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v. 28, n. 3, outubro de 2020 a janeiro de 2021, p. 550-570
Recebido em 27 de julho de 2020.  Aceito em 31 de agosto de 2020.



Graciliano Ramos (1892-1953): breve abordagem sobre interpretações
Graciliano Ramos (1892-1953): brief approach on interpretations

DOI: 10.36920/esa-v28n3-3



orcid_cinza.jpg  Eli Napoleão de Lima[1]

 

 

 

Resumo: Intentamos, neste artigo, revisitar Graciliano Ramos (1892-1953), observando duas questões postas por Ieda Lebensztayn em Graciliano Ramos e a Novidade. O astrônomo do inferno e os meninos impossíveis (2010) e João Paulo Lima e Silva Filho em Graciliano Ramos: Estudos de sociologias implícitas (1925-1953) (2010). Será sobre a conexão contexto histórico, contexto histórico-literário, literatura e realidade social, literatura e sociedade, literatura e documento, literatura e ciências sociais, no sentido das possibilidades interpretativas da relação história/ciências sociais/literatura, tomando Graciliano Ramos como referência, que nos debruçaremos neste artigo.

Palavras-chave: Graciliano Ramos; Literatura; História; Ciências Sociais.

 

Abstract: (Graciliano Ramos (1892-1953): brief approach on interpretations). In this article, we intend to revisit Graciliano Ramos (1892-1953), observing two questions raised by Ieda Lebensztayn in Graciliano Ramos e a Novidade. O astrônomo do inferno e os meninos impossíveis (2010) and João Paulo Lima e Silva Filho in Graciliano Ramos: Estudos de sociologias implícitas (1925-1953) (2010). It treats the connection between historical context, historical-literary context, literature and social reality, literature and society, literature and documents, literature and social sciences, in the sense of the interpretative possibilities of the relationship between history / social sciences / literature, taking Graciliano Ramos as a reference, that we will look at this article.

Keywords: Graciliano Ramos; literature; history; social sciences.

 

 

 

 

 

Introdução

Intentamos, neste artigo, revisitar Graciliano Ramos (1892-1953), observando duas questões postas por Ieda Lebensztayn em Graciliano Ramos e a Novidade. O astrônomo do inferno e os meninos impossíveis (2010) e João Paulo Lima e Silva Filho em Graciliano Ramos: Estudos de sociologias implícitas (1925-1953) (2010), sem, no entanto, adentrarmos nas questões mais profundas e minuciosas dos seus estudos, pois, afinal, trata-se de duas teses de doutorado de pesquisa original, intensa e de grande envergadura teórico-metodológica.

Ieda Lebensztayn por perceber que Graciliano Ramos tem uma “postura crítica contra o lugar-comum de miséria, ignorância, violência e política paternalista”[2] e João Paulo Lima e Silva Filho que, defendendo a perspectiva da sociologia implícita, questiona o lugar de Graciliano Ramos entre os intérpretes do Brasil, ou seja, entre os escritores representantes do pensamento social brasileiro (SILVA FILHO, 2010).

Será sobre a conexão contexto histórico, contexto histórico-literário, literatura e realidade social, literatura e sociedade, literatura e documento, literatura e ciências sociais, no sentido das possibilidades interpretativas da relação história/ciências sociais/literatura, tomando Graciliano Ramos como referência, que nos debruçaremos neste artigo.

Ieda Lebensztayn, escrevendo sobre Graciliano Ramos e a revista Novidade (semanário alagoano de 1931), da qual participava um grupo de intelectuais[3] que conviveu com ele, e juntando o contexto em que foram escritos os romances de GR, observa:

Parece-me relevante saber que as crônicas “Chavões”, “Sertanejos” (inéditas em livro), “Milagres” e “Lampião” e o capítulo XXIV de Caetés foram publicados em 1931: expressões marcantes da perspectiva crítica e do estilo do escritor, são reflexões sobre os problemas dos anos 1930, feitas antes de sua melhor criação ficcional. Trazem elementos que contribuem para uma análise estilística de seus romances, voltada a compreender a formalização artística dessa matéria histórica, de questões não apenas sociais mas também morais, psicológicas, existenciais. (2010, p. iii)

No capítulo “A terra dos ‘meninos impossíveis, apresentando a formação dos jovens na revista, expõe sua participação em grêmios literários e no incentivo a eventos “a um tempo modernistas, regionalistas e de empenho crítico e preocupação social...” (LEBENSZTAYN, 2010, p. iv), analisa o poema de Jorge de Lima, O mundo do menino impossível, recolhe pareceres de escritores e críticos variados e acompanha, com Otto Maria Carpeaux, “o ‘encrencado’ de falar-se em ‘modernismo nordestino’”.[4]

Deveras interessante é a resposta de Graciliano Ramos a Osório Nunes no inquérito “O modernismo morreu?” que seria publicada, em 1942, em Dom Casmurro. “Não fui modernista, nem sou ‘pós-modernista’. Sou apenas um romancista de quinta ordem. Estava fora e estou”.[5]

E diante da pergunta “Como pode explicar, então, as versões que o classificam entre as expressões consequentes à ‘Semana’? – queremos saber. Graciliano Ramos esboça um sorriso divertido e diz: – O modernismo presta-se, admiravelmente, a todas as confusões...”.[6]

 E mais adiante, Ieda escreve que Graciliano Ramos “ataca os modernistas de modo veemente porque, ao traçarem linhas arbitrárias entre o bom e o mau, condenaram muitos autores injustamente, ‘por ignorância ou safadeza’”.[7]

É, decerto, significativo como Ieda Lebensztayn trata essa questão, a demandar, ainda hoje, reflexão, e retomaremos aspectos dela mais adiante, mas para o que nos interessa aqui, por enquanto, registramos o que segue das reflexões feitas no capítulo no sentido do que lhe parece adequado realizar: “...resulta a perspectiva de que é necessário o movimento hermenêutico entre o contexto histórico e o histórico-literário em que os escritores viveram e a singularidade de suas obras”.

No capítulo “Itinerário político e cultural”, analisará editoriais da revista que revelam o contexto histórico daquele momento, escritos por Valdemar Cavalcanti e Alberto Passos Guimarães.

“Os chavões da Revolução de 1930, a violência do cangaço, o imperialismo e a arte comodista são alguns dos alvos dos editoriais, que desvelam problemas políticos, sociais e culturais da realidade de então e ainda atual, não apenas alagoana”.[8]

Note-se o lema da revista: “Novidade não é essencialmente literária nem essencialmente política”.[9]

 Esse lema instigou ainda mais a autora a conhecer a revista. Considerando que o estudo do semanário preencheria um vazio na historiografia da literatura brasileira, resgatar Novidade permitiria “relativizar não só possíveis divisões bruscas entre ‘projeto estético’ e ‘projeto ideológico’ como também uma decorrência estrita do romance de 30 em relação ao modernismo de 22 ou ao regionalismo de Gilberto Freyre”.

Enfatiza que, para tanto, dialogará

com a nossa melhor tradição crítica: Mário de Andrade (“O movimento modernista”), Antonio Candido (“Literatura e cultura de 1900 a 1945” e “A revolução de 1930 e a cultura”), Alfredo Bosi (“Moderno e modernista na  literatura brasileira” e “Situação de Macunaíma”), e João Luiz Lafetá (“Prefácio de 1930: a crítica e o modernismo”). E são pressupostos dessa reflexão: a compreensão da arte como amálgama do estético com o social e a atenção respeitosa ao caminho pessoal de formação dos escritores, em seu tempo e em seu ambiente de origem. (LEBENSZTAYN, 2010, p. xvi )

Em “Novidade política: o resgate dos sem lugar”, a autora buscará reter

a matéria histórica e a perspectiva crítica da revista, concentrando-me em artigos sobre questões da esfera política: personalismo, retórica, precariedade da educação e da cultura letrada em Alagoas, mendicância, miséria dos sertanejos retirantes, cangaço, santas milagreiras. (LEBENSZTAYN, 2010, p. xvi )

Em “Novidade literária: o resgate de pessoas” analisará cinco ensaios de escritores da revista “que viveram a realidade dos anos 1930 e deram forma artística a impasses sociais e existenciais”.[10]

Aparece aí, também, na atenção dada pela autora ao semanário e, na medida em que ajuda no conhecimento da obra de Graciliano Ramos, a questão do papel do intelectual sempre referida, notadamente por quem trabalha (como nós) com as possibilidades interpretativas da relação literatura/história/ciências sociais.

Se a Novidade se deseja como reação crítica ao lugar comum da violência, aos estereótipos, à retórica dos bacharéis e políticos e expõe como problema o papel do intelectual num mundo de barbárie, os textos de Graciliano nela publicados, concentrando seu modo de conceber algumas questões a que ele daria forma literária posteriormente, são sua melhor expressão. (LEBENSZTAYN, 2010, p. xvi )

 Esses intelectuais apareciam na revista em situação “caracterizada por palavras como dispersão, abafamento, silêncio, comodismo...”.[11] Essa crítica estava direcionada ao movimento anterior: o romantismo em sentido amplo e literário.

Em outras palavras, os elementos intrínsecos à geração anterior eram o alvo das críticas do grupo da Novidade.

 

É interessante recordar A lição do amigo, em especial a carta de 1924 em que Mário de Andrade aconselha Drummond a desapegar-se do que aprendeu com Anatole France. Mário condena vários traços anatolianos: o “não ser exigente com a vida”, o “literato puro”, a “dúvida passiva”, o “pessimismo diletante”, o sentimento de vergonha em relação às “atitudes francas, práticas, vitais”. Carlos Drummond de Andrade expusera em cartas a Mário, em fins de 1924, suas tensões entre o anatolismo (“velho vício dos brasileiros, e meu também”), o apego à cultura francesa, o descrédito em relação à realidade brasileira e a preocupação com ela. (LEBENSZTAYN, 2010, p. 3)

Sem nos aprofundarmos muito, registremos aqui em que consistiu a atitude vanguardista em oposição ao momento literário anterior e na perspectiva de demonstrar o sentido da querela do surgimento dos modernismos, nordestino e paulista-carioca, posto ser de valia para captar o lugar de Graciliano Ramos como um romancista intérprete da realidade brasileira.

José Paulo Paes, no Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, informa ser possível discernir na história do Modernismo três décadas literárias, sendo a primeira a que compreende o período 1922-1928, “consagrada à criação poética (Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade; Pau-brasil, de Oswald de Andrade; Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, para mencionar apenas os títulos significativos)”. Segue-se a segunda, de 1928 a 1939, consagrada à ficção “com o chamado romance do Nordeste, representado por José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos; o romance psicológico, com Érico Veríssimo, José Geraldo Vieira, Otávio de Faria, Ciro dos Anjos”. A terceira e última vai até 1945, quando “a crítica já formada na ‘época modernista’, impõe os seus conceitos e critérios de apreciação, e cujos representantes mais notáveis foram Álvaro Lins e Antonio Candido” (PAES, 1967, p. 274).

No verbete, afirma ser a primeira década (o período 1922-1928) aquela que pode ser considerada “a única eminentemente revolucionária”, sendo as duas seguintes as de tendências significativas de consolidação.

Por isso mesmo, é entre 1922 e 1928 que se multiplicam os grupos rivais, cada um deles reivindicando, através de retumbantes manisfestos, posições mais extremadas que os anteriores: o que, nos primeiros instantes, se reuniu na revista Klaxon (1922); o Pau-Brasil, instituído com manifesto e o livro de Oswald de Andrade (1925); o Verdeamarelismo e a Anta, tendências interligadas, que se constituem, a partir de 1927, em torno de Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia; enfim, a Antropofagia, criada em 1928, por Oswald de Andrade. (PAES, 1967, p. 274)

 

 

Como é fato já amplamente descrito, o Brasil entra nos anos 1920 no sentido da construção de uma nação moderna. “Desse projeto modernizador não escapava a pergunta: que país é esse? Tratava-se de compreender os padrões tradicionais de nossa organização social, política e econômica, confluindo, nesse sentido, literatos e cientistas” (MELO, 2001).

Ou seja, era fértil o terreno para as mais diversas representações dos mais diversos intelectuais, daquele processo em curso. Daí, as querelas havidas.

Vejamos, novamente, José Paulo Paes que percebe que a Antropofagia foi a derradeira proposta de representação do Modernismo como forma estética coletiva; a partir desse momento se dá “uma unificação inesperada e involuntária dos diversos escritores e artistas sob o signo homogeneizador do moderno”. Assim, o ano de 1928 registra o marco

...de uma encruzilhada decisiva, pois, ao mesmo tempo em que a Antropofagia se revela impotente para provocar a grande transformação implícita em seus princípios, o Verdamarelismo prepara ou prenuncia as divisões políticas da década seguinte; em plano mais estritamente literário, A Bagaceira, de José Américo de Almeida, e o Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inauguram, respectivamente, o romance nordestino (isto é, o tipo de ficção que iria melhor representar os ideias modernistas) e o ensaio de natureza ao mesmo tempo histórica e sociológica, abrindo caminho para novas “interpretações do Brasil” de que o grande marco seria, em 1933, o livro de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala. (1967, p. 274-275)

Ainda hoje, produzir uma visão crítica acerca do Modernismo não se faz sem combates e controvérsias, sem dúvida. Carlos Zílio, mesmo que se referindo à arte, afirma que o movimento, em face das intenções manifestas de superação da dicotomia nacionalismo – cosmopolitismo e em fundar uma arte brasileira –, se apresentava a ele como momento dos mais férteis para análise.

No entanto, a produção teórica sobre o movimento não respondia aos meus questionamentos porque se restringia, em geral, a endossar a ideologia consagrada pelo próprio Modernismo. (...) Descrito posteriormente retrospectivamente, pode parecer que o Modernismo foi um programa sistemático de renovação.  Na verdade, sofreu inúmeras hesitações e dificuldades diante de um ambiente cultural retrógrado com o qual rompia, mas que dele era também enquanto reação, resultado. (1997)

Tendemos a concordar com Carlos Zílio e ponderamos que não se observa satisfatoriamente as diversas faces do movimento modernista, quando se considera o Modernismo com um movimento fetiche: antes dele nada teria sido significativo, assim, também, nada de representativo se fez depois. É preciso cautela, muita cautela.

Mais à frente, voltaremos a Graciliano Ramos e como se traduz nas suas palavras seu sentimento em relação ao assunto.

Retomemos a questão do “Modernismo Nordestino”. Otto Maria Carpeaux, perguntado se poderia falar em ‘modernismo nordestino’, afirmava que Manuel Bandeira fazia parte do movimento literário que teve início em São Paulo em 1922 e que logo seguiu para o Rio de Janeiro, era nordestino e “pernambucano autêntico” e, assim sendo, o lugar de origem não era determinante, indissociável.

Por outro lado, há quem negue a relação entre o movimento nordestino de 1930 e a agitação paulista de 1922. Quanto à obra dos romancistas e sociólogos citados eu gostaria de apoiar essa última tese. Com respeito à poesia, basta recordar que o modernismo paulista-carioca de 1922 e 1924 é sobretudo renovação poética enquanto Jorge de Lima é, no Nordeste, figura quase isolada. Talvez só futuros historiadores da literatura brasileira cheguem a resolver esse problema encrencado. (1999 apud LEBENSZTAYN , 2010, p. 71 – grifo nosso).

E Ieda Lebensztayn, concordando com Carpeaux, repete que, de fato, aquele era o lugar de Jorge de Lima, “numa geração de romancistas e sociólogos a cujos temas deu forma em versos” (2010 – grifo nosso).

O que do Modernismo ou do Modernismo Nordestino nos interessa mais aqui é qual o sentido de pertencimento de Graciliano Ramos ao “movimento”.

Com a palavra, Graciliano Ramos no Diário de Pernambuco de 10 de março de 1935, sob o título “O romance no Nordeste”:

Era indispensável que nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente. Hoje desapareceram os processos de pura criação literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação (...) seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria.[12]

Parece-nos claro pela passagem anterior que Graciliano Ramos, vendo a desenvoltura de paulistas e cariocas, registra, não sem uma nota de ironia, o fato de que os nordestinos têm suas próprias habilidades em transformar em literatura seus arcabouços de vivências sobre uma região em permanente defasagem histórica em privilégios e suas sequelas. O que não significa atribuir-lhe papel de intérprete do Brasil, ainda que possa ser tentador...

Registrado o fato da posição de Graciliano Ramos diante do movimento, retomemos nosso fio da meada.

Analisando o porquê da escolha de Graciliano Ramos pelo capítulo xxiv de Caétes (1930) para a revista Novidade, informa Lebensztayn:

Importa observar aqui uma marca da composição do romance: a caracterização das personagens se faz por meio de muitas comparações das quais se depreende a ironia do autor. Sendo assim, eles ganham singularidade e, a um tempo,  tece-se a representação da realidade. A partir da caracterização do pseudo-escritor e arrivista leviano, constrói-se a critica ao ambiente social e intelectual restrito, tendo por substrato a tensão própria de Eclesiastes, entre sabedoria e brutalidade. (2010, p. 292-293)

Afirma, ademais, que estão aí inscritas – a chamar “a consciência crítica do leitor” – a questão da ausência de educação/instrução, a subordinação consequente da dominação colonial.

A força irônica da comparação entre personagens, em especial entre o protagonista e os caetés, comprova a sensibilidade ética de atentar-se para as semelhanças e diferenças entre os seres, combatendo estereótipos. Como resultado, firma-se para o escritor o propósito de representação crítica da realidad , do ambiente em que o poder se mantém por meio de maroteiras. E, a um tempo, do embate entre caracteres e da representação das desigualdades sociais, em busca de uma forma artística mais depurada para combater estereótipos, cria-se para o romanista a necessidade de expressar os impasses subjetivos aí envolvidos em sua tragicidade, conforme se veria a partir de S. Bernardo. (LEBENSZTAYN, 2010, p. 295)

Até aqui, vimos tentando identificar os termos que se nos afiguram no sentido do, digamos, compromisso da literatura em descrever a realidade, observando que Lebensztayn em momento algum deixa de lado a procura por “elementos que contribuem para uma análise estilística de seus romances, voltada a compreender a formalização artística dessa matéria histórica, de questões não apenas sociais, mas também morais, psicológicas, existenciais” (2010, p. iii).

 E, a partir dos destaques anteriores, partimos para o trabalho de tese seguinte.

João Paulo Lima e Silva Filho, apresentando suas Questões Gerais, inicia pela pergunta se a sociologia pode “adentrar o universo de criação da literatura”, dentre outras perguntas no mesmo sentido. E segue no rumo do estranhamento que subsidiará sua tese.

Encontramos, numa publicação comemorativa dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, Graciliano Ramos, colocado por Silviano Santiago, ao lado de Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Manuel Bonfim, Oliveira Viana, Alcântara Machado, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes no honorífico e abrangente título de intérprete do Brasil. (2010)

Afora outros estranhamentos, Silva Filho chama a atenção para o fato de na primeira edição de Intérpretes do Brasil, constar Graciliano Ramos como parte integrante de “onze livros da mais pura ciência nacional, acompanhado por estudos introdutórios inéditos de alguns dos maiores nomes da historiografia atual” (SANTIAGO, 2000 apud SILVA FILHO, 2010), mas, na segunda edição, por ter sido retirado o romance Vidas Secas, sem justificativa, pergunta por que esse livro e não outro. E continua:

Da simples presença de um escritor em meio a ensaístas, sociólogos e historiadores emanam inúmeras questões acerca do discernimento entre as práticas intelectuais no Brasil não só da época, mas ainda nos nossos dias. O que é fazer ciência social no Brasil? Em que sentido é normal, pertinente, válido, lógico, associar literatura às ciências sociais? Mais concretamente: quais lógicas sociais descrevem as razões sócio-históricas pelas quais uma obra de cunho eminentemente literário, como a de Graciliano Ramos, pode ser lida ou não, no passado ou no presente, como “obra da mais pura ciência nacional”. (SILVA FILHO, 2010, p. 20)

Num paper apresentado no 33o Encontro Anual da Anpocs, Silva Filho informa que o objeto de análise da sua tese

é a sociologia implícita ao romance de Graciliano Ramos e ao público receptor da obra dele. O problema sociológico central que decorre do estudo das diferentes facetas desse objeto é o seguinte: como descrever a configuração específica das fronteiras entre ciência e romances sociais? Como descrever essas fronteiras que se definem de maneira tensa e difusa no mundo social de disputas simbólicas no meio intelectual brasileiro? (2009, p. 6)

Afirmando ser essa uma formulação teórica demasiado ampla, o autor parte para

a materialização de um problema concreto, tal como posto no mundo social: a presença do romance Vidas Secas na coleção Intérpretes do Brasil (Santiago, 2000). Nela, a obra aparece ao lado de livros como A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes e de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Como é que Graciliano Ramos, escritor, foi parar entre os pensadores do Brasil? É preciso ter muita cautela. (SILVA FILHO, 2009, p. 6-7)

Silva Filho informa que na sua dissertação de mestrado, ainda que Graciliano Ramos apareça “como um caso especial de romancista movido por uma forte sensibilidade sociológica” e que assim permaneça para muitos leitores de seus romances, até hoje, sobre a compreensão de estar o valor da obra vinculado ao potencial descritivo da realidade social, pondera: “O problema é que o elogio da obra pelo seu potencial descritivo esbarra nos procedimentos normativos mais usuais da crítica literária, inclusive nos provenientes da crítica mais sensível à relação entre literatura e sociedade.” E dentre outras perguntas que faz: “Não seria o papel do sociólogo da literatura também se apropriar das finas ferramentas literárias que foram utilizadas para destrinchar o social pela literatura?” (2010, p. 18).

Para responder a essa e a outras perguntas, afirma sobre a necessidade de vencer obstáculos, sendo o primeiro deles o de

trabalhar o preceito dado pela grande maioria dos especialistas em literatura, o do primado da forma sobre o conteúdo. Porque os críticos modernos da literatura brasileira insistem tanto em pontuar as especificidades formais de Graciliano Ramos se o autor e a obra se confundem com a vontade imensa dele e os de sua geração em descrever a realidade de sua época? (SILVA FILHO, 2010, p. 18)

Silva Filho dá, a seguir, o rumo a trilhar, qual seja o de retornar ao passado para restaurar o “modo de leitura” (diríamos, interpretação) que se fez da obra do escritor, para perceber com mais acuidade “as dificuldades enfrentadas para a produção de uma sociologia da literatura mais ampla, contemplando aspectos biográficos que podem servir de elementos explicativos da obra” (2010, p. 18-19).

As perguntas de João Paulo (e, inequivocamente, sua proposta para respondê-las) são extremamente instigantes. E deveras significativa sua contribuição, e dela retivemos apenas algumas questões como um estímulo para a escrita deste artigo com vistas a incentivar nossas próprias questões e colocá-las para debate.

Raramente não se encontrará a obra de Graciliano Ramos descrita e entendida como prática social, descrição das contradições presentes na sociedade etc.

Assim, vejamos Rolando Morel Pinto em verbete no Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira:

(...) As condições precárias das várias prisões onde esteve abalaram-lhe a saúde e submeteram-no a inacreditáveis constrangimentos morais. Essas provações vêm narradas em Memórias do Cárcere (1953), que transcendem os limites do mero depoimento pessoal para se tornarem um dos estudos mais sérios da realidade brasileira, um libelo contra o nosso atraso cultural e uma denúncia das iniquidades do Estado Novo (...). (2003)

Evidentemente, constam, também, do verbete os aspectos estritamente estilísticos e literários que tornaram a obra do escritor da mais significativa importância. “Como romancista e, principalmente, como escritor, Graciliano Ramos é hoje, sem favor nenhum, um clássico da língua portuguesa” (PINTO, 2003).

