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v. 28, n. 3, outubro de 2020 a janeiro de 2021,  p. 502-507
Recebido em 8 de setembro de 2020.  Aceito em 14 de setembro de 2020.



Introdução à seção temática: Literatura e Mundo Rural
Introduction to the thematic section: Literature and Rural World

 

DOI: 10.36920/esa-v28n3-1



Editores

orcid_cinza.jpg  Raimundo Santos[1]

orcid_cinza.jpg  José Antonio Segatto[2]

  

 

 

 

Introdução

A seção temática “Literatura e Mundo Rural” teve como foco os escritores voltados ao mundo rural. O seu objetivo também era estimular o debate sobre a problemática da relação entre ciências sociais e literatura.

No passado bem distante, quando as ciências sociais ainda não ofereciam estudos metódicos, a literatura, em sentido amplo da palavra, então se confundia com aquela que ficou conhecida como literatura social, identificável com determinados textos de ficção, alguns deles bem chamativos.

Anunciam-se, como delimitação dessas manifestações, os seguintes princípios:

1.    Pode-se referir às teorias epistemológicas clássicas e às ciências sociais como formas excepcionais de recepção e reprodução do movimento do real ou reflexo e reflexão das relações sociais, ao expressar a existência, a experiência e a condição humana.

2.    Tomando essa compreensão como premissa, as ciências sociais, como modalidade científica, têm modos específicos de reprodução e recepção dos fatos sociais os mais variados. Ciências sociais e ficção com linguagens e formas (artística e científica) distintas, ambas têm uma função cognitiva fundamental.

3.    O texto literário confere a qualquer representação uma nota subjetiva. As ciências sociais se voltam aos fenômenos concretos, à interpretação de processos reais e a eventos de dimensões complexas.

4.    A subjetividade do texto literário provém de elementos estilísticos, retóricos, dramaturgos e artísticos que se estendem à transcendência.

Longa trajetória de configurações e reconfigurações de temas e questões ocorridas em estudos de Raimundo Santos no curso de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Sociedade e Desenvolvimento (CPDA) mostra como e aonde se chegou à convocatória do edital desta Seção Temática. Ela teve a participação do professor José Antonio Segatto, da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP-campus de Araraquara), que produziu e publicou textos historiográficos tematicamente diversos, sendo o mais conhecido deles o que escreveu sobre a revolução burguesa no Brasil. Ultimamente, Segatto também tem trabalhado com pesquisas e publicado textos sobre literatura, como se pode ver nos seus livros a serem citados mais à frente.

É preciso uma primeira correlação entre a literatura e as problemáticas antigas do cientista político Raimundo Santos, pesquisador nas Linhas de Pesquisa Pensamento Social e Movimentos Sociais do CPDA. O professor Santos enfrentou a questão de se o alcance heurístico do Pensamento Social segue intuito epistemológico ou exegético. Seus estudos, dedicados ao exame de clássicos brasileiros, vieram mostrar que tanto a literatura propriamente dita quanto o ensaio contribuem para conhecer grupos sociais, folclore e outras expressões socioculturais.

É preciso anotar as produções dos editores, visando situar o seu pensamento como terreno sinalizador do tipo de formulação do edital da seção temática.

Nesse sentido, o mais importante livro de Raimundo Santos, chamado Caio Prado Júnior na cultura política brasileira (obra que recebeu o prêmio “Biblioteca Nacional 2001”, e que também foi publicado nesse mesmo ano pela editora Mauad, em colaboração com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro – Faperj). Mencionem-se os livros Sociedade e literatura no Brasil, organizado por José Antonio Segatto e Ude Baldan, e Cultura política e democracia e Política, relações sociais e cidadania, ambos de autoria do primeiro autor.

Voltando ao problema da delimitação das manifestações, há mais traços a apontar. O primeiro é que ainda se faz necessário dizer que ciências sociais e obra de ficção são expressões, cuja validade conta com diferença que lhe dá especialidade. Qualquer um desses gêneros – científico, ensaístico e ficcional – são atividades para obter fins, principalmente as ciências sociais, cujo objetivo é ampliar saber especializado. Entretanto, com perda da visão de conjunto e interpretação, como dissera, em 1973, Florestan Fernandes. Ou mesmo para criar atividade para estudiosos fazerem ciência social em si, isto é, trabalhar a própria ciência social.

