anos. Assim, o sertão antigo, onde ainda nem a luz elétrica havia chegado, surge rememorado por Maria:

Naquele antigo canto de mundo, sem fios e lâmpadas elétricas, o escuro da noite apagava quase tudo cá embaixo, mas acendia uma multidão de estrelas como só se veem nos desertos ou em alto-mar. [...] Em cada boca de noite, confortados pela macaxeira e aquele café matuto, mistura de sei lá quais grãos, os candeeiros já apagados por necessária economia de combustível, sentávamos, quase todos os adultos, sob a mais ampla das algarobas. Havia histórias que se contavam e recontavam em prosa e verso [...] À nossa volta mais ouvíamos do que víamos a criançada entretida em correria e brincadeira, seu chilrear, às vezes miados, latidos ou mugidos, uma que outro grito, uma que outra cantiga nos envolviam numa manta de segurança: estava tudo em paz. (REZENDE, 2016, p. 29 – grifos nossos)

O velho sertão, lugar de muitas privações e, portanto, de uma necessária economia, era também o sertão das histórias, das brincadeiras e das cantigas a preencher as ausências e os vazios, que, tomados pela alegria noturna, reanimava os moradores e renovava a esperança em cada amanhecer.

Diante das transformações ocorridas, é possível perceber o processo de hibridismo cultural que hoje se faz presente nesse espaço, na medida em que se tem uma tradição de costumes que se manifesta, em geral, através da fé e das festas populares, mas também nas práticas do cotidiano, que, paralelamente, convivem com elementos novos introduzidos na vida sertaneja por intermédio da cultura de massa. Nesse sentido, os fragmentos a seguir ilustram o sertão contemporâneo, onde os efeitos da globalização já se mostram incorporados aos costumes do povo sertanejo, pois, do ônibus em que viaja, Maria observa os meninos sertanejos que embarcam com a mãe trajando o estilo urbano marcado por caracteres internacionais:

Numa das paradas deste ônibus vi entrar uma mulher com dois meninos vestidos em suas calças jeans, seus tênis e camisetas com uma besteira qualquer escrita em inglês e figuras de desenhos animados japoneses. (REZENDE, 2016, p. 17)

Mais adiante, no percurso de sua viagem, Maria mais uma vez observa outros jovens que também entram no ônibus, desta vez portando acessórios e objetos modernos, habituais também nas regiões centrais:

Sob as fracas e desfalcadas lâmpadas do teto vejo avançarem três adolescentes, um garoto e duas meninas, os três sob bonés enfiados até a sobrancelhas, com pares de fios descendo das orelhas até os bolsos das jaquetas ou das mochilas às suas costas, os três com os mesmos olhos mortiços, os beiços moles pendentes, as cabeças balançando, cada uma em seu ritmo próprio, como se estivessem prestes a ter uma convulsão. Os meninos, mudos, passam por mim e desaparecem lá no fundão escuro do carro. Reconheço logo os sintomas do autismo digital e me entristeço: não, essa síndrome não se restringe mais aos meios urbanos. Invadiu este sertão. (REZENDE, 2016, p. 78-79)

De dentro do ônibus, Maria, com estranheza, ainda observa as “antenas e torres fazendo parecer miniaturas as casas, já não apenas brancas ou cor de terra” (REZENDE, 2016, p. 18) como eram as de outrora. As casas agora eram “amplamente iluminadas, possuíam luz elétrica em abundância” (REZENDE, 2016, p. 21), o progresso havia alcançado também o sertão. Da janela Maria não perdia sequer um detalhe do que lhe era possível avistar, inclusive no interior das casas:

