Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 27, n. 3, outubro de 2019 a janeiro de 2020

 

 

 

Raquel Lucena Paiva[1]

 

 

 

 

Pensamento complexo, agroecologia e agrotóxicos:

análise da inter-relação entre ciência, movimentos sociais e mídia no processo de construção social das informações sobre toxidade e risco

 

 

 

 

Introdução

A agroecologia propõe uma revolução paradigmática no modo de pensar a relação com a terra. Ao considerar a complexidade dos agroecossistemas, o conhecimento agroecológico não cabe no compartimento técnico da agronomia, mas abrange questões sociais, políticas, culturais e ambientais, além de problematizar a soberania e a segurança alimentar e compreender que as relações ecológicas e sociais são muito mais complexas que os sistemas de conhecimento.

O conceito de agroecologia começou a ser esboçado na primeira metade do século XX, em resposta aos impactos causados pela agricultura convencional, que passava por um processo de industrialização. Nos anos 1960 e 70, ganhou força com os movimentos ambientalistas e os anos 1980 foram importantes para a construção do discurso agroecológico por meio de importantes publicações, entidades e mobilizações em torno do tema. Nas décadas seguintes, o conceito vem se delineando como ciência, em diálogo com as práticas agrícolas e com os movimentos sociais. Os fundamentos do conhecimento agroecológico, no entanto, dialogam com o conhecimento milenar da agricultura tradicional.

Miguel Altieri (2012, p. 15) defende que a “[...] A Agroecologia fornece as bases científicas, metodológicas e técnicas para uma nova revolução agrária [...]” e define como princípios agroecológicos a biodiversidade, a resiliência, a eficiência energética e a justiça social. Estes princípios, segundo o autor, “[...] constituem os pilares de uma estratégia energética e produtiva fortemente vinculada à noção de soberania alimentar”.

A agroecologia se fundamenta em lógicas e paradigmas distintos da agricultura industrial e de segmentos ainda hegemônicos da ciência ocidental: considera a terra um organismo vivo; denuncia a insustentabilidade da monocultura alimentada com nutrientes solúveis, provenientes da mineração ou de outras atividades causadoras de impactos ambientais negativos; defende que a economia deve se submeter à ecologia, e não o contrário, como na lógica neoliberal; inclui a ética e o princípio da precaução entre os seus fundamentos; propõe o diálogo de saberes e a transdisciplinaridade; almeja superar o reducionismo e a fragmentação da ciência ocidental.

 A agroecologia não é apenas uma prática agrícola, mas é também um movimento social de fortalecimento dos agricultores familiares e um campo científico, que se distingue por comprometer-se em dialogar com saberes não científicos e por ser intrinsecamente interdisciplinar. Ou seja, o movimento conecta ecologia, ciências agrárias e florestais, ciências sociais, economia, história, geografia, educação popular, comunicação social, entre outros (CAPORAL, 2009).

Estes fundamentos têm sido desenvolvidos e fortalecidos em campo relativamente restrito, composto por cientistas, agricultores e ativistas diretamente envolvidos e interessados pelo tema, mas quando a agroecologia é abordada pelo jornalismo há uma transição discursiva entre a ciência, os movimentos sociais e a mídia. Tal processo de transição retira o conceito inicial do contexto de produção da formação discursiva que o originou e o insere no ambiente da notícia, no qual produtores e leitores (re)significam os enunciados conforme suas referências.

O presente artigo faz parte da pesquisa realizada para obtenção do grau de mestre em Ciências Sociais na Universidade Federal do Espírito Santo em 2018, sendo que nesta publicação o foco de análise será o pensamento complexo e sua aplicação no discurso jornalístico do site Brasil de Fato,[2] em texto que trata de controvérsias relacionadas à pesquisa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), contextualizando esta matéria com as notícias publicadas na Folha de S.Paulo e no O Globo relativas ao mesmo estudo.

Na dissertação de mestrado, foram analisadas todas as matérias que citaram a palavra ‘agroecologia’ no período entre 1/1/2016 e 31/12/2016, em oito sites jornalísticos produzidos na Região Sudeste, são eles: Gazeta Online, O Globo, Folha de S.Paulo, Estado de Minas, Século Diário, Brasil de Fato, Carta Maior e Rede Brasil Atual (RBA). Os sites foram escolhidos segundo dois critérios: veículos de mais audiência em cada estado; veículos que mais deram relevância ao tema, considerando a quantidade de matérias que usaram a palavra agroecologia no ano do recorte temporal. Este critério levou a dois perfis jornalísticos, classificados na pesquisa como ‘hegemônicos’ e ‘contra-hegemônicos’.

 

 

Quadro 1 – Lista com links dos sites analisados na pesquisa

 

Sites

Links

Gazeta Online

http://www.gazetaonline.com.br

O Globo

http://oglobo.globo.com

Folha de S.Paulo

http://www.folha.uol.com.br

Estado de Minas

http://www.em.com.br

Século Diário

http://seculodiario.com.br

Brasil de Fato

https://www.brasildefato.com.br

Carta Maior

http://cartamaior.com.br

Rede Brasil Atual

http://www.redebrasilatual.com.br

 

 

Para observar como o discurso agroecológico é apresentado para o público em geral, buscaram-se os veículos de comunicação com mais audiência. Porém, estes sites apresentaram baixíssimo agendamento do tema; sendo assim, foi feito um levantamento dos sites de conteúdo diversificado que mais abordaram o assunto. Os veículos que atenderam a este critério foram todas publicações de esquerda, também classificados como alternativos.