Outrossim, observam-se configurações tanto para referir-se ao ensaio quanto ao texto ficcional. O primeiro a dizer, como lugar de labor historiográfico, é que o ensaio pode ter formato em matéria documental. Há na ficção versão para testemunhar determinado realce, com recurso ao emocional, como se verá adiante na apresentação desta seção temática.

O fio por onde se divisam os objetivos da Seção Temática passa pelos anos em que Raimundo Santos se dedicou no CPDA à história das ideias, tendo nos últimos tempos trabalhado com história intelectual que lhe que vem propiciando problematização de clássicos do Pensamento Social brasileiro. Assim, essa trajetória evolutiva de Raimundo Santos ocupa páginas adiante com bastante detalhes, com vistas, repita-se, a assentar, mediante seu ativismo temático-investigativo, os principais lineamentos da proposição do edital desta Seção Temática.

Nessa perspectiva, é preciso conferir importância a reconfigurações de problemáticas e abertura de pesquisa. Em primeiro lugar, refiram-se dois acontecimentos ocorridos na linha de pesquisa do CPDA, na qual opera Raimundo Santos. O primeiro lugar é a criação do Grupo de Pesquisa no CNPQ “Pensamento social e cultura política”, coordenado pelo mesmo professor. Nesse grupo, foram desenvolvidas investigações sobre a história das ideias de agraristas brasileiros, como as de Caio Prado Jr. e Alberto Passos Guimarães.

Também se começou a estudar autores campesinistas, como José de Souza Martins, cujo constructo foi organizado na Sociologia, com recurso a categorias marxianas. E orientaram-se diferentes movimentos sociais (principalmente as Ligas Camponesas, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST), e ainda se orientou tese na qual se fez comparação entre a CONTAG e o MST em termos da socialização das maiores experiências e aprendizado político apresentados pela primeira entidade sindical.

Na busca de um horizonte, realizou-se um segundo trabalho entre alunos e professores de ampliação intelectual, como fez Raimundo Santos ao reexaminar o pensamento de Caio Prado Jr. a partir da sua militância. Assim também se tem trabalhado com Gilberto Freyre, realçando suas atividades políticas, desde que se elegeu para a Constituinte em 1945 e depois permaneceu como deputado federal até completar o mandato.

Doutra parte, despertou interesse observações sobre área de moradia rurban, oriundas da própria Inglaterra. Gilberto Freyre incluiu na sua gramática da interpenetração dos contrários, fundada em Casa Grande & Senzala (1933), o conceito de rurban, com vistas a marcar, segundo proposições do seu livro, a civilização que pensava ver no Brasil.

Nos anos 1950, Freyre anunciou a tese da rurbanização, com a qual irá se opor a ideias de mudança social: a da revolução, a das reformas agrárias de medidas parciais; ou ainda, no caso de Ignacio Rangel, de reforma agrária nos aspectos não agrícolas.

Tem-se desenvolvido pesquisas no contexto do referido projeto dirigido no CPDA pelo professor Raimundo Santos, chamado “Mediações e política”. No registro da problemática cidade/campo, publicaram-se textos opostos à civilização urbana, inclusive em obras representativas da literatura brasileira. É interessante ver Os Sertões em busca da nacionalidade, que eram parte da nação esquecida. E diga-se que, desde essa época, os moradores de rua e os sem-teto crescem nas cidades brasileiras.

A tensão entre atraso e progresso caracteriza não só Os Sertões como grande parte de obra ensaística e textos ficcionais. Já que esses últimos transcendem a finitude de que se revestem personagens reais, e para quem os ver no romance, no conto e na poesia parecem figuras vivas de imaginação tangível.

A ficção, a poesia, o ensaio e, mais tarde, a fotografia e o filme serviram como fontes aptas a informar e a interpretar tanto a estrutura social quanto a mentalidade de populações marginalizadas, principalmente rurais, incluindo a visão que delas tinham os letrados enigmáticos citadinos. Em diálogo intertextual, visou-se à construção da nacionalidade que tanto ocupou o Pensamento Social brasileiro. A tensão entre atraso e progresso tornou-se característica de numerosos textos ensaísticos.

Sublinhe-se o fato de que Raimundo Santos seguia o viés dos seus estudos desenvolvidos nos anos 1980. Houve transfiguração temática que passou a focalizar mediadores operantes no meio agrário e rural no sentido mais ampliado dessas noções.