Rangel (2018) escreve: “Graciliano Ramos (1892-1953) ocupa um lugar importante no cenário literário brasileiro com obras que convidam o leitor a refletir, por intermédio das suas personagens, as contradições presentes na sociedade, a arte em um mundo reificado e a literatura como prática social.”

Melo, referindo-se à participação de Graciliano Ramos na revista Cultura Política, enfatizando com Antonio Candido que essa e outras participações de escritores não significaram cooptação com a política estado-novista e que se a alternativa de se recusar a trabalhar na revista estava fora das possibilidades,

...restava então o uso precioso da palavra. Da perspectiva tutelar da política getulista, de propagandear um movimento de cultura brasileira firmado na recuperação das raízes nacionais, de tom ufanista, era preciso escapar através da ironia, ou de um retrato cru dessa realidade. O tom acrimonioso desfaz os louros comemorativos da redescoberta do Brasil. (...). Opondo o Brasil matuto, sertanejo, antiquado, ao litoral macaqueador das civilizações do outro mundo, sua crítica recai sobre o artificialismo bem pensante que, sob o fraque, esconde a tanga. (2001)

Se nessa revista, como em outros suplementos literários, como na revista Novidade, são ácidos os artigos de Graciliano Ramos, “... em Vidas Secas fazia do silêncio e das imagens evocadas sua mais forte e eloquente arma expressiva. Como um quadro, a forma concisa e sóbria talhava, obstinadamente, o que parecia ser o Brasil verdadeiro” (MELO, 2001).

Mendes no seu trabalho de tese afirma que a obra literária de Graciliano Ramos é de grande relevância para se conhecer o Brasil das primeiras décadas do século passado:

As crônicas, os contos, os artigos, os romances, os livros infantis e as cartas do romancista, revelam um conjunto de textos que, além da reconhecida qualidade literária, é detentor de um forte poder de observação e crítica da realidade. Graciliano escreveu sobre as gentes do sertão, das cidades do interior (...). Mergulhou nas situações de privação, isolamento, injustiça, violência, rebeldia, resignação e esperteza. (2014)

Mais adiante, Mendes afirma que os muitos temas perceptíveis na obra de Graciliano Ramos “orbitam ao redor de três grandes questões que atravessam todos os textos (...): campo e cidade, autoritarismo e democracia, poder e cultura letrada”. O autor finaliza seu Resumo, afirmando que “o país sem graça e o Brasil moderno que aparecem no título desta tese indicam o grau da contradição que Graciliano Ramos viu entre nossas bases formativas e as promessas feitas em nome da modernidade durante os quarenta anos em que descreveu realisticamente o país” (2014).

Uma observação interessante a ser lembrada aqui recai sobre a relação entre criação literária e nação ou suas semelhantes. Vejamos, a título de exemplo, o caso de Euclides da Cunha.

Após o primeiro pós-guerra tornava-se inevitável repensar o Brasil. Alterava-se o quadro internacional e, portanto, a configuração do país.

A ideia da grande comunidade que se auto-regulava com perfeição, distribuindo equitativamente a ordem e o progresso, é desmascarada. O Brasil, vê-se, então, frente a frente com seus problemas (...). Este denota claramente a fragilidade da nossa situação no panorama internacional, ampliando o fantasma da cobiça externa. (VELLOSO, 1993 apud LIMA, 2002, p. 81)

É fato conhecido que com o golpe de 1930 inaugura-se uma fase decisiva do processo de constituição do Estado brasileiro como um Estado nacional, capitalista, burguês. A crescente centralização do poder desembocava no Estado como poder unificado e genérico, representativo do “interesse geral”. “Apesar de iniciado no imediato pós-1930, o marco na aceleração deste processo foi a instauração do Estado Novo em 1937. Sob a égide da ditadura, abrir-se-iam novas possibilidades de redefinição dos canais de representação, de participação política e de construção da cidadania” (MENDONÇA, 1990 apud LIMA, 2002, p. 83).

A palavra de ordem era a criação da nação e assumiria lugar de relevo o problema da identidade nacional, conclamando os intelectuais a romper com o passado de dependência cultural. Operou-se transformação significativa na concepção do papel do intelectual e da literatura. “O marco valorativo da obra literária passa a ser o maior ou menor grau com que expressa a terra e a sociedade brasileira.” Desta feita, intelectuais preocupados com o meio urbano, de espírito citadino, incompatibilizam-se com a crítica literária do Estado Novo, que consagra o paradigma naturalista.

O dever do escritor no projeto literário do Estado Novo é o da fidelidade ao seu tempo e ao seu núcleo cultural de origem, ou seja: literatura igual à nação, através da região. Por outras palavras, a autenticidade de uma obra literária passaria, necessariamente, pelo critério espacial (a região) e temporal (a história). Assim é que, por exemplo, Machado de Assis é um escritor severamente criticado e estigmatizado pelo regime estado-novista, uma vez que rechaçava esse modelo. Se Machado de Assis desobedecera ao “modelo paterno”, Euclides da Cunha representará a sua consagração.

Se o escritor é visto como herói, não deve medir esforços para ajudar a obra de construção nacional. Euclides vai preencher esses requisitos: além de literato e sociólogo, participa na edificação da nossa rede ferroviária e fluvial. Autodefinindo-se como “homem prático”, distante das abstrações dos poetas e sonhadores, Euclides obtém o reconhecimento do regime, que o consagra como um dos grandes vultos da nacionalidade. (VELLOSO, 1988 apud LIMA, 2002, p. 81)

Será o caráter documental da obra de Euclides da Cunha o primeiro dos aspectos que viabilizará a capitalização desse escritor para o projeto literário estado-novista. Em fins do século XIX acreditava-se que a realidade só poderia ser concebida e capturada pela poderosa rede da ciência. A invenção da fotografia vinha atender ao anseio de objetividade. Fotografia era, assim, sinônimo de realidade. “O ideal fotográfico acabou fundamentando uma determinada concepção de mundo cujo referencial era a visibilidade e a exatidão.” Da mesma forma surge a ideia da literatura-reflexo, da literatura revelação. Se bem observarmos a trajetória de nossa história político-intelectual, encontraremos nas mais diversas linhas de pensamento a tendência a conceituar a literatura como locus portador do mundo social.

