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v. 28, n. 3, outubro de 2020 a janeiro de 2021, p. 508-549
Recebido em 18 de julho de 2020.  Aceito em 31 de agosto de 2020.



Interpretando Antares – um laboratório das relações político-sociais à brasileira
Interpreting Antares – a laboratory of Brazilian political-social relations


DOI: 10.36920/esa-v28n3-2



orcid_cinza.jpg  Cleyton Gerhardt[1]

 

 

 

Resumo: Incidente em Antares, livro de Érico Veríssimo, divide-se em duas partes. A primeira, Antares, refere-se ao processo histórico de formação das relações político-sociais neste imaginário município do interior gaúcho. Já na parte do Incidente o autor remexe no submundo da vida privada brasileira. Em ambas, porém, adentra-se nos meandros tanto de um aparato público-institucional extremamente corrompido e decomposto como no interior daquela que seria a primeira instituição nacional, a família. Partindo da ideia de que, pensada historicamente, Antares pode ser lida como um laboratório social das relações político-sociais à brasileira, o artigo toma como objeto a primeira parte do livro para, através dos eventos e fatos apresentados, estabelecer um diálogo reflexivo com outros intérpretes do pensamento social brasileiro. Para tanto, visando preservar a coerência e ambiência históricas que inspiraram seu idealizador, a quase totalidade dos autores aqui selecionados ou escreveram antes da publicação do livro de Veríssimo, ou são seus.

Palavras-chave: interpretações de Brasil; pensamento social brasileiro; Incidente em Antares; mandonismo; coronelismo.

 

Abstract: (Interpreting Antares – a laboratory of Brazilian political-social relations). Incident in Antares, book by Érico Veríssimo, is divided into two parts. The first, Antares, refers to the historical process of formation of political-social relations in this imaginary municipality of Rio Grande do Sul’s interior. In the Incident part the author exposes the underbelly of Brazilian private life. In both, however, the author examines carefully the intricacies of an extremely corrupt and decomposed public-institutional apparatus, as if it were the interior of what could be the first national institution, the family. Starting from the idea that Antares can be historically read as a social laboratory of Brazilian political-social relations, the article takes as object the first part of the book so as to establish, through the events and facts presented, a reflective dialogue with other interpreters of Brazilian social thought. To this end, in order to preserve the historical coherence and ambience that inspired its creator, almost all the authors selected here either wrote before the publication of Veríssimo's book or are his contemporaries.

Keywords: interpretations of Brazil; Brazilian social thought; Incident in Antares; authoritarianism; coronelismo.

 

 

 

 

Introdução[2]

Como se sabe, Incidente em Antares, livro escrito por Érico Veríssimo, divide-se em duas partes. A primeira, Antares, refere-se ao processo histórico de formação e exercício do poder neste imaginário município do interior gaúcho desde os seus primórdios, por volta de 1830, até 1963. O que explica o tom narrativo que, mesmo entremeado por diálogos, domina. Já na parte do Incidente, embora persista a figura do narrador, as falas dos personagens crescem e ganham centralidade. Aqui Veríssimo, através de um evento fantástico, remexe no submundo da vida privada brasileira, com sua hipocrisia e dissimulação exposta e esmiuçada literalmente em praça pública. Em ambas, porém, adentra-se nos meandros tanto de um aparato público-institucional corrompido e decomposto como no interior mais profundo daquela que seria a primeira (e talvez mais importante) instituição nacional, a família, sendo ambos autopsiados em seus mínimos detalhes (e odores). De fato, pensada historicamente, Antares pode ser lida como um laboratório social das relações político-sociais à brasileira ou, como disse um de seus comentadores, “um microcosmo altamente representativo do macrocosmo” do país, com o autor usando-o para “estudar as personagens, instituições, mentalidades e leis gerais existentes e aplicáveis a todo país” (FRESNOT, 1977, p. 62).

Partindo desta constatação, tomo aqui como objeto a primeira parte de Incidente em Antares para, através dos eventos e fatos apresentados, estabelecer um diálogo reflexivo entre o mundo ficcional construído por Veríssimo e outros intérpretes do pensamento social brasileiro. Porém, não se trata de quaisquer intérpretes. Se o dito realismo mágico do livro confere vida a um universo sui generis cuja invenção narrativa se dá a partir da imaginação do autor, ela é também devedora de interpretações preexistentes e experiências de quem vivencia o que se passa no país numa certa época. Assim, seguindo a linha temporal do texto e visando preservar esta ambiência e coerência históricas, com quatro exceções,[3] o restante dos autores escolhidos para dialogar com Veríssimo ou escreveram antes de publicado o livro, em 1971,[4] ou são seus contemporâneos, sejam eles já consagrados ou iniciando seus escritos.[5]


Antares no tempo dos mandões

Segundo o narrador que apresenta Antares, num dos textos mais antigos sobre o lugar, uma carta de 1832 do Padre Juan Otero “ao provençal de sua ordem em Buenos Aires”, lê-se:

aqui vivem muitos índios e índias em estado de indigência e [...] pecaminosa mancebia. Por outro lado, a ausência de mulheres da raça branca [...] leva homens de origem portuguesa a servirem-se dessas indígenas para satisfação e luxúria. O próprio Sr. Bacariano, segundo [...] pessoa digna de fé, é pai de quase uma dezena de filhos naturais com várias destas silvícolas, mas não as batiza nem legitima.

De início, a carta do Padre Otero se assemelha ao eurocentrismo cristão que caracterizou a visão de viajantes, religiosos, administradores, militares e naturalistas que percorreram a América no século XIX sobre como viviam seus habitantes. Já a alusão à pretensa conduta “pecaminosa”, “manceba” e “luxuriosa” do Povinho da Caveira (futura Antares) leva logo à Casa Grande & Senzala e à alegação de Gilberto Freyre (2001) sobre a suposta propensão natural portuguesa (transmitida aos descendentes aqui nascidos) para a promiscuidade (herdada de suas raízes mouras) ao mesmo tempo que vê tal atributo como estratégico na ocupação do território ao compensar a falta de mulheres lusas.

Não que se possa afirmar que Veríssimo concordasse com tal propensão, pois, por trás da característica libertina apontada pelo padre está o ar irônico da narrativa que, como se verá, é elemento central em toda a obra. A começar pelo início, que lembra o primeiro capítulo de Os Sertões (A terra), quando se fica sabendo da existência pré-histórica em Antares de um “Gliptodonte [...], espécie de tatu gigante dotado duma carapaça interiça e fixa, mais ou menos do tamanho dum Volkswagen”.[6] Logo adiante, o mesmo Otero conta que Francisco Vacariano, homem mais poderoso do lugar, teria casado com uma moça de Alegrete (cidade regionalmente conhecida por se autointitular a “mais gaúcha” do estado),[7] dona de rico dote, “de nome Angélica, filha dum abastado estancieiro” (VERÍSSIMO, 1997). Além de brincar com o nome da futura esposa ao associá-la a uma suposta pureza e branquitude, Veríssimo remete a prática comum, descrita por Queiroz (1976, p. 192) e que voltarei adiante, entre mandões e coronéis para aumentar seu poder: “o casamento fora da parentela, dando como resultado a aliança de dois grupos poderosos que passavam a ser ‘parentes’, e portanto intimamente unidos, tanto econômica como politicamente”.

Além disso, é significativo que a alcunha “Vacariano”, dada a uma das duas principais famílias de Antares, seja posta em suspeito pelo naturalista francês Gontran que por lá esteve em 1830 (por sinal, um ano antes da criação da Guarda Nacional que institui a figura do coronel). Costume notado por Chandler (1981) e Queiroz (1976, p. 180), sendo comum “mesmo filhos legítimos de um mesmo pai apresentarem nomes de famílias diferentes”, Gontran sugere ser o sobrenome Vacariano “ilegítimo”, tendo sido adotado pelo próprio Francisco. Por falar em nomes, a recorrência com que o autor brinca com eles ao nomear seus personagens surge já no sobrenome das duas famílias que rivalizariam a vida em Antares, Vacarianos e Campolargos, ambos ligados a elementos do latifúndio gaúcho. Vacariano nada mais é do que uma derivação da palavra “vaca”, animal mítico na cultura gaúcha e principal produto de uma estância. Já Campolargo é menos explícito. Primeiro que sua etimologia também sugere ser outro nome inautêntico, dando a entender que ambas as famílias surgem, desde a origem, de uma farsa. De todo modo, Campolargo resulta da união de dois termos que, separados, permeiam o imaginário do pampa riograndense, pois por lá “campo largo” quer dizer campo extenso (em castelhano, “largo” significa longo, comprido, extenso), ou seja, latifúndio.

Desde o início a narrativa sobre a “História” (ironicamente escrita sempre deste modo) de Antares (nome de uma estrela gigante, outra ironia, da constelação de escorpião, como se sabe, animal venenoso)[8] deixa claro que o foco será o ambiente social dos “Grandes Homens” (a depender da época e região, caudilhos, mandões, caciques, coronéis) que lá detiveram poder econômico e mando político sobre suas “gentes e coisas”. Não à toa os sete patriarcas, que por três gerações chefiaram as duas famílias mais poderosas, terem nome de papa (Anacleto e Xisto), santo (Antão), figura bíblica (Benjamim, filho de Jacó), imperador (Tibério) e herói romanos (Zózimo, conhecido por abrigar cristãos quando perseguidos em Roma), sem falar no nome de santa (Quitéria), também associado à divindade grega Afrodite, daquela que, segundo o narrador, seria o “poder por trás do trono” do clã Campolargo após 1930. Porém, tal ênfase vai na direção contrária à opção freyriana em Casa Grande & Senzala, em que o centro de tudo é o engenho e a Casa Grande (porque da senzala se fica sabendo pouco), pois no romance de Veríssimo sobressai o ambiente da vila (depois cidade) de Antares, com a fazenda – exceto nos seus primórdios ou como pano de fundo e refúgio de chefes locais ao saírem perdedores de lutas com caudilhos rivais – ausente da narrativa.

Já sobre o perfil destes mandões há várias correspondências com intérpretes de Brasil. Quando, à época da fundação de Antares como Povinho da Caveira (nova ironia, pois na parte do “incidente”, os mortos da cidade irão reviver), é apresentado o “Sr. Francisco Vacariano”, este se assemelha ao modo como Oliveira Vianna concebe a figura do estancieiro, descrito como rude “senhor feudal” com poder total sobre seu “clã rural”. Em torno deste gravitaria, segundo Vianna (1987, p. 189), uma diversidade de “gentes” que, como os servos na Idade Média, estaria sob as ordens de seus “senhores”, sendo a “família senhorial um grupo preciso e visível nos seus contornos, limitado ao domínio e vivendo das suas raias”. Perfil que se encaixa na descrição de Chico Vaca (seu apelido), “sujeito sem tato”, “opiniático”, “violento”, “vingativo”, “autoritário”, que “fala muito alto”, habituado a “dar ordens, ser obedecido” e cujas “palavras soam como chicotadas” (VERÍSSIMO, 1997, p. 4). Atributos que, se em parte encaixam na história de seu homônimo São Francisco (ridicularizado pela corte do papa Inocêncio como sujo, sendo aconselhado por este a pregar entre os porcos), destoam (nova ironia) da conhecida vida na pobreza e preocupação pelos necessitados deste santo que, ao contrário do mandão Vacariano, pregava a paz entre as pessoas. Ademais, se Chico Vaca foi o fundador do clã vacariano e da própria Antares, São Francisco, ao fundar a Ordem Franciscana, decidiu iniciar sua nova vida como pedreiro ajudando a construir igrejas.

De todo modo, tanto para Vianna quanto no livro de Veríssimo tais patriarcas exerciam poder total sobre “seus” escravos, sitiantes e moradores, abrigando por vezes em seu domínio padres e foragidos da polícia (os couteiros de que fala Vianna, 1987) e reinando despoticamente sobre todos que lá viviam. Ao mesmo tempo, chefiavam o que este chama de “clã parental”, núcleo organizador das relações inter e intrafamílias cuja trama social se baseia na “responsabilidade coletiva” e “solidariedade” de seus membros. Estes, ligados pela consanguinidade, casamento, parentesco colateral, adoção ou afinidade baseada no compadrio formariam uma unidade “indecisa, flutuante, imprecisa [...] que só aparece e se revela em ocasiões muito especiais” (VIANNA, 1987). E assim como em Antares reinaram Vacarianos e, mais tarde, Campolargos, e tais “formações sociais”, ao cruzar o limite territorial da fazenda, se estenderiam através de “extensas ramificações por dentro e fora do Estado em várias esferas da vida e organização social da época” (VIANNA, 1987, p. 189).

Exemplo disso é que, graças ao “prestígio político de Anacleto Campolargo, amigo de figurões do governo da província, Antares foi separada de São Borja e elevada à categoria de cidade” (VERÍSSIMO, 1997, p. 13). Aliás, com a figura de Anacleto, Veríssimo não cai, como Vianna e outros a sua época, na armadilha de incluir numa mesma categoria todos os mandões como “bárbaros feudais”, espécie de maçaroca disforme de senhores de terras incultos, brutos, que, para resguardar seu poder, agiam quase por instinto. Isto é, se o autor brinda o leitor com a figura de Chico Vaca, este sim um “bagual”, homem “xucro” e arredio que, folcloricamente, representa aquele que jamais se deixa dominar,[9] Anacleto aparece, além de inimigo, como seu contraponto, como se vê na descrição de sua chegada a Antares:

[em] 1860 chegou ao conhecimento de Chico Vacariano que um certo Anacleto Campolargo, criador de gado e homem de posses [...] ia comprar terras nas proximidades de Antares. Murmurava-se que esses Campolargos eram [...] os primeiros na história daquela comunidade que ousavam enfrentar Chico Vaca, como lhe chamavam pelas costas seus desafetos [...]. O maioral dos Campolargos, porém, sinuoso e macio, cultivava o murmúrio, sabia “manipular” suas emoções e moldar o tom de voz de acordo com a sua conveniência e os seus propósitos. Tinha um ar paternal, frequentemente chamava o interlocutor de “meu filho”, se estava diante de um jovem, ou de “meu chefe”, se falava com um ancião. (VERÍSSIMO, 1997, p. 11)

Aqui de novo Veríssimo joga com o nome do personagem, pois se Anacleto foi o terceiro papa cristão, seu xará, Anacleto II, ficou conhecido como “antipapa”, se autodeclarando pontífice ao não admitir a eleição de Inocêncio II (WERREMEYER, 2009). Já em Antares, como em Roma, este outro Anacleto iria surgir como “antimandão” ao não aceitar o mando do primeiro Vacariano. Antes de sua chegada, porém, por quase 30 anos Chico reinara sozinho sobre suas “gentes”, sendo “autoridade suprema e inconteste. Nem mesmo o governo provincial tentava intervir na vida daquela pequena comunidade ribeirinha” (VERÍSSIMO, 1997, p. 4). E como em outras regiões violência e pilhagem marcam a conduta na sucessão familiar dos Vacarianos,