Os mediadores se movem através de grupos sociais, seu agir não sendo determinado por efeito de estrutura econômica nem prefigurado por processos sociológicos sem controle do próprio ator.

Convém lembrar que, associado à problemática da função social dos intelectuais com a qual Raimundo Santos chegou em 1989 ao CPDA, esse tipo de tematização dos mediadores requereu abordagem diferenciada em relação à bibliografia de ciências sociais já bastante firmada no país.

Em segundo lugar, foi preciso valorizar novas questões a pesquisar, sobremaneira abrir espaço para a orientação. Trata-se da pesquisa “Mediações e política”, que resultara de atividades de Raimundo Santos reunificadas em 2014 no CPDA. Essa investigação focalizou mediadores como agentes que seguem sistemas e diretrizes, definem metas, repertórios e se ligam a determinada cultura política.

Esclareça-se que cultura política tem dimensão nacionalmente gravitante quanto mais for duradoura, contando com contribuições de construções intelectuais do Pensamento Social brasileiro, que desempenham papel marcante no surgimento de uma cultura política, no caso, subcultura, pois referida ao mundo rural e a mudanças sociais.

Uma configuração que dispõe ao ensaio e a textos ficcionais pode ser considerada, no caso dos artigos selecionados pelos organizadores da Seção Temática, peças ficcionais emblemáticas quanto aos escritores apresentados nos textos selecionados.

Os editores da seção temática “Literatura e Mundo Rural” esperavam, durante o período do edital, receber contribuições que trouxessem novas abordagens e pontos de vista para as discussões sobre a literatura. A tais contribuições permita-se ver a reconstituição de uma atividade do saber ensaístico, ou, a partir de escritos ficcionais que, sem perderem sua natureza, igualmente buscam entender o rural, mesmo que esses conhecimentos advenham de textos literários.  E quando aparece em narrativa como se fosse ensaio, pode-se ler uma história dinâmica escrita em textos ficcionais.

Estes são os artigos selecionados:

Interpretando Antares – um laboratório das relações político-sociais à brasileira, de autoria de Cleyton Gerhardt, professor e pesquisador no Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Antares é um lugar onde se tem dito que o passado se apaga com borracha. Antares é um incidente, tendo Veríssimo muito a contar.

Graciliano Ramos (1892-1953): breve abordagem sobre interpretações, de Eli Napoleão de Lima, professora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Sociedade e Desenvolvimento da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).

Entre a denúncia e o fatalismo: natureza, sociedade e sertanejos-retirantes na literatura que evoca o Nordeste das secas, de Liduina Farias Almeida da Costa, professora no Programa de Pós-graduação em Sociologia e no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Os escritores regionalistas se referem ao Sertão e às secas como se falassem de coisas próprias.

Cornélio Pires e o mundo caipira relido e encenado por Soffredini, da autora Lígia Rodrigues Balista, que tem doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP).

Os (re)significados do sertão em ‘Outros Cantos’ de Maria Valéria Rezende, cuja autora, Renata Cristina Santa’Ana, é doutoranda em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

 

 

 

Referências bibliográficas

LEITE, S. P.; BRUNO, R. (Orgs.). O rural brasileiro na perspectiva do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2019.

SANTOS, R. Caio Prado Júnior na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2001.

SANTOS, R. Agraristas políticos brasileiros. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.

SEGATTO, J. A.; BALDAN, U. (Orgs.). Sociedade e literatura no Brasil. São Paulo: Unesp, 1999.

SEGATTO, J. A. Cultura política e democracia. Curitiba: CRV, 2020.

 

 

Como citar

SANTOS, Raimundo; SEGATTO, José Antonio. Introdução à seção temática: Literatura e Mundo Rural. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 502-507, out. 2020. DOI: https://www.doi.org/10.36920/esa-v28n3-1.

 

 

 

Raimundo Santos

Professor do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).

raimundo.santos@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-3427-933X
http://lattes.cnpq.br/7638715760268664


José Antonio Segatto

Professor Titular da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCL/Unesp).

segatto@fclar.unesp.br
https://orcid.org/0000-0002-5070-1361
http://lattes.cnpq.br/4222061531439095

 

 

 

 

 

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[1] Professor do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: raimundo.santos@gmail.com.

[2] Professor Titular da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCL/Unesp). E-mail: segatto@fclar.unesp.br.