O conceito de hegemonia, porém, apresentou-se como mais adequado para a classificação destes dois perfis jornalísticos pela coerência teórica, visto que a Análise Crítica do Discurso, referencial teórico adotado na pesquisa, considera este fator em suas análises e porque evidencia o desequilíbrio existente nas relações de poder entre grandes conglomerados de comunicação e sites que sobrevivem, geralmente, em condições econômicas desfavoráveis e atingem a um público mais restrito. Percebe-se, como Moraes (2010), hegemonia como liderança ideológica e político-cultural de uma classe ou grupo social, obtida e consolidada a partir da estrutura econômica, das relações políticas e culturais, dos saberes e dos modelos de autoridade.

Foram apuradas 149 matérias, todas lidas, catalogadas e analisadas em seus aspectos gerais como agendamento do tema, agentes e vozes presentes nas notícias, título, autoria, entre outras informações. No processo de análise geral do conteúdo, as matérias foram classificadas segundo o critério de ênfase e centralidade do tema agroecologia. Ou seja, foram selecionadas as matérias que mais se aprofundaram no tema e/ou que discutiram de maneira mais contextualizada questões relacionadas à agroecologia, como a questão dos agrotóxicos; ou ainda que abordaram o conceito e as visões de mundo que delineiam o discurso agroecológico. A partir deste critério, foram selecionadas oito matérias, uma de cada site, para a análise detalhada do discurso, seguindo o referencial teórico da Análise Crítica do Discurso (ACD) e observando também o discurso ambiental e a maneira como o conhecimento científico é disseminado no jornalismo.

Neste artigo, foi analisada a matéria publicada no Brasil de Fato porque o texto apresenta uma abordagem crítica em relação à metodologia utilizada pela Anvisa para avaliar os riscos relacionados aos agrotóxicos. Os cientistas entrevistados levantam possibilidades mais complexas de avaliar o problema e a análise feita leva a fatores distintos que deixaram de ser observados na pesquisa. Ao evidenciar a rede de fatores que participam da construção do problema, esta crítica deixa explícita o paradigma da simplificação que orienta a pesquisa da Anvisa, discute o jogo de interesses envolvidos na questão dos agrotóxicos e propõe critérios mais abrangentes e complexos para lidar com o tema.

 

 

Agroecologia e complexidade

Rompendo as barreiras dos saberes, esta jovem ciência articula disciplinas distintas para abranger a complexidade das relações socioambientais envolvidas nas atividades agrícolas. Segundo Francisco Caporal (2004, p. 16), “[...] a Agroecologia abrange esferas amplas de análise”, “[...] justamente por possuir uma base epistemológica que reconhece a existência de uma relação estrutural de interdependência entre o sistema social e o sistema ecológico [...]”.

Caporal (2009) defende que a matriz disciplinar da agroecologia se encontra no campo do pensamento complexo que, como propõe Edgar Morin (2006), é um caminho para superar a simplificação de metodologias científicas, que com base em paradigmas reducionistas e hiperespecializados levam a uma inteligência cega, que destrói as totalidades, isola os objetos do seu meio ambiente e não considera o elo inseparável entre observador e objeto de observação.

O pensamento complexo, aplicado à agroecologia, procura dar conta das conexões socioambientais que envolvem as práticas agrícolas, reconhecendo a complexidade das relações dos seres humanos entre si, com a terra, com os outros seres vivos e com a dinâmica ambiental, considerando diferentes dimensões dos problemas e não apenas a análise isolada de suas partes. Segundo Morin (2003), a especialização retira o objeto do seu contexto, quebra os laços do objeto com o seu meio e o insere no compartimento da disciplina:

[...] cujas fronteiras quebram arbitrariamente a sistematicidade (a relação de uma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos e conduz à abstração matemática, a qual opera uma cisão com o concreto, privilegiando tudo aquilo que é calculável e formalizável (p. 24).

O método de fragmentação do real em áreas do conhecimento, disciplinas e subdisciplinas é percebido por Morin (2006, p. 12) como uma ruptura no “tecido complexo das realidades”, porém este processo nem sempre é percebido, e o corte arbitrário operado no real é confundido com a própria realidade.

Enrique Leff (2002) argumenta que o conhecimento que se fragmenta analiticamente, separa o que estava organicamente articulado. Para esse autor, essa forma de conhecimento que pretende “[...] apreender os entes em sua objetividade, indagando suas essências [...] construíram um objeto que já não abrange a multicausalidade dos processos que os gerou [...]” (LEFF, 2002, p. 161).

Morin (2006) defende que a visão científica que não contempla a complexidade, considera seus objetos de análises e categorias criadas pelas universidades como realidades distintas e separadas, pensa a realidade econômica em um compartimento diferente da realidade psicológica e ainda isolada da realidade demográfica. A ciência ocidental aplicada à agricultura parte dessa lógica quando apresenta as relações econômicas dissociadas das relações ecológicas e ambientais, a ética como uma dimensão distinta da economia, e todas essas relações se apresentam, frequentemente, à parte de seu contexto histórico.

Para conhecer, faz-se necessário traduzir o mundo exterior e produzir os objetos do conhecimento. Morin (2006, p. 110) assume que “[...] somos coprodutores de objetividade. Por isso faço da objetividade científica não apenas um dado, mas também um produto. A objetividade concerne igualmente à subjetividade [...]”. Perceber a subjetividade inerente ao conhecimento, às relações multifatoriais que compõem o tecido complexo da realidade e o contexto que envolve a construção social do conhecimento é indispensável ao processo de olhar criticamente cada ‘verdade’ sobre a qual se constrói a própria ciência.