Chico não só herdou as sesmarias que a Coroa de Portugal concedeu ao seu avô [...], como também se apossou pela força de léguas de campo pertencentes a outros estancieiros vizinhos, que pôs em fuga, sob ameaças. [...] boa parte do rebanho de gado que o Sr. Vacariano hoje possui é formado de descendentes dos bois e vacas que o seu pai roubou na Argentina. (VERÍSSIMO, 1997, p. 4)

Práticas que se coadunam à autonomia dos mandões em relação à autoridade oficial:

esta aparelhagem defensiva e agressiva dos grandes domínios dava aos seus proprietários um formidável prestígio na região. Tão grande que fazia recuar até as próprias autoridades [...], cada um deles estava coberto com uma espécie de imunidade à intervenção das autoridades [...]. Entre estes senhores de latifúndios pastoris (currais) estabelecera-se uma tradição corrente e viva de violências, pilhagens de gados e destruições recíprocas [...]. Dentro das linhas dos seus domínios, o soberano era o senhor. [...] era perigoso, senão impossível, a estas autoridades penetrarem o interior destes grandes domínios. (VIANNA, 1987, p. 176)

De fato, a organização social em torno do patriarca supunha uma estrutura altamente hierarquizada. Se um dos filhos, após sua morte, herdava o posto de coronel, sendo assim designado espontaneamente pela população, o mesmo se daria com as duas gerações que sucederam Anacleto e Chico. Igualmente, sua figura servia como fator de identificação socioeconômica e “referência para se conhecer a distribuição dos indivíduos no espaço social, fossem seus pares ou inferiores. Era o elemento-chave para se saber as linhas políticas divisórias entre grupos e subgrupos na estrutura tradicional brasileira” (QUEIROZ, 1976, p. 165). Assim, o mandão e depois o coronel permitiam com que a pessoa se situasse como coletividade, ocupando lugar social que lhe era familiar ao se dizer, por exemplo, parente, apadrinhado, afilhado, amigo, primo e mesmo agregado ou amante do coronel tal; o mesmo se dando em relação a parentes próximos ao se dizer, por exemplo, comadre da mulher do coronel, prática que está na raiz do “sabe com que tá falando?” descrita por DaMatta (1997).[10]

Referência que fazia com que não só habitantes de Antares, mas quem viesse de fora buscasse “proteção” de algum mandão. Caso dos dois estrangeiros (Gontran e Otero) que foram acolhidos por Chico Vaca. Mas, ainda que tenha tratado o primeiro “com consideração” e facilitado seu “trabalho apostolar”, o mesmo não se deu com o naturalista:

expliquei-lhe que sou um cientista e o meu hospedeiro pareceu não me dar crédito, pois acha impossível que um homem empreenda uma tão longa e penosa viagem apenas para apanhar bichos e juntar plantas [...] – “sabe o que fiz com o último lotador de impostos que apareceu nestas terras? Mandei matá-lo e atirei seu corpo no rio”. Felizmente, depois dessa ameaça soltou uma risada, deu-me uma palmada cordial nas costas e declarou que era homem de boa-fé e, portanto, acreditava que era mesmo um colecionador de plantas e passarinhos. (VERÍSSIMO, 1997)

Como escreve Costa Pinto (1949, p. 24), neste tipo de organização social, “fora do âmbito da família o indivíduo não tem direito algum. Seu status é determinado e garantido por seu clã. Estrangeiro não tem nenhum direito, ninguém o defende, qualquer um pode atacá-lo, matá-lo até, sem cometer com isso crime algum”. Para sobreviver e transitar neste meio, tanto nativos como estrangeiros se valem da proteção do chefe local, cuja desconfiança, como deixa claro Chico Vaca, se confirmada, pode causar sério dano ao protegido. Não sendo o caso do naturalista e do padre, que estavam de passagem, ao ficar sobre a dependência do mandão, quem é do lugar acaba, no Império, se tornando parte da sua clientela e, após a República, do seu “curral eleitoral”. O que implica estar sob influência do patriarca segundo mecanismos de reciprocidade desiguais e verticalizados. Em troca de proteção e auxílio, moradores, agregados e quem devesse favores ao dono da terra devolviam “trabalho, lealdade, confiança, respeito e temor aos seus mandos e desmandos”; compromisso capitalizado como “prestígio enquanto condição daquele que detém algum poder [...] de render benefícios em contrapartida aos que recebem” (MARQUES, 2002, p. 183). No caso da clientela, intimamente ligada à estrutura política do país no século XIX, esta implicava, segundo Graham (1997, p. 16),

a proteção de pessoas humildes, mesmo os trabalhadores agrícolas sem terra [...]. A família e a unidade doméstica constituíam os fundamentos de uma estrutura de poder socialmente articulada, e o líder local e seus seguidores trabalhavam para ampliar essa rede de dependência. Numa sociedade predominantemente rural, um grande proprietário de terra contava com a lealdade dos seus trabalhadores livres, dos sitiantes das redondezas e dos pequenos comerciantes da vila.

Mas se para Duarte (1966) e Costa Pinto (1949) mandões e coronéis eram simplesmente avessos a qualquer tipo de relação com o Estado, como mostram Chandler (1981) e Graham (1997), sujeitos como Chico Vacariano performavam a própria figura da lei e da ordem, ou seja, em grande medida agiam como Estado, tendo inclusive sua posição chancelada oficialmente por um posto, o de coronel. Em Antares, ao fazer a mediação entre os “de fora” e os “de dentro”, Chico, detendo o “monopólio local da justiça, segurança e administração públicas”, se ajusta ao perfil do famoso coronel Francisco Feitosa, comandante da cavalaria de Inhamuns (CHANDLER, 1981). Aliás, estranha coincidência relativa ao nome dos dois oligarcas (ambos Chicos), pois impressiona a semelhança das lutas familiares no sul e no Ceará.

Seja no pampa gaúcho ou no sertão nordestino, confrontos entre Montes e Feitosas e Campolargos e Vacarianos se completam. Em ambos, o que contava “era o poder de indivíduos, não o poder governamental. As principais linhas de autoridade emanavam do fazendeiro, não por ser um oficial de milícia, mas porque era o patrão” (CHANDLER, 1981, p. 48). Mas se seu poder econômico vindo do domínio de extensas áreas de terra se amalgamava ao exercício da violência física, dava-se também pela cooptação, tal como descrita por Landé (1977, p. 31), via uma ampla rede de relações pessoalizadas do tipo “patrão-cliente entre duas pessoas de status, poder ou recursos desiguais que acham útil ter como um aliado alguém superior ou inferior a si mesmos”. Ao mesmo tempo, e permeando tais relações, o interesse particular e a força política dos dois Chicos atravessavam, colonizando-as e tomando-as para si, instâncias institucionais. Ao representar a lei como autoridade oficial (mesmo estando esta a cargo de um parente, amigo, compadre) e exercer funções do Poder Público mediadas pela ótica do favor, tanto o personagem real Feitosa como o imaginado Vacariano agiam à revelia de prepostos da Coroa e do Império. Como esclarece Graham (1997 p. 21), mesmo que “autoridades centrais por vezes lutassem contra os donos do poder local, nos dois extremos e em todo sistema político, fosse qual fosse seu partido, autoridades eram extremamente sensíveis aos interesses agrários, quando não eram elas próprias proprietárias de terra”.

De fato, lutas entre famílias oligarcas podiam “ser terríveis quando duas ou mais famílias pretendem reinar. A presença frente a frente de apenas duas famílias tende a dar mais agressividade às relações políticas” (QUEIROZ, 1976, p. 190). A esse respeito, é ilustrativo o encontro de Chico Vaca com aquele que seria o primeiro membro de uma ascendência que, por 70 anos, se oporia aos Vacarianos, a ele se igualando até superá-lo na República Velha:

a primeira vez em que Chico Vacariano e Anacleto Campolargo se defrontaram nessa praça, os homens que por ali se encontravam tiveram a impressão de que os dois estancieiros iam bater-se num duelo mortal. Foi um momento de trepidante expectativa. Os dois homens estancaram de repente, frente a frente, olharam-se, mediram-se da cabeça aos pés, e foi ódio à primeira vista. Chegaram ambos a levar a mão à cintura, como para arrancar as adagas. Nesse exato momento o vigário surgiu à porta da igreja, exclamando: “Não! Pelo amor de Deus! Não!” Nenhum dos dois potentados parecia amar a Deus e muito menos ao vigário. Contiveram-se, porém, [...]. Foi assim que entre as duas dinastias antarienses [...] começou uma feroz rivalidade que deveria durar quase sete decênios. (VERÍSSIMO, 1997, p. 11)

Não à toa ser o pároco a interferir num confronto físico que parecia inevitável, pois a Igreja, mesmo fragilizada, por vezes servia de baliza ao ter certa asserção sobre os mandões. Como lembra Duarte (1966, p. 77), neste período é “a Igreja, ainda assim, a única ordem que consegue, por vezes, preencher o espaço vazio entre família e Estado”, pois representando um “sentido independente, sai fora do muro da ordem privada e edifica sua casa, a matriz”. Em parte isso se deve à relativa habilidade de exibir uma saída a situações de conflito sem que houvesse, para os envolvidos, perda de dignidade. Mas, ainda assim, a influência e o respeito destes mediadores religiosos diante de mandões como Anacleto e Chico Vaca eram precários e incertos. Não raro, párocos como o de Antares eram simplesmente desprezados pelos chefes locais (afinal, ambos pareciam “amar a Deus e muito menos ao vigário”) ou agiam a reboque destes, sendo “frequente parceiro benevolente e acomodado da mesa de jogo e das disputas políticas” (DUARTE, 1966, p. 77). Já sobre a relação dos coronéis com a Igreja,

estes praticam um catolicismo modificado [...]. Comungam muito menos que mulheres e crianças e não se entregam ao culto e práticas exteriores de fé [...] por um sentimento que a própria Igreja combate e chama “respeito alheio”. Hostis por igual às demonstrações de obediência e humildade, não se sentem prontos ao beija-mão ao sacerdote nem ao ajoelhar contrito e respeitoso. (DUARTE, 1966, p. 77)

Mas o desencontro de Chico e Anacleto irá deflagrar o que Marques (2002) identificou na Região Nordeste como uma “questão”, tendo ela suas posteriores “intrigas”. Como em Jordânia e Monte Verde, desavenças entre chefes locais podiam surgir quando “da tomada de posse de certa parcela de terra”, da luta pelo “predomínio político em certa localidade” e/ou pela “vinculação de um espaço a um certo nome” (MARQUES, 2002, p. 20).

Além disso, também a neutralidade aqui é interditada mesmo a quem está distante das brigas entre famílias. Ainda que a contragosto, será preciso optar por um “lado” (clã, família e mais tarde facção), pois em Antares, quando os dois grupos “mais tradicionais recorriam à guerra para atingir seus objetivos por meio do extermínio das pessoas e do poder do lado oposto, outras pessoas e grupos de famílias eram levados à luta aderindo a um ou outro lado” (VERÍSSIMO, 1997). Embora tal ligação não seja absoluta e para sempre (pois alterada a conjuntura local ou os protagonistas, quem antes era aliado pode virar inimigo), o que importa, com todos os riscos que isso implica, é aparecer e ser visto como se estivesse ao lado de uma das partes. Mesmo a escolha tendo um caráter estratégico (e perigoso), continua agindo a pressão (direta e simbólica) para se juntar a um grupo familiar. E aqui vale voltar ao vigário que vivia em Antares por volta de 1860, pois, se este se viu obrigado a “ficar em cima do muro”, jogar nos dois lados não é o mesmo que não jogar:

Antares passou a ter dois senhores igualmente poderosos. Era exatamente essa igualdade de forças que impedia as duas facções de se empenharem em batalhas campais de extermínio. Continuando uma velha tradição nas missas de domingo [...], em seus sermões, pregados com voz trêmula, o vigário fazia acrobacias de retórica para não dizer nada que pudesse, mesmo de leve, descontentar qualquer dos dois grupos [...]. Neutralidade, no entanto, era uma palavra inexistente no vocabulário político e social de Antares. O forasteiro que ali chegasse, mesmo para uma visita breve, era praticamente obrigado a tomar logo partido. (VERÍSSIMO, 1997, p. 12)

Se o contexto não permite a indiferença (como indica a “voz trêmula” do vigário), não se trata de uma escolha individual, com a posição assumida dependendo de fatos “de ordem política, econômica ou pessoal” (VERÍSSIMO, 1997, p. 12). Assim, quando em 1890 a igreja da Matriz foi inaugurada

Benjamim Campolargo [sucessor de Anacleto], mandou carnear seis de suas reses para dar churrasco ao povo, organizou uma quermesse e fez queimar fogos de artifício vindos da capital do Estado. Os Vacarianos, que tinham prometido dar um sino de bronze para o novo templo, recusaram cumprir a promessa. Quando o vigário timidamente os interpelou, alegando que a Igreja nada tinha a ver com a política, Antão [sucessor do lado dos Vacarianos] retrucou truculento: “Padre, nesse assunto nem Deus pode se dar o luxo de ser neutro”. (VERÍSSIMO, 1997, p. 15)

A despeito dos chefes locais competirem por assumir um papel muitas vezes atribuído ao Estado, no caso, de organizar atividades públicas, por trás da recusa de Antão está o fato de que mesmo no cotidiano o que move a família (no sentido amplo) é o sentimento de grupo partilhado por quem em torno dela gravita. Tal como para Marques (2002, p. 35), Vacarianos e Campolargos formam uma “coletividade heterogênea cujo opositor tem a aparência de uma unidade ou algo próximo a isto”. Independente do grau de coesão, reforçada ao longo dos anos, a convicção de que ela existe “produz efeitos concretos no destino das coisas e das pessoas” (MARQUES, 2002, p. 36). Mas por mais unido que seja o clã familiar, sempre há a chance de um membro se aproximar do clã rival, ainda que pagando o preço em termos de estigma e retaliação física, podendo levar a extremos como deserção do pai em relação ao filho, expulsão da cidade e até assassinato de um irmão, tio ou primo. Marques (2002, p. 42) atenta para este aspecto aberto da organização familiar ao ponderar que, em dadas condições,

aquilo que se apresentava como unidade se pulveriza, enquanto os átomos se articulam [...]. Os conflitos mobilizam sempre indivíduos, grupos, instituições, por vínculos não necessariamente estipulados pelo parentesco [...]. A rivalidade “tradicional” e latente entre Santanas e Gouveias [...] reúne confrontos múltiplos, vividos em diferentes moldes e palcos, que se misturam em uma briga de família.

Para a relação entre Santanas e Gouveias, a autora mostra um emaranhado de tramas internas que extrapolam o limite da lealdade exigida pelo parentesco, compadrio e afinidade. Além destes fatores (sem dúvida cruciais, pois orientam decisões e prejulgamentos), indivíduos e grupos podem romper relações ou se aliar por muito tempo por razões diversas, fúteis até. Contudo, no caso de Campolargos e Vacarianos, entre estes vigora uma oposição total, com fissuras entre seus membros (seja parente ou mera “gente do coronel”) e cisões entre famílias aliadas sendo praticamente ausentes da narrativa. Seja a traição de caráter afetivo, interesse político, ligada à sucessão do patriarca, obtenção de vantagem econômica ou motivo trivial, o autor dá poucas pistas sobre os bastidores de desavenças internas (que, porém, sugere ser recorrentes), sendo uma delas o que se deu quando Antares celebrava sua “entrada do século XX”:

ao clarear do dia, intoxicados de bebidas alcoólicas, dois machos do clã dos Campolargos, primos-irmão na casa dos vinte, estranharam-se, trocaram palavrões, depois bofetadas e finalmente facadas [...]. O velho Benjamim [então patriarca da família] teve de intervir pessoalmente, ajudado por dois irmãos, para evitar que o conflito se generalizasse num pega pra capar desastroso. (VERÍSSIMO, 1997, p. 23)

O evento leva à mesma questão que se fez Queiroz (1976, p. 183) sobre rixas familiares no Nordeste: “em que pé fica a coesão interna diante de tanta violência? Existirá ou constituirá uma imagem falseada do que se passava no interior das parentelas?”. E ela própria responde: “era real a solidariedade e unia na verdade camadas inteiramente díspares. O que não excluía a animosidade, fragmentando a parentela em duas ou mais fatias”. Ao apontar para o caráter corriqueiro que tais atritos assumiam, por trás da briga dos “dois machos do clã Campolargo” está o que Franco (1997, p. 24) chamou de “código do sertão”, com “agressão ou defesa à mão armada, da qual resultam não raro ferimentos graves ou morte” surgindo “entre pessoas que mantêm relações amistosas”. Independente da disputa entre famílias rivais, provocações, intrigas e questões também podem emergir entre quem não se via como inimigo, fazendo desaparecer neste momento a sempre afirmada unidade familiar. Afinal, em localidades onde a vida social se organiza a partir do poder oligárquico baseado no monopólio da terra, não só Vacarianos e Campolargos “estranham-se” entre si, mas também um Vacariano e outro Vacariano, o irmão e o genro do “velho Benjamin”, um apadrinhado deste e outro que é seu compadre.

Mas, como dito, Veríssimo não explora tais rixas internas. Chico Vaca, por exemplo, teve sete filhos legítimos com Angélica. Tibério, seu neto, que herdaria o posto de chefe da família Vacariana, só aparece em cena após a morte de seu pai Xisto. Como então, nas três gerações, dos vários irmãos, só um varão surgiu como liderança? Em que condições isso se deu? Infelizmente não são dadas pistas de possíveis quebras de confiança entre parentes, se teria sido tranquila a elevação de Tibério ou Antão a chefe de seu clã após a morte do pai ou se houve confronto entre irmãos. Afinal, é de se esperar que, também em Antares, mesmo havendo “vigorosa solidariedade interna [...], a pirâmide da parentela não era inteiramente estática; ao contrário, havia em seu interior ascensões-descidas que tanto podiam agir como elemento de reforço de sua continuidade como de fragmentação (QUEIROZ, 1976, p. 187).

Mas se tal aspecto não é explorado, não é o caso das “formas rotinizadas de ajustamento” (FRANCO, 1997, p. 24) da “questão” instaurada entre Chico e Anacleto nos anos 1850 e as “intrigas” que viriam até os anos 1920. De fato, em Antares a hostilidade que daí surge trás vários elementos descritos pela autora: ter ocorrido num lugar qualquer (a praça, mas poderia ser um bar ou saída da missa); se dar sem motivo prévio (pois a “feroz rivalidade” até aí se resumia a mera cisma normal entre mandões que não se conhecem); ter um caráter instantâneo (relativo a um evento com início, desenrolar e desfecho); e trazer a dimensão do “desafio” (com ambos diante do povo de Antares a provocar uma tensão coletiva ao exibir valores como valentia e autoridade). Como se verá, sendo a “intriga um momento que projeta aquela questão do passado até o presente, em direção ao futuro” (MARQUES, 2002, p. 22), até 1925 as brigas entre Chico e Anacleto serão sustentadas por seus descendentes através de confrontos periódicos que, mais adiante, irão servir de pretexto para continuarem brigando.

 

Campolargos e Vacarianos no tempo de fervuras e facções

Com a Constituição de 1891 cimentando o “pecado original do federalismo brasileiro [e] o regionalismo oligárquico” (CAMARGO, 2001, p. 310) dando grande poder a governadores, o tempo dos mandões em Antares se fora. Também a ampliação do direito ao voto a parte da população (ainda reduzida, visto mulheres e analfabetos não votarem)[11] fará com que agora seja a eleição (e seu “tempo”) a reorganizar divisões preexistentes, mudando o modo como coronéis iriam daí em diante lidar com disputas por terra, clientelas, cargos públicos, poder econômico, prestígio político e autoridade local. Mas é preciso lembrar que, além de tais mudanças só começarem a se consolidar a partir de 1895, com o primeiro governo civil (de Prudente de Morais) assumindo a Presidência do país após o golpe militar que instituiria a República no Brasil, por vezes, desavenças passadas têm raízes profundas que, ao deixarem cicatrizes (físicas e afetivas), reforçam juízos e sentimentos ainda vivos no imaginário local. Um desses eventos – que o narrador admite ser um dos “fatos desagradáveis da crônica desse município” – se deu na revolução federalista de 1893, “o mais cruel e sangrento período da luta hereditária entre as duas famílias antarienses”:

Antão [Vacariano] foi feito prisioneiro. Trazido à presença de Benjamim [...], afirmam alguns cronistas que, cego de ódio, tirou sua faca da bainha, precipitou-se sobre o inimigo e sangrou-o ali mesmo [...]. A vingança dos Vacarianos não tardou. [...] forças federalistas [...] retomaram Antares e conseguiram prender Terézio, o mais novo dos Campolargo. Xisto [Vacariano] mandou reunir na praça os homens da cidade e ordenou que mulheres e crianças ficassem fechadas em suas casas [...]. Mandou amarrar o prisioneiro pelas pernas e pendurá-lo no galho duma árvore [...]. Depois acercou-se de sua vítima, empunhando um grande funil de lata, cujo longo bico lhe enfiou às cegas no ânus. [...] gritou: “Tragam o tempero pra salada!” e dois de seus homens [...] aproximaram-se conduzindo [...] uma grande chaleira de ferro cheia de azeite em ebulição [...]. “Sabes o que vou te fazer, sacripanta? Te incendiar as tripas”. [...] dois homens despejaram lentamente no funil todo conteúdo da chaleira. Terézio Campolargo soltou um urro e começou a estrebuchar. Seis meses mais tarde os Campolargos retomaram Antares [...]. Romualdo fora capturado, trazido à presença de Benjamim, que exclamou: “Tirem toda roupa desse sujeitinho!” [...], “amarrem ele na mesma árvore onde penduraram meu irmão [...] com a barriga contra o tronco, as pernas abertas” [...]. “Está bem – disse o chefe Campolargo – Está na mesa, sirva-se”. E o caboclo violentou Romualdo. (VERÍSSIMO, 1997, p. 16-18)

Como lembra Martins (1994, p. 36), até “1930 não era raro que conflitos mortais entre facções das oligarquias culminassem em verdadeiras ações de cerco e aniquilamento”. Mas, além disso, o que estaria por trás da “ordem” de Xisto para que mulheres e crianças “ficassem fechadas em suas casas”, proibindo-as de ver Terézio “se estrebuchar”? Se tal atitude parece natural, visto a violência envolvida, ela encobre todo um sistema de oposições generificadas como forte/fraco, fora/dentro, masculino/feminino. Se o senso comum à época associava feminino e infantil ao que é frágil, classificando mulheres e crianças como “medrosas” e “imaturas”, ambas precisariam ser cuidadas ou, no caso, poupadas, devendo ficar no lugar ao qual pertencem, isto é, a casa, espaço da intimidade e procriação, com a esposa incumbida de alimentar (inclusive sexualmente) seu senhor e seus filhos de modo que possam se reproduzir como família através de seus descendentes. Daí não ser mero acaso Xisto ordenar que ficassem “dentro” da casa e não num local apenas distante de onde ele poria “o tempero pra salada”.

Efeito parecido recai sobre o “mais moço dos Vacarianos”, Romualdo, que na hierarquia da descendência patriarcal será visto como o mais fraco dos filhos de Chico, estando, portanto, simbolicamente mais perto das mulheres e crianças. Assim, quando protesta com o irmão: “mas isso é uma barbaridade, mano!”, Xisto, “sem desviar o olhar da vítima, que continuava a berrar e espernear como um porco [...] sangrando, replicou: ‘precisas aprender a lidar com o inimigo, menino. Se a coisa te faz mal ao estômago, toma um chazinho de erva-doce e vai pra casa te deitar’”. E também Benjamim[12] Campolargo, ao capturar Romualdo, após mandar o caboclo estuprá-lo, “consumado o ato, grita: ‘agora soltem a moça’!” (VERÍSSIMO, 1997, p. 17-18).

Já no caso dos homens seu ambiente é o da guerra (mais “fora” da casa impossível), situação das mais masculinas pela correlação com a ideia de força e bravura. E sendo o espaço público o lugar do masculino, Xisto, ao contrário das mulheres e crianças, “mandou reunir na praça os homens da cidade”, com a “praça” simbolizando o campo de batalha ocupado pelos vencedores. Já para seus comandados, assistir a tamanho ato de crueldade é também prova de coragem, servindo o testemunho como atestado de sua masculinidade (como visto, posta em suspenso no caso de Romualdo). Além disso, se a espingarda assume a “encarnação simbólica da virilidade e da honra do grupo” para aqueles da Cabília (BOURDIEU, 1965), em Antares armas como faca, adaga e revólver ganham valor similar em tempo de caudilhismos que lembram o ambiente de far west estadunidense no século XIX. Assim como atingir a honra de um membro da Cabília no Magreb do norte da África implicava atingir todo grupo, o modo como foi morto Antão (amarrado e sem condições de revidar dignamente o atacante), além do ato covarde, tem o duplo efeito de humilhar todos os Vacarianos e fortalecer a autoconfiança dos Campolargos. Estava, através de tamanha afronta pública, lançado o desafio que, não sendo revidado, atingiria o prestígio e, mais importante, a capacidade de arregimentar aliados para o campo de influência da família. Afinal, como alerta Costa Pinto (1949, p. 28), “não exercer a vingança seria, além de expor-se a novos atentados, desrespeitar a norma, infringir a regra, ir de encontro ao costume, ameaçar a própria sobrevivência e o equilíbrio”.

Além de compulsória, na Antares da época a vingança era “eminentemente coletiva”, resultando de uma obrigação que faz com que todo o grupo, além de sofrer as consequências de algo praticado por alguém da família, “se una para vingar o delito cometido contra um de seus membros” (COSTA PINTO, 1949). Mas se a chance de “abater o chefe do clã ou outro varão” tem efeito concreto ao eliminar “um braço forte” (COSTA PINTO, 1949) da família rival, aqui algo mais é tirado, ou melhor, hipotecado, e só o revide pode resgatar o sentido de hombridade que orienta o agir masculino nas duas famílias. Não à toa, portanto, a resposta ter de ser ainda mais cruel e vexatória, pois não basta (como o fez Benjamim) “sangrar” o inimigo, é preciso (nas palavras de Xisto) “incendiar suas tripas”. Ao que se poderia contrapor que a resposta dos Campolargos não teria sido à altura, pois Romualdo foi poupado por Benjamim, que não o matou. Ocorre que, além de ter sido violentado pelo caboclo Elesbão (que, sendo negro e ocupando a posição mais baixa na hierarquia do clã, reforça a humilhação), esta é uma das formas de vingança que mais atinge a honra masculina, o que levou o “mais moço dos Vacarianos” a se matar em seguida. Ou seja, além do estupro, na conta a ser paga estava também um suicídio (outra vergonha para a família), aumentando ainda mais o valor do penhor.

É por isso que os respectivos caudilhos realizam suas performances em praça pública (palco e cenário para a defesa, compensação e recuperação), pois é preciso, como entre os da Cabília, que os atos executados sejam submetidos ao “tribunal da opinião”, afinal, “para que serve a vingança se permanece anônima?” (BOURDIEU, 1965, p. 172). Para o grupo familiar, mais do que um atentado a sua unidade e, individualmente, ao amor próprio da pessoa, o revide visa ressarcir a vida do parente e exorcizar o ataque à honra masculina. E como o poder simbólico desta só tem sentido caso mereça ser defendida, compensada ou recuperada, um dos meios para tanto é o ato de vingar-se de quem a maculou, usurpou ou dela se apoderou. Assim, na ausência do sujeito maculado, usurpado ou apoderado, a vingança terá de ser feita por um parente, compadre ou alguém próximo a ele. O que faz com que a qualidade do ato (isto é, a crueldade envolvida) dependa da relação que havia entre este mesmo sujeito e aquele que irá cobrar a dívida, visto que, se Terézio e Romualdo não tivessem sido capturados pelos seus respectivos irmãos, mas por um tio, por exemplo, talvez seu destino fosse outro.

E, de fato, tamanha violência tinha suas origens, tendo “Antão Vacariano e Benjamim Campolargo [...] jurado em silêncio, junto aos cadáveres paternos, continuar aquela luta de família ao fim do Tempo” (VERÍSSIMO, 1997, p. 14). Tal “disposição cultivada”, geradora de uma “gramática [que] permite a cada agente engendrar, a partir de um número reduzido de princípios, todas as formas de conduta” (BOURDIEU, 1965, p. 174), vincula-se à elaboração e reprodução de formas costumeiras de lidar com conflitos coletivos. Assim, também entre mandões e coronéis, “a violência era, em todos os níveis da sociedade, uma forma ‘normal’ de resposta a determinadas situações ou ações” (QUEIROZ, 1976, p. 189). Ainda que não seja o controle social baseado no costume da exclusividade brasileira, para além da sua truculência, os eventos descritos apontam para o fato de que, “por ser certa, brutal e impiedosa, a vingança é fator de ordem, sendo regular e organizada, funcionando automática e violentamente como repressão ao delito” (COSTA PINTO, 1949, p. 28). Sim, com o detalhe de que, paradoxalmente, da própria ordem da vingança resultam novos delitos a serem vingados (ordenadamente).

Mas se, depois desses atos de “perversidade, ninguém podia sequer imaginar que fosse possível para Vacarianos e Campolargos voltarem a viver na mesma cidade” (VERÍSSIMO, 1997, p. 21), tal crença, como se verá adiante, se mostraria incorreta. O evento de 1893 seria o ápice de um estado de hostilidade que a partir daí ganharia outras formas de se objetivar. Se, “com a vitória dos republicanos, Xisto emigrou com todo seu clã para a Argentina”, já em 1898 este

viajou até o Rio de Janeiro onde se avistou com o senador Pinheiro Machado, figura prestigiosa da política nacional. Eram velhos conhecidos. Havia alguns anos, o prócer republicano hospedara-se na estância dos Vacarianos e [...] descobriram que Pinheiro Machado [...], na Guerra do Paraguai, havia servido no regimento de Xisto [...]. Comemoraram a descoberta bebendo vinho do Porto e Xisto deu de presente ao futuro senador da República um de seus cavalos puro-sangue e um par de estribos de prata [...]. Xisto valia-se agora desta amizade para tentar resolver sua situação [...]. Pinheiro Machado escutou-o com atenção e prometeu “amansar” os Campolargos [...]. Mandou uma carta a Júlio de Castilhos – Presidente do Estado [...] pedindo sua intercessão. Castilho escreveu a Benjamim Campolargo recomendando-lhe fizesse vista grossa ao reaparecimento de seus inimigos Vacarianos em Antares. Benjamim levou alguns dias para “digerir” esta carta. Respondeu, porém, a ela declarando que faria como seu “prezado chefe e amigo” pedia. (VERÍSSIMO, 1997, p. 21-22)

A alusão a Pinheiro Machado, cujo “prestígio advém da grande capacidade de fazer favores”, não é fortuita, sendo para Queiroz (1976, p. 191) o “coronel dos coronéis na Primeira República”. A “amizade” selada com vinho entre Xisto e o “futuro” senador é na verdade um trunfo que anos depois será acionado para atingir seu rival Campolargo. Mesmo sendo os “presentes” (estribos e cavalo) uma aposta de risco, pois a apólice pode não ser paga, o coronel antariense “vale-se deles” para, mais adiante, “resolver sua situação”. Se dúvida e desconfiança são inerentes à relação de ambos, no coronelismo há todo um efeito performático do dar que, a depender, pode vir a ser bem-sucedido. Eis um dos segredos dos grandes coronéis: saber diagnosticar quando amizade e presente podem ter efeito futuro e, sobretudo, saber quando cobrá-los.

Ademais, o capital aplicado vai além do agrado material, incluindo o valor intangível de lembranças da juventude e o afago hospitaleiro com que Xisto recebeu o senador em sua mansão. Não que memórias e adulações tenham valor em si, pois, para além do que está em jogo, fazem parte da etiqueta necessária a possíveis acordos e negociatas. Mas não só. Se a ironia de Veríssimo deixa à mostra a glicerina dissimulada da elite “nacional”, usada como jogo de cena para obter vantagem, a proximidade entre os dois “velhos conhecidos” lembra a cordialidade à brasileira, descrita por Buarque de Holanda (2004), no trato das relações pessoais e que, conforme o caso, pode se expressar com generosidade ou crueldade, lealdade ou traição. Afabilidade que, talvez em alusão à polêmica do autor com Cassiano Ricardo sobre o uso do termo “cordial”, fez com que Veríssimo travessamente pusesse o nome do segundo coronel da dinastia Vacariana de Xisto, cuja raiz grega tem justo o sentido de polido e educado, significado negado por Holanda já na segunda edição de Raízes do Brasil.[13]

Ocorre que, se “no fundo” todo brasileiro é “um sentimental”, como diz a canção de Chico Buarque (HOLANDA, 1973), não se pode descartar o valor subjetivo de lembranças de um tempo de juventude marcante na vida dos dois coronéis (afinal se trata da guerra do Paraguai).[14] De fato, a paixão excessiva do homem cordial descrita por seu pai não poderia ser melhor traduzida do que no verso de “Fado tropical”: “mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, meu coração fecha os olhos e sinceramente chora”.[15] Como uma espécie de dupla chave que, ligando-se uma anula-se outra, também no mundo dos coronéis um “coração [que] perdoa” e um “peito [que] se desabotoa” pode conviver com a “mão cega [que] executa” o “golpe duro e presto”. E aqui reside outro segredo do êxito de um coronel: saber desvendar a emotividade por trás desta dupla chave (“cordial”) ou ao menos dominar seu funcionamento.

Sobre o apelo a favor do senador, se suas “mil formas e nomes”, como diz Schwarz (2000, p. 16), afetaram “no conjunto a existência nacional”, estando “presente por toda parte e combinando-se às mais variadas atividades”, em Antares ele atravessou a “administração, política, indústria, comércio, vida urbana”. E se “o clientelismo político sempre foi antes de tudo preferencialmente uma relação de troca de favores políticos por benefícios econômicos” (MARTINS, 1994, p. 29), como se vê na intercessão de Pinheiro Machado a pedido de Xisto, ele também envolve trocas não materiais. Igualmente, estando na base da formação social do país, o favor, para além do ganho financeiro, age como propulsor de realizações pessoais que vão da concessão de títulos de nobreza no Império, subida de posto na hierarquia militar na Primeira República até, ainda hoje, 2020, indicação para juiz da Suprema Corte. Além disso, como se vê na descrição detalhada de Vilaça e Albuquerque (1978) de dois outros Chicos coronéis (Romão e Heráclio), esses muito reais, há também ganhos coletivos, como a construção de uma estrada até as terras de um compadre, uma ponte num “curral” fiel ao patrão ou, quando a “mão cega” resolve aparecer, a proibição do fornecimento de água a um desafeto poderoso. De fato, lembra Leal (1975, p. 37), no período coronelista (1889-1930)

[vem dos coronéis] os principais melhoramentos do lugar. A escola, a estrada, o correio, o telégrafo, a ferrovia, a igreja, o posto de saúde, o hospital, o clube, o campo de foot-ball, a linha de tiro, a luz elétrica, tudo exige o seu esforço. É com essas realizações de utilidade pública, algumas das quais dependem só do seu empenho e prestígio político [...] que o chefe municipal constrói ou conserva sua posição de liderança.

Ainda que precárias, pois promessas não cumpridas eram parte do jogo na conjuntura cambiante da política nacional, ao dar-se de modo assimétrico e sistêmico, ao redor da barganha forma-se uma intrincada trama de interdependências. Após aceder ao “pedido” do “amigo”, Pinheiro Machado se candidata a ser ressarcido por Xisto. E se dever algo já implica se pôr numa posição subordinada em relação ao potencial cobrador, preço e juros podem ser bem altos caso este ocupe posição hierárquica acima do primeiro. Em contrapartida, como mostra a sequência de lances jogados pelos dois coronéis, a eficácia do favor dependerá não só da força real de ambos imporem retribuição (seja econômica, política, simbólica, afetiva), mas também de projeções futuras referidas ao contexto em que se dão barganha e favor.

Se Martins (1994, p. 29) tem razão sobre o clientelismo político ser “essencialmente uma relação entre poderosos e ricos e não entre ricos e pobres”, vínculos pessoais facilmente podem sobrepor-se a diferenças ideológicas que, no plano das ideias, seriam não negociáveis. Note-se que com a intervenção do “prestigioso” senador (fundador do Partido Republicano), o presidente da província, Júlio de Castilhos (outro republicano), intercedeu junto a um aliado político (Benjamim, seu colega de partido) desautorizando-o em benefício de um inimigo da família Campolargo, Xisto (filiado ao Partido Federalista, que se opunha aos republicanos). Costa Pinto (1949, p. 107) notou essa conduta flutuante que, voltando ao fado de Chico, rapidamente pode ir do “sereno jeito” ao “golpe duro e presto” de alguém que, mais adiante, “contesta” sua própria ação. E assim Benjamim, “embora sem força para impor a solução legal, jamais deixou de tomar conhecimento dela, ora pondo fora da lei vingadores e impondo-lhes penas [como exilar Vacariano], ora exercendo função mediadora, dirigindo negociações de paz e canalizando diferenças para os meios legais”. Vê-se que, ainda que atenuadas as formas de coação e violência, sem guerras sanguinárias entre famílias, agora adaptadas ao contexto da Primeira República, em Antares a hegemonia do chefe local permaneceu. Como notou Queiroz (1976, p. 172), com o mandonismo dando lugar ao coronelismo após 1889,

chefes políticos locais e regionais se mantiveram os mesmos e continuaram elegendo para as Câmaras, presidência do Estado, o Senado, seus parentes, aliados, apaniguados. [...] quase todos os postos locais, médicos, tabeliães, por vezes padres e naturalmente deputados estão nas mãos de gente pertencendo ao grupo família.

E é na “manutenção” dos “mesmos” no poder que, na Antares do início do século XX, a disputa local se reorganizaria em torno de “facções” estruturadas a partir do que Palmeira e Heredia (1995) chamaram de “tempo da política”. Período de alguns meses antes da eleição em que, ao se propor, reafirmar ou romper acordos, atua uma pressão coletiva pela sinalização da “adesão a um ‘lado’ (facção)”, com o voto não sendo associado ao “exercício de um direito individual”, mas à chance de se beneficiar de algum modo através do uso deste bem pessoal. Mas não só nesse “tempo” a rivalidade familiar irá emergir. Fazendo a disputa eleitoral parte da vida de Antares por quase três décadas, a hostilidade também estará presente no dia a dia das picuinhas, deboches e bate-bocas sobre temas como aparência física, vaidades de diversas ordens, competições esportivas ou exibição pública de símbolos que demarcam status social. Abaixo, alguns eventos ilustram a onipresença deste permanente estado faccionalista:

foi um Vacariano quem, em 1911, trouxe para Antares o primeiro automóvel, um Oldsmobile, que mandara vir de Buenos Aires. [...] um de seus maiores prazeres era passear nele [...] apertando provocadoramente a buzina de fonfom sempre que passava pela frente do solar dos Campolargos. Estes não tardaram em mandar buscar na Alemanha um automóvel Benz. (VERÍSSIMO, 1997, p. 26)

desde 1915 o futebol [...] tornara-se popular em Antares. Os Campolargos haviam fundado o Esportivo Missioneiro e os Vacarianos favoreciam o Fronteira F. C. Não se tem notícia duma partida entre esses dois adversários que não haja terminado sem luta corporal entre seus torcedores. (VERÍSSIMO, 1997, p. 28)

[ao] eleger uma nova diretoria para o Clube Comercial, a mais fina sociedade local, havia sempre uma chapa dos Campolargos, a oficial, e dos Vacarianos. O pleito era precedido de propaganda, pressões e até de suborno. No dia da eleição os eleitores compareciam à sede do clube armados de punhais e revolveres, e era raro o ano em que não houvesse bate-boca [...], bofetadas e até de tiros. (VERÍSSIMO, 1997, p. 27)

Como se vê, em Antares não será só no “tempo da política” que a disputa entre facções virá à tona, com a cisão, para além da política partidária, ocupando diversas facetas da vida local. Os eventos mostram ainda como foi sendo atualizado o “desafio” presente nas lutas envolvendo mortes, torturas e agressões de parte a parte, comuns até fins do século XIX, com o confronto agora se dando através da disputa ostentatória (pelo automóvel mais caro), competição esportiva (pelo melhor time de futebol) e distinção social (pela diretoria do clube). Seja numa “peleja a ferro branco” ou na exibição de bens de luxo, aqui comparecem desdém, provocação, inveja, ódio recíproco e trapaça. Sobre esta, aliás, não seria de se admirar se um Vacariano, num fim de campeonato, “comprasse” o juiz ou um jogador do Fronteira F.C. ou então se um Campolargo mais moço fizesse alguma “travessura” no motor do Oldsmobil dos primeiros.

Já num contexto mais amplo, o jogo político em Antares passa a seguir uma espécie de “dinâmica das gangorras”. Estando sempre em movimento, quem está nas suas duas pontas não pode sair da “brincadeira”, devendo se adaptar ao ritmo do seu embalo se quiser manter ou aumentar sua influência. Dum lado da gangorra estão chefes locais como Benjamim e Xisto; do outro, lideranças estaduais e nacionais como Pinheiro Machado e Júlio de Castilhos, os quais também se entretêm noutro balanço maior (sonho de consumo dos dois primeiros). E será no vaivém de acordos e negociatas que se organizariam os poderes municipal, estadual e nacional, servindo as gangorras menores de trampolim para se alçar às mais elevadas:

o “coronel” [...] que opera no reduzido cenário municipal não é melhor nem pior do que os outros que circulam nas esferas mais largas. Os políticos “estaduais” e “federais” – com exceções – começaram no município, onde ostentavam a mesma impura falta de idealismo, que mais tarde, quando se acham na oposição, costumam atribuir aos chefes locais. O problema não é, portanto, de ordem pessoal [...]: está profundamente vinculado à estrutura econômica e social. (LEAL, 1975, p. 38)

Não que ambos os lados fossem idênticos, pois há farinhas mais grossas e finas, caras e baratas, perversas e simplórias, espertas e toscas. Objetivada na figura arquetípica do coronel (a farinha genérica), é da relação entre eles que surge a unidade. Isto é, o que os aproxima, os torna iguais, é sua interdependência, pois, como notou Leal (1975, p. 43), um coronel não se sustenta sem outros coronéis, configurando uma cadeia cujos elos mantêm sua influência:

quando são boas as relações entre poder privado e poder instituído, pode o “coronel” desempenhar, indisputadamente, uma larga parcela de autoridade pública. E assim surge este aspecto importantíssimo do “coronelismo”, o sistema de reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial.

Vê-se que o único fator desestabilizador neste tipo de arranjo são disputas entre facções. Estas, porém, não constituíam risco ao sistema, com acomodações se dando no tempo da política ao arejar possíveis tensões através de novos acordos e compromissos. E aqui se tem um terceiro segredo de coronéis como Pinheiro Machado: na “brincadeira”, quem melhor se equilibra na gangorra, oscilando conforme seu ritmo, mais influência terá. De fato, se pensado em termos do sistema coronelista, “o problema” a que se refere Leal “não é de ordem pessoal”. Mas caso se olhe para os sujeitos que o mantêm funcionando, vê-se que é justamente a personalidade do agente (a qualidade da farinha) que conta. Assim, somados os três segredos, diferenciando um coronel sagaz de outro que só “jogava o jogo” está a aptidão pessoal de: manipular a lógica do favor e da promessa; valer-se da dissimulação e cordialidade interessada; saber a hora de agradar ou ceder a um aliado ou, ao contrário, traí-lo; intuir quando “apertar a corda” de alguém mais abaixo ou ameaçar e punir um desafeto.