Posso ver quase tudo lá dentro, mais coisas, muito mais coisas do que gente: sofás e poltronas forrados de plástico, imitando o mau gosto exibido pela televisão a despejar sua luz azulada e sons estridentes em alto volume, competindo com o ronco do ônibus velho, a geladeira encimada por um pano de crochê e um ajuntamento heteroclítico de bibelôs e garrafas com rótulos novos e brilhantes, a porta forrada de bugingangas imantadas, nas paredes, três ou quatro quadros grandes com paisagens de neve, do Arco do Triunfo, de uma choupana nórdica à beira de um riacho com roda d’água, daqueles que se vendem de porta em porta em nome de uma beleza melhor e mais rica, estrangeiras, os famigerados racks com aparelho de som, uma porta, cortina de náilon rosa-neón arrepanhado de lado, que revela parte do quarto onde pende acesa uma forte lâmpada, deixando-me ver um ângulo da cama coberta com colcha de babados, almofadas de falso cetim, um bicho de pelúcia e duas enormes bonecas louras, metade de um armário de aglomerado, novo em folha, revestido de fórmica branca e espelhos, tudo como se vê nos panfletos anunciando as eternas promoções de pacotilha a infestar qualquer cidade. (REZENDE, 2016, p. 22 – grifos nossos)

A casa, observada detalhadamente por Maria, apresenta um conjunto de elementos decorativos que se misturam, compondo um ambiente que se assemelha à estética Kitsch,[3] caracterizando um novo modo de viver no sertão globalizado. Ao contrário do minimalismo característico das antigas “casas apenas brancas ou cor de terra” (REZENDE, 2016, p. 18), o que se vê no interior das moradias deste sertão novo é o exagero e o acúmulo de objetos e adornos de toda ordem, formando uma única composição.

Por estética Kitsch (MOISÉS, 2013) entende-se as produções artísticas surgidas da imitação e da cópia, tidas como possuidoras de uma qualidade inferior e associadas ao mau gosto. De acordo com Adorno (2002) e Benjamin (1987), a estética Kitsch surge no contexto da indústria cultural e da cultura de massa trazendo elementos que contrariam a autenticidade das formas artísticas e o valor da obra de arte, por apresentarem o caráter da artificialidade contida na reprodução. Essa relação mantida com a indústria cultural e com a produção de massa faz com que o Kitsch, na perspectiva de Humberto Eco (1976), seja compreendido como produto típico da modernidade criado para fins de consumo.

Decorada com quadros que reproduzem imagens internacionais, como o Arco do Triunfo e as choupanas nórdicas a enfeitar as paredes, acrescida do “ajuntamento heteroclítico de bibelôs e garrafas com rótulos novos e brilhantes” (REZENDE, 2016, p. 22), a casa sertaneja observada por Maria sinaliza que as coisas mudaram e o tempo já é outro. Ademais, equipada com TV e aparelho de som, haveria ainda tempo para os serões noturnos em que os adultos se reuniam sob as algorobas, à luz das estrelas, para contar e ouvir histórias? Teriam sido os miados, latidos e mugidos abafados pelo alto volume dos aparelhos eletrônicos? Quanto às redes de dormir, estas parecem também já terem sido substituídas por camas, hoje forradas com colchas de babados e almofadas. E as crianças, que antes se entretinham em correrias, podem agora também brincar com as famosas bonecas louras, como outras crianças de quase o mundo inteiro.

De acordo com Santini (2014), a mudança operada no sertão nas últimas décadas

possui traços suficientes para alterar os contornos do reconhecimento e da identificação. Incorporando elementos de modernização e, no limite, definidores da urbanidade e dos grandes centros, o sertão vê televisão e não tem mais seus vaqueiros. A rodovia substitui a velha estrada e transforma em velocidade o caminho percorrido pelos antepassados da família. (SANTINI, 2014, p. 124)