O olhar sobre a prática agrícola com base no paradigma agroquímico ou agroecológico parte de princípios distintos para examinar o mesmo objeto. No primeiro, o método de fragmentação do real é tipicamente utilizado para analisar e aprimorar a produtividade das plantas de interesse comercial, mas as fronteiras dos princípios epistemológicos do paradigma agroquímico deixam de fora parâmetros como biodiversidade, relações ecológicas, fatores socioeconômicos e culturais, entre outros.

Vandana Shiva (2003, p. 27) analisa a relação de dominação exercida pela agricultura e silvicultura industriais, sobre diversas comunidades camponesas da Índia, Filipinas, Indonésia, entre outros países, e afirma que “[...] a criação de categorias fragmentadas faz com que os olhos se fechem para espaços inteiros que o saber local compreende [...]”. Exemplificando, Shiva (2003) observa que, para diversos sistemas de saber com bases locais, a floresta é percebida como fonte de alimento e de renovação da fertilidade agrícola, contribuindo com forragem e compostos orgânicos para o gado e para a agricultura.

Por outro lado, a silvicultura científica, aplicada às monoculturas de eucalipto, é criticada por Shiva (2003, p. 32), porque “[...] reduziu o valor da diversidade da vida das florestas ao valor de umas poucas espécies que têm valor comercial e depois reduziu o valor dessas espécies ao valor de seu produto morto — a madeira [...]”. Segundo a ativista indiana, este paradigma violenta a integridade da floresta e das culturas florestais, reduz a diversidade da floresta à uniformidade da linha de montagem e “[...] transforma a floresta de recurso renovável em recurso não renovável [...]”.

Miguel Altieri (2010, p. 25) defende que “[...] a produtividade da policultura em termos de produtos colhidos por unidade de área é mais alta que sob uma monocultura com o mesmo nível de manejo [...]”. Ou seja, a produtividade de milho de uma monocultura pode ser maior que da policultura, mas esta produz também feijão, abóbora, batatas etc. Considerando-se todos os produtos cultivados, a produtividade da policultura pode ser maior.

Os parâmetros de Shiva (2003) e Altieri (2010) abrem fronteiras para aspectos comumente desconsiderados pela agricultura industrial, para a qual os fatores socioambientais, quando considerados, são vistos como externalidades. A racionalidade da monocultura desconsidera, também, diversas vantagens do manejo agroecológico, como a manutenção ou melhoria da qualidade dos solos; a produção de vegetais sem valor comercial, mas com importância cultural ou ecológica, dentre outras variáveis.

 

 

Discurso agroecológico

A agroecologia se diferencia do agronegócio não apenas pelos manejos, insumos e técnicas agrícolas, mas também pela visão de mundo que inspira suas relações sociais e naturais. Sua lógica e seu discurso se distinguem da racionalidade ainda dominante tanto na agronomia como em outros campos do conhecimento. Sendo assim, entender suas práticas e significados depende da compreensão de seus princípios.

O discurso agroecológico se estrutura a partir de pressupostos de cooperação e complementaridade entre o ambiente natural, os seres humanos e os outros seres que participam do agroecossistema. Os princípios da agroecologia estão fundamentados na compreensão ecológica de que a diversidade é um dos princípios da vida e as intervenções são construídas por meio de um processo de imitação das relações naturais.

Neste contexto, a ressignificação de práticas discursivas faz parte da ressignificação de práticas sociais, visto que, na difusão da agroecologia, uma das primeiras orientações ao agricultor habituado à agricultura convencional é que não se deve ‘limpar’ o mato, e este deixa de ser incriminado como ‘erva daninha’ e passa a ser ressignificado como planta companheira, vegetação nativa e várias outras designações que enfatizam a relação de cooperação e complementaridade entre a diversidade de espécies que naturalmente povoam o ambiente agroecológico e as plantas que interessam ao agricultor.

As práticas sociais e discursivas são ressignificadas a partir de uma visão de mundo específica que fundamenta a Formação Discursiva (FD) da agroecologia. Lembrando que, segundo Fairclough (2001), estas se referem aos domínios do pensamento dentro de uma determinada formação social. As FDs participam da construção de percepções, conhecimentos, ações etc., que se tornam comuns aos grupos que partilham uma mesma FD.

Para Dryzek (2005), os discursos específicos são maneiras de compartilhar a compreensão do mundo, construindo significados e conhecimentos, os discursos participam da formação do senso comum. Segundo este autor, “[...] cada discurso baseia-se em suposições, julgamentos e contenções que fornecem os termos básicos para análises, debates, acordos e discordâncias [...]” (p. 9). Assim, a forma como um discurso vê o mundo nem sempre é compreendida por pessoas que não pertencem à mesma formação discursiva, mas podem ocorrer intercâmbios entre os limites dos discursos.

Dryzek (2005) alerta que os críticos e os adeptos de um discurso apresentam uma relação bastante diferente em relação a ele. É muito comum que os adeptos de um discurso venham a ignorar ou recusar os outros, diminuindo as possibilidades de intercâmbio ou diálogo. No jornalismo, a escolha por um certo veículo de comunicação, geralmente, representa adesão a uma determinada maneira de ver o mundo, mas deve-se considerar, também, que a formação discursiva presente em um título, por exemplo, pode atrair ou afastar os possíveis leitores, nas diversas plataformas em que o texto pode se apresentar.