Claro que, a despeito desse domínio, ser “oposicionista no âmbito municipal é tão desconfortável que a regra é ficar na oposição só quem não pôde ficar com o governo” (LEAL, 1975, p. 48). Em Antares, sendo impossível essa opção, com Campolargos na situação a influência Vacariana diminuiria nos 25 anos seguintes, pois, “sem recursos para enfrentar seus inimigos crônicos”, agora com eles competiam “em outros terrenos que não na política” (VERÍSSIMO, 1997, p. 27). Já seus rivais se esforçavam em ficar próximo de quem dominava a política gaúcha:

Em 1903 Benjamim Campolargo foi ao enterro de Júlio de Castilhos e [...] aproveitou para visitar o Dr. Borges de Medeiros [...]. Ouviu [...] os maiores elogios ao caráter do presidente [da província], [...mas] voltou para Antares incontaminado pelas virtudes morais de seu chefe. Continuou a perseguir a oposição, a coagir juízes, promotores e jurados. Governava despoticamente o município, onde os maragatos eram minoria. Tornou-se assim, como tantos outros chefes políticos municipais do Rio Grande do Sul, uma espécie de “príncipe eleitor”. (VERÍSSIMO, 1997, p. 29)

Se no tempo de mandões como Chico Vacariano já valia a famosa frase, supostamente dita por um político mineiro segundo Leal (1975, p. 39), “para os amigos pão, para os inimigos pau”, no tempo das facções agrega-se outra mais sutil, mas com mesmo significado: “aos amigos se faz justiça, aos inimigos se aplica à lei”. E Benjamim não seria exceção, pois

opressão, violência, crueldade também foram armas usadas pelos coronéis para captar e conservar votos, tão empregados e usuais quanto favores e benefícios. [...] Se o coronel era da “situação”, seus apaniguados tinham liberdade de ação para fazer o que quisessem [...]; quando [...] na “oposição”, porém, era como se a maldição se tivesse abatido sobre ele e sua gente: eram perseguidos, maltratados, aprisionados, e revidavam pagando violência com violência. (QUEIROZ, 1976, p. 173-178)

A conduta do patriarca Campolargo se coaduna com outra máxima de Leal (1975): para o caudilho, na política “só há uma vergonha, perder”. Mas se “aquele que pode fazer o bem se torna mais poderoso quando está em condições de fazer o mal”, ainda assim é preciso contar com “o apoio do oficialismo estadual, seja por ação, seja por omissão” (LEAL, 1975, p. 47). Ao dominar o resultado do tempo da política e respaldado por seu chefe Borges de Medeiros (a quem interessava o voto de um “príncipe eleitor”), Benjamim continuaria a fazer o que outros como ele fizeram (“perseguir oposição, coagir juízes, promotores e jurados”), sendo “justamente esta autonomia extralegal que consiste a carta-branca que o governo estadual outorga ao correligionário local em cumprimento da sua prestação no compromisso típico do ‘coronelismo’” (LEAL, 1975, p. 51). Porém, ao “favorecer amigos, o chefe local resvala para a zona confusa entre o legal e o ilícito ou penetra no domínio da delinquência” (LEAL, 1975, p. 39). Delinquência que atualiza outra mais antiga, de Chico Vaca, que, lembrando, “se apossou pela força de léguas de campo de outros estancieiros vizinhos, que pôs em fuga”, e cujo pai “roubou na Argentina boa parte do rebanho de gado” que ele então possuía.

Mas mesmo na oposição Vacarianos não deixaram o campo de batalha e muito menos inimizades foram esquecidas, estando só à espera de um motivo, uma intriga que reacendesse rusgas passadas e quem sabe levasse à mudança na relação de forças. Assim que, em 1923

os partidários do Dr. Assis Brasil [...] haviam feito a sua revolução. Xisto Vacariano a princípio pensara em ficar sossegado em sua estância (não tinha muita simpatia pessoal por Assis Brasil), mas como lhe tivesse chegado aos ouvidos o rumor de que Benjamim Campolargo ia mandar prender todos os Vacarianos machos, decidiu “ir para a coxilha” com os filhos, irmãos, genros, netos, sobrinhos, amigos, peões e demais cupinchas: cento e vinte homens ao todo. (VERÍSSIMO, 1997, p. 30)

Como se vê, não foram convicções ideológicas que levaram o chefe Vacariano a lutar na “Revolução”. Nem a lealdade de ocasião a um aliado do qual não tinha “muita simpatia pessoal” (note-se o uso do termo “pessoal” e não simpatia política ou afinidade ideológica). É o movimento de Benjamim que agirá como fagulha num imaginário povoado por antigas rivalidades e cujo braseiro fez com que Vacarianos subissem a “coxilha” (na linguagem campeira, ir à guerra). O evento faz pensar ainda em outro costume, já citado, da elite agrária: a preferência por casamentos entre parentes, protegidos, pessoas de confiança ou que tivessem algo a compartilhar (terras, homens, votos, influência etc.). Estes, ao funcionarem como caderneta de poupança a ser resgatada, permitem a Xisto levar à “coxilha” grande parte da “sua gente”, isto é, “filhos, irmãos, genros, netos, sobrinhos, amigos, peões e cupinchas: cento e vinte homens”. E Veríssimo explica em detalhe como fora construída tal mobilização:

até fins do século anterior Vacarianos e Campolargos haviam cultivado deliberadamente a endogamia, não com a finalidade de manter a pureza de suas estirpes, mas por motivos práticos, principalmente de ordem econômica. Queriam evitar, no caso das heranças, não só a divisão das terras do clã como complicações nos inventários. Esses casamentos entre primos e primas – quase sempre sem amor e nem mesmo desejo – eram não raro ajustados pelos pais [...], finda a minguada lua-de-mel, a mulher ficava em casa a engordar, a ter filhos e a cuidar (ou não) deles, ao passo que o marido passava boa parte da noite no Clube Comercial, jogando pôquer, ou na casa da amante, com a qual, continuando uma tradição centenária, também tinha filhos, que não reconhecia legalmente. (VERÍSSIMO, 1997, p. 32)

Descrição que se encaixa na chamada lei do “morgadio” citada por Vianna (1987, p. 186):

os bens móveis passando para o filho primogênito [...] e toda a família tem assim, na individualidade tradicional dos domínios, a impressão material da sua própria unidade, da sua permanência e continuidade no espaço e no tempo. No sul, nas zonas agrícolas como nas zonas pastoris, deu-se também o mesmo.[16]

Se não é por acaso a naturalidade com que se lidava com a “ausência do amor” nas duas famílias antarienses, também não houve, quando o filho de Xisto Vacariano, Tibério, assumiu a chefia do clã, “problemas de inventário, não apareceu nenhum advogado cabresteando filhos ou filhas naturais do velho Xisto, embora houvesse as pencas” (VERÍSSIMO, 1997, p. 38). E se a “indivisibilidade do domínio assegura a permanência dos laços da solidariedade familiar” (VIANNA, 1987, p. 186), mantê-los ampliava a influência de Campolargos e Vacarianos ao produzir parentesco para além do ambiente local. Como lembra Queiroz (1976, p. 180), “a distância geográfica não era empecilho para casamentos interparentelas, muito pelo contrário: buscar mulher ou marido em regiões afastadas era estabelecer nelas uma ponta de lança, uma possibilidade de ingerência nos negócios ou na política de outros locais”. Assim, visto que o nome da família aparecia antes ou ao menos junto do indivíduo ao usar a autoridade de sua ascendência, na “tendência ao casamento entre parentes, [...] entre tios e sobrinhas e primos e primas”, estava uma das razões “do seu prestígio eleitoral e político” (VIANNA, 1987, p. 202).

 

Tempos de progresso e coronéis malandros

Mas enquanto seguia o tempo dos coronéis, certas “novidades”, segundo Veríssimo, foram silenciosamente alterando a vida em Antares, com os anos 1920 trazendo

muito progresso [...]. Em 1924 uma firma norte-americana instalou um frigorífico – o que levou o [...] diário local a afirmar que Antares [...] começava a industrializar-se. O telégrafo, o cinema, os jornais e revistas que vinham de fora, a estrada de ferro e [...] o rádio contribuíram para aproximar o mundo de Antares. Forasteiros também muito faziam pelo progresso social e cultural da cidade: magistrados, promotores públicos, funcionários do governo estadual e federal, caixeiros-viajantes. [...] várias mudanças eram já visíveis e audíveis no modo de vida tanto dos Campolargos como dos Vacarianos. No começo do século membros das gerações mais novas [...] tinham sido mandados estudar em Porto Alegre. Muitos voltaram depois de terminado pelo menos o curso ginasial e alguns obtiveram até diplomas de doutor em Direito, Medicina ou Engenharia [...]. Fosse como fosse, todos traziam para Antares uma visão mais larga do mundo e da vida. (VERÍSSIMO, 1997, p. 31)

Somados à luz elétrica, telefone, automóvel, serviço postal, time de futebol e clube social, em 20 anos chegaria a Antares frigorífico, telégrafo, rádio, cinema, jornais, revistas, ferrovia e novos “forasteiros” (promotor, magistrado, caixeiro, funcionário público). Se, como notou Fresnot (1977, p. 61), o inimigo é, “para a casta dos coronéis, o progresso em geral”, com a “industrialização tornando caduco o poder do coronelismo”, tais mudanças fizeram com que, mesmo “no seio do próprio eleitorado rural”, ocorressem “‘traições’ dos empregados aos fazendeiros”, sendo a principal delas, segundo “observadores locais” (LEAL, 1975, p. 36),

a propaganda radiofônica. Nas cidades do interior já são numerosos os aparelhos [...e] o rádio já se vai introduzindo nas próprias fazendas [...]. A maior facilidade de arranjar emprego nas cidades e as notícias que a respeito lhes chegam de parentes e amigos [...] reduzem o grau de sua dependência em relação ao proprietário da terra.

Outra novidade que chega a Antares nos anos 1920 foram certas “rebeldias das novas gerações” que atingiram a prática da endogamia, pois “membros de outras famílias locais e forasteiros haviam começado a entrar nas cidadelas dos Vacarianos e Campolargos pela porta do casamento” (VERÍSSIMO, 1997, p. 32). Ademais, as “gerações mais novas” seguiram indo estudar na capital até o “incidente” nos anos 1960, quando, com uma equipe de “pesquisadores e alunos de ciências sociais”, volta à cidade natal o neto do coronel Tibério Vacariano, o qual sucederia Xisto na liderança da família após sua morte em 1925. Reunidos para planejar a pesquisa, Martim Terra, diretor da equipe, teria dito aos colegas:

esses meses de verão coincidem com as férias [...] dos estudantes de Antares que freqüentam universidades aqui em Porto Alegre, em São Paulo ou no Rio. Acho que esses jovens, em geral filhos de estancieiros ricos, são tão importantes como transmissores de ideias, atitudes morais e hábitos novos quanto... digamos, os pássaros e o vento no processo e polinização. (VERÍSSIMO, 1997, p. 126)

Costa Pinto (1949, p. 20) compartilha da ideia de que a vinda do que chama de “neutros” a pequenas localidades atua como fator transformador ao gerar maior “segmentação” na “divisão do trabalho”. Esta, pela “multiplicação de grupos profissionais especializados”, ampliaria o “comércio, as trocas e o contato mais regular com o exterior”, permitindo “aos indivíduos uma maior participação em outros círculos e esferas sociais”. Ainda para o autor, tal “divisão” teria contribuído para o declínio dos confrontos entre famílias rivais, visto que

uma guerra privada [...] não pode passar sem comprometer a fundo os interesses de outros grupos alheios à contenda [...]. Tendem as lutas familiares se terminarem [...] pela intromissão do poder social que ilegaliza a vingança, pelo enfraquecimento da família, pela desagregação da justiça privada ante a justiça pública [...]. O papel dos mediadores avulta de importância [...] e agora não haverá tanta humilhação em aceitar uma compensação; ao contrário, o espírito de conciliação é louvado e estimulado. (COSTA PINTO, 1949, p. 39)

Já Holanda (2004), além de ver na industrialização um meio de suprimir, pela separação entre empregados e patrões, a pessoalidade entre ambos, percebe a urbanização das cidades como fator desestruturador do personalismo ao afastar o Estado da influência da organização familiar. Enfim, não faltariam intérpretes anteriores e contemporâneos de Veríssimo a mostrar a relevância das mudanças vividas em Antares no período. Mesmo a história não confirmando a esperança de que a modernização (e, após os anos 1950, o desenvolvimento) seria eficaz na eliminação de certas práticas ditas “arcaicas”, Veríssmo, em sintonia com o pensamento social da época, mostra como elas criaram um clima propício para que se fizesse a “paz” entre as duas oligarquias através daquela que se tornaria a maior liderança política gaúcha:

[em] 1925 apareceu sorrateiro em Antares um membro da prestigiosa família Vargas [...]. Homem sereno, feições e maneiras agradáveis, sabia usar a cabeça com lúcida frieza e possuía qualidades carismáticas [...]. Dizia pouco e perguntava muito. Frio, sabia jogar com dois fatores importantes da vida: o tempo e as fraquezas humanas. Conseguiu reunir Xisto Vacariano e Benjamim Campolargo na casa dum amigo comum [...]. Quando os dois sátrapas locais [com mais de 80 anos] deram pela conta, estavam já frente a frente, fechados a chave com o Dr. Getúlio [...]. – Estou aqui a mandado de meu velho pai Manoel [que] me fez portador dum pedido [...]. Os amigos hão de concordar que os tempos estão mudando [...]. Precisamos pacificar definitivamente o Rio Grande para podermos enfrentar unidos o que vem por aí [...]. Pois o velho Manuel apela para que façam as pazes, apertem-se as mãos, esqueçam as diferenças e agravos do passado e daqui por diante trabalhem juntos pelo progresso e grandeza de nossa terra. Não há nenhum desdouro nesta reconciliação [...]. Vamos, apertem-se as mãos! O que passou passou. (VERÍSSIMO, 1997, p. 34)

A astúcia de Vargas vinha dele “saber jogar” e dominar com precisão a política da gangorra ao transitar habilmente pelo intrincado mundo de artimanhas, interesses e relações pessoais. Aptidão confirmada, mesmo a contragosto, na aquiescência dos dois octogenários ao “pedido” de seu pai (autoria que poderia facilmente ser invenção sua). Mas a despeito de Benjamim e Xisto relutarem em aceitar não ser “mais os senhores absolutos dentro de seus feudos” (VERÍSSIMO, 1997, p. 26), condição que não retornaria, o que Costa Pinto, Queiroz, Leal, Fresnot, Holanda e o autor descrevem é a paulatina derivação das lutas entre famílias do campo da violência física para outros tipos de confronto, em que a disputa na eleição municipal é sem dúvida a mais visível, mas não só, como se viu no episódio dos automóveis.