Trata-se de um sertão que integra o contemporâneo dos objetos oferecidos pela cultura de massa às tradições tidas como costumes arcaicos. É nessa junção que se instala a marca do sertão compreendido hoje como espaço contemporâneo, tanto na literatura como na sociedade. Em relação a essa junção de culturas que se observa na configuração do sertão atualmente e sua representação na literatura, Santini (2012) observa que o romance contemporâneo não demonstra indiferença ante o mundo em transformação, mas, ao contrário, expõe em sua estrutura uma relação de permeabilidade com a realidade. Nesse sentido, “a retomada de traços regionalistas na prosa contemporânea surgiria menos do exotismo do que como interação de culturas” (SANTINI, 2009, p 260), visto que a representação híbrida do espaço regional demonstra uma superação da dualidade centro/margem e também da dualidade temporal passado/presente. Afinal, o misto de culturas que hoje se apresenta nas regiões interioranas já não permite mais a sustentação da tese da existência da dualidade em que a cidade é tida como centro moderno e o regional como margem arcaica para onde os ares da civilização ainda não sopraram.

O que se percebe na narrativa contemporânea, que traz em sua estrutura elementos regionais, é a representação de espaços reais apresentados em tempos fragmentados em que se mesclam memória e tradição, retratando contextos e identidades específicos de uma dada localidade. No tocante à tradição que se apresenta nos textos, Santini (2009) a percebe mais “como fragmento discursivo a que se atribuem significados arraigados ao imaginário do sertão, tomado agora como espaço simbólico e não apenas como cenário de onde derivam substantivos locais” (SANTINI, 2009, p. 261).

De acordo com a percepção apresentada pela autora, tem-se na literatura produzida hoje, no tocante ao regionalismo, uma construção narrativa em que as ações que se desenvolvem ocorrem de maneira a retratar situações, identidades e espaços marcados pelo processo histórico, sobre o qual o tom ou olhar de estranhamento atestam o interesse dos escritores e das escritoras pelo modo como o sertão se apresenta na atualidade. Contemporaneamente, segundo Santini (2009), “existem menos fronteiras do que regiões ambíguas, de trânsito, em que se esfumaça parte desse dualismo que marcou a interpretação do regionalismo como ‘tábula rasa’ de uma oposição litoral/interior e suas projeções binárias” (SANTINI, 2009, p. 259). Trata-se de uma nova manifestação do regionalismo como uma “tendência transfronteiriça”, visto que já se permite imbuir-se dos vestígios do mundo moderno, dos lastros vindos do exterior.

 

Relações de poder no sertão arcaico

Ainda nos primórdios de sua história, foi na atividade do pastoreio que a população sertaneja encontrou uma possibilidade de sustento, de tal modo que se pode compreender a atividade pecuária como sendo responsável pela constituição do que, posteriormente, viria a se tornar os maiores latifúndios brasileiros. Estes, que tiveram sua origem ainda no período da colônia, a partir da concessão de terra e da criação de gado, que, segundo Darcy Ribeiro (2006), era trazido pelos portugueses das ilhas de Cabo Verde e deveria ser comprado pelos fazendeiros da colônia, “mas as terras, pertencendo nominalmente à Coroa, eram concedidas gratuitamente em sesmarias aos que se fizessem merecedores do favor real” (RIBEIRO, 2006, p. 308). Deu-se início ao regime de propriedade em que o “dono/senhor” passava a ter autoridade sobre os bens e, por vezes, até sobre as vidas, que, em desvantagem, por força das circunstâncias socioeconômicas, eram capturadas pelo poder senhorial que, mesmo mantendo o convívio direto com seus serviçais, cuidava de fazer prevalecer o distanciamento hierárquico, não raro, envolto em atitudes arbitrárias.

Assim, o coronelismo instalou-se como uma prática constante na estrutura social e política das regiões interioranas do Brasil. Além de proprietários das terras e do gado, os coronéis possuíam também o poder de controlar a vida do povo, que, desprovido de qualquer posse, tinha que viver dos recursos concedidos pelos senhores. Estes, por sua vez, estavam sempre muito mais preocupados com seus próprios ganhos do que com a condição miserável a que ficava submetida a vida do trabalhador sertanejo. Como elemento determinante das relações de poder estabelecidas no espaço do sertão, a figura do coronel, o Dono das terras, das águas e da vida do povo sertanejo, se faz presente no romance de Rezende:

Aquele fim de mundo, que eu tinha buscado imaginando-o escondido e ignorado por todos, tinha dono, o Dono, do morro que continha a milagrosa mina d’água perene, dono mesmo, “de papel passado”, disseram, dono da vida e da morte naquele território que eu ousava invadir sem saber o que fazia. (REZENDE, 2016, p. 33).

