Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 27, n. 2, junho a setembro de 2019

 

 

 

Karina Yoshie Martins Kato[1]

 

 

 

Traçando a saída para o desenvolvimento:

o caso do Corredor de Nacala em Moçambique

 

 

 

Introdução

A virada para o século XXI foi marcada por intensas transformações políticas e econômicas, com impactos significativos na produção e no comércio mundial de commodities. Num curto período (2003 a 2008), os preços da energia e dos metais mais que dobraram e o preço dos produtos agrícolas subiu cerca de 75%, o que ficou conhecido como boom das commodities[2] (ERTEN; OCAMPO, 2012). De 2000 a 2016, o comércio de produtos agrícolas cresceu mais que três vezes em valor, passando de 570 bilhões de dólares, em 2000, para 1,6 trilhão em 2016 (FAO, 2018). Esses aumentos se deram num contexto de agravamento das crises energética, ambiental e financeira (MCMICHAEL, 2009, p. 148).

A produção, o deslocamento e a comercialização de alimentos e matérias-primas, em cadeias cada vez mais globais, com grande peso de corporações transnacionais, alteram as paisagens e a forma como a terra e os recursos naturais são apropriados. Nesses novos circuitos, a terra ganha uma nova centralidade e é ressignificada nas estratégias de investimentos de empresas e Estados, adquirindo novas funções (produtiva, ambiental, energética, financeira e especulativa). O regime alimentar corporativo contemporâneo se expande em paralelo à expropriação em larga escala (para alguns, sua contradição fundamental) de produtores e povos e comunidades tradicionais, à maior concentração fundiária e aos riscos colocados à soberania alimentar dos povos, em particular, nos países emergentes.

Esse novo cenário trouxe oportunidades e riscos para os países detentores de amplas reservas de recursos naturais e de grandes extensões de terras agricultáveis. A corrida por commodities teve como resultado um processo de “primarização[3] do mundo (APEX-BRASIL, 2011), em grande parte puxado por países emergentes como a China e a Índia, levando muitos países a pautarem seu crescimento na exportação e exploração de commodities. Foi nesse contexto que observamos um crescimento acelerado na implementação de megaprojetos extrativos (exploração de recursos naturais voltados para a exportação) e logísticos (com os corredores econômicos) voltados para agilizar e dar eficiência ao escoamento dos recursos naturais para os mercados globais. Destaca-se o importante papel desempenhado pelo Estado e por atores governamentais na organização dos interesses e orientação dos investimentos privados, na flexibilização ou alteração de marcos regulatórios, na concessão de financiamento e de isenções fiscais entre outros.

Este artigo faz uma leitura crítica dessa trajetória recente, tomando como caso de análise o Corredor de Nacala, em Moçambique, área preferencial dos investimentos brasileiros (em particular, da mineradora Vale) e ponto de interesse de muitos projetos de organizações internacionais e de corporações transnacionais. O Corredor tem operado como um espaço privilegiado de articulação e convergência dos interesses de diferentes atores, nacionais e internacionais, destacando-se o papel realçado do Estado moçambicano. Os investimentos na construção dos megaprojetos logísticos, para além dos seus efeitos diretos, preparam o terreno para a expansão do agronegócio e para o avanço de megaempreendimentos de exploração mineral, numa dinâmica que amplia as fronteiras de acumulação de capital, desigual e concentradora, cuja força motriz é a competição por recursos e terras. Adicionalmente, neste artigo, pretendemos avançar na construção de um quadro teórico que dialogue com a pesquisa de campo realizada em 2014 e, mais recentemente, em 2017, no Corredor de Nacala.[4]

 

Corredores econômicos, Estado e a mercantilização da terra

Uma dimensão importante do sistema agroalimentar, desde a sua origem, consiste na estruturação e consolidação de fluxos de commodities e mercadorias que conformam cadeias cada vez mais globais (WHITE et al., 2012). Nesse contexto, as infraestruturas voltadas para a viabilização da extração e do transporte desses recursos ganham centralidade. No período denominado por Sassen (2016, p. 21) de nova fase do capitalismo avançado, essas estruturas delineiam a nova geografia da extração e produzem crescentes desequilíbrios com relação à detenção e ao uso dos recursos naturais.

Inserem-se nessa categoria corredores econômicos, clusters, parques e distritos industriais, zonas especiais econômicas e tecnopolos (NOGALES, 2014, p. 1). Os corredores econômicos, objeto de nossa análise, fomentam as atividades econômicas a partir da combinação de estruturas logísticas associadas a um aparato amplo de políticas públicas específicas com vistas à desobstrução dos fluxos econômicos e à circulação de mercadorias (NOGALES, 2014, p. 8; HOPE; COX, 2015, p. 46). Existem diferentes tipos de corredores econômicos de acordo com seu escopo geográfico, setores contemplados e impulsionadores (drivers).

Eles possuem duas dimensões: uma física e uma funcional (HOPE; COX, 2015, p. 2). A física (hard) corresponde à sua materialidade. Ela permite a conexão de grandes aglomerações (nós ou polos econômicos) e inclui uma ou mais rotas e modais de transporte, ao longo de uma área geográfica. Os pontos de conexão com o exterior (Gateways), normalmente portos e aeroportos, os interligam com os fluxos globais. A funcional (soft) harmoniza o quadro institucional relacionado com o campo tecnológico, organizacional, trabalhista, logístico, ambiental, social e legal, procuram eliminar barreiras entre mercadorias e pessoas, simplificar burocracias e/ou flexibilizar legