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v. 28, n. 2, p. 364-387, junho a setembro de 2020.

Artigo recebido em 9 de outubro de 2019.

Aceito em 21 de fevereiro de 2020.



“Quem lamenta os estragos – se os frutos são prazeres?” O bloco de poder agro do governo Bolsonaro
“Who regrets the damage - if the fruits are pleasing?” The Bolsonaro government's agro power bloc

DOI:10.36920/esa-v28n2-5

 

orcid_id.png Frederico Daia Firmiano[1]

 

 

 

Resumo: A eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República capitaneou frações expressivas dos agronegócios para a composição de seu bloco de poder, sugerindo uma importante modificação no plano da hegemonia interna do setor. Buscamos argumentar que é a posição ocupada pela economia nacional na nova estrutura global do capital que confere ao setor um lugar permanente no bloco de poder na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, são as condições políticas internas da luta de classes que fazem emergir as forças que dirigem os agronegócios sob determinadas circunstâncias históricas, operando a gestão político-institucional do setor desde o Estado. Nossa investigação está fundamentada na análise de conjuntura como um tipo de pesquisa interdisciplinar que visa à identificação de tendências e forças operantes na sociedade, articulada à análise histórico-crítica. Com isto, visamos indicar quais são as forças políticas deste setor que se afirmam no governo Bolsonaro, bem como sua agenda programática.

Palavras-chave: governo Bolsonaro; agronegócios; patronato rural; nova gestão do capital no campo.

 

Abstract: (“Who regrets the damage - if the fruits are pleasing?” The Bolsonaro government's agro power bloc). The election of Jair Bolsonaro to the presidency of the Republic led significant fractions of agribusiness to compose his power bloc, suggesting an important change in the shaping of internal hegemony of the sector. We seek to argue that it is the position occupied by the national economy in the new global capital structure that gives the sector a permanent place in the power bloc in contemporary times. At the same time, it is the internal political conditions of the class struggle that gives rise to the forces that drive agribusiness under certain historical circumstances, operating the sector's political-institutional management from the state. Our analysis is based on conjuncture analysis as a type of interdisciplinary investigation that aims at identifying trends and forces operating in society, articulated with historical-critical analysis. With this, we aim to indicate which are the political forces of this sector that are affirmed in Bolsonaro´s government, as well as its programmatic agenda.

Keywords: Bolsonaro government; agribusiness; rural employers; the new management of capital in the countryside.

 

 

Introdução

Em abril de 2018, o então diretor da tradicional Sociedade Rural Brasil (SRB), Frederico D’Ávila, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, anunciou apoio à candidatura de Jair Bolsonaro ao pleito à Presidência da República, provocando uma importante ruptura política com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB): D’Ávila havia sido assessor especial de Geraldo Alckmin, no governo de São Paulo, entre os anos de 2011 e 2013. Disse ele, ao assumir a formulação do programa de agronegócios do Partido Social Liberal (PSL):

Eu acho que tanto o Geraldo quanto o Bolsonaro seriam bons para o Brasil, só que um tem mais condições neste momento. O Geraldo é um piloto de [Boeing] 747 [da [companhia área alemã] Lufthansa: não vai chacoalhar, vai jantar, atravessar o Atlântico bem tranquilo. Só que não estamos voando em céu de brigadeiro, estamos voando sobre a Síria. O Bolsonaro é um piloto de [caça] F-16. O Brasil precisa de um piloto de F-16.[2]

Com a debandada de um de seus aliados mais importantes do setor – e mesmo trazendo Luiz Felipe D’Ávila, irmão de Frederico, para a coordenação de sua campanha –, Alckmin buscou recompor o apoio dos agronegócios, arregimentando para sua chapa a senadora Ana Amélia (do Progressista – RS), que integra a bancada ruralista e dispõe de algum ingresso no patronato rural, particularmente na região Sul do país. A tentativa do candidato tucano, no entanto, revelou-se frágil. 

O Partido dos Trabalhadores, por seu turno, cujos governos compuseram um bloco de poder apoiado também pelos agronegócios – que experimentaram sua belle époque com Lula da Silva (Cf. FIRMIANO, 2016) –, mesmo acenando insistentemente para o setor, não foi correspondido. Kátia Abreu, o mais importante quadro político da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), depois de se destacar pela defesa enérgica do mandato de Dilma Rousseff, do qual participou como ministra da Agricultura, durante o processo que a levou ao impedimento político, pavimentou outro caminho. A latifundiária aderiu à pretensa “terceira via” do Partido Democrático Trabalhista (PDT), de Ciro Gomes, candidatando-se à vice-presidenta e buscando afastar-se do desgaste sofrido no setor durante o período em que esteve com o PT.[3] 

Em meio à acirrada disputa pelos agronegócios, às vésperas do primeiro turno do pleito de 2018, a bancada ruralista (ou Frente Parlamentar da Agricultura – FPA), representada por quase metade de toda a Câmara dos Deputados e por diversos partidos políticos, anunciou apoio a Jair Bolsonaro. Segundo a então deputada Tereza Cristina, do Democratas-MS, que viria a ser ministra da Agricultura – e que inclusive chegou a ser cogitada para compor a chapa de Geraldo Alckmin –, a decisão atendia ao “clamor do setor produtivo nacional, de empreendedores individuais aos pequenos agricultores e representantes dos grandes negócios”.[4] De fato, ao longo de toda a campanha, Bolsonaro defendeu uma agenda política de largo apelo aos setores dos agronegócios, como a liberação do porte de armas para os moradores do campo, a flexibilização da legislação ambiental, o fim de qualquer política de assentamento rural (para não dizer reforma agrária) e demarcação de terras, indígenas e quilombolas, a tipificação das ocupações de terra como crime de terrorismo, o afrouxamento da liberalização dos agrotóxicos, a renegociação das dívidas do setor, entre outras, que inclusive estão na contramão do discurso de determinados agrupamentos e representações patronais do mundo agropecuário brasileiro – vide as manifestações públicas de um dos maiores plantadores de soja do planeta e ex-ministro da Agricultura, Blairo Maggi.[5]

A candidatura de Jair Bolsonaro, assim, capitaneou frações expressivas dos agronegócios para a composição de seu bloco de poder. E mais que isso: parece ter alterado, inclusive, a hegemonia interna do campo que, desde os idos de 1990, vinha sendo exercida pela Associação Brasileira dos Agronegócios (Abag), ligada ao movimento do capital transnacional financeirizado, representado pelas megacorporações que atuam no campo. Buscamos sustentar, qual seja a força que ora ascende à hegemonia dos agronegócios, é a posição ocupada pela economia nacional na nova estrutura global do capital que confere ao setor um lugar permanente na conformação do bloco de poder, particularmente, no pós-ditadura civil-militar de 1964. Ao mesmo tempo, são as condições políticas internas da luta de classes que fazem emergir as forças políticas que dirigem os agronegócios sob determinadas circunstâncias históricas, operando a gestão político-institucional do setor desde o Estado. Nossa análise está fundamentada na análise de conjuntura como um tipo de investigação interdisciplinar que visa à identificação de tendências e forças operantes na sociedade, articulada à análise histórico-crítica. Com isso, visamos apontar quais são as forças políticas concretas deste setor que ora se afirmam no governo Bolsonaro, bem como sua agenda política.

 

O lugar estrutural dos agronegócios nos blocos de poder do pós-ditadura civil-militar de 1964

Desde a recessão dos 1970, a economia mundial vem experimentando transformações de larga monta, com a emergência de um novo quadro político e institucional para um modo de funcionamento do capital impulsionado pela liberalização e desregulamentação das trocas, do trabalho e das finanças (CHESNAIS, 1996; CHESNAIS et al., 2003), graças à redução de sua margem de viabilidade produtiva (MÉSZÁROS, 2009). À mundialização do capital tem correspondido, assim, um importante processo de reestruturação produtiva, que vem desestruturando o padrão fordista-taylorista dominante de produção, centrado no capital produtivo, e ruindo as bases do Estado de Bem-Estar Social.