Com o olhar de distanciamento, próprio de quem vem de fora, Maria foi capaz de enxergar a situação de controle a que o povo de Olho d’Água vivia submetido. Em virtude da relação de dependência direta do dono do poder econômico do vilarejo, aos habitantes só restava a obediência e a servidão, instaurando um sistema de benefícios para poucos, a partir da exploração e do sofrimento de muitos.

Segundo Jailma dos Santos Pedreira Moreira (2016), o coronelismo institucional teve início com a formação da guarda nacional, criada em 1831 como resultado da deposição de D. Pedro I. O coronel passou a ser assim chamado pelas forças do Exército como uma forma de tratamento que lhe outorgava autoridade, para que, em troca, com suas posses de latifundiário, se dispusesse a arcar com a milícia civil a fim de que essa viesse a trabalhar em nome da segurança nas ruas, nas estradas e nas propriedades, ameaçadas pelo banditismo que rondava essas regiões e que já havia derrubado as forças militares tradicionais. De acordo com Moreira (2016), os ataques cometidos pelos bandos revoltosos do cangaço eram formas de manifestação contrária ao poder regional nacional, controlador da vida sertaneja e instaurador do medo, da submissão, da obediência e da humilhação, e que, nas palavras da autora, “ainda hoje controla, com os devidos mascaramentos, diferenças e modificação que o contexto atual impõe” (MOREIRA, 2016, p. 158).

Circunscritos nos limites desenhados pelo poder senhorial dos coronéis, estavam inseridos os eleitores dos governantes locais e nacionais, a arraia miúda guiada como bois pelos donos do dinheiro e do poder, estes últimos, capazes de manipular as autoridades (políticas) sempre dispostas a atendê-los em troca de eleitores. Por meio do popularmente chamado voto de cabresto tiveram origem os currais eleitorais, e, tal como gado, os eleitores eram comandados pelos interesses escusos dos coronéis. A esse respeito, a passagem do romance em que Maria discorre sobre o motivo que a levou a ir parar em Olho d’Água ilustra o condicionamento ao poder local a que era submetido o povo sertanejo:

Da razão oficial, mas nada convincente, pela qual eu tinha vindo parar ali, eles estavam inconformados pelo vereador que distribuía favores e dons naquele distrito, eternamente reeleito com o respaldo do Dono e suposto doador de tudo. (REZENDE, 2016, p. 31)

Posto que a razão oficial de Maria estar ali era o trabalho de alfabetização de adultos, sua função de todo não convencia os moradores. Afinal, a população local, acostumada a viver na condição de subalternos, teleguiada pelo poder dos coronéis, adquiriu um comportamento resignado diante da realidade de miséria e atraso em que vivia, desacreditada de qualquer possibilidade de mudança da realidade a que foi condicionada a aceitar. Tal impressão de conformidade se revela na fala dos moradores de Olho d’Água, que, com a chegada da professora Maria, teriam então a oportunidade de aprender a ler:

“pra ler o quê aqui? Só se for marca de ferro em lombo de boi’. Novena, ou Ofício de Nossa Senhora? ‘carece de ler não, toda velha sabe de cabeça e toda menina aprende que nem aprende a cozinhar e a parir...”. (REZENDE, 2016, p. 31)

Toda a relação de poder estabelecida no sertão, representada no romance pelo povoado de Olho d’Água, ilustra o condicionamento responsável por gerar uma teia de dependências que capturava a vida do trabalhador destes lugarejos, pois, ao Dono tudo pertencia, portanto, ao povo, caberia apenas obedecê-lo, a fim de garantir somente o mais elementar para continuar sobrevivendo. Deste modo, a vida só era possível resumida ao mínimo, visto que, de permanente, só se tinham as ameaças e o medo de perder o quase nada disponível, pois:

Só ele (o Dono) tivera meios para trazer a máquina, os blocos e o cimento, mandar cavar aquela cacimba estreita e funda onde não faltava a água salobra essencial para a sua tinturaria, tivera recursos para comprar a nora e as correntes que baixavam e levantavam os alcatruzes, dinheiro e poder para pagar e acobertar os jagunços e as armas que o representavam. E cobrava caro. Cada pote d’água doce, cada lata d’água salgada custava dinheiro. (REZENDE, 2016, p. 33)

                No trecho anterior, temos expressos elementos representativos do poder do coronel de Olho d’Água, que se traduz na posse da cisterna onde era possível obter a água, que mesmo escassa e salobra, permitia o trabalho de tingir os fios para produzir as redes a serem comercializadas pelo Dono nos centros urbanos. O único posto de trabalho disponível no local, que era a tinturaria dos fios para produção das redes, pertencia também ao Dono:

Era o Homem, o mesmo dono do caminhão e do fio, sem o qual os preciosos teares nada valiam. Mandava o algodão cru e as anilinas e levava as redes deixando apenas alguns centavos pelo trabalho, quantia ínfima que voltaria quase toda aos seus cofres em troca de potes e latas d’água. Era preciso a labuta de uma família inteira, a vida inteira, era preciso a herança familiar de um tear próprio, só para pagar a ração mínima de líquido durante os longos meses de estio. (REZENDE, 2016, p. 33)

Aproveitando-se das carências da população que dependia das posses dos coronéis praticamente para tudo, já que a eles pertenciam os meios de produção para o trabalho, terra para o plantio e a água para matar a sede, só restava mesmo à população, obedecê-lo. Através das situações apresentadas ao longo do romance Outros Cantos, o que se vê é uma população sertaneja acuada, capturada pelas malhas do poder senhorial, desnorteada e aprisionada no latifúndio, e, por isso, impossibilitada de se organizar politicamente para reivindicar direitos e melhorias das condições de trabalho e de vida. De acordo com Darcy Ribeiro (2006), essas populações de nordestinos

nascem, vivem e morrem confinadas em terras alheias, cuidando do gado, de casas, de cercados e de lavouras que têm donos ciosos. O próprio rancho miserável em que vivem com suas famílias, construído por eles próprios com barros e palhas do campo, não lhes pertence. Nada os estimula a melhorá-lo e o proprietário não os autoriza a enriquecê-lo com o plantio de fruteiras ou com a criação de animais de terreiro, para que não faça jus à indenização no momento em que devam ser despedidos. [...] Por mais anos ou gerações que permaneça numa terra, o sertanejo é sempre um agregado transitório, sujeito a ser desalojado a qualquer hora, sem explicações ou direitos. Por isso sua casa é o rancho em que está apenas arranchado; sua lavoura é uma roça precária, só capaz de assegurar-lhe um mínimo vital para não morrer de fome, e sua atitude é a de reserva e desconfiança, que corresponde a quem vive num mundo alheio, pedindo desculpas por existir. (RIBEIRO, 2006, p. 326)

Como uma marca latente, essa forma de dominação e controle, presente no sertão, estabelece no imaginário social de toda uma coletividade subalternizada que alguns nasceram para mandar e outros para obedecer e aceitar resignadamente os desmandos da autoridade suprema, materializada na figura do coronel. Assim, por questões culturais, “o sertanejo afirma saber seu lugar, mesmo que esse lugar seja a falta de espaço, a invisibilidade no meio social vigente” (SOARES, 2017, p. 68). Trata-se de um poder simbólico que se traduz na autoridade daquele que exerce o poder sobre o sertanejo, de modo que é possível visualizar a maneira como opera um tipo de violência simbólica que perpetua e submete o sujeito a um discurso social dominante. Por essa razão, a personagem Maria, em suas tentativas de conscientizar os habitantes de Olho d’Água para a condição de injustiça em que viviam, narra que esbarrava sempre nos ensinamentos que lhes haviam sido repassados desde sempre: “A vida é assim mesmo, o que Deus fez a gente tem de aceitar, Ele sabe por que a gente nasceu pobre para viver pobre até chegar no céu” (REZENDE, 2016, p. 143). Desta maneira, todas as iniquidades que recaíam sobre a vida do povo sertanejo acabavam sendo naturalizadas e aceitas, fazendo perpetuar o sofrimento de indivíduos e grupos marcados pela desigualdade e exclusão social.

Na tentativa de compreender os mecanismos produtores e propagadores da desigualdade social, chamados de “poder simbólico”, Bourdieu (1989) busca desvelar o modo como as formas de dominação, em geral, se apresentam travestidas de normalidade justa. Em sua teoria sociológica, o autor procura compreender e interpretar o jogo de poder das distinções econômicas e culturais presentes em uma sociedade hierarquizada, em que os indivíduos incorporam práticas materiais e culturais reguladoras, que são reproduzidas pelo corpo social. Esta incorporação acaba produzindo individualidades forjadas nas e pelas relações sociais, fazendo com que a própria individualização seja produzida através da socialização. Para Bourdieu (1989), as relações simbólicas de poder são atos de submissão ou obediência que foram aprendidos e incorporados mediante a utilização de estratégias sutis e invisíveis que estão implicadas na formação do habitus. Conforme Bauer (2017) esclarece, o habitus deve ser compreendido como:

produto da internalização dos princípios da arbitrariedade cultural. É a expressão daquele senso de disposição que estrutura o agir individual conforme o princípio do “indicativo-imperativo”, aquele princípio do “isso não serve para nós” ou, de modo complementar, “isso não nos pertence. (BAUER, 2017, p. 175)

Em seu contato com a população de Olho d’Água, por meio das conversas do dia a dia, Maria percebe a eficácia do condicionamento exercido sobre os moradores no sentido de torná-los alienados dos interesses e da atuação política, como ela relata no trecho a seguir:

Já se falava em eleição, e tentei fazê-los refletir e questionar as práticas políticas, conforme minha cartilha de educadora revolucionária. Quem é o candidato a prefeito? Já o conhecem? Claro que sim, filho e neto de prefeitos, era o candidato pela segunda vez. “Lembram quem foi que ele nomeou, da primeira vez, para os cargos importantes da prefeitura?” Claro, como eu previa, a mulher, o sogro, a filha, o cunhado, o afilhado... “E vocês acham que isso está certo?” Certíssimo, achavam todos, as cabeças assentindo convictas, pois, “se ele não ajudar nem a família dele, a quem mais é que vai ajudar?”. Eu esmorecia, levava uns dias abanando afanosamente minhas esperanças para reavivar-lhes as brasas e continuar”. (REZENDE, 2016, p. 143)

O fragmento retrata a naturalização do nepotismo, que consiste na prática ilícita de favorecimento de pessoas da mesma família, por intermédio da influência política dos cidadãos. Através dessa prática, muitos políticos oferecem vantagens aos próprios parentes, se beneficiando da função pública para muitas das vezes satisfazer interesses particulares, o que contraria a lógica da vida pública e da política em si. Ao narrar a ocorrência desta prática no povoado de Olho d’Água, o romance promove também a sua denúncia. Em relação às práticas vis dos coronéis, que transformavam até as secas em negócios particulares, Ribeiro estabelece uma comparação com a ordem oligárquica, que monopolizara a terra pela outorga oficial das sesmarias durante a época colonial, demonstrando o modo como se perpetuaram as relações entre o interesse particular e o poder público nestas plagas brasileiras. Segundo o antropólogo,

a simples ameaça de uma estiagem transforma-se numa operação política que, em nome do socorro aos flagelados, carreia vultosas verbas para a abertura de estradas e, sobretudo, a construção de açudes nos criatórios. Nas últimas décadas, enormes somas federais concedidas para o atendimento das populações nordestinas atingidas pelas secas custearam a construção de milhares de açudes, grandes e pequenos, enriquecendo ainda mais os latifundiários, assegurando a seu gado a água salvadora nas quadras de estiagem e amplas estradas para movimentar os rebanhos em busca de pastos frescos. (2006, p. 315)

Assim, utilizando-se dos infortúnios da seca, os políticos encontravam modos de atender à sua clientela, “os negociantes e empreiteiros de obras que passam a viver e a enriquecer da aplicação de fundos públicos de socorro e os grandes criadores pleiteantes de novos açudes, valorizadores de suas terras e que nada lhes custam (RIBEIRO, 2006, p. 315). Todas essas passagens escritas por Darcy Ribeiro em seu grande ensaio sobre o povo brasileiro ecoam das páginas de seu livro como denúncia das condições de domínio despótico que envolviam as relações entre o sertanejo e os donos das terras, do descalabro moral associado às forças políticas poderosas, cujos interesses particulares se opunham aos da população sertaneja em geral. De acordo com o antropólogo, todos os recursos governamentais destinados à assistência dos flagelados acabavam sendo desviados em benefícios para o latifúndio visando garantias para o gado, e “mantendo o sertanejo nas mesmas condições precárias, cada vez mais indefeso em face de uma exploração econômica mais danosa do que as secas” (RIBEIRO, 2006, p. 315). 

Passados os séculos, as concessões das terras que, outrora, se realizavam através do sistema das sesmarias, passaram a depender do arbítrio de autoridades políticas regionais ou nacionais, conforme explica o antropólogo:

[...] milhões de hectares de terras virgens foram concedidos, nas últimas décadas a “donos” que nunca as viram, mas um dia se apresentam para desalojar os pioneiros sertanejos como invasores que, tangidos por um movimento secular de expansão da ocupação humana dos desertos interiores, as alcançaram, almejando nelas se instalarem permanentemente. (RIBEIRO, 2006, p. 317)

Aproximando-se dos fatos apontados por Ribeiro, a narrativa de Outros Cantos, ironicamente, ilustra o caráter fantasmagórico do Dono, que nunca aparece de fato, e, tanto no romance como no ensaio antropológico de Ribeiro, é um ser invisível e inacessível, portanto, uma figura perversamente controversa, pois, ao mesmo tempo que se apresentava como única saída para sobrevivência daquela gente, representava também a ameaça, o perigo e o medo:

[...] e só o Dono os podia salvar. Eram-lhe gratos, deviam sempre, sem jamais o ter visto em carne e osso. Como se fosse deus. Era mais temível e forte porque invisível. Quem quis viver sem ele, quem não se submeteu, quem vendeu o tear em troca de viagem para o vasto mundo, perdeu-se por lá e já não encontraria mais caminho nem lugar se a saudade apertasse. O que poderia eu dizer contra um poder invisível? Se até mesmo seus homens de armas permaneciam encafuados em seus esconderijos, para surgir de repente nas raras ocasiões em que o medo já estabelecido não bastava para manter tudo funcionando segundo os desígnios do Homem. (REZENDE, 2016, p. 34)

A figura do Dono se faz presente no romance como a expressão da tirania e das opressões praticadas pelos líderes locais, em geral, representantes da força econômica, sobre uma população passiva, “tangida como gado numa marcha de desgraçados” (MELO JÚNIOR, 2016).

De acordo com Melo Júnior (2016), Outros Cantos é uma reflexão sobre nosso tempo. Um tempo de injustiças e medo que teima em não se renovar, que insiste em cultivar o atraso. Ao que se percebe, Outros Cantos remete a este tempo de lutas e de incertezas, e, embora não se trate de um romance histórico nem tenha a pretensão de dar conta do contexto da época, é uma maneira de oferecer aos leitores uma oportunidade para se repensar um momento da história, olhar paras lacunas em branco, questionar o passado, se intrigar, se espantar e também se encantar com a vida, os lugares, os tempos, as pessoas. Diante das estas questões abarcadas pela narrativa, faz-se o entrelaçamento histórico, político e cultural que, através do imaginário e da linguagem, adquire a forma literária.