Ao mesmo tempo, mostram como o poder local vai se reajustando, com o controle tendo de ser buscado por meio da barganha para conseguir votos e do favor de políticos mais altos na hierarquia institucional. Só assim, através desse jogo nada confortável e incerto, se entende como Campolargos e Vacarianos seguiram dominando politicamente municípios como Antares. Incerteza e desconforto que aumentariam com o fim do coronelismo como sistema político, exigindo não só flexibilidade, mas muita ginga, como se verá, para continuar exercendo influência perante a população. E se muitos lograram seguir o conselho de outro coronel também inventado, personagem do filme Diário da província (1978), sobre como agir após a revolução de 1930: “mudar para permanecer”, outros nem tanto. Do lado dos Campolargos, a personalidade do “único descendente macho do falecido Benjamim”, Zózimo, quando da morte do pai, destoava da imagem tradicional de um coronel:

homem sem nenhuma vocação para a liderança, [...] ficou desconcertado quando se viu feito patriarca do clã dos Campolargos. Por sorte ou desgraça [...] sua mulher Quitéria, uma Campolargo tanto por parte de pai como de mãe, era uma criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras e até duma certa astúcia política, de maneira que, depois da morte do velho Benjamim, embora Zózimo empunhasse, sem o menor gabo, o cetro de patriarca, D. Quita [...] passara a ser a “eminência parda”, o “poder por trás do trono”. (VERÍSSIMO, 1997, p. 29)

Note-se que ao longo do texto o que aparece não é tanto a fraqueza de Zózimo, cujo nome, além da fácil associação a “zonzo” e ser conhecido entre católicos como “guerreiro abnegado”, tem na raiz etimológica o sentido de “fresco”.[17] Até o final, quem se destaca é a forte Quitéria, determinação que está na história de sua homônima santa, perseguida e executada pelo próprio pai ao se recusar a casar com o cortesão que por ele lhe havia sido escolhido como esposo. Construída por Veríssimo em contraponto ao apático, servil e “abnegado” marido, seu papel ao assumir a direção da família contrasta com o que se esperaria da mulher de um coronel, descrita muitas vezes como frágil e dependente da vontade deste ou, como lembra ironicamente Cândido, “uma flor nervosa de estufa deitada na rede, comendo docinhos” (1951 apud QUEIROZ, 1976, p. 193).

Caso de Briolanja que, casada com Tibério e cumprindo com este o devido papel de esposa esperado à época, fazia o “tipo dona de casa, ocupada e preocupada com os filhos, netos e os deveres domésticos, isso para não falar na sua devoção ao marido” (VERÍSSIMO, 1997, p. 30). Aliás, também o nome (segundo o texto, “de sabor arcaico”) diz sobre a personagem Briolanja, sendo retirado da obra Amadis de Gaula que, escrita no século XIV, faz parte do chamado “ciclo de romances de cavalaria”,[18] cujo enredo, marcado pela afirmação de uma sociedade medieval e seus valores aristocráticos, baseia-se em proezas e façanhas de um herói em busca do seu amor nobre, virgem, puro e, tal como o nome da esposa de Chico Vaca, angelical.

Mas neste momento surge outra vez a justaposição de opostos tão ao gosto de Veríssimo ao tratar de forma menos absoluta o lugar da mulher em famílias poderosas como as de Antares. Queiroz (1976, p. 193), após admitir ser “a mulher brasileira de classe superior submissa ao marido, como regra geral”, comenta haver quem ocupasse “posição de mando [...]. Sua cooperação se estendia à área política; muito embora não pudesse votar, tomava partido, organizava encontros, chegando a dirigir a facção política a que pertencia o marido, desde que este não se mostrasse dos mais aptos”. Eis Dona Quita e seu esposo Zózimo. Casal que, de maneira muito peculiar, atualiza a diferença entre as duas famílias poderosas de Antares ao contrastar com o par formado por Briolanja e Tibério.

Já este último irá tentar de início manter funcionando o modo tradicional de fazer política, com “o governo, além do conformismo do eleitorado ‘coronelista’, ainda se valendo da fraude e da coação para vencer nas urnas” (LEAL, 1987, p. X). Na eleição de 1930, por exemplo, esquecendo por completo as desavenças do passado com os Campolargos,

atirou-se com entusiasmo à propaganda eleitoral do “homenzinho de São Borja”. No dia das eleições nacionais ajudou pica-paus [apelido dos rivais maragatos em 1893] a falsificar atas, fazendo todos os defuntos do cemitério local votar [...]. Andava de mesa eleitoral em mesa eleitoral oferecendo sugestões no sentido de aumentar fraudulentamente o número de votos favoráveis a Getúlio Vargas. Os fiscais do candidato oficial, em geral funcionários públicos federais [...] faziam vista grossa a todas essas bandalheiras. (VERÍSSIMO, 1997, p. 40)

Aqui Tibério parece cumprir à risca o diagnóstico de Schwarz (2000, p. 19) sobre o modo como, no Brasil oitocentista, certa ideologia liberal à brasileira pôde conviver com a continuidade do sistema escravista: 40 anos depois de seu fim, também em Antares “o teste da coerência não parecia decisivo” ao ser “evocada ou suspensa conforme a circunstância”, atribuindo-se, “com método, independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções”. Após fazer os defuntos votarem, “quando em 1930 o Congresso Nacional proclamou a vitória de Washington Luís, Tibério berrou na praça de Antares: “Fomos esbulhados! Esses ladrões só nos podiam vencer em eleições fraudulentas! Agora só há um caminho: a revolução!” (VERÍSSIMO, 1997, p. 40). De fato, “é como se coerência e generalidade não pesassem muito” (SCHWARZ, 2000, p. 18).

Como se sabe, em suas Ideias fora de lugar o autor mostra como, ao longo da história do país, a prática social do favor passou a significar (e possibilitar) um meio de afirmação da pessoa livre (esteja ela ocupando posição social mais acima ou subalterna na hierarquia social), com o liberalismo incorporado a sua dinâmica de funcionamento e disso resultando a perda de seu caráter universalista. Ocorre que, mantido o traço hierárquico entre classes e grupos sociais no Brasil mesmo após 1888[19] (DAMATTA, 1981), não só reprodução e reforço da desigualdade subentendida na lógica do favor permaneceram, mas também, como ilustra o comportamento do coronel Tibério, o jogo de aparências combinado com fingimento e oportunismo. Com efeito, embora se referindo a temas e tempos históricos diferentes, se para Schwarz (2000, p. 12) “entre nós as mesmas ideias seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original”, para DaMatta (1981, p. 68) por aqui teria se afirmado “uma ideologia que permite conciliar uma série de impulsos contraditórios [...] sem que se crie um plano para sua transformação profunda”.

Característica que Veríssimo deixa mais do que visível através da trajetória (desde que surge na narrativa até o final do livro) de Tibério, mostrando que a confluência entre ganho pessoal e interesses locais ou de ocasião (cuja valorização confere força política àqueles que conseguem monopolizá-los) acaba preponderando em detrimento de objetivos gerais e coletivos. O que leva, como notaram Schwartz e DaMatta, este e outros tantos personagens da política nacional a não ter ideologia definida, a não ser que uma eventual adesão a esta ou aquela ideia programática, tomada de empréstimo (geralmente de última hora), lhe permita garantir ou aumentar sua influência local.

É o que se passa em Antares no final do primeiro período Vargas, quando retornam os pleitos eleitorais e Tibé (como o chamava Dona Quitéria e amigos próximos), vendo crescer a oposição ao caudilho de São Borja, se interessa em prospectar sobre a correlação de forças após a saída deste em 1945:

as eleições presidenciais haviam sido marcadas oficialmente para o dia 2 de dezembro daquele mesmo ano. Um dia um amigo “libertalóide” de Tibério encontrou-o no saguão de um dos ministérios e saudou-o de longe com um gesto de mão e estas palavras: “a procissão está na rua, meu velho!”. Tibério sacudiu a cabeça, num assentimento, e ficou pensando: “Que a procissão está na rua eu seu. Só não sei ainda que santo, que irmandade vou seguir”. (VERÍSSIMO, 1997, p. 53)

O episódio logo remete a outro comentário de Vitor Nunes Leal (1975, p. 37-41): sendo “responsável pelas vitórias eleitorais do candidato do oficialismo [...], quando vê a necessidade de mudar de partido (o que significa geralmente aderir ao governo), o chefe local – ou ‘coronel’ – retarda seu pronunciamento”; o que o faz “ser frequentemente acusado de não ter ideal político”. Mas Veríssimo revela outra vez mais como operava a lógica incerta de pensamento dos coronéis (para os quais, como visto com Schwarz, “o teste da coerência não parecia decisivo”):

no dia das eleições, quando chegou a sua hora de votar, ele próprio, Tibério Vacariano, hesitou por um instante dentro da cabina (não se habituava com o voto secreto, que chamava de “voto de covarde”). E para não “embromar” a marcha da eleição, soltou um “que bosta!” e, num impulso sentimental, votou em Getúlio Vargas. (VERÍSSIMO, 1997, p. 62)

Se, por um lado, Tibério não gostava do voto secreto, um “voto de covarde”, ele próprio fez uso deste e no final se acovardou, pois, tendo feito campanha contra o candidato à Presidência apoiado por Vargas, se o pleito fosse aberto provavelmente não teria condições de soltar “um bosta” e seguir seu “impulso”. Aliás, voltando à canção de Chico Buarque, se sua decisão tem um “fundo sentimental”, mesma frase seria repetida por Dona Quitéria anos mais tarde ao saber da morte de Getúlio Vargas: “somos todos uns sentimentais, Tibé. Um povo como o nosso adora as meias soluções, as compressas d’água quente. Nada é sério mesmo, neste país” (VERÍSSIMO, 1997, p. 87). Compressas (nada sérias) que se estendem às relações raciais, como na resposta de Tibé ao comentário de Zózimo:

– Também não sabia que tinhas virado racista.

– Racista eu? Ora, não sejas bobo. Sabes como trato a minha negrada. Eles me adoram. Mamei nos peitos duma negra-mina. Me criei no meio de moleques pretos retintos. Quando leio esses casos de ódio racial nos Estados Unidos, comento a coisa com a Lanja [como chama sua esposa] e lhe digo que no Brasil a gente, graças a Deus, não tem esses problemas, pois aqui o negro sabe o seu lugar. (VERÍSSIMO, 1997, p. 46)

Como esmiúça em detalhes DaMatta (1981, p. 75) ao destrinchar o que chama de “fábula das três raças”, em sociedades hierarquizadas como o Brasil, onde “as pessoas se ligam entre si e essas ligações são consideradas fundamentais [...], o senhor não se sente ameaçado ou culpado por estar submetendo um outro homem [...] ao trabalho duro [...], mas, pelo contrário, vê o negro como seu complemento natural”. Neste caso, para o autor (1981, p. 75-76), “o ponto crítico de todo sistema é sua profunda desigualdade. Ninguém é igual entre si ou perante a lei. [...] ‘cada coisa tem um lugar demarcado e, como colorário, cada lugar tem sua coisa’” dentro de um sistema de relações sociais “orientado do modo vertical: para cima e para baixo, nunca para os lados”. Por outro lado, é hoje farta a literatura mostrando como, ao contrário das idealizações freyreanas (2001) sobre nosso “encontro racial” (descrito como consensual, para não dizer afetuoso, quase fraterno),[20] e de modo semelhante ao liberalismo enviesado, tivemos aqui também um “racismo à brasileira”. Discriminação via de regra encoberta por uma alegada “intimidade” de quem parece próximo, quase da família e por quem se tem “consideração”, mas que ao final vive num mundo à parte, pois, ainda que lhe seja permitido transitar pela Casa Grande, seu lugar continua sendo a senzala, para onde deve sempre voltar e se conformar com “o seu lugar”.[21]

Mas voltemos um pouco no tempo para entender o porquê de nosso anti-herói “hesitar na cabina” ao dar seu voto ao homenzinho de São Borja. Seguindo a cartilha do coronel padrão, na “sua primeira visita ao Rio”, em 1934, como “muitos dos capitães e soldados da revolução que levara Vargas ao poder” e que “agora cobravam seu soldo de guerra” (VERÍSSIMO, 1997, p. 32), Tibério

teve um rápido colóquio com o presidente, que o recebeu com afabilidade, no Palácio do Catete, declarando-lhe: “O senhor, coronel, é o meu homem de confiança em Antares”. Tibério aproveitou a oportunidade para conseguir com o chefe da nação bons empregos em repartições públicas federais para alguns de seus parentes e amigos. Fez esses pedidos como quem quer dar a entender que ele, Vacariano, não queria nada para si mesmo, pois “Deus me livre, Presidente, abusar duma amizade”.

Pelo tratamento entre ambos, parece ainda vigorar a relação coronelista entre chefes locais e seus “amigos” no governo federal. Contudo, se entre 1930 e 1945 desarma-se a mola propulsora do sistema (a eleição), com ela desaparece o bem mais precioso a ser trocado (o voto). O que força Tibério a buscar manter sua influência tentando se aproximar o mais possível do centro do poder, inclusive fisicamente:

ao chegar ao Rio, em maio de 1938, a primeira coisa que Tibério fez foi visitar Getúlio Vargas e reafirmar-lhe sua solidariedade pessoal e política [...]. Naquele mesmo ano [...] comprou um apartamento na Av. Atlântica com o auxílio dum empréstimo conseguido rapidamente no Banco do Brasil graças a um cartão com umas palavrinhas do Homem. Pretendia dali por diante passar uma parte do ano no Rio e a outra em Antares. (VERÍSSIMO, 1997, p. 43)

Sem Tibério notar, o “soldo de guerra” cobrado pelos “capitães da revolução” havia sido quitado. Embora tente jogar o mesmo jogo de Xisto com Pinheiro Machado, sua desvantagem é nítida, pois o que pode oferecer em troca das “palavrinhas do Homem” é ser seu “homem de confiança” em Antares, algo que, para o ditador do Estado Novo, não conta tanto, visto poder rapidamente decidir ter outro coronel confiável na cidade. Mas ainda assim, como se viu no encontro que celebrou a paz entre Campolargos e Vacarianos, o “frio” “homenzinho de São Borja”, que “sabia jogar” com suas “qualidades carismáticas” e “maneiras agradáveis”,

estabeleceu com os “coronéis”  uma espécie de acordo tácito [...]. Com isso, manteve nas zonas rurais e nas cidades interioranas do País uma enorme força eleitoral conservadora, que se tornou o fiel da balança da política brasileira. Força eleitoral, porém, que se realimenta continuamente do clientelismo político e, portanto, de relações institucionais corruptas. (MARTINS, 1994, p. 32)

Além da atualização clientelista, agora ganha centralidade o agenciamento do “prestígio”, da “amizade” e das “boas relações” dos coronéis com quem ocupa posição mais elevada na hierarquia institucional. E nada mais natural que Tibério fosse viver no Rio de Janeiro, centro do poder político, peculiaridade notada por Leal (1975, p. 23):

o chefe municipal, depois de haver construído ou consolidado a liderança, já se tornou um absenteísta [isto é, um ausente]. Só volta ao feudo político de tempos em tempos para descansar, visitar pessoas da família ou [...] para fins partidários. A fortuna política já o terá levado para uma deputação estadual ou federal, uma pasta de secretário, uma posição administrativa de relevo, ou mesmo um emprego rendoso na capital do Estado ou da República. O êxito nos negócios ou na profissão também pode contribuir para afastá-lo, embora conservando a chefia política do município.

Mas se o “êxito nos negócios” afastou-o de seu “feudo político”, Tibério não pode simplesmente abandoná-lo. Depois de viver metade do ano na capital federal, “entrava o mês de novembro [note-se, mês próximo ao verão gaúcho e ao clima morno que marca a política no pré-carnaval carioca] punha-se a caminho de Antares e das suas terras, onde tornava a ser o estancieiro, o patrão, o homem que manda, desmanda e grita” (VERÍSSIMO, 1997, p. 36). Mas não só, pois seguem os favores concedidos pelo coronel, como quando de volta à cidade comenta a um amigo: “o padre me disse que a igreja está precisando de um reboco e tinta nova”. Também persiste o “filhotismo” na política, com o prefeito nos anos 1940 sendo “um primo-irmão” de Tibério, “pois o interventor federal não nomeava ninguém para cargos públicos [...] sem antes consultar o seu cacique” (VERÍSSIMO, 1997, p. 49). Assim, mantido o “acordo tácito” de Vargas com os coronéis, em “cidades interioranas” como Antares seguirão operando certas práticas coronelistas tal como descritas por Leal (1975, p. 44):

os próprios funcionários estaduais, que servem o lugar, são escolhidos por sua indicação. Professoras primárias, coletor, funcionários da coletoria, serventuários da justiça, promotor público, inspetores do ensino primário, servidores da saúde etc., para tantos cargos a indicação ou a aprovação do chefe local costuma ser de praxe.

Tanto favor, retribuição interessada e débito feito à custa do erário público seguiram ativos após 1930. Como nota Martins (1994, p. 29), além de o clientelismo político permanecer, em muitas regiões “ele se revigorou, embora mudando de forma, praticado por uma nova geração de políticos de fachada moderna [...]. Na sociedade brasileira, a modernização se dá no marco da tradição, o progresso ocorre no marco da ordem, [...] o novo surge como desdobramento do velho”. Mas se, como também notou Murilo de Carvalho (1997, p. 3), a prática clientelística se amplia com o fim do coronelismo – visto agora “dispensar a presença do coronel”, passando a ocorrer mais livremente e sem intermediações entre governos, políticos e “setores pobres da população” –, as transformações por que passava Antares já não mais permitiam que coronéis reinassem como antes. E o que resta, como recurso, a um coronel de uma cidadezinha do interior como Antares? A malandragem coronelística:

em 1940 estava já funcionando a máquina que ele montara para ganhar dinheiro. [...] Tibério abrira um escritório de advocacia administrativa e começara a vender a mais abstrata das mercadorias: influência [...]. Jogava com seu prestígio pessoal, suas boas relações com indivíduos em postos-chave na engrenagem governamental. [...] tinha trânsito livre no Catete e em vários ministérios, e isso lhe valia boas comissões pagas [...] por quem quer que estivesse interessado em movimentar requerimentos encalhados no mar de sargaço das repartições públicas. (VERÍSSIMO, 1997, p. 35)

Se em Antares Tibério segue o “marco da tradição”, como diz Martins, na moderna capital carioca se revela exímio jogador no ambiente da “ordem” institucional. Num mesmo personagem, o novo chefe do clã Vacariano, que de 1930 até 1963 centraliza a narrativa, traduziria uma série de condutas arraigadas no imaginário social ligadas ao “jeitinho”, mas que, como mostra Barbosa (2006), logo podem se converter em prática corrupta. Assim, fazendo o tipo ideal de outros coronéis que, de tão caricatos e grotescos, viraram personagens cômicos de filmes, romances e novelas, Tibério segue a máxima de que “é preciso mudar para permanecer”. Este, ao conhecer o Rio, logo notou que lá “havia ouro à flor do solo. Os primeiros faiscadores mexiam no cascalho das repartições públicas e dos ministérios. Alguns haviam encontrado veios riquíssimos. Era uma luta de apetites, choques de interesses, um torneio de prestígio, um jogo de pistolões” (VERÍSSIMO, 1997, p. 33).

De fato, ao comparar Incidente em Antares com novelas como O Bem Amado e Roque Santeiro, de Dias Gomes (1977, 1987), que foram ao ar em 1973 e 1985, respectivamente, surpreende a proximidade entre Tibério e os dois protagonistas de ambas, Odorico Paraguaçu e Sinhozinho Malta, a começar pelo caráter irreverente e ao mesmo tempo autoritário que marca suas condutas.[22] Novamente lembrando a ambivalência contida em Fado tropical, se fazem por vezes o leitor/público rir de seus comentários e atitudes, esses três heróis negativos rapidamente mostram a violência que também os caracteriza. E, embora não seja permitida a comparação com o malandro Macunaíma (ver a seguir), Tibério dele trará um traço básico, pois Veríssimo, ao narrar sua trajetória, denunciar suas ilegalidades, imoralidades e racismos, pinta-o como um personagem sem nenhum caráter. Da mesma forma, seus inúmeros golpes e peripécias pelos corredores do poder fazem dele uma espécie de latifundiário Zé Carioca que, na capital federal, vira uma mistura estética do “vadio” e seu “lenço no pescoço” de Wilson Batista (1933) com o “rapaz folgado” de Noel Rosa (1934):

trajava com essa “elegância da fronteira” [...] camisas e gravatas de seda, ternos de linho branco, chapéu panamá. Era um bom contador de “causos”. Suas anedotas e relatos picarescos, temperados aqui e ali com castelhanismos oportunos, faziam sucesso, contribuindo para que [...] se tornasse uma figura popular [...]. Era visto com frequência na madrugada dos cassinos, na companhia de belas mulheres. Jogava roleta com alguma sorte. Teve uma amante húngara, que acabou abandonando “por cara”. (VERÍSSIMO, 1997, p. 35)

Mas aqui, tal como com Macunaíma, a alusão aos personagens cantados pelos dois sambistas deve ser situada, limitando-se aos trejeitos, características exteriores e de comportamento social do coronel antariense, os quais de fato lembram a descrição do malandro feita nas canções de Wilson Batista (que a ele se compara, enaltecendo-o) e Noel Rosa (criticando o autoelogio do colega). Ademais, no imaginário social – e de antropólogos, como notou “malandramente” Gilmar Rocha (2006) – a figura do malandro dificilmente seria associada a quem ocupa lugar de poder, estando o arquétipo sempre transitando entre a ordem e a desordem, o patrão e o proletário, o capital e o trabalho, o tradicional e o moderno.

Ou seja, se cumpre em parte o último requisito ao se mostrar boêmio e mulherengo no Rio de Janeiro e mandão e carola em Antares, não seria possível qualificar Tibério Vacariano como marginal e periférico (embora possa ser qualificado como “marginal” no sentido policialesco, visto seu desrespeito às leis vigentes). O mesmo pode ser dito em relação a Macunaíma, pois, ainda que ambos sejam ardilosos e espertalhões, duas (entre várias outras) características os separam. Ao contrário do coronel e sua obsessão pela acumulação e reinvestimento da riqueza que adquire com suas trapaças, o personagem de Mario de Andrade, como bom malandro, se “se dá bem” com alguma artimanha, não lhe preocupa capitalizá-la, ao contrário, irá logo gastá-la e assim voltar à condição em que antes se encontrava. Ademais, diferente de Macunaíma, que, como diz um de seus grandes comentaristas, “não tem preconceitos, não se cinge à moral de uma época” (CAVALCANTI PROENÇA, 1969, p. 9), Tibério tem por hábito fazer o jogo duplo e hipócrita de alegar ser um defensor da moral e dos bons costumes para, sempre que possível, transgredi-los.

Já por outro lado, aproxima-o do malandro (o mesmo valendo para Sinhozinho Malta e Odorico Paraguaçu) seu individualismo exacerbado que, ao relativizar a ordem, nada tem de revolucionário, mas sim de egocêntrico. Da mesma forma, além de comporem dois emblemas nacionais (portanto, representativos do que significa ser brasileiro), o fato de ambos (malandro e coronel) transitarem entre o mundo da modernidade e os valores da tradição os faz serem vistos como elementos de nossa formação como nação a ser superados, algo pertencente ao passado, mas que, teimosamente, surge aqui e ali no dia a dia da vida cotidiana. E é nesse sentido que Tibério traz e conserva algo de ambos os personagens.

Ao mesmo tempo que mostrava “orgulho em ser tão vadio” (BATISTA, 1933) em suas “conversas de botequim” (ROSA; VADICO, 1935), não deixou de carregar o oportunismo de suas raízes coronelistas. Se “tinha fama de generoso” porque “as pessoas não chegavam a perceber bem que suas dádivas eram mais verbais que concretas”, o filho de Xisto “sabia administrar muito bem sua ‘generosidade’, exercendo-a apenas com pessoas que [...] pudessem um dia vir a ser-lhe úteis” (VERÍSSIMO, 1997, p. 35). Além disso, como visto, Tibério traz incorporado nele próprio a ambivalência da cordialidade buarqueana. Assim, seguiu o conselho de seu primo e sócio de que “esse negócio de bancar o valentão não dá resultado aqui no Rio”, mudando “de método”, pois “aos poucos aprendeu a pacienta, a blandícia, a sinuosidade” e “recalcou suas cargas de cavalaria ancestrais”. Contudo, em certas ocasiões, “quando todos os outros recursos se esgotavam, dava bom resultado segurar o sacripanta pelas lapelas, apertá-lo contra uma parede e rosnar: ‘Te quebro a cara, cafajeste!’”. E se mesmo com intuito oportunista na capital federal mostra certa “generosidade”, em Antares voltava a ser “o estancieiro, o patrão, o homem que manda, desmanda e grita” (VERÍSSIMO, 1997, p. 35-36).

Como se vê, se seu pai Xisto dominava o jogo da gangorra, Tibério “administra” (ou amansa, na gíria gaúcha) a duplicidade emotiva do homem cordial: caso jeitinho e malandragem não funcionem, apela para a violência e autoridade do “sabe com quem tá falando?”. E aqui vem de novo a troça de Veríssimo com o nome dos personagens, pois seu xará romano, além de ter entrado na realeza pela porta dos fundos (pois não era filho do imperador Augusto, que casou com sua mãe e depois o adotou), só sucedeu seu pai porque foi vendo serem gradativamente mortos os demais pretendentes ao trono (aliás, foi no seu reinado que Jesus foi crucificado). Ou seja, ainda que Tibério tenha herdado o posto de coronel, este veio já, no tempo histórico que dele pôde desfrutar, sem muita majestade.

Mas de todas as suas falcatruas anteriores, há uma que melhor ilustra as mudanças em curso nos anos 1950 e que tem início num diálogo travado nos corredores da política carioca:

– Diga pro seu Lins que descobri o lugar ideal para a fábrica dele. [...] sou meio dono duma cidade [...] e se ele quiser estabelecer o negócio dele em Antares, arrumo tudo: o terreno para a fábrica, material de construção a preço baixo e [...] cinco anos de isenção de impostos municipais! O prefeito é meu sobrinho e tenho na mão a Câmara de Vereadores [...] – Mr. Ling quer saber das suas condições. As minhas condições? Rá, quero apenas contribuir para o progresso industrial da minha cidade, que diabo! Na realidade pretendia fazer o chim assinar um compromisso de compra de toda a sua safra anual de soja, vender-lhe um de seus terrenos para construção da fábrica e [...] ganhar algumas ações da companhia em troca de todos esses “favores”. Menos de um ano mais tarde inaugurava-se em Antares a Cia. Óleos Sol do Pampa, da qual Tibério possuía 500 ações [...], conseguira impingir ao chinês um de seus muitos terrenos [... e] tinha agora comprador certo para toda a sua produção de feijão-soja. (VERÍSSIMO, 1997, p. 65-66)

Em suma, se a partir de 1930 Antares teve à frente dos Campolargos uma mulher “forte”, “astuta” e “inteligente” como Dona Quita, do lado dos Vacarianos a chefia caberá a um coronel travestido de malandro. Sem entrar no debate, sugerido por Chico de Oliveira (2012), de saber se o jeitinho é ou não “um atributo das classes dominantes brasileiras que se transmitiu às classes dominadas”, basta por ora aceitar este ser, ao menos, praticado por ambas as classes.[23] Tal como o perfil do malandro traçado por DaMatta (1997), Tibé, além de manipular com maestria o improviso, de roubar “com ‘jeito’ invocando simpatia e empatia”, de dominar a “arte de sobreviver nas situações” em que se está “claramente fora ou longe da lei”, de controlar a arte de juntar o impessoal (engrenagem governamental) com o pessoal (prestígio e boas relações), de fazer da desvantagem uma vantagem, é também um pouco palhaço. Contudo, ao contrário da sagacidade bem posicionada de seu pai ao transitar pelas gangorras da barganha, ao se render à reles trapaça, Tibério vira um mero vigarista. E aqui Veríssimo, ao mostrar a “esperteza” de Tibério, na verdade o ridiculariza, o rebaixa ao nível do bufão, fanfarrão que, a cada vigarice, vai perdendo sua graça. Mais ainda, pois de sagaz e astuto o coronel não só passa à farsante e embusteiro, mas se afasta do malandro para se aproximar do bandido, com o jeitinho dando lugar à mera prática corrupta. Além disso, por mais vantajoso que possa ter sido, por trás do episódio com o chinês “Mr. Ling” (que Tibério, como um desajeitado palhaço de circo, troca o nome por “seu Lins”) esconde-se a decadência e o anacronismo dos coronéis:

o comum, nos dias de hoje [anos 1940], é o fazendeiro apenas “remediado”: gente que tem propriedades e negócios, mas não possui disponibilidades financeiras; que tem o gado sob penhor ou a terra hipotecada; que regateia taxas e impostos, pleiteando condescendência fiscal; que corteja bancos e demais credores, para poder prosseguir em suas atividades lucrativas. (LEAL, 1975, p. 24)

Mesmo conservando certo prestígio (no Rio) e ainda temido (em Antares), Tibério não será o dono da “Cia. Óleos Sol do Pampa”, mas sim um estrangeiro. O mesmo ocorre com as duas outras “companhias” frigoríficas existentes em Antares à época do Incidente, em 1963, ambas multinacionais dirigidas pelo estadunidense Jefferson Monroe III e pelo francês Jean-François Duplessis. É o moderno, por meio da acumulação de capital, se mesclando, se amalgamando e, sobretudo, se utilizando do tradicional (Vacariano) e do malandro (Tibério) para seguir sua acumulação. Sinal claro de tal fragilidade viria em 1961 à época da campanha da legalidade, quando Tibé, diferente de seus antecessores, ao “reunir gente” para uma guerra que via como “inevitável”,

cinco dias depois não tinha conseguido juntar sequer cinquenta homens. Ficou desapontado e esse desapontamento transformou-se em irritação quando leu no jornal local que os janguistas de Antares tinham oferecido a Brizola [...] setecentos e cinquenta homens [...]. – Os tempos mudaram, Tibé – disse-lhe uma noite com triste resignação um seu correligionário. – Há muitos anos que estamos em minoria. Já não temos a força e o prestígio de antigamente. (VERÍSSIMO, 1997, p. 123)