Para Osorio (2012), a crise capitalista reorganizou a divisão internacional do trabalho encerrando, no plano das economias latino-americanas, um longo ciclo de industrialização (que pode ser registrado entre a década de 1930 e o final dos anos 1970), e imprimindo um novo padrão exportador de reprodução do capital na periferia do sistema, marcado pela especialização produtiva. Para este autor, este novo padrão exportador apoia-se em alguns eixos agrícolas, minerários, industriais ou serviços, como petróleo e derivados, soja e outras commodities agropecuárias, atividades de extração e processamento de minerais a partir dos quais as economias latino-americas contam com “vantagens comparativas” tanto na produção, quanto no comércio exterior. (OSORIO, 2012, p. 111).

De fato, analisando a trajetória da formação bruta de capital fixo (FBKF), que é o valor total dos investimentos em capital fixo, realizado por empresas públicas e privadas, medida como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), Paulani (2008) mostra uma queda considerável ao longo dos anos 1970, 1980, 1990 e primeiros anos de 2000 no Brasil. A média da década de 1970 da FBKF/PIB foi de 23,1%; em 1980, caiu para 18,55%; em 1990, passou para 15,05%, chegando ao período de 2000 a 2004 à média de 14,07%. Considerado a partir dos governos de FHC e Lula da Silva, o resultado da proporção FBKF/PIB é o seguinte: 15,72% no primeiro governo de FHC; 14,55% no segundo e 13,47% no primeiro governo Lula (PAULANI, 2008, p. 73-74). Em contrapartida, as despesas anuais do país com os serviços de fatores de produção, que incluem lucros e dividendos de investimentos diretos e juros de empréstimos intercompanhia, de investimentos em carteira e juros de empréstimos convencionais, no período de 1975 a 2004, saltaram de US$ 2 bilhões para US$ 23,7 bilhões, ou seja, houve um crescimento de 1.085%, enquanto o PIB cresceu, no mesmo período, 129% (“... ao mesmo tempo em que o envio de renda ao exterior cresceu 10,9 vezes, o PIB cresceu 1,3 vez...”) (PAULANI, 2008, p. 77).

Com estes dados, Paulani (2008) argumenta que, desde os anos 1970, o Brasil passou a constituir uma esfera de acumulação financeira, integrando-se ao circuito transnacional da valorização de capital especulativo/fictício. O próprio processo de industrialização do país teria se baseado na internacionalização da produção da empresa multinacional, sobretudo norte-americana, contraindo um novo padrão de dependência externa. Tratou-se do “...substrato necessário ao desenvolvimento ulterior da verdadeira cabine de comando do capitalismo contemporâneo: a esfera financeira, agora, finalmente mundializada...” (PAULANI, 2008, p. 89). Poderíamos afirmar, ainda, que, ao se completar, este movimento da economia nacional em direção à nova estrutura global do capital, produziu as condições de consolidação do novo padrão exportador na periferia do sistema, baseado na especialização produtiva de commodities.

Não é à toa que no século XXI o Brasil vai experimentar um processo de desindustrialização e reprimarização da pauta de exportações. Num artigo para o portal Correio da Cidadania, de 2011, Guilherme Delgado esclarece que a desindustrialização não significa apenas perda relativa de participação do produto industrial no PIB, mas a perda quanti e qualitativa do setor produtor de progresso técnico e inovação industrial, que resulta do desmonte dos núcleos de inovação da indústria, a exemplo dos setores ligados à química e petroquímica. Paulatinamente, ocorre um deslocamento da acumulação de capital voltada para o exterior por meio do que o economista chama de “controle das vantagens comparativas naturais”, por exemplo, via produção de matérias-primas dos agronegócios, da mineração, da exploração de recursos ecológicos e naturais, que não promovem “efeitos de arrasto da inovação técnica industrial para a expansão”. Assim, a desindustrialização, no sentido expresso, está intrinsecamente ligada à reprimarização da pauta de exportações (DELGADO, 2011) ou à emergência do novo padrão exportador de reprodução do capital baseado na especialização produtiva de commodities.

Assim, por força das novas condições de acumulação/valorização encetadas pela mundialização do capital, e em razão do lugar ocupado pelo Brasil na estrutura global do capital, o setor primário, e particularmente os agronegócios, passou a dispor de um lugar permanente no bloco de poder de todos os governos que emergem desde a última redemocratização. Ao analisar a formação do bloco de poder que sustentou o governo Lula da Silva, Francisco de Oliveira identificou duas matrizes ligadas ao processo de globalização. A primeira, a financeirização da economia, que reitera o financiamento externo da acumulação de capital; e, a segunda, os agronegócios, a “fronteira mais rápida de expansão do capital” (OLIVEIRA, 2007, p. 276-277). A despeito de seu aparente caráter conjuntural, a análise do sociólogo brasileiro revela, na verdade, uma importante determinação estrutural do modo como o Brasil se inseriu na nova divisão internacional do trabalho. A conversão do Brasil em plataforma de valorização financeira e a emergência de um padrão de especialização produtiva baseado na produção e exportação e commodities alçaram as forças políticas ligadas ao setor primário – e ao capital financeiro transnacional – à condição de um permanente pilar de sustentação dos blocos de poder que emergem desde a grand tournant dos anos 1970 e o ingresso do país na mundialização do capital. Não foi à toa que, no último pleito eleitoral de 2018/2019, como vimos, não houve candidatura que não disputasse o setor, ou suas distintas frações políticas – exceto, é claro, aquelas cujo programa visava alguma forma de ruptura com a ordem do capital.

No plano da organização interna das distintas frações da chamada “burguesia agrária”, no pós-ditadura de 1964, vieram à cena diferentes entidades ou organizações patronais. Segundo levantamento de Bruno (2009), na década passada – e ainda hoje –, essas frações estão representadas, basicamente, pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), pelo Movimento Nacional dos Produtores (MNP), pela Sociedade Rural Brasileira (SRB), pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), pela Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) e pela União Democrática Ruralista (UDR). A despeito de suas importantes diferenças ideopolíticas, sua unidade parece se dar no Estado – no Congresso Nacional, articulada pela chamada bancada ruralista (BRUNO, 2009). Isto, porém, não alivia as tensões e disputas permanentes pela hegemonia do conjunto do setor, colocando, ora uma, ora outra, à frente da direção intelectual e moral dos agronegócios. É nesse sentido que, a depender das condições concretas da expansão do capital no campo, e da forma assumida pelo bloco de poder em cada conjuntura, um ou outro sujeito coletivo dispõe de mais capacidade de pautar a agenda do Estado.

Se nos melhores anos do neodesenvolvimentismo, Abag e CNA se apresentaram como as mais proeminentes entidades representativas dos agronegócios, com forte presença no bloco de poder vigente, não raro se alternando à frente do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) (Cf. FIRMIANO, 2016), com o pleito de 2018, este quadro parece ter se modificado, fazendo emergir algumas das forças mais conservadoras da sociedade brasileira que, em certa medida, pareciam estar à margem dos processos dominantes de condução do setor. 

 

A estrutura institucional atual de gestão dos agronegócios no Estado, as forças políticas que lhe animam e a agenda política em curso

Os anos 2000 representaram uma espécie de belle époque dos agronegócios no Brasil vis-à-vis a emergência de um importante mercado institucional para a agricultura familiar, bastante incentivada pelos governos de Lula da Silva. Conforme Firmiano (2016), particularmente entre os anos de 2005 e 2012, um conjunto de políticas públicas conferiu excessiva musculatura à agricultura familiar, incluindo os territórios da reforma agrária, articulado a uma fraca política de assentamentos rurais, conectando o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), via uma complexa engenharia de conciliação de interesses divergentes. A partir da eleição de Dilma Rousseff e, sobretudo, quando a economia brasileira passa a sentir os impulsos da crise econômica – que se arrasta aos dias atuais –, ainda no primeiro trimestre de 2014, esta importante institucionalidade produzida para a gestão estatal do campo começa a ser desmontada (FIRMIANO; OLIVEIRA, 2018).    

Sob o governo de Michel Temer, a estrutura político-institucional de gestão estatal do capital no campo, conformada basicamente pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), foi desmantelada. Mais que isso, o pacto que emerge em meados da década de 1990, quando do acirramento do conflito no campo – cujo clímax é o assassinato de 21 sem terra, em Eldorado dos Carajás, no Pará (1996), e  que deu origem ao MDA – foi desfeito. A Lei no 13.341, de 2016, decorrente da Medida Provisória no 726/2016, reduziu de 39 para 24 o número dos ministérios (chegando mais tarde a 29, com a revogação de parte da medida), extinguindo o MDA, que havia sido criado em 25 de novembro de 1999, com as competências de elaborar e executar o Plano Nacional de Reforma Agrária, promover o reordenamento agrário e a regularização fundiária, particularmente, da Amazônia, promovendo o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar e a demarcação de terras de povos remanescentes de quilombos.

A extinção do MDA significou a afirmação da plenitude da hegemonia da lógica dos agronegócios no campo. Suas atribuições e competências foram absorvidas, em parte, pela Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário da Casa Civil, ligada diretamente à Presidência da República (Sead) – criada em 27 de maio de 2016 pelo Decreto no 8.780, cuja estrutura regimental foi definida pelo Decreto no 8786, de 14 de junho de 2016 –, e em parte pelo Ministério do Desenvolvimento Social, com redução de cerca de R$ 430 milhões, conforme a Lei Orçamentária para o ano de 2017, para as políticas de atenção à agricultura familiar, à reforma agrária e aos povos e comunidades tradicionais.[6] De acordo com Firmiano e Oliveira (2018), além da extinção do MDA, Temer promoveu cortes no orçamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da ordem de R$ 160 milhões até junho de 2017 e cortes no orçamento para obtenção de terras, que deixaram a casa dos R$ 800 milhões, em 2015, para R$ 34,2 milhões, em 2018. Em 2017, ressaltam os autores, não houve nenhuma família assentada no Brasil. Simultaneamente, as renúncias fiscais para os agronegócios, entre subsídios e isenção de tributos, foram de R$ 26,2 bilhões, em 2017 – quase o orçamento do Programa Bolsa Família daquele ano, que foi de R$ 29,3 bilhões.[7]

Ao assumir, Bolsonaro reduziu ainda mais o número de ministérios, chegando a 16 – apesar de 22 pastas com status ministerial –, fortalecendo o Mapa, que passou a dispor da atribuição de identificar, delimitar e demarcar terras indígenas e quilombolas – antes atribuições da Fundação Nacional do Índio (Funai), ligada ao Ministério da Justiça (no caso da demarcação de terras indígenas) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), então vinculado à Casa Civil (no caso do reconhecimento das terras de remanescentes de quilombolas e da Política Nacional de Reforma Agrária). Além disso, o Mapa passou a gerenciar o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), responsável pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR) – até então vinculado ao Ministério do Meio Ambiente –, que visa monitorar os imóveis rurais no país, realizando levantamento de informações sobre a preservação ambiental; e criou a Secretaria de Assuntos Fundiários, incorporando as atribuições de planejamento e execução da Política Nacional de Reforma Agrária – assim como as atribuições das secretarias da Pesca e da Agricultura Familiar. A gestão estatal dos agronegócios, da agricultura familiar, dos territórios indígenas e quilombolas e a governança ambiental passou, pois, à trinca do agronegócio, representada pelas forças mais conservantistas do mundo agrário brasileiro: Tereza Cristina, Ricardo Salles e Nabhan Garcia. 

À frente do Mapa – dado seu importante papel na articulação do apoio da bancada ruralista a Jair Bolsonaro – está Tereza Cristina, do Democratas, cuja agenda principal tem sido dois temas: (a) o afrouxamento da liberação dos agrotóxicos (que lhe rendeu, inclusive, a alcunha de “Musa do Veneno”) e (b) o licenciamento ambiental. No que diz respeito ao primeiro, a ministra encampou o Projeto de Lei no 6299, de 2002 – conhecido como “PL do Veneno”   –, do então senador Blairo Maggi, que já se encontra pronto para ser votado, depois de passar pelas comissões especiais da Câmara dos Deputados (o projeto de lei altera os arts. 3o e 90 da Lei no 7.802, de 11 de julho de 1989, que trata da pesquisa, experimentação, produção, embalagem e rotulagem, transporte, armazenamento, comercialização, propaganda comercial, utilização, importação, exportação, destino final dos resíduos e embalagens, registro, classificação, controle, inspeção e fiscalização de agrotóxicos e seus componentes). Até o final de julho de 2019, o Mapa havia aprovado 290 novos agrotóxicos, registrando o maior ritmo de liberações para o período (de janeiro a julho) de toda a história. Somente no dia 22 daquele mês, foram 51 tipos, dos quais, 27 são considerados perigosos e 18 altamente perigosos, sendo que aproximadamente 32% das substâncias liberadas são proibidas na União Europeia.[8]

Alguns importantes estudos têm estabelecido conexão direta entre as culturas geneticamente modificadas (GMs) e o consumo de agrotóxicos. De acordo com a pesquisa de Almeida et al. (2017, p. 3334), “a posição do Brasil como um dos maiores produtores mundiais de commodities agrícolas está associada ao aumento no consumo de insumos...” que, no caso dos agrotóxicos, mais que dobrou entre os anos 2000 e 2012 por unidade de área. A partir do indicador “uso de agrotóxicos por cultura”, os cientistas mostraram que, no período estudado (2000 a 2012), apenas três culturas, soja, milho e algodão (com maiores índices de sementes GMs, como vimos), concentraram 65% do total de agrotóxicos utilizados, enquanto a soja sozinha contribuiu para 71% do volume total. Ademais, “...a soja apresenta o maior aumento no uso de agrotóxicos por área cultivada e o menor ganho em produtividade...”: o aumento de 1 pp na produtividade de soja demandou o aumento de 13 pp no uso de agrotóxicos. Para as demais culturais, milho e algodão, a proporção foi de 1:1, o que indica que as modificações genéticas contribuem para o aumento da utilização de agronegócios, sem que isso signifique ganhos em produtividade. Uma das explicações para este resultado é que “...a maioria das culturas GM não foi desenvolvida para aumentar a produtividade ou a adaptação edafoclimática, mas para serem resistentes aos herbicidas” (ALMEIDA et al., 2017, p. 3337). Assim, concluem os autores:

Os resultados obtidos no presente estudo estão em concordância com os de pesquisas similares realizadas nos Estados Unidos, Argentina e outros países. Os achados de todos esses estudos sugerem fortemente que a adoção de culturas GM aumentou o uso de agrotóxicos, especialmente herbicidas aplicados na soja, como demonstrado na presente pesquisa sobre o Brasil (...) Este estudo sugere que culturas GM contribuíram para o aumento do uso de agrotóxicos no Brasil e, consequentemente, da exposição humana e ambiental a essas substâncias químicas potencialmente perigosas. Portanto, o aumento no uso de agrotóxicos também deve ser levado em conta durante o processo de autorização de culturas GM. Como demonstrado, o uso de agrotóxicos na produção de soja aumentou no período analisado, especialmente após a introdução de sementes GM em 2003. O uso de agrotóxicos por área também aumentou significativamente, indicando uma possível dependência química dessas culturas e descartando a hipótese que culturas GM reduziriam o consumo. Outro aspecto relevante para a soja é que esse aumento não contribuiu positivamente para um aumento na produtividade média. É digno de nota ainda que os dados sobre o uso de agrotóxicos podem servir como indicadores para dar suporte a ações de vigilância como monitoramento de seus resíduos em solo, água e alimentos e aprimorar medidas de diagnóstico e tratamento das intoxicações.