 

 

Referências bibliográficas

ADORNO, T. Indústria cultural e sociedade. Tradução de Juba Elisabeth Levy. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

BAUER, U. Socialização e reprodução da desigualdade social. In: SOUZA, J.; BITTLNGMAYER, U. (Orgs.). A sociologia de Pierre Bourdieu e pesquisa em socialização. Dossiê: Pierre Bourdieu. Belo Horizonte: UFMG, 2017. p. 165-203.

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, v. 1 e 2. 9. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.

CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000. 

CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 13. ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2014.

CUNHA, E. da. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2016.

DALCASTAGNÈ, R. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte, 2012.

ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1976.

MELO JÚNIOR, M. O irrevogável sonho da revolução. Rascunho, n. 199, 2016. Disponível em: http://rascunho.com.br/o-irrevogavel-sonho-da-revolucao/. Acesso em: 6 jul. 2020.

MELO NETO, J. C. de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. 34. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2013.

MOREIRA, J. S. P. Sob a luz de Lampião: Maria Bonita e o movimento de subjetividade de mulheres sertanejas. Salvador: Eduneb, 2016.

QUEIROZ, R. de. O quinze. 77. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

RAMOS, G. Vidas Secas. 136. ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.

REZENDE, M. V. Outros Cantos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SANTINI, J. A Formação da Literatura Brasileira e o regionalismo. O eixo e a roda: revista de literatura brasileira, v. 20, n. 1, 2011.   Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/3364. Acesso em: 13. jun. 2020.

SANTINI, J. Entre a memória e a invenção: a tradição na narrativa brasileira contemporânea. Cerrados, Brasília. v. 18, n. 27, 2009. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/13766. Acesso em: 22 jun. 2020.  

SANTINI, J. Realidade e representação no romance regionalista brasileiro: tradição e atualidade. O eixo e a roda: revista de literatura brasileira, v. 23, n. 1, 2014. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/5908. Acesso em: 18 jul. 2020.

SANTINI, J. Romance e realidade na ficção brasileira contemporânea. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 39, 2012, p. 95-106.  Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9791. Acesso em: 17. jul. 2020.

SOARES, G. M. Da relação entre palavra e imagem: uma leitura da união entre a obra Vidas Secas de Graciliano Ramos e as fotografias de Evandro Teixeira. 2017. 100 f. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos Literários). Programa de Pós-graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/4033. Acesso em: 4 jul. 2020.

 

 

Como citar

SANT'ANA, Renata Cristina. Os (re)significados do sertão em ‘Outros Cantos’ de Maria Valéria Rezende. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 624-643, out. 2020. DOI: https://doi.org/10.36920/esa-v28n3-6.

 

 

 

Renata Cristina Sant'Ana

Doutoranda em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

recsantana2013@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-5854-317X
http://lattes.cnpq.br/1189441522127340

 

 

 

 

ccby.png

Creative Commons License. This is an Open Acess article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License CC BY 4.0 which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium. You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if changes were made.

 



[1] Doutoranda em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: recsantana2013@gmail.com.

[2] Movimento Brasileiro de Alfabetização, oficializado pela lei Lei no 5.379, de 15 de dezembro de 1967. Documento Básico – MOBRAL (1973). Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002467.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020.

[3] Sobre a estética Kitsch, ver: MOLES, Abraham. O Kitsch: a arte da felicidade. 3. ed. Tradução de Sérgio Miceli. São Paulo, Perspectiva, 1986; BROCH, Hermann. Espírito e espírito de época: ensaios sobre a cultura da modernidade. São Paulo: Benvirá, 2014.