Já nos anos 1940 Leal (1975, p. 57) antevia a constatação do correligionário: “longe estão os ‘coronéis’ de hoje e de ontem – que tão repetidamente têm que apelar para o braço do delegado de polícia – daqueles rebeldes e poderosos senhores rurais de certo período colonial, que eram o governo e a lei de seus domínios”. Em Antares, um evento derradeiro ocorrido horas antes do Incidente – que um comentador do livro de Veríssimo definiria como “o fim do mundo” para Tibério (FRESNOT, 1977, p. 61) – marca simbólica e concretamente o declínio do último coronel Vacariano: a decretação e forte adesão a uma “greve geral” na cidade:

Tibério Vacariano [com 65 anos] desvencilhou-se de seu médico, atirou-se contra o Líder grevista, já de revolver em punho. Geminiano quebrou o corpo, segurou a mão direita de seu agressor, ergueu-a para o ar e em poucos segundos desarmou-o. Sem dizer palavra encostou-lhe na cara a mão espalmada e empurrou-o com força, fazendo-o cair sentado no chão – “Guarde esta porcaria, velho bobo! E convença-se de que os tempos mudaram. Antares não é mais propriedade sua”. Voltou-se para o prefeito – “E agora vamos conversar como gente grande. E de igual para igual! Os senhores viram que não temos medo de careta”. (VERÍSSIMO, 1997, p. 219)

Eis um caso típico de quando o artifício do “sabe com quem tá falando?” não mais funciona, com a “careta” do “velho bobo” Tibério Vacariano caindo “no chão”. Mesmo com todo aparato legal (chefe de polícia, prefeito, juiz), o coronel poderoso de outrora perdera sua capacidade (mesmo simbólica) de se impor aos “de baixo”, condição que também havia se deteriorado “na capital”, pois desde a volta de Getúlio Vargas ao poder em 1950 seu prestígio e ascendência sobre políticos e lideranças nacionais foram sendo esvaziados. Todavia, após contar em minúcia a história de Antares, está tudo preparado para o Incidente, que, se virá com o renascimento dos mortos, premonitoriamente remete a outro fato recorrente na vida do país e que se repetiria três meses depois deles voltarem às suas covas: o golpe de 1964.

 

Algumas impressões conclusivas

Até o Incidente, Antares é apresentada como terra de clãs, mandões, facções, coronéis, oligarcas, caudilhos, donos de terra e gado. Embora a narrativa evolua com o surgimento, nos anos 1960, de novos personagens (como o padre subversivo, o operário, o dono do jornal, a prostituta, o professor de sociologia), até lá as “pessoas comuns” são meros figurantes em meio aos desmandos de Campolargos e Vacarianos. Mas Veríssimo (1997, p. 24) está ciente:

é natural que o leitor esteja inclinado a perguntar se não existem em Antares homens de bem e de paz [...]. Havia, sim, e muitos. Desgraçadamente seus ditos, feitos e gestos não foram recolhidos pela história oficial. [...] estas páginas lamentavelmente têm seguido o espírito dos citados livros escolares, [... dando] preferência às duas grandes oligarquias que [...] disputaram o predomínio político, social e econômico. Ficaram na penumbra [...] todos aqueles que [...] não “fazem”, mas “sofrem” a História.

Ocorre que o pretenso desdém para com

agricultores de minifúndio, membros das profissões liberais, do magistério e ministério públicos, funcionários do governo, comerciantes, artesãos e por fim essa massamorda humana composta por párias – brancos, caboclos, mulatos, pretos, curibocas, mamelucos –, gente sem profissão certa, changadores, índios vagos, mendigos, “gentinha” molambenta e descalça, que vivia num plano mais vegetal ou animal do que humano. (VERÍSSIMO, 1997, p. 25)

tem efeito inverso, com a aparente desimportância da “massamorda” resultando na sua elevação. O leve tom irônico (que ganha traços aqui e ali de sarcasmo e percorre toda narrativa) já presente no ar sóbrio e ponderado de quem narra, vai, sutil e cadenciadamente, revelando tanto a ignorância e intolerância dos “grandes” de Antares como preconceitos arraigados no imaginário popular. E como faz com vários personagens, ao expor abertamente impressões, opiniões e juízos de valor do próprio narrador, o autor usa-o como uma espécie de cobaia para denunciar e acusar quem pensa ou pensou a “História Oficial” apenas a partir dos de cima, dando ao leitor a liberdade de refletir e se indignar com o que lê. É assim que, se a “gentinha molambenta” que vive “mais como vegetal” em Antares se aproxima do que Oliveira Vianna (1987) chamou de “povo-massa”, “ralé” “pés-descalços” e “escória da sociedade”, é para delatar, com o narrador, este último e tantos outros “grandes” e “escolares” intérpretes de Brasil.

Caso se parta da constatação de que um romance é “a construção de um espaço específico em que a vida, mesmo fingida, aparece como verdade” (PRADO, 1982, p. 7), Érico Veríssimo, ao contar a história de Antares, faz um exercício hermenêutico-comparativo entre realidade e ficção que, a todo momento, dialoga com a história interpretada por quem o antecedeu, seus contemporâneos e quem viria depois dele. Mergulhando nas profundezas de um mundo social ao mesmo tempo concreto e imaginado, se o leitor é convidado a passear pelas ruas (fétidas após o Incidente) de uma cidade cujos habitantes cinicamente denunciam uma variedade de formas de exploração, opressão e violência, ele também é levado a visualizar eventos bastante comuns e que estão, neste exato momento, ocorrendo em um sem número de pequenas e grandes Antares. Seja num quilombo do interior de Goiás, numa favela paulistana ou na Vieira Souto carioca, o favor e a barganha, a ambivalente e instável cordialidade, a malandragem, o jeitinho, o “sabe com quem tá falando” e a pessoalidade entre quem está acima e abaixo na hierarquia social continuam presentes. E se aqueles que hoje ocupam posição de poder não são mais os de antes, boa parte de suas condutas continuam contaminadas por uma nada desprezível dose de soberba, arrogância, egoísmo, preconceito e hipocrisia mostradas em Antares, que, aliás, como notou Fresnot (1977, p. 60), talvez seja, como um espelho do Brasil, a “personagem central deste romance”. É na explicitação deste tipo de sociabilidade que a narrativa irônica e por vezes caricata do texto ganha força e heuristicidade, realçando texturas e tonalidades que revestem não só o funcionamento da política brasileira, os elos entre o público e o privado e a relação entre o doméstico e a burocracia estatal, mas o nosso modo próprio (brasileiro) de ser, agir e sentir.

 

 

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Como citar

GERHARDT, Cleyton. Interpretando Antares – um laboratório das relações político-sociais à brasileira. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 508-549, out. 2020. DOI: https://www.doi.org/10.36920/esa-v28n3-2.

 

 

 

Cleyton Gerhardt

Professor Adjunto e pesquisador no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ). Doutorado em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).

cleytonger@hotmail.com

https://orcid.org/0000-0001-7493-2458
http://lattes.cnpq.br/0021566933081538

 

 

 

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[1] Professor Adjunto e pesquisador no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ). Doutorado em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: cleytonger@hotmail.com.

[2] Uma primeira versão deste texto foi escrita em 2003 após cursar duas disciplinas oferecidas no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), sendo elas “Raízes agrárias da formação social brasileira” e “Política e sociedade no Brasil: comunidade, família e política”, respectivamente sob responsabilidade de Eli Napoleão de Lima e John Comerford. Hoje amigos queridos, gostaria de agradecer a ambos não só pelas leituras feitas, mas sobretudo por poder desfrutar daqueles poucos meses de inspiração e aprendizado sobre um país cuja interpretação, como disse um de seus intérpretes (Tom Jobim), “não é para principiantes”.

[3] Lívia Barbosa, Ana Claudia Marques, Gilmar Rocha e, numa situação muito específica, Pierre Bourdieu.

[4] Estando nesta condição: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Nestor Duarte, Sérgio Buarque de Holanda, Victor Nunes Leal, Manuel Cavalcanti Proença, Luiz da Costa e Pinto, Carl Landé, Marcos Vilaça, Roberto Albuquerque e Maria Isaura Pereira de Queiroz.

[5] Sendo eles: Richard Graham, Daniel Fresnot, Billy Chandler, Chico Buarque de Holanda, Roberto DaMatta, Roberto Schwarz, Maria Silva de Carvalho Franco, Dias Gomes, Consuelo Prado, Moacir Palmeira, Chico de Oliveira, Beatriz Heredia, José de Souza Martins, Roberto Palmari, Margarida Moura e Ellen Woortman.

[6] Diz em certo momento Euclides da Cunha (2012, p. 6): na “serra do Grão Mogol [...] se escalonam em alinhamentos incorretos de menires colossais [...] muramentos desmantelados de ciclópicos coliseus em ruínas”. De fato, o parnasianismo da época e o incômodo impasse vivido pelo autor (situado entre sua vivência real e intensa com a população sertaneja e as influências ligadas ao determinismo do meio e teorias científicas racistas do início do século XX) se refletem no estilo da escrita e na forma como foi estruturado Os Sertões, com o capítulo inicial (“A terra”) tentando dar conta da totalidade dos aspectos astronômicos, topográficos e geológicos que, mais à frente, resurgirão para explicar o relativo “isolamento” geográfico do sertanejo e suas consequências em termos da constituição de uma mentalidade e conduta próprias (no caso, brasileiras).

[7] Ver, por exemplo: https://www.brasilchannel.com.br/municipios/mostrar_municipio.asp?nome=Alegrete&uf=RS. Acesso em: 5 abr. 2020.

[8] Nome que faz par com o termo que completa o título do livro: “incidente”, visto este sugerir algo sem maiores consequências, o que não é o caso de mortos revivendo e saindo de seus caixões para perambular pela cidade.

[9] No dialeto gaúcho o termo bagual se refere originalmente ao cavalo que, mal domado, rebela-se contra os maus-tratos e, ao não se deixar dominar, a partir daí vira um animal “estragado” para montaria e lida de campo.

[10] Através de vários exemplos (“sabe com quem está falando? Sou motorista do Ministro!”; “sabe com quem está falando? Sou esposa do Deputado Fulano de Tal!”), lembra o autor (1997, p. 191-192) que “os inferiores estruturais não deixam de usar o ‘sabe com quem está falando?’, que não é exclusivo de uma categoria, grupo, classe ou segmento social. Muito pelo contrário, a expressão parece mesmo permitir a identificação, por meio de projeção social, quando o inferior dela se utiliza para assumir a posição de seu patrão ou comandante, agindo em certas circunstâncias como se fosse o próprio superior”.

[11] Além das primeiras serem mais da metade da população, se em 1890 analfabetos somavam 82,6%, em 1930 ainda representavam 62% (FERRARO; KREIDLOW, 2004).

[12] Cujo nome original de seu homônimo bíblico, Benoni, trocado pelo pai, significa “filho da minha dor”.

[13] Outra possibilidade seria novamente o uso da ironia, pois polido e educado não são propriamente qualidades de quem sente prazer em “incendiar as tripas” de alguém, como se viu no episódio do “tempero pra salada”.

[14] Conforme o narrador, estes “foram tempos de tristeza, apreensões e durezas para os habitantes de Antares. [...] Antônio Maria, o primogênito de Chico Vacariano, havia tombado morto na batalha de Lomas. [...] Benjamim, o mais velho, que havia perdido um olho num combate corpo a corpo, trazia as divisas de major e uma medalha militar. Seu irmão Gaudêncio tivera de amputar um braço. Antão Vacariano, que deixara a mão esquerda enterrada em solo paraguaio, voltara feito coronel” (VERÍSSIMO, 1997, p. 13).

[15] Para uma análise/interpretação de “Fado tropical”, composta pelo autor para a peça Calabar, escrita em parceria com Ruy Guerra em 1973 num dos momentos mais repressivos da ditadura civil-militar iniciada em 1964, ver Florent (2007, p. 1). Conforme a autora, a canção, além de “esboçar uma nova ‘aquarela do Brasil’, ambivalente e irônica, que sugere a permanência do autoritarismo ibérico em nossa formação histórica e cultural”, remete a “um conjunto de sinais significativos que celebram um valor comum, no caso a própria formação da nação brasileira”.

[16] Preocupação não exclusiva de fazendeiros, sendo comum do Nordeste ao Sul do país, como mostram Moura (1978) e Woortmann (1995). No Sul, por exemplo, descendentes de italianos e alemães adotaram o sistema de Minorato: enquanto filhos homens eram incentivados a sair em busca de novas terras e as filhas a morar na terra do futuro marido ou da família deste, o filho mais novo ficava com os pais até herdá-la após sua morte.

[17] Embora Zózimo vire mero coadjuvante, por vezes surge no texto, como na revolução de 1930, quando, ao contrário de Tibério, “se deixou ficar na sua vidoca, lendo lenta e interminavelmente os jornais, indo de vez em quando ao cinema (gostava especialmente dos filmes de cow-boys), tomando o seu chimarrão habitual e relendo romances de Camilo Castelo Branco, Machado de Assis e Eça de Queiroz” (VERÍSSIMO, 1997, p. 31).

[18] Sobre o tema, ver Lopes (2011).

[19] Ver a seguir.

[20] Como em sua suposição de que “talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura, como no Brasil” (FREYRE, 2001, p. 123).

[21] De fato, Tibério sintetiza, em diversos momentos, atitudes e pensamentos racistas arraigados no comportamento social. Porém, ciente de que só esta questão, recorrente na obra de Veríssimo, mereceria um tratamento apurado e análise cuidadosa, visto sua importância para entender a realidade do país, deixo-a aqui por ora para retomá-la em outro momento.

[22] Por sinal, sendo as peças originais anteriores à Incidente em Antares (a primeira publicada em 1963 e a segunda, uma adaptação da peça O berço do herói, encenada em 1965), há sempre a possibilidade, como diversos outros trabalhos aqui citados, de Veríssimo tê-las acessado de alguma forma.

[23] Como sustenta o autor (2012, p. 3), “a burla é uma forma de adotar o capitalismo como solução incompleta na periferia do sistema. Incompleta porque o capitalismo trouxe para cá a revolução das forças produtivas, mas não as soluções formais da civilidade. As classes dominantes então ‘se viram’, dão um jeitinho para garantir a coesão de um sistema troncho e, comme il faut, a exploração”.