Em 2017, o entusiasta das culturas geneticamente modificadas, o International Service for the Acquisition of Agri-Biotech Applications (Isaaa), divulgou relatório intitulado Global Status of Commercialized Biotech/GM Crops: 2016, estimando que as culturas do milho e do algodão no Brasil já alcançam, respectivamente, 88,4% e 78,3% de área de total de transgênicos. O documento mostra ainda que, de 1996 a 2016, a área global do planeta ocupada por cultivos transgênicos, que hoje está presente em 26 países, saltou de 1,7 milhão de hectares para 185,1 milhões de hectares. Apenas do ano de 2015 para o ano de 2016 houve um incremento de 3% no total de área plantada com esta tecnologia, ou a incorporação de 5,4 milhões de hectares, sendo que o Brasil foi o país que mais contribuiu para este avanço, registrando incremento de 11% da área cultivada por transgênico do ano de 2015 para de 2016. Da área total global deste tipo de cultivos, 27% estão no Brasil. Em 2016, o país cultivou 49,1% milhões de hectares com sementes transgênicas (ISAAA, 2016). De acordo com o Ibama, em 2017, a agricultura brasileira utilizou 539,9 mil toneladas de pesticidas e, desde julho de 2019, está em curso a discussão de um novo marco regulatório para avaliação e classificação toxicológica de agrotóxicos. 

O afrouxamento do licenciamento ambiental, por seu turno, remonta ao Projeto de Lei no 3.729, de 2004. Foi, no entanto, a partir de 2016 que passou a ganhar força a proposta de uma espécie de Lei Geral que regule a matéria, com o compromisso assumido por Sarney Filho (do Partido Verde, do Maranhão), à época ministro do Meio Ambiente, de conduzir a negociação com a bancada ruralista. O governo de Temer chegou, inclusive, a propor uma legislação específica que, porém, foi avassalada pela bancada ruralista, cuja pressão fez com que o MMA cedesse quanto à obrigatoriedade da licença para atividades como a agropecuária extensiva, mesmo sob as críticas do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), progressivamente se estendendo para um conjunto de atividades dos agronegócios.[9] Sob o ministério de Tereza Cristina essa agenda ganhou novo ânimo, alinhavando o Ministério do Meio Ambiente, sempre disputado pelos agronegócios, aos interesses ruralistas representados pelo Mapa.

Na nova configuração do Mapa, tanto o Ibama quanto o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) passaram a responder diretamente à Tereza Cristina, possibilitando um maior controle pelos ruralistas sobre suas atividades. Mas, além disso, entrou em cena uma figura cuja história é pouco afeita à agenda da preservação ambiental: Ricardo Salles, filiado ao Partido Novo, que entre 2013 e 2014 foi secretário particular do então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e entre 2016 e 2017, secretário do Meio Ambiente também do governo de São Paulo. Com Bolsonaro, Salles assumiu o Ministério do Meio Ambiente.[10]

À frente do MMA, Salles já esvaziou o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que passou de 96 para 22 integrantes, indicados pelo governo e alinhados às suas novas diretrizes, entre as quais, a revisão das 334 unidades de conservação existentes no Brasil e administradas pelo ICMBio. Segundo o novo ministro, em declaração ao jornal O Estado de São Paulo, parte dessas unidades “foi criada sem nenhum tipo de critério técnico”, e o Ministério fará “um trabalho de revisão preciso na lei que nunca foi feito”. De acordo com a referida matéria, as centenas de áreas protegidas equivalem a 9,1% do território nacional e a 24,4% da faixa marinha brasileira, estando distribuídas em 12 categorias distintas, entre as quais, cinco de proteção integral, com regras de acesso e uso altamente restritivas. O MMA não deve apenas rever as áreas sob proteção, mas também as categorias sob as quais foram classificadas – o que supõe passar pelo Congresso, cuja bancada ruralista dispõe de ampla capacidade de intervenção. Salles também propõe a revisão de decretos que criaram unidades de conservação, a exemplo do Parque Nacional dos Campos Gerais, no Paraná, e do Parque Nacional Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul, entre outros.[11]

O Ministério do Meio Ambiente, desde sua criação, tem sido objeto de grande disputa de setores dos agronegócios. Sua instituição remonta, ainda, ao Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, criado pelo Decreto no 91.145, de 15 de março de 1985, sob o governo Sarney – posterior à criação do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), instituídos pela Lei no 6.938/1981 –, até então uma Secretaria Especial, criada durante a ditadura civil-militar e subordinada ao então Ministério do Interior (Decreto no 73.030, de 30 de outubro de 1973). Nos anos 1990, a pasta regrediu ao seu estatuto anterior e durante o governo de Collor de Mello passou a ser uma Secretaria ligada à Presidência da República. Em 1993, foi mais uma vez alçada ao status de Ministério do Meio Ambiente e, com Fernando Henrique Cardoso, em 1995, assumiu a nomenclatura e as funções do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, passando a se chamar Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, até transformar-se em Ministério do Meio Ambiente, em 1999.

Neste período, mesmo não figurando como prioridade na agenda pública, houve esforços, sobretudo desde a sociedade civil, em direção a proposição e consolidação de uma política nacional ambiental, largamente impulsionada pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (conhecida como Eco-92), realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992. Com isso, alguns importantes instrumentos legais foram criados, como a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispunha das sanções penais administrativas derivadas de atividades e condutas lesivas ao meio ambiente, mais tarde alterada pela Lei no 12.305, de 2 de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional dos Resíduos Sólidos; o Decreto no 4.339, de 22 de agosto de 2002, que instituiu a Política Nacional da Biodiversidade; o Decreto de 15 de setembro de 2010, do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma do Cerrado; a Lei no 12.187, de 29 de dezembro de 2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), entre outros. Tudo isso, em franca concorrência com a ascensão progressiva dos agronegócios no Brasil (Cf. FIRMIANO, 2016).

Frequentemente, o MMA foi objeto de disputa pelo Mapa. Mas conforme afirmou a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em entrevista ao portal da BBC News Brasil, “queimadas sempre ocorreram, mas nunca incentivadas por discurso de um presidente [da República]”, referindo-se aos incêndios provocados por latifundiários na Amazônia, em agosto de 2019, em atenção ao suposto incentivo dado pelo presidente da República, no momento em que o governo brasileiro divulgou dados obscuros sobre o desmatamento da região, desmentidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).[12] Quer dizer, mesmo sob um padrão de acumulação de capital que tende ao esgotamento das condições elementares da reprodução social, desde a instituição do MMA, o discurso governamental oficial, incluindo o próprio Mapa e as principais entidades representativas dos agronegócios, buscou mediações com a governança ambiental brasileira. O próprio ex-ministro do Mapa durante o governo Temer, Blairo Maggi, expoente do agronegócio da soja – e autor do chamado “PL do Veneno” –, afirmou à imprensa:

nos últimos anos, os setores exportadores do país tiveram grande trabalho de refazer essa imagem do Brasil e mostrar que temos controle de desmatamento e de todas as questões ambientais. Tínhamos conseguido superar bem esse assunto. Mas agora teremos que refazer tudo isso...[13]

De fato, as novas feições assumidas pelo Ministério do Meio Ambiente – e pelo Mapa – rasgam até mesmo o véu de modernidade que recobria a expansão destrutiva dos agronegócios no Brasil, tornando letra morta a recente e precária governança ambiental praticada desde a instituição do Sisnama, no início dos anos 1980.