A agroecologia se delineia como uma FD específica, que mantém correlações com o discurso ambientalista, com o discurso político de esquerda e com o discurso de diversos movimentos sociais. Também está inserida no discurso da agronomia, com relações de complementaridade, por utilizar parte do referencial teórico desta ciência e por trabalhar em cima do mesmo objeto; mas principalmente de oposição, devido à racionalidade antagônica aos princípios e às práticas da agricultura industrial. As relações e interações entre redes de formações discursivas são classificadas por Fairclough (2001) como interdiscurso.

A análise do discurso jornalístico deve considerar as relações interdiscursivas de diversos matizes que participam da produção e interpretação dos enunciados. As fontes, o jornalista e o público utilizam-se de seus referenciais relacionados ao ambientalismo, ou aos imaginários e paradigmas científicos que assimilaram ao longo da vida, bem como suas concepções políticas e muitas outras interações que fazem parte do jogo de (co)produção e recepção do texto jornalístico.

O contexto da produção da notícia pelo jornalismo é inseparável da própria notícia e são fatores determinantes na produção de sentido. John Hannigan (1995, p. 83) enfatiza as estruturas dos meios de comunicação como “[...] dispositivos organizacionais que ajudam o jornalista e o público a formar um sentido das questões e acontecimentos e, através disso, injetar-lhes um significado [...]”.

A partir da compreensão dos princípios da agroecologia e do pensamento complexo, este artigo analisa o discurso e o enquadramento de matérias jornalísticas que apresentaram os resultados de pesquisa da Anvisa sobre o risco imediato, para o consumidor final, dos agrotóxicos contidos em produtos agrícolas disponíveis no mercado.

O artigo apresenta o resultado da análise do agendamento da agroecologia pelos sites noticiosos pesquisados e do perfil e papel dos agentes envolvidos na produção da notícia, além de buscar contribuir com a compreensão dos processos de construção social de conceitos e racionalidades relacionados à produção agrícola, evidenciando o contexto em que os princípios da agricultura industrial ou da agroecologia são legitimados pela ciência, por meio da mídia.

 

 

Análise

A pesquisa empírica do conteúdo indexado pela palavra ‘agroecologia’ nos oito sites jornalísticos listados na introdução constatou a baixa visibilidade atribuída ao tema pelos veículos de comunicação. Com o objetivo de contextualizar a (in)visibilidade da agroecologia no jornalismo, foi feita uma análise comparativa da quantidade de textos indexados com a palavra ‘agroecologia’ e ‘agronegócio’, nos veículos e no intervalo temporal estabelecidos na metodologia.

O resultado foi que menos de 5% do total aferido com estas duas palavras-chave se referiam à agroecologia, considerando-se os quatro sites hegemônicos. Nos veículos contra-hegemônicos analisados na pesquisa, o percentual de matérias sobre agroecologia variou entre 12,2% e 48%, porém é importante ressaltar que o critério de seleção destes sites foi justamente a relevância atribuída ao tema e, por este motivo, a análise do agendamento levará em consideração apenas os percentuais do jornalismo hegemônico, visto que, no levantamento inicial do tema, foi possível constatar que vários veículos alternativos não pautavam o assunto, muitos deles não indexaram a palavra ‘agroecologia’ a nenhuma matéria produzida.

 


Figura 2 – Quantidade de matérias jornalísticas que utilizaram a palavra ‘Agroecologia’ entre 1/1/2016 e 31/12/2016

 

Veículos

Agroecologia

Agronegócio

Total

% Agroecologia

Jornalismo hegemônico

Folha de S.Paulo

19

442

461

4,2%

O Globo

6

174

180

3,3%

Gazeta Online

5

130

135

3,8%

Estado de Minas

5

160

165

3,6%

Jornalismo contra-hegemônico

Carta Maior

37

130

167

22%

Brasil de Fato

68

170

238

29%

Século diário

19

21

40

48%

Rede Brasil Atual

25

180

205

12,2%

 

Fonte: Elaboração própria.



A análise quantitativa serve para perceber o quase silêncio em relação ao tema, mas para entender o perfil do conteúdo coletado é necessário falar sobre os agentes e os discursos que participam da construção das notícias. Uma característica importante do texto jornalístico é a participação de agentes externos (fontes), intermediados por um jornalista, em condições de produção específicas, que, geralmente, envolvem prazos curtos e formatos coerentes com o perfil dos veículos. Hannigan (1995, p. 83) observa que os formuladores de exigência competem para promover suas imagens favoritas, enquanto os jornalistas e editores criam suas imagens a partir de critérios de eficiência e adequação das histórias, além de apresentarem uma tendência a “[...] manter e reproduzir a corrente principal de imagens e códigos culturais [...]”.

Para Hannigan (1995), o perfil das fontes é formado, predominantemente, por pessoas que exercem papéis oficiais, como políticos, chefes de agências governamentais, cientistas e representantes de organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Este perfil descrito pelo autor corresponde às características das fontes ouvidas nas 149 matérias analisadas na pesquisa, mas ao avaliar o resultado de cada segmento, foi notável a ausência das vozes ligadas aos movimentos sociais nas matérias dos veículos hegemônicos.

Os agentes ouvidos pelo jornalismo empresarial, formado, predominantemente, por representantes governamentais e de empresas, além de peritos científicos, possuem a legitimidade que as instituições lhes conferem, mas ao limitar-se a este perfil silenciam-se importantes vozes da sociedade civil. Foi possível observar também que, neste segmento, a agroecologia é apresentada em abordagens desvinculadas de políticas públicas ou bandeiras sociais. A mídia contra-hegemônica, por outro lado, empresta visibilidade aos movimentos sociais e às pautas mobilizadas por estes agentes, além de contextualizar politicamente a agroecologia.

É relevante a ausência de vozes ligadas aos movimentos sociais, no jornalismo hegemônico. Considerando que as redes de agroecologia são muito atuantes, tanto na produção de conteúdo como na organização de eventos, e acrescentando-se ainda o fato de que as principais entidades agroecológicas possuem a palavra ‘agroecologia’ em seu nome, é bastante eloquente o fato de que estas instituições não tenham sido citadas em nenhuma das matérias publicadas, no período de um ano, em três dos quatro veículos hegemônicos analisados.

Os movimentos sociais agroecológicos atuam diretamente como produtores de conteúdos, que são repercutidos em diversas publicações especializadas e nos veículos contra-hegemônicos analisados. A exclusão destes agentes na grande mídia afeta diretamente a visibilidade e a (re)significação da Agroecologia. Nas poucas vezes em que a palavra foi trazida para o noticiário, no decorrer de um ano inteiro, não trouxe consigo as vozes que ecoam os pressupostos deste movimento social.

Maria da Glória Gohn (2011, p. 333) percebe os movimentos sociais “[...] como fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes [...]”. Segundo esta autora, os movimentos estabelecem redes, nas quais são produzidos conhecimentos e que fazem parte de um processo de caráter político-social, dentro dos quais são estabelecidos “[...] os valores da cultura política que vão sendo construídos no processo interativo” (p. 334).

Os movimentos sociais aglutinam as pessoas como força social organizada em um campo de atividades e experimentações sociais que são fontes de criatividade e de inovações socioculturais. Gohn (2011, p. 336) cita Touraine (2005) para quem os movimentos sociais são “[...] o coração, o pulsar da sociedade [...] energias sociais antes dispersas são canalizadas e potencializadas por meio de suas práticas em ‘fazeres propositivos’”.

Os movimentos sociais atuam em rede, realizam diagnósticos e constroem propostas para a realidade social. Realizam ações coletivas de resistência e criam sujeitos sociais para atuação nessas redes, além de construir “[...] representações simbólicas afirmativas por meio de discursos e práticas. Criam identidades para grupos antes dispersos e desorganizados [...]” (gohn, 2011, p. 336).

É a partir deste contexto de invisibilidade da agroecologia e dos movimentos sociais que o texto a ser analisado a seguir deve ser percebido. Na dissertação de mestrado foram apresentadas oito matérias, uma de cada site; porém, para atender às dimensões de um artigo, a análise terá como foco a matéria do Brasil de Fato porque ela trata de uma pesquisa científica que avalia os riscos relacionados aos agrotóxicos e os parâmetros da pesquisa são questionados por outros cientistas e organizações sociais, que contextualizam o problema com base em uma multiplicidade de fatores e conexões que inserem o tema em um horizonte mais complexo.

O referencial teórico do pensamento complexo e do discurso agroecológico se alinha com as argumentações apresentadas pelas fontes, e por este motivo buscou-se aqui apresentar a racionalidade que perpassa estes referenciais para então evidenciar, no texto jornalístico, linhas argumentativas complexas ou reducionistas que levam a percepções distintas dos riscos representados pelos agrotóxicos.

Ao abordar a metodologia e o tema da pesquisa, a matéria abre questionamentos que se aproximam do pensamento complexo, tanto por criticar “[...] o corte arbitrário operado no real [...]”, tal como observa Morin (2006, p. 12), como por evidenciar variáveis distintas que dizem respeito à saúde humana, aos interesses em jogo, às relações sistêmicas, entre outras conexões que evidenciam uma realidade complexa.

O título destaca um dos problemas abordados: “Movimentos repudiam recomendação da Anvisa sobre como tirar agrotóxico dos alimentos”. A função de agente, neste título, é ocupada por “movimentos”; no caso, dispensou-se a complementação ‘sociais’, demonstrando proximidade com eles. Nesta matéria, os movimentos citados no título se referem a várias entidades, representadas por peritos, como agrônomo e nutricionista.

A matéria dialoga com diversas fontes, todas unânimes em questionar o relatório do Programa de Análises de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), publicado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mostra a argumentação crítica apresentada por estes profissionais em relação a vários itens do relatório do Para, começando pela nota de repúdio publicada pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, que é composta por diversas entidades.

O texto foi redigido por Rute Pina, jornalista do Brasil de Fato, que ouviu o agrônomo, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro da ABA, Leonardo Melgarejo; a nutricionista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Mariana Garcia, além de divulgar o conteúdo publicado nas notas de repúdio do Idec e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos. Haverá citações marcadas por aspas duplas, mas sem indicação de autor e data porque todas fazem parte da matéria analisada. Este padrão foi adotado por ser comum às publicações que realizam análise discursiva de textos jornalísticos, além de evitar referências repetitivas e facilitar o entendimento, ao remeter cada citação à fonte ouvida pela jornalista.

A matéria é informativa, a repórter não emite opiniões, mas apresenta a análise e as críticas fornecidas pelos entrevistados e pelas notas de repúdio. O texto não recorre nem mesmo a modalizações de ênfase ou de questionamento, recurso muito utilizado no jornalismo. As modalizações, utilizadas para expressar adesão do autor ao que está sendo dito, envolvem diversos mecanismos lógicos e linguísticos. Para análise do texto jornalístico são observadas as modalizações típicas deste meio, são expressões utilizadas para introduzir ou concluir um depoimento e estabelece a adesão (ou não) do texto à fonte. Estas podem ser quase neutras como ‘segundo fulano’; estabelecer certo distanciamento, como ‘na opinião de fulano’; concordar e valorizar a fala da fonte, como ‘fulano ensina’; entre várias possibilidades. No texto em questão, a repórter utilizou expressões bastante neutras como: disse, afirmou, declarou.

O contexto de produção do texto, porém, pressupõe o posicionamento estabelecido pelas fontes que se fazem presentes na narrativa. O Brasil de Fato, assim como outros veículos contra-hegemônicos, dá voz aos movimentos sociais, por outro lado, estes veículos costumam ser rejeitados por algumas fontes oficiais. Foi o caso desta matéria, que trouxe as críticas dos movimentos sociais e apresentou, no texto, a tentativa de conversar com a Anvisa para questionar a metodologia da pesquisa, porém recebeu apenas uma resposta da assessoria de imprensa do órgão, dizendo que “[...] a metodologia utilizada pela Anvisa é compatível com a de países de todo mundo e segue referências internacionais”. Nenhum perito ou autoridade da Anvisa conversou com o Brasil de Fato e o veículo também não ouviu nenhum perito que apresentasse posicionamento diferente das entidades que questionaram a pesquisa.

O título se refere à recomendação da Anvisa de lavar a casca dos alimentos para diminuir os resíduos de agrotóxicos. Esta orientação é questionada por Leonardo Melgarejo, que explica que a maior parte dos venenos agrícolas são “[...] produtos sistêmicos, que matam através de circulação interna. Nestes casos, não se pode tirar estes produtos lavando a casca”.

O relatório da Anvisa é também questionado por afirmar que há “[...] segurança alimentar aceitável [...]” no Brasil e que “[...] apenas 1% dos alimentos analisados representa risco agudo à saúde [...]”. Melgarejo critica o critério da Anvisa, “[...] de supervalorizar os problemas agudos quando a maioria dos problemas acarretados pelos agrotóxicos são crônicos [...]”.

A pesquisa como um todo é questionada pelas fontes. O Idec destacou que a mudança na sistematização dos dados dificulta a comparação com as informações dos anos anteriores e apontou inconsistência nas análises. Segundo a matéria, as intoxicações por agrotóxicos notificadas aumentaram 17% entre 2010 e 2014, chegando a 4.423 registros em 2014.

Leonardo Melgarejo lamenta que a Anvisa esteja perdendo a “[...] credibilidade porque apresenta dados contraditórios [...]”, e acrescenta:

“Se não mudaram os métodos, a realidade não mudou, se o volume aplicado [de agrotóxicos] cresceu, como entender essa redução nos resultados identificados?”, questiona o professor. “Se isso fosse um teste em uma universidade, um estudo de campo, nós pediríamos que os testes fossem repetidos”.

Este estudo da Anvisa foi questionado, ainda, por não incluir os herbicidas glifosato e 2,4-D. O primeiro, conhecido comercialmente como Roundup, da Monsanto, e o 2,4D é o princípio ativo do Agente Laranja, arma química fornecida também pela Monsanto, para o exército dos Estados Unidos, na Guerra do Vietnã. Na matéria, esta ausência é questionada pela Campanha Permanente Contra o Agrotóxico, que informa ainda que estes herbicidas “[...] correspondem a mais da metade das substâncias usadas nas lavouras brasileiras, de acordo com dados do Ibama de 2014”.

Melgarejo questiona ainda as motivações do relatório, apresentado em sincronia com a tramitação do Projeto de Lei (PL) no 3.200/2015, que propõe substituir a palavra “agrotóxico” por “produtos fitossanitários”, e com a campanha publicitária de valorização do agronegócio, que “[...] exclui negócio da palavra agronegócio [...]”. Segundo a matéria, o agrônomo alerta para os interesses envolvidos no assunto e para as consequências deste relatório:

O docente da UFSC disse que o relatório parece mais “marketing do agronegócio” do que um estudo de uma “equipe responsável por proteger a sociedade contra danos à saúde”, e teme que episódios como este contribuam para a falta de confiança nas instituições públicas.

A agroecologia é citada, nesta matéria, como contraponto ao problema apresentado: “O Idec propõe estimular os modelos alternativos, como a agroecologia e a produção orgânica, como é proposto no Projeto de Lei que institui a Política Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos [...]”. Embora a matéria não se prolongue na contextualização da agroecologia, a análise dos parâmetros que analisam os riscos e impactos relacionados aos agrotóxicos insere a racionalidade agroecológica nos princípios sistêmicos apresentados para avaliar estes problemas.

Como a importância desta matéria se deve, principalmente, à análise e interpretação das informações provenientes de uma pesquisa científica, realizada por um órgão público com a importância que tem a Anvisa, considerou-se útil investigar como foi feita a abordagem desta notícia nos outros veículos que fazem parte do corpus deste estudo. O objetivo é ampliar a compreensão das possibilidades de interpretação e legitimação desta pesquisa, além de observar como as fontes podem contextualizar um assunto.