Raros foram os nossos autores que se rebelaram contra esse paradigma de análise, buscando formas alternativas para pensar a relação literatura-sociedade. Os que tentaram esse caminho foram tachados de alienados, alienígenas, e definitivamente proscritos da legião de escritores consagrados. Afinal, a grande acusação que sobre eles pesava era séria: desconhecer a nação! (VELLOSO, 1988 apud LIMA, 2002, p. 82)

Vejamos alguns exemplos: Olavo Bilac, José Lins do Rego, Cassiano Ricardo, Rachel de Queiroz, Afonso Celso, Jorge Amado referendam essa linha de análise, em que pese a diversidade de perspectivas. Na primeira fase da obra de Jorge Amado, a literatura aparece como instrumento de conscientização política. Mônica Pimenta Velloso pondera ser essa a concepção de literatura simplista, ainda que se constitua no Brasil em forte tradição.

Em que base os intelectuais brasileiros formularam a proposição de que a literatura é igual à sociedade? Por que a literatura no Brasil possui uma tradição documental? O fato da colonização explicaria, em alguma medida, tal situação. Octávio Paz diz-nos: “somos um capítulo da história das utopias europeias”. Tivemos nossa existência marcada pela presença do outro. Toda a América Latina foi campo de experiências do saber europeu.

Dessa forma, nossa literatura já nasceu comprometida com uma escala de valores adversa à sua natureza ficcional. Racionalidade ao invés de imaginação, sistematização ao invés de invenção (...). Realmente, o veto ao imaginário e à subjetividade tem sido uma constante em nossa história intelectual. (VELLOSO, 1988 apud LIMA, 2002, p. 82)

A concepção da literatura como apêndice da sociedade tem base positivista. Precisão, objetividade, exatidão são os termos da equação. É possível observarmos tal visão nos paradigmas clássicos da crítica literária brasileira, com Silvio Romero e José Veríssimo. Em ambos, em que pese em Romero ser o modelo de julgamento da obra literária a nacionalidade e em Veríssimo a linguagem, reside o mesmo raciocínio: a literatura deve representar fielmente uma realidade mais ampla que o regula. Mas de que realidade se fala? O princípio da “verdade” tem sido caro aos nossos críticos literários e a verdade não estaria na mente humana, posto que ilusória e, portanto, propensa ao erro. Ela está no mundo dos fatos, da ação. A literatura se transforma em inventário, documento.

A competência do artista residiria, assim, em retratar uma realidade dada. O que está em discussão aqui não é se literatura e realidade histórica são compatíveis ou não. O que estamos tentando compreender é o vínculo “obrigatório” entre criação e nação. Esse compromisso da vinculação literatura-nação, entre nós, incidiu em enorme dificuldade na assimilação da literatura como forma discursiva autônoma, particular. Seria de se perguntar por que a literatura no Brasil esteve mais afeita às tendências realistas do que às ficcionais. Velloso aposta em duas possibilidades: ou ficção fazia parte do que era considerado secundário por não ser compatível com o real, ou porque era uma ameaça à ordem estabelecida.

Essa mentalidade positivista, calcada no culto à veracidade, daria origem a uma produção intelectual sui generis. Buscando interpretar o Brasil, os nossos ensaios se inspiram nas mais diversas áreas de reflexão, como a história, a economia, a arte, a política, a literatura (...). Dentro desse gênero é que se enquadram as grandes reflexões sobre a nacionalidade, com as obras de Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda. (1988 apud LIMA, 2002, p. 83)

O que, no nosso entendimento, existe em comum entre esses intelectuais seria, unicamente, a preocupação sociológica que move sua produção ensaística, que é, por outro lado, característica de gerações que buscavam as raízes de nossa formação social. Para tanto, evidenciava-se a premência do domínio de um instrumental de análise que pudesse ser aprovado cientificamente. Só através do crivo da cientificidade seria dada ao intelectual responsável a acuidade para perceber a nacionalidade e propor solução para os males existentes. Cria-se um mito em torno da sociologia cujo saber ganhou o estatuto de cientificidade. Como diria Mário de Andrade, a sociologia era a “arte de salvar rapidamente o Brasil”.

É notável a “posição” de Euclides da Cunha entre Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

Em relação a Os Sertões as considerações mais presentes, para além da consagrada expressão “ensaio social” (ou “ensaísmo social”), dizem sempre respeito à “contraposição” ficção e história ou ciência e literatura ou arte e ciência ou ficcionalidade, literariedade e historicidade. O que Euclides da Cunha fez em Os Sertões foi ciência ou literatura? Trata-se de ficção ou relato objetivo dos fatos ocorridos? Esta questão parece permear a quase totalidade das análises sobre o livro.

Berthold Zilly (1998) observa que Os Sertões se tornou uma das obras-mestras da literatura brasileira, como, também, da literatura universal, e que isso é devido muito pouco ao valor documental ou historiográfico que possa conter.

Luiz Fernando Valente (1998) propõe uma aliança entre a história e a ficção.

Leopoldo M. Bernucci (1998) destaca trechos da obra para apontar que n’Os Sertões observa uma construção híbrida da qual participam elementos que podem pertencer tanto à ficção como à historiografia.

Walnice Nogueira Galvão respondendo à pergunta se veria no escritor tais múltiplas dimensões – historiador, escritor, cientista etc. –, dentre outros comentários, afirma:

Do meu ponto de vista, o mais importante em Os Sertões é a literatura. Trata-se de uma obra literária dificilmente justificável de outros ângulos. Do ponto de vista científico, é muito contraditória. E do ponto de vista histórico, está repleta de falhas também. Mas literariamente, é grandiosa. Vamos dizer que “perdôo” os deslizes de ciência e história por causa da literatura... (1998 apud LIMA, 2002, p. 197)

Há, porém, uma voz dissonante na tendência predominante, ainda, de se seguir na interpretação de dupla inscrição da obra. Luiz Costa Lima usando outra combinação, arte e ciência, após uma longa, severa e intrincada análise, concluirá que a ciência encobre a arte n’Os Sertões.

Em que pese considerarmos que Euclides da Cunha tenha sempre (em Os Sertões como nos escritos sobre a Amazônia) oscilado entre a denúncia social e a proposta de superação e supressão das condições de exploração através do ideal do progresso, cuja gênese parece não perceber, devemos observar também que Os Sertões, canonizado como epopeia, consagrado pelo estilo, transformou-se em obra de arte. A denúncia social, seu caráter mais relevante, ficou esvaziada pelo reconhecimento literário da obra. Por outro lado, a guerra de Canudos não ficará esquecida porque está registrada n’Os Sertões.

Como pensamos ter sido possível indicar, a relação literatura/sociologia/história, entre outras variáveis, tem sido um debate constante entre a intelectualidade brasileira, e aparece no mais das vezes entrelaçadas. O que não significa confundir ensaios de cunho estritamente literários com outros de cunho eminentemente próprios das ciências humanas e sociais.

Vimos trabalhando, há muito, numa perspectiva que aponta para o fato de que a prosa de ficção, a poesia, o ensaio e, mais tarde, a fotografia e o filme serviram como fontes aptas a informar e interpretar tanto a estrutura social quanto a mentalidade de populações marginalizadas, principalmente do mundo rural.

É fato que no Brasil e, de modo geral, na América Latina a literatura e outras modalidades não acadêmicas de texto desempenharam durante muito tempo, devido à escassez de estudos especializados, pelo menos até meados do século XX, importante papel na representação da realidade natural e social. Assim, é possível afirmar que foi na literatura que os protagonistas da miséria encontraram sua mais cruenta história. Repetimos: devido à escassez de estudos especializados.

Desta feita, argumentamos que na criação das instituições acadêmicas stricto sensu, a partir dos anos 1930, se sedimentou a efervescência dos anos 1920, como também aprofundou tendências, fortaleceu correntes criadoras, estabeleceram-se condições intelectuais de produção de visões críticas e surgem trabalhos como ferramentas analíticas do mundo social, em meio a disputas intelectuais, agora, acadêmicas.

Faz-se importante registrar que o “literário” é para nós, ao trabalharmos com as possibilidades interpretativas da relação história/ciências sociais/literatura, concebido no sentido mais amplo do esteticamente marcado, referindo-se a aspectos estilísticos, retóricos, dramatúrgicos, artísticos que conferem a qualquer representação, mesmo as predominantemente documentais ou acadêmicas, uma nota subjetiva, emocional, ideológica ou transcendente. Evidentemente, observamos que o uso dessa relação deve se propor discutir em que medida e com que cautelas as representações literárias podem ser lidas como documentos ou estudos históricos e do pensamento social, tendo como foco a literatura e suas especificidades, levando em consideração seus diversos gêneros. A relação entre ciências sociais e literatura não deve ser estabelecida pela busca de “conteudismos” nem se ater somente aos seus valores propriamente estéticos. Estivemos sempre atentos à contribuição ao conhecimento que a literatura, decerto, contém.

 É escusado dizer que a origem da história e da literatura reside na narrativa do mito e que só seriam desatreladas a partir de Heródoto (484-425 a.C.), que caracterizava a história como pesquisa de diversas fontes, excluindo-se a confiabilidade irrestrita nos poetas. Assim, por longo tempo, a literatura não foi aceita pelos historiadores como fonte de pesquisa, e os literatos contrapunham-se ao fato de que os historiadores monopolizassem o direito da reconstituição de uma época. Duby, Gay, Le Goff, Pierre Nora, Braudel, Vovelle e Ginzburg modificaram essa perspectiva ao recorrerem às narrativas de poetas e romancistas para trazerem à luz uma nova história das mentalidades.

A abordagem de Terry Eagleton parece-nos de grande valia quando utilizamos a definição de literatura como escrita “imaginativa”, como ficção, escrita que não é literalmente verídica, para perguntar: “O fato de a literatura ser a escrita ‘criativa’ ou ‘imaginativa’ implicaria serem a história, a filosofia e as ciências sociais não criativas e destituídas de imaginação?” (1997, p. 2).

Como diria Edward Said em outro contexto:

Não creio que os escritores sejam mecanicamente determinados pela ideologia, pela classe ou pela história econômica, mas acho que estão profundamente ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em diferentes graus. A cultura e suas formas estéticas derivam da experiência histórica... (1995, p. 23)

Em que pese a presença social, os romances não devem ser reduzidos a uma corrente sociológica e não se lhes pode fazer – estética, cultural e politicamente – justiça, como formas subsidiárias de classe, ideologia ou interesses. “Analogamente, porém, os romances não são simples produtos de gênios solitários (como tenta sugerir uma escola de intérpretes modernos, como Helen Vendler), a ser vistos apenas como manifestações de uma criatividade incondicionada” (SAID, 1995, p. 112).

A nosso ver, uma questão crucial, nessa perspectiva, não seria perguntar o que é fazer literatura ou o que é fazer ciência social, mas como os textos e a compreensão que temos deles se relacionam com a história e em que momento eles adquirem ou readquirem esse ou aquele sentido (JAMESON, 1992).

Concordamos com João Paulo Lima e Silva Filho (2009), ou seja, em termos muito esquemáticos: ter uma percepção cognoscível de sua realidade, veiculada na sua obra literária (estilo, linguagem etc.) não tornaria Graciliano Ramos um representante do pensamento social brasileiro, menos ainda como um sociólogo.

Ieda Lebensztayn parece apontar para o fato de, na literatura de Graciliano Ramos, conviverem em harmonia o contexto, a postura crítica em relação a ele, uma literatura que se propusesse demonstrar problemas “reais”, através de suas angústias.

Há quase unanimidade nas interpretações sobre a obra graciliana de presença de termos como ironia, representação crítica da realidade social, registro de ausência de instrução/educação, questões locais, morais, psicológicas, existências, miséria, violência, ignorância, política paternalista, safadezas, projeto estético, projeto ideológico, cangaço; configurações do retrato fiel do sertanejo para viver em tempos de seca, o silêncio retórico dos personagens ou o mal-estar da questão regional como em Vidas Secas; narrativa de tempos sombrios como em Angústia; a oralidade nordestina como manifestação de identidade regional como em Alexandre e outros heróis; a discriminação, o sonho e o exercício imaginativo como em A terra dos meninos pelados; testemunho político de alto valor literário como em Memórias do Cárcere; a presença crítica da contradição selvagem/civilizado como em Caetés; a desumanização de Paulo Honório em São Bernardo.

Elencamos anteriormente as obras de Graciliano Ramos mais comumente analisadas e destacamos, igualmente, os aspectos gerais mais comumente observados em análises diversas.

Mas uma observação geral é notória e parece ir na contramão do que pensava o escritor: o fato de Vidas Secas ser tido como um romance regionalista que faz parte da segunda geração do Modernismo.

É ainda de Ieda Lebensztayn  que tomamos a nota sobre o fato desse pertencimento:

Movido por uma preocupação radical de partilhar sofrimentos humanos e não procedimentos de vanguarda, no horizonte de Graciliano apreende-se o romance como uma construção que combinasse representação crítica da realidade e expressão de impasses subjetivos, de modo a abrir para o leitor as “pequenas verdades da vida, atingindo universalidade”. (2010, p. 76)

Em entrevista publicada na Revista do Globo, edição no 473, em 18 de dezembro de 1956 e, posteriormente, no livro República das Letras, de Homero Senna, editora Civilização Brasileira, escutemos o próprio escritor ao lhe ser perguntado qual impressão lhe havia ficado do Modernismo, respondeu:

“Muito ruim. Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti.”

E se não excluiria ninguém dessa condenação:

Graciliano Ramos – Já disse: salvo raríssimas exceções. Está visto que excluo Bandeira, por exemplo, que aliás não é propriamente modernista. Fez sonetos, foi parnasiano. E o “Solau do Desamado” é como as “Sextilhas de Frei Antão”. Por dever de ofício, pois estou organizando uma antologia de contos brasileiros, antologia que rola há mais de três anos, tive de reler toda a obra de um dos próceres do modernismo. Achei dois contos de cinco ou seis páginas cada um. E pergunto: isso justifica uma glória literária?

(Franze a testa, detém-se um instante, mas logo prossegue).

Graciliano Ramos – Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva. Vendo em Coelho Neto a encarnação da literatura brasileira – o que era um erro – fingiram esquecer tudo quanto havia antes, e nessa condenação maciça cometeram injustiças tremendas. Nas leituras que tenho feito, para a organização da antologia a que me referi, encontrei vários contos, de autores propositadamente esquecidos pelos modernistas e que seriam grandes em qualquer literatura. Lembro-me de alguns: “O Ratinho Tique-Taque”, de Medeiros e Albuquerque; “Tílburi de Praça”, de Raul Pompéia; “Só”, de Domício da Gama; “Coração de Velho”, de Mário de Alencar; “Os Brincos de Sara”, de Alberto de Oliveira. Nas antologias que andam por aí essas produções geralmente não aparecem, e de alguns dos autores citados são transcritos contos que não dão a ideia exata do seu talento e do domínio que tinham do gênero. Só posso atribuir isso, como já disse, à desonestidade. Porque se os compararmos aos produtos dos líderes modernistas, estes se achatam completamente.

Quer dizer que não se considera modernista?

Graciliano Ramos – Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão.[13]

São muitos e diversos os critérios de análise de produtos culturais. O que estivemos tentando aqui foi tão somente procurar trazer mais elementos que possam contribuir para uma retomada do escritor e sua obra na perspectiva de ampliar e estruturar conhecimentos sobre a literatura e em aguçar o olhar para as especificidades do texto literário, levando-se em consideração as diferenças entre os diversos gêneros de textos e de discursos. E metodologicamente discutir, através da análise de textos concretos, em que medida e com que cautelas, ensaios e, sobretudo, ficções, apesar da sua relativa autonomia estética, podem ser lidos como documentos ou estudos sociais e históricos.

Observar os mais significativos fenômenos da experiência literária e procurar ter uma apreensão da literatura em seu caráter universal (ou de universalidade) pode ser um caminho, digamos, profícuo, assim, igualmente, como historicizara a relação entre produção cultural e história.

 

 

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Como citar

LIMA, Eli Napoleão de. Graciliano Ramos (1892-1953): breve abordagem sobre interpretações. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 550-570, out. 2020. DOI: https://www.doi.org/10.36920/esa-v28n3-3.



 

Eli Napoleão de Lima

Professora Associada IV do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).

lylima.ly@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9086-4325
http://lattes.cnpq.br/5542647416653541

 

 

 

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[1] Professora Associada IV do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: lylima.ly@gmail.com.

[2] Expressão constante do resumo de sua tese de doutorado defendida em 2009, no Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP). Daqui em diante passarei a usar apenas a publicação da tese em livro.

[3] Jorge de Lima, José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda, Santa Rosa, Alberto Passos Guimarães e Valdemar Cavalcanti.

[4] LEBENSZTAYN, p. v.

[5] Ibid., p. 76.

[6] Ibid., p. 77.

[7] Ibid., p. 77.

[8] Ibid., p. v.

[9] Ibid., p. v.

[10] LEBENSZTAYN, p. v-vi.

[11] Ibid., p. 1.

[12] Diário de Pernambuco, 10 mar. 1935. Consta, também, de epígrafe da tese de João Paulo Lima e Silva Filho, 2010.

[13] Revista do Globo, edição no 473, 18 de dezembro de 1956.