Os resultados do vilipendiamento da política nacional ambiental já são evidentes. No dia 5 de agosto, o sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que realiza levantamento de alertas e evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia, publicou os dados da série anual de 2019, mostrando que de agosto de 2018 a julho de 2019 foram desmatados 6.833 quilômetros quadrados – contra 4.572 quilômetros quadrados do período de agosto de 2017 a julho de 2018. O mês de julho de 2019 registrou o pior da série histórica do sistema de monitoramento, com 2.254 quilômetros quadrados de alertas, ou um aumento de 278% em relação a julho de 2018.[14] Vale registrar que a divulgação dos dados conduziu a uma reação do presidente da República que, questionando sua validade, chegou até a acusar o diretor do Inpe, o cientista com experiência no Massachusetts Institute of Technology (MIT), Ricardo Galvão, de “estar a serviço de alguma ONG” e o demitiu do cargo.[15] Alguns dias mais tarde, o ministro do Meio Ambiente tentou desqualificar os dados do Inpe, durante uma coletiva de imprensa no Palácio do Planalto, defendendo que havia erros em 50% das detecções do Deter de junho, sem sequer informar ao próprio Inpe sobre a suposta apuração dos dados e os procedimentos metodológicos adotados que alcançaram tais resultados.[16] De qualquer modo, a questão ganhou projeção internacional em toda a imprensa, implicando, inclusive, o discutível Tratado de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia, assinado em 28 de junho de 2019, que aguarda a ratificação dos europeus.[17]

Mas o fato é que, no centro do problema da degradação socioambiental está a questão fundiária. Alguns estudos apontam como principais causas do desmatamento na Amazônia a atividade de pecuária, a agricultura de corte e queima (associada à exploração de madeira) e a agricultura de larga escala. Ademais, as áreas desmatadas tendem a corresponder às áreas de expansão da fronteira agropecuária (RIVERO et al., 2009; ARIMA; BARRETO; BRITO, 2005; FERREIRA; VENTICINQUE; ALMEIDA, 2005).

Segundo Karstensen, Peters e Andrew (2013), nos anos 2000 a produção de soja e a pecuária foram responsáveis por cerca de 30% do desmatamento no Brasil, respondendo, ainda, por 2,7 bilhões de toneladas de emissões de carbono. Sua análise sugere que o aumento da pressão global sobre a agricultura brasileira para intensificar a produção, ao lado da busca pelo crescimento econômico contínuo e o desmonte do Código Florestal Brasileiro (a partir do projeto de Lei no 1.876, de 1999, cujo debate no Congresso Nacional ganhou fôlego a partir de 2009, redundando na Lei de Proteção da Vegetação Nativa no 12.651, de 25 de maio de 2012), estariam criando um quadro de aumento do ritmo atual de desmatamento (KARSTENSEN; PETERS; ANDREW, 2013, p. 5-6).

Ademais, de acordo com os cientistas da Universidade de Oslo, o aumento do nível atual de produção para exportação supõe, fundamentalmente, dois expedientes: ou a intensificação da produção agrícola ou a utilização de mais terras – ou, então, a combinação de ambos. Para eles, os ganhos em produtividade, no entanto, embora registrando aumento exponencial desde a revolução verde, devem cair até 2021. Isto porque, a produção de soja, por exemplo, estaria muito próxima de seu potencial máximo de rendimento, indicando baixo potencial de seu aumento adicional sem a utilização de mais terras. Desse modo, ela exigiria a incorporação crescente de mais terras, induzindo o país a desmatar mais floresta amazônica (KARSTENSEN; PETERS; ANDREW, 2013, p. 5-6).

O relatório mais recente produzido pela Red Amazónica de Información Socioambiental Georreferenciada (Raisg) é de 2015 e mostra que, até o ano 2000, a Amazônia havia perdido 9,7% de sua cobertura florestal original, sendo que a maior perda havia ocorrido no Brasil. Desde então, a cobertura florestal seguiu diminuindo, registrando uma perda total, em 2013, de 13,3% da área de cobertura. “De 2000 a 2013 se verificou um incremento na velocidade da perda, se se considera que 27,1% de toda a perda acumulada ocorreu em apenas 13 anos” (RAISG, 2015, p. 6. Tradução do autor). Enquanto Bolívia e Venezuela se destacaram como os países que mais sofreram perdas proporcionais às áreas que dispõem da Amazônia em seus territórios, o Brasil foi o país com a maior proporção de floresta amazônica perdida até 2013 (17,6%).

Isto traz como consequência que o Brasil seja o país com maior incidência, em termos absolutos, sobre a perda desta formação vegetal (...), tanto historicamente como em tempos recentes (RAISG, 2015, p. 6. Tradução do autor).

A estimativa da Raisg é que, entre 1970 e 2010, o Brasil perdeu 632.433 quilômetros quadrados de cobertura florestal da Amazônia, sendo que a perda entre os anos de 2000 e de 2013 alcançou 173.933 quilômetros quadros, correspondentes a 4,8% da floresta original. O período de maior deflorestação foi entre 2000 e 2005, sofrendo uma desaceleração a partir de 2006 até 2013 (RAISG, 2015, p. 16).

Desde 2009, a Raisg publica o Mapa das Áreas Naturais Protegidas e Territórios Indígenas da Amazônia. Sua análise acerca das informações produzidas em 2019 dão conta de que pelo menos 68% de todas as áreas naturais protegidas e territórios indígenas da região sofrem pressões ou ameaças, ora de megaprojetos de infraestrutura de transportes, energia, a exemplo da construção de hidrelétricas, ora da indústria extrativa da mineração e do petróleo, além das queimadas e desmatamentos. No caso da atividade de mineração e petróleo, o instituto de pesquisas estima que 87,2 milhões de hectares de terras indígenas – do total de cerca de 390 hectares legalmente protegidos – estão em situação de vulnerabilidade. Quanto à presença de hidrelétricas, de um total de 272 grandes usinas em operação, construção ou planejadas na Amazônia, 78 estão em territórios indígenas – além de outras 84 em áreas de conservação classificadas em categorias distintas (RAISG, 2019).[18]

A criação da Secretaria de Assuntos Fundiários, pelo Decreto no 9.667, de 2 de janeiro de 2019, subordinada ao Mapa, indica, pois, uma tendência ao agravamento das situações expostas anteriormente. Ainda mais pelo fato de estar sob o comando do ruralista Luiz Antônio Nabhan Garcia. O pecuarista é um dos principais expoentes da União Democrática Ruralista (UDR), criada em 1985, no contexto da redemocratização e do debate acerca da reforma agrária (BRUNO, 1996, p. 72). De acordo com Regina Bruno, a UDR fundou uma nova prática que, baseada na violência, defendia a renovação da representação patronal, “...fazendo-se conhecer publicamente como ‘guardiã da propriedade e da produção’” (BRUNO, 1996, p. 74). Historicamente, sua principal marca foi “o uso da violência como opção para solucionar os conflitos de terra e ‘proteger’ a grande propriedade fundiária...”. Deste modo, a UDR “...atualizou o uso da pistola e incentivou a formação de milícias privadas” (BRUNO, 1996, p. 75). Haveria ainda, para esta autora, dois traços distintivos da violência da UDR, a despeito desta mediação não ser novidade no conflito social no campo: a primeira, é a imponderabilidade, ou a impossibilidade de reconhecer “...críticas, conjunturas e mediações...” – sua lógica se assenta na defesa incondicional da propriedade privada; a segunda, é a “...obsessão em conhecer, explicitar e nomear os seu adversários, para desqualificá-los” (BRUNO, 1996, p. 76).[19]

De acordo com o Decreto no 9.667, de 2 de janeiro de 2019, compete à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários:

I – formular, coordenar e supervisionar as ações e diretrizes sobre:

a) políticas de colonização e reforma agrária;

b) regularização fundiária rural;

c) regularização fundiária de área decorrente de reforma agrária;

d) regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal;

e) identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos;

f) identificação, delimitação, demarcação e registro das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; e

g) licenciamento ambiental nas terras quilombolas e indígenas, em conjunto com órgãos competentes; e

II – supervisionar diretamente o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra. (BRASIL, 2019, não paginado).

Não se trata apenas de um deslocamento de funções de um ministério a outro, mas da transferência do centro de formulação, direção e execução da política fundiária, antes inscrito num campo de disputa – ainda que hegemonizado pelas forças políticas dos agronegócios –para um lugar ausente de qualquer possibilidade de negociação, sob o comando direto dos agronegócios e com uma importante particularidade: o centro decisório da política agrária foi dado diretamente às forças mais conservantistas do mundo rural, aquelas que sobreviveram ao fim da ditadura civil-militar (1964-1985) e à redemocratização, mantendo-se ora na superfície, ora no subterrâneo da história e que, nesta quadra da história, ascende diretamente ao comando do Estado. Neste, não há campo semântico compartilhado entre as classes em luta capaz de tornar a agenda pública objeto de contenda – mesmo que nas sendas da margem de viabilidade do capital. Prova disso, o Ouvidor Agrária Nacional, no dia 21 de fevereiro de 2019, chegou a enviar às Superintendências estaduais do Incra uma circular-memorando com a orientação de não atender “invasores de terra” e entidades ou representantes sem personalidade jurídica[20] – o que foi revogado quase um mês depois, diante da ampla repercussão.       

Aliás, o Incra passou a tutela da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, mesmo tendo um general e um coronel, respectivamente, na Presidência e na Ouvidoria Agrária: general João Carlos Jesus Corrêa e coronel João Miguel Souza Aguiar Maia de Sousa. Esta é uma peculiaridade importante da configuração da nova gestão do campo: são os militares que estão subordinados a um civil, como um destacado membro egresso da inteligência do Exército – o Ouvidor Agrário Nacional – que passa a responder ao presidente licenciado da UDR, ou seja, os melhores quadros das forças armadas agora estão, hierarquicamente, subordinados ao representante da organização patronal de caráter suspeitosamente paramilitar.

Deste modo, a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários e o Incra passam a avançar sobre os territórios da reforma agrária, indígenas e quilombolas em, basicamente, duas direções: uma é a intensificação da criminalização da luta social vis-à-vis à vocalização de grupos de defesa armada da propriedade privada; outra é o desmonte da precária política de assentamento rural, reconhecimento de terras indígenas e quilombolas e regularização fundiária de posseiros, articulada à destituição legal dos territórios conquistados.

Na primeira direção, pelo menos desde sua campanha à Presidência, Bolsonaro promete tipificar as ocupações de terra como prática de terrorismo. Aliás, não foram incomuns os ataques diretos, particularmente, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) durante o pleito de 2018. Apesar disso, a promessa de campanha não é algo simples. De acordo com Mafort (2018), desde 2016 existe um Projeto de Lei (no 5.065/2016), que visa alterar o artigo 2o da Lei no 13.260/2016, a chamada “Lei Antiterrorismo”, sancionada por Dilma Rousseff em contrapartida da realização dos Jogos Olímpicos do Rio Janeiro, ocorridas naquela ano. O referido artigo exclui os movimentos sociais da tipificação como “terrorista”, mas o PL no 5.065 visa alterá-lo, definindo como tal a:

[...] prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, ou por motivação ideológica, política e social (...) [que exponha] a perigo a pessoa, patrimônio, a paz pública, a incolumidade pública e a liberdade individual, ou para coagir autoridades, concessionárias e permissionários do poder público, a fazer ou deixar de fazer algo. (MAFORT, 2018, p. 41)

Ademais, segue Mafort, em fevereiro de 2018, o deputado Jerônimo Georgen, do Partido Progressista do Rio Grande Sul, também apresentou novo projeto de lei nesta direção, desta vez mais incisivo. Em discurso na tribuna da Câmara dos Deputados, o deputado afirmou que não se pode excluir ações do MST ou do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto):

[...] à hipótese de abuso do direito de articulação de movimentos sociais, destinado a dissimular a natureza dos atos de terrorismo, como os que envolvem a ocupação de imóveis urbanos ou rurais, com finalidade de provocar terror social ou generalizado. (MAFORT, 2018, p. 41)

Apesar disso, não seria este o principal mecanismo de criminalização da luta, até porque ainda está em discussão político-jurídica. Diz ela:

Há um arcabouço legal aplicado historicamente contra os movimentos sociais do campo, que resulta em constantes processos de prisão, perseguição e resistência à prisão. Mas chamo atenção para a utilização contra os movimentos sociais de uma legislação voltada ao combate à corrupção e ao crime organizado de tráfico de drogas e armas: a Lei da Organização Criminosa (Lei 12.850/13) – proposta pela senadora Serys Slhessarenko – PRB/MT. (BRASIL, 2018). Nela, as características de uma organização criminosa são: composição de no mínimo quatro pessoas; existência de hierarquia (estruturalmente ordenada); divisão de tarefas; ser formal ou informal, tendo como objetivo central obter vantagem. A Lei prevê pena de reclusão de três a oito anos (agravada para quem exercer comando, mesmo que não pratique diretamente os atos). Apesar da sexta turma do STJ, por unanimidade, ter seguido o voto do relator, ministro Sebastião Reis, que defendeu a legitimidade dos movimentos populares e desmontou a tese de que o MST é uma organização criminosa, face ao julgamento de militantes do movimento sem terra de Goiás, a Lei 12.850/13 continua sendo aplicada contra os movimentos sociais. É o caso do processo judicial movido em Duartina – SP, por João Baptista Lima Filho, o coronel Lima, amigo de Michel Temer (UOL, 2018). A ação judicial foi motivada pela ocupação do MST na fazenda Esmeralda, município de Duartina, em maio de 2016. Com a ocupação, o MST denunciava que a fazenda pertencia a Michel Temer (não declarada) e que o coronel Lima era um “proprietário laranja”; além disso, denunciava o poder dos ruralistas por traz do golpe e as inúmeras violações praticadas na propriedade (MST, 2018). (MAFORT, 2018, p. 41-42)      

Vale destacar que enquanto a Lei de “Organizações Criminosas” recai sobre as lutas sociais no campo, houve uma liberalidade, ou “flexibilidade” do porte de armas, regido pelo Estatuto do Desarmamento de 2003, em atenção a uma demanda ruralista – entre outros setores. O Estatuto do Desarmamento (Lei no 10.826/2003, de 22 de dezembro de 2003) foi regulamentado pelo Decreto no 5.123, de 1o de julho de 2004, que dispunha sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição. O Estatuto e seu regulamento visavam conter a circulação de arma de fogo no país, em face dos altos índices de violência, principalmente, urbana, estabelecendo penas rigorosas para o porte ilegal e o contrabando. Em 7 de maio de 2019, o governo Bolsonaro sancionou o Decreto no 9.785 que, depois de algumas discussões políticas, deu lugar ao Decreto no 9.847, de 25 de junho de 2019, conferindo mais permissividade para o porte de ama de fogo, conforme o artigo 21 do referido documento, e nos termos disposto no parágrafo 5o do art. 6o da Lei no 10.826, de 2003. Meses depois, no dia 17 de setembro, o presidente sancionou a Lei no 3.715/2019, que amplia a posse de arma da residência para toda a extensão da propriedade rural, conforme proposta do senador Marcos Rogério, do Democratas por Rondônia (PL no 3.715/19). Vale lembrar ainda que, desde 2012 tramita no Congresso Nacional o PL no 3.722, proposto pelo deputado Rogério Peninha Mendonça, do MDB de Santa Catarina, que visa revogar integralmente o Estatuto do Desarmamento. Assim, se por um lado, passa a haver um endurecimento legal maior contra os movimentos de luta pela terra e reforma agrária, por outro, ampliam-se os expedientes violentos de defesa da propriedade privada.   

Articulado ao processo de criminalização da luta social e vocalização dos grupos de defesa armada da propriedade fundiária está o desmonte da precária política de assentamento rural, regularização fundiária e reconhecimento de terras de povos tradicionais. Ainda em janeiro de 2019, o Incra determinou a paralisação de todos os processos de aquisição, desapropriação ou quaisquer outras formas de obtenção de terras para a reforma agrária. Segundo informado, à época, ao jornal Folha de S.Paulo pelo próprio Instituto, haviam sido interrompidos 250 processos em andamento. De acordo com o jornal, o diretor de ordenamento fundiário, Cletho Muniz de Brito, alegou em um de seus memorandos às Superintendências do Incra que o motivo para a suspensão dos processos era a nova subordinação do Instituto ao Ministério da Agricultura e suas novas diretrizes, particularmente, acerca da regularização fundiária na Amazônia Legal.[21]

A subordinação do Incra ao Mapa e suas novas diretrizes, por outro lado, não impediram o Instituto de agilizar o processo de titulação dos imóveis rurais em áreas de assentamento da reforma agrária. A bem da verdade, esta medida remonta ao governo FCH, passando por Lula e Dilma (Cf. FIRMIANO, 2016), mas ganhará força com o governo Temer (Cf. FIRMIANO; OLIVEIRA, 2018). No apagar das luzes deste último, a matéria recebe Instrução Normativa (no 97, de 17 de dezembro de 2018), estabelecendo os critérios para a emissão de instrumentos de titulação em terras de propriedade ou posse do Incra ou da União referentes à projetos de assentamento, sob a gestão do Incra, bem como as condições e critérios jurídico-legais e administrativos para tanto. Ademais, diz o documento:

ao proceder a supervisão ocupacional dos lotes de reforma agrária, o Incra verificará as condições de permanência do beneficiário da Reforma Agrária na parcela ou no lote, bem como verificará se o ocupante não autorizado previamente pelo Incra preenche requisitos para ter a sua ocupação regularizada perante a autarquia. (BRASIL/Incra, 2018, não paginado)

Como argumentou Mafort (2018, p. 153), a titulação das áreas de assentamento responde diretamente aos interesses dos ruralistas sobre os cerca de 87 milhões de hectares de terra destinados à reforma agrária ao longo da história. O governo Temer sancionou a Lei no 13.465, de 2017, ou a “Lei de Regularização Fundiária” que, a despeito de suas enormes contradições, vem apoiar o processo de privatização das áreas de reforma agrária, desobrigando o Estado de apoiar a agricultura familiar via políticas públicas. Segundo o portal de notícias Poder 306, o Incra lhes informou que no primeiro semestre de 2019 foram assentadas 1.374 famílias e seu presidente teria afirmado que, “com orçamento praticamente zerado, não é possível abrir novos assentamentos. Seria total irresponsabilidade”, completando que o foco do governo será o processo de titulação.[22] 

Outra medida importante diz respeito aos embargos realizados pelo Incra em propriedades rurais onde há projetos de ampliação de reservas indígenas, previstas pela Constituição Federal. Em 2013, o então MDA e o Incra desenvolveram o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), para a recepção, organização, validação, regularização e disponibilização de informações georreferenciadas de limites de imóveis rurais. A inclusão de terras indígenas no sistema criava a possibilidade de embargo de eventuais propriedades rurais que estivessem no interior desta terra, impossibilitando, por exemplo, acesso a créditos e financiamentos estatais e, mais importante, explicitando o conflito. De acordo com Nabhan Garcia, apenas as terras indígenas já homologadas poderão ser inclusas no Sigef ou aquelas com sentença transitada em julgado, de modo que não serão embargadas propriedades rurais em território indígena ainda não reconhecido como tal.[23]

O processo de demarcação de terras, em que pese a disputa política pelo território, é regulamentado pelo Decreto no 1.775/1996 e trata-se de um procedimento administrativo bastante moroso, que envolve inúmeras etapas, desde os estudos de identificação e delimitação do território, passando pelo chamado “contraditório administrativo” (ou o direito que o Estado tem de se manifestar em contrário), pela declaração dos limites da terra indígena feita pelo Ministério da Justiça, pela demarcação física da área, levantamento de benfeitorias realizadas pelos ocupantes não indígenas, quando for o caso, homologação da demarcação, não raro, retirada dos invasores não indígenas do território (com pagamento de benfeitorias, reassentamento dos não indígenas, entre outros aspectos), registros das terras indígenas na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e, por fim, interdição da área para proteção dos povos indígenas. De acordo com o Conselho Missionário Indigenista (Cimi), existem no Brasil, hoje, 1296 terras indígenas, sendo 401 já demarcadas, 306 em diferentes etapas do processo demarcatório, 65 que se enquadram em categorias que não a de terra tradicional e 530 à espera do início do processo de demarcação (Cf. https://cimi.org.br/terras-indigenas/).

O Sigef é uma forma de reconhecimento da existência da terra indígena – e do conflito, quando objeto deste – por parte do Estado, uma vez que permite o registro do território antes de sua homologação e registro pela SPU. Com a medida de Nabhan Garcia, 895 terras indígenas que estão em diferentes situações quanto à demarcação, deixam de receber atenção do Estado no que toca às questões fundiárias, de modo que não é necessário muito esforço para se chegar à conclusão de que os conflitos envolvendo essas áreas deverão se intensificar. Sobretudo, se considerado com o fato de que não há quaisquer perspectivas de reconhecimento e homologação de novas áreas: “Há muita terra para pouco índio. A minha decisão é não demarcar mais terra para índio”, afirmou o presidente de República a jornalistas no dia 30 de agosto de 2019.[24] Em contrapartida, o Incra passa a ter um prazo máximo de 30 dias para emitir o certificado de cadastro de imóvel rural, sob pena de punição com demissão dos servidores que não liberarem o documento no prazo estipulado.[25] O órgão se converteu, assim, em instrumento direto de viabilização dos interesses ruralistas. 

 

À guisa de considerações finais

Quem lamenta os estragos – se os frutos são prazeres?”. Assim, Marx sintetizou o domínio britânico na Índia, “exclamando como Goethe” que o abatimento do velho mundo asiático não se tratava meramente da realização de um impulso mesquinho de interesses, mas do modo como a humanidade, tendo a Inglaterra como “instrumento inconsciente da história”, cumpria sua missão civilizatória em direção à constituição e consolidação da sociedade burguesa. (MARX, s/d, p. 290). Mas se da análise de Marx podemos extrair a lição de que o progresso não pode sê-lo sem seu componente intrínseco de destruição (“quem lamenta os estragos”), o momento histórico atual parece não nos habilitar a “exclamar como Goethe” que seus “frutos são prazeres”. Talvez seja este o traço constitutivo fundamental do padrão atual de expansão e reprodução capitalista em escala planetária, como propôs Mészáros (2009), no qual se inscreve a pujança dos agronegócios no Brasil e a configuração atual da gestão do capital no campo desde o Estado. 

Particularmente depois dos anos 1990, por força das condições de inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho – reorganizada no quadro de crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2009) –, o setor primário, com destaque para os agronegócios, passou a ocupar um lugar estrutural na conformação do bloco de poder. Nesta quadra da história, no entanto, emerge um importante traço distintivo, qual seja, o avivamento das forças políticas mais conservantistas da sociedade, incrustradas na forma particular do desenvolvimento capitalista brasileiro, agora conectadas ao processo de financeirização e das megacorporações do capital transnacional apátrida que operam no campo.

Esta nova configuração da hegemonia das forças políticas dos agronegócios no interior do bloco de poder que sustenta o governo Bolsonaro tem em seu centro frações do ruralismo, a exemplo da Sociedade Rural Brasileira e da União Democrática Ruralista, que desde a emergência da Associação Brasileira do Agronegócio estiveram subordinadas em seu campo político. É certo que daí tem ocorrido importantes conflitos no interior do setor dos agronegócios, como vimos anteriormente, especialmente entre os setores que se rotulam modernos, que assimilaram o discurso do desenvolvimento sustentável e da governança ambiental – representado sobretudo pela Abag –, e aqueles inscritos no ruralismo latifundista. Mas isto diz respeito à disputa interna permanente pela hegemonia do setor, ante qualquer distinção significativa de projetos de desenvolvimento rural.

Concretamente, alçadas ao comando da gestão dos agronegócios desde o Estado pelo bolsonarismo, estas frações mais conservantistas do ruralismo estão, simultaneamente, desconstruindo os espaços de negociação abertos nas sendas dos agronegócios – e ainda que sob sua hegemonia – e impondo uma agenda política que responde a um padrão anticivilizatório de reprodução social no campo, despido, inclusive, do discurso da governança das condições elementares da reprodução social. Abre-se, assim, um novo período de expansão capitalista no campo, que só poderá redundar na explosão da “questão ambiental”, no sentido da piora qualitativa no modo de intercâmbio produtivo do homem com a natureza, ou de um impacto destrutivo cada vez maior sobre o conjunto das condições elementares da reprodução social, reiterando a crise civilizacional ora característica do atual padrão de reprodução capitalista, de modo que não podemos sequer lamentar os estragos em nome dos prazeres, pois estes não serão seus frutos.

 

 

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Como citar

FIRMIANO, Frederico Daia. “Quem lamenta os estragos – se os frutos são prazeres?” O bloco de poder agro do governo Bolsonaro. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 364-387, jun. 2020.

 

 

 

Frederico Daia Firmiano

Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Pós-doutorado com bolsa PNPD-CAPES no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Líder do Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Crise, Neodesenvolvimentismo e Direitos Sociais (GEIND), pelo CNPq. Professor doutor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).

https://orcid.org/0000-0002-6701-1201
http://lattes.cnpq.br/7151157247612663
E-mail:
frederico.firmiano@uemg.br

 

 

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[1] Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Pós-doutorado com bolsa PNPD-CAPES no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Líder do Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Crise, Neodesenvolvimentismo e Direitos Sociais (GEIND), pelo CNPq. Professor doutor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: frederico.firmiano@uemg.br.

[2] “Ruralista troca Alckmin por Bolsonaro e diz que tempo de tucano passou.” Portal Folha de São Paulo. 29 abr. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/ruralista-troca-alckmin-por-bolsonaro-e-diz-que-tempo-de-tucano-passou.shtml. Acesso em: 30 mai. 2019.

[3] “Na escolha das vices, disputa pelo apoio do agronegócio.” Portal O Globo. 7/8/2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/na-escolha-das-vices-disputa-pelo-apoio-do-agronegocio-22955516. Acesso em: 11 set. 2019. 

[4] “Com 261 parlamentares, bancada ruralista declara apoio a Bolsonaro.” Portal Uol. Congresso em Foco. 2/10/2018. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/com-261-parlamentares-bancada-ruralista-declara-apoio-a-bolsonaro/. Acesso em: 12 dez 2018.

[5] “Agro volta à estaca zero com discurso ambiental do governo, diz Maggi.” Portal Revista Globo Rural. 15/8/2019. Disponível em: https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Politica/noticia/2019/08/agro-volta-estaca-zero-com-discurso-ambiental-do-governo-diz-maggi.html. Acesso em: 15 ago. 2019.

[6] “Governo Temer desmonta política para o rural brasileiro e retira R$ 430 milhões em investimentos.” Portal IHU. 10/10/2016. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/185-noticias/noticias-2016/560997-governo-golpista-desmonta-politicas-para-o-rural-brasileiro-e-retira-r-430-milhoes-em-investimentos. Acesso em: 11 out. 2016. 

[7] “Renúncias fiscais que favorecem o agronegócio crescem 8,3% no governo Temer.” Portal Brasil de Fato. 14/6/2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/06/14/renuncias-fiscais-que-favorecem-o-agronegocio-crescem-83-no-governo-temer/. Acesso em: 24 ago. 2018.

[8] “Governo Bolsonaro libera 51 agrotóxicos e totaliza 290 no ano.” Portal Revista Época. 23/7/2019. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/07/governo-bolsonaro-libera-51-agrotoxicos-e-totaliza-290-no-ano.html. Acesso em: 29 ago. 2019.

[9] “Projeto de Lei quer afrouxar licenciamento ambiental no Brasil.” Portal Folha de São Paulo. 6/5/2017. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2017/05/1881573-projeto-de-lei-quer-afrouxar-licenciamento-ambiental-no-brasil.shtml. Acesso em: 11 abr. 2019.

[10] “Quem é Ricardo Salles, o ministro do Novo que está destruindo a Amazônia.” Portal Revista Fórum. 23/8/2019. Disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/quem-e-ricardo-salles-o-ministro-do-novo-que-esta-destruindo-a-amazonia/. Acesso em: 24 ago. 2019.

[11] “Governo fará revisão geral das 334 áreas de proteção ambiental no País.” Portal O Estado de São Paulo. 10/5/2019. Disponível em: https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,governo-fara-revisao-geral-das-334-areas-de-protecao-ambiental-no-pais,70002822999. Acesso em: 11 mai. 2019. 

[12] “Queimadas sempre ocorreram, mas nunca incentivas por discurso de um presidente, diz Marina Silva.” Portal BBC News Brasil. 23/8/2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49402290. Acesso em: 24 ago. 2019.

[13] “‘Teremos que refazer a imagem do Brasil no exterior’, diz ex-ministro da Agricultura.” Portal UOL. 25/8/2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/08/25/teremos-que-refazer-a-imagem-do-brasil-no-exterior-diz-ex-ministro-da-agricultura.htm. Acesso em: 29 ago. 2019.

[14] “Desmatamento subiu 50% em 2019, indicam alertas do INPE.” Portal Observatório do Clima. 6/8/2019. Disponível em: http://www.observatoriodoclima.eco.br/desmatamento-subiu-50-em-2019-indicam-alertas-inpe/. Acesso em: 29 ago. 2019.

[15] “Exoneração de diretor do INPE é publicada no Diário Oficial.” Portal G1. 7/8/2019. Disponível em: https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/08/07/exoneracao-de-diretor-do-inpe-e-publicada-no-diario-oficial.ghtml. Acesso em: 29 ago. 2019.

[16] “Desmatamento subiu 50% em 2019, indicam alertas do INPE.” Portal Observatório do Clima. 6/8/2019. Disponível em: http://www.observatoriodoclima.eco.br/desmatamento-subiu-50-em-2019-indicam-alertas-inpe/. Acesso em: 29 ago. 2019.

[17] “França diz que Bolsonaro mentiu sobre ambiente e ameaça barrar UE-Mercosul.” Portal Folha de S.Paulo. 23/8/2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/08/irlanda-ameaca-acordo-ue-mercosul-se-brasil-nao-proteger-a-amazonia.shtml. Acesso em: 29 ago. 2019.

[18] “Maioria das áreas protegidas da Amazônia está sob pressão.” Portal Socioambiental.5/6/2019. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/maioria-das-areas-protegidas-na-amazonia-esta-sob-pressao. Acesso em: 29 ago. 2019. 

[19] “Nabhan Garcia, inclusive já prestou esclarecimentos à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra por porte ilegal de armas, contrabando e organização de milícias privadas na região do Pontal do Paranapanema, no interior de São Paulo.” Cf. “O que é a UDR, e quem é Nabhan Garcia, cotado para ser ministro de Bolsonaro?” Portal Brasil de Fato. 26/10/2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/10/26/o-que-e-a-udr-e-quem-e-nabhan-garcia-cotado-para-ser-ministro-de-bolsonaro/. Acesso em: 26 ago. 2019.

[20] “Incra rompe com MST e determina fim de diálogo com líderes sem terra.” Portal Folha de S.Paulo. 22/2/2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/incra-rompe-com-mst-e-determina-fim-de-dialogo-com-lideres-sem-terra.shtml. Acesso em: 22 fev. 2019.

[21] “Governo Bolsonaro paralisa reforma agrária e demarcação de territórios quilombolas.” Portal Folha S.Paulo. 8/1/2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/governo-bolsonaro-ordena-paralisar-a-reforma-agraria-no-pais.shtml. Acesso em: 8 jan. 2019.

[22] “Sob Bolsonaro, ritmo de assentamento na reforma agrária perde força.” Portal Poder 360. 24/8/2019. Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/sob-bolsonaro-ritmo-de-assentamento-na-reforma-agraria-perde-forca/. Acesso em: 11 set. 2019.

[23] “Secretário de Política Fundiária promete controle ruralista de demarcação.” 15/6/2019. Portal Socioambiental. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/es/Not%C3%ADcias?id=197526. Acesso em: 2 set. 2019. 

[24] “Bolsonaro quer rever demarcações: ‘muita terra para pouco índio’.” Portal Infomoney. 30/8/2019. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/noticia/9225705/bolsonaro-quer-rever-demarcacoes-muita-terra-para-pouco-indio. Acesso em: 2 set. 2019.

[25] “Secretário de Política Fundiária promete controle ruralista de demarcação.” 15/6/2019. Portal Socioambiental. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/es/Not%C3%ADcias?id=197526. Acesso em: 2 set. 2019.