Para realizar o levantamento desta notícia nos outros sites analisados, foi empregada a mesma metodologia de filtragem usada no início, para a palavra ‘agroecologia’. Sendo que, neste levantamento, utilizou-se a palavra ‘Anvisa’, para pesquisar as matérias delimitadas entre 25/11/2016, data da publicação do relatório, e 5/12/16. O resultado foi que O Globo e a Folha de S.Paulo noticiaram o relatório, o primeiro com duas matérias e a segunda com uma.[3]

Ambos apresentaram a notícia sem questionamentos. O Globo publicou que “[...] apenas 1,1% do material estudado apresentou venenos em níveis perigosos para o consumidor”. A Folha de S.Paulo afirmou que “[...] a notícia é positiva [...]”. Também faz uso da palavra ‘apenas’ para adjetivar o percentual da amostra que representa risco agudo à saúde. Observe-se, porém, que risco agudo é definido pela própria Anvisa como intoxicações que podem ocorrer dentro de 24 horas após o consumo do alimento, ou seja, 1,1% dos produtos agrícolas disponíveis no mercado oferecem risco imediato de envenenamento para o consumidor final. Este percentual é maior ao se considerar as lavouras mais contaminadas, 12% das laranjas e 5% dos abacaxis oferecem riscos de intoxicação, para o consumidor final, em menos de 24 horas. Esta informação é dada como normal e classificada como “notícia positiva” pela Folha de S.Paulo.

Nem O Globo nem a Folha questionaram a metodologia. Nas três matérias publicadas, a Anvisa foi a única fonte citada. Nenhuma outra informação relacionada ao assunto, ou qualquer outra pesquisa disponível foi apresentada. Ambos os sites publicaram um depoimento do diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, recomendando que o consumidor não abra mão de determinados cuidados, como lavar os alimentos. Esta recomendação não se sustenta tanto pelas características de atuação dos agrotóxicos, expostas por Melgarejo, como pelo fato de que o eventual excesso de veneno eliminado na lavagem continuará no meio ambiente contaminando as águas e o planeta.

Interessa a este artigo observar como o jornalismo interage com as possibilidades de abordar a notícia sobre uma pesquisa científica de maneira mais ou menos complexa. As informações fornecidas pela Anvisa envolvem um caso típico da objetividade estatística sendo utilizada fora de contexto. Ao apresentar, como um dos principais resultados da pesquisa, o percentual de 1,1% referente ao risco para o consumidor de sofrer intoxicações agudas por agrotóxico, o relatório não informou que tais intoxicações são mais frequentes entre agricultores nem que os principais problemas de saúde causados pelos agrotóxicos são crônicos, e também não advertiu sobre os riscos e impactos causados pelos agrotóxicos em todo ecossistema, incluindo a água.

A falsa objetividade serve perfeitamente para passar a ideia de que os agrotóxicos são seguros, o percentual de risco próximo de 1% parece pouco e possui uma força simbólica considerável transmitir segurança. A apresentação do resultado isolado de outros parâmetros, no mínimo, não contribui para a formação da opinião pública em assuntos relacionados à segurança alimentar.

O parâmetro de avaliar o risco imediato dos produtos agrícolas para o consumidor é legítimo, mas reducionista se não forem analisados outros parâmetros e contextos. Quando Edgar Morin (2006, p. 12) critica a fragmentação que destrói o tecido complexo da realidade, ele observa que o rigor dessa racionalidade frequentemente se fundamenta na medida e no cálculo, e afirma que: “[...] cada vez mais, a matematização e a formalização desintegram os seres e os entes para só considerar como únicas realidades as fórmulas e equações que governam as entidades quantificáveis [...]”. Fora do contexto, 1% é muito pouco, parece um risco aceitável.

Ao denunciar que as intoxicações por agrotóxicos notificadas aumentaram 17% entre 2010 e 2014, que o herbicida Glifosato não foi incluído na pesquisa e que existe uma batalha legislativa e judicial para legitimar os agrotóxicos e minimizar seus riscos, as fontes do Brasil de Fato recorreram a outras conexões entre as informações e evidenciaram as relações complexas que envolvem o tema e que precisam ser consideradas pela pesquisa científica.

O critério simplificador, focado no percentual imediato de risco para o consumidor final, porém, foi proposto por uma instituição governamental e pelos cientistas envolvidos na pesquisa, as informações interpretadas por estes agentes foram transmitidas à imprensa. A notícia foi prontamente aceita pelo O Globo e pela Folha de S.Paulo, que apresentaram o resultado dentro do enquadramento proposto pela Anvisa.

Morin (2006, p. 12-13) é bastante enfático ao criticar o “[...] obscurantismo científico que produz especialistas ignaros [...]” a produzir conhecimento, cada vez mais, para ser registrado em memórias informacionais e cada vez menos para servirem de suporte à reflexão e à discussão das mentes humanas. E resume, numa crítica bastante ácida, embora contundente, que: “[...] enquanto as mídias produzem a baixa cretinização, a Universidade produz a alta cretinização [...]”.

Quando Leonardo Melgarejo associa a pesquisa da Anvisa com os objetivos do marketing do agronegócio e com a atuação política deste segmento na formulação e defesa do PL no 3.200/2015, ele denuncia os indícios da utilização intencional de parâmetros reducionistas para atender aos interesses econômicos de um setor. O cientista também apresenta as disputas discursivas inseridas na batalha legislativa relacionada o referido projeto de lei, ao informar sobre a proposta de alteração da nomenclatura dos agrotóxicos para produtos fitossanitários evidencia-se que o poder simbólico do discurso está sendo disputado nas instâncias bastante concretas dos textos legislativos.

A matéria do Brasil de Fato conseguiu apresentar um amplo questionamento do contexto e dos métodos da pesquisa. A análise comparada das notícias referentes ao estudo da Anvisa demonstrou que o obstáculo para a compreensão mais ampla das muitas ‘verdades’ que se escondem em um percentual estatístico não foi determinado pela linguagem jornalística ou pela complexidade do assunto, visto que um dos veículos conseguiu discutir a pesquisa e tornar compreensível a relatividade dos parâmetros. Os motivos que levaram à abordagem superficial e fundamentada em apenas uma fonte, feita por O Globo e pela Folha de S.Paulo, não podem ser determinados com base na leitura dos textos, e compreende-se que estas questões envolvem múltiplos fatores. Um destes fatores, de fundamental importância, são as fontes.

 

 

Considerações finais

A invisibilidade da temática agroecológica no jornalismo hegemônico precisa ser percebida para que a análise não se dê fora do contexto. Compreendendo que menos de 5% do ‘território jornalístico’ relacionado à temática agrícola é dedicado à agroecologia e que, mesmo neste pequeno percentual, as matérias não ouvem as fontes ligadas ao movimento agroecológico, a matéria do Brasil de Fato deve ser percebida dentro do contexto contra-hegemônico ao qual pertence.

A análise comparativa entre as matérias da Folha de S.Paulo, de O Globo e do Brasil de Fato evidenciou, também, a importância das fontes na condução da narrativa e das argumentações. As matérias que acataram, sem críticas, o relatório da Anvisa, e não ouviram outras fontes além da instituição que produziu a pesquisa, legitimaram o recorte e os parâmetros apresentados por estes, que minimizam os riscos relacionados aos agrotóxicos.

A crítica, realizada pelos cientistas ligados aos movimentos sociais e associações coletivas, em relação ao relatório da Anvisa, ampliou as fronteiras técnicas e disciplinares do assunto, incluindo o contexto, que envolve os interesses econômicos, as batalhas legislativas e as disputas discursivas que abrangem a nomenclatura destes produtos. Mas mesmo dentro dos limites da análise de toxidade e risco é possível perceber que a definição dos parâmetros de pesquisa compreende escolhas que não são isentas de subjetividade, interesses e padrões assimilados.

O contexto, a subjetividade e os interesses que fazem parte da construção da pesquisa precisam ser evidenciados para que não fiquem escondidos na falsa objetividade de um resultado quantitativo. Não se pretende, de maneira alguma, minimizar a importância das análises quantitativas, mas lançar luz sobre o processo subjetivo que leva à definição dos parâmetros e objetivos e que pode modificar completamente a percepção dos riscos e impactos relacionados ao uso de agrotóxicos.

O pensamento complexo pode contribuir para a percepção de que somos coprodutores de objetividade e para o olhar sobre as relações multifatoriais que articulam o tecido complexo da realidade. A ciência e a comunicação pública das pesquisas científicas participam da construção de discursos portadores de imaginários sociais que reafirmam ou desconstroem paradigmas mais ou menos simplificadores ou complexos, com os quais se compartilham informações, visões de mundo e opiniões.   

 

 

 

 

 

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Resumo: (Pensamento complexo, agroecologia e agrotóxicos: análise da inter-relação entre ciência, movimentos sociais e mídia no processo de construção social das informações sobre toxidade e risco). Este artigo apresenta os princípios do pensamento complexo aplicado à agroecologia e como estes parâmetros podem ser úteis para observar contextos e conexões nem sempre levados em consideração na construção de uma pesquisa científica relacionada aos agrotóxicos. O artigo analisa a argumentação, o enquadramento e as fontes de matérias jornalísticas referentes à pesquisa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que avaliou riscos dos agrotóxicos para o consumidor final. A análise dos textos apresenta diferentes possibilidades de construção da notícia e a influência das fontes na condução do enquadramento dado ao tema e na interpretação dos dados e do relatório de uma pesquisa científica.

Palavras-chave: agroecologia; pensamento complexo; sociologia ambiental; comunicação ambiental.

 

Abstract: (Complex thinking, agroecology and pesticides: analysis of the interrelation between science, social movements and the media in the process of social construction of information about toxicity and risk). This article presents the principles of complex thinking applied to agroecology and how these parameters can be useful to observe contexts and connections not always taken into account in the construction of scientific research related to agrochemicals. The article analyzes the argumentation, the framework and the sources of journalistic material related to the research of the Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) that evaluated the risks of pesticides for the final consumer. The analysis of the texts presents different possibilities regarding construction of the news and of the sources’ influence over the conduct of the framingapplied to the theme as well as in the interpretation of the data and reporting on scientific research.

Keywords: agroecology; complex thinking; environmental sociology; environmental communication.

 

 

Recebido em junho de 2019.

Aceito em setembro de 2019.



[1] Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com foco em sociologia ambiental, agroecologia e discurso ambiental. E-mail: raquel@eloseartes.com.br.

[2] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/12/02/movimentos-repudiam-recomendacao-da-anvisa-sobre-como-tirar-agrotoxicos-dos-alimentos/.

[3] Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/laranja-abacaxi-estao-no-topo-da-contaminacao-por-agrotoxicos-20542450; https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/laranja-o-alimento-com-maior-risco-de-intoxicacao-por-agrotoxicos-segundo-anvisa-20554101; http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/11/1835565-laranja-e-abacaxi-sao-os-alimentos-de-maior-risco-por-agrotoxico-diz-anvisa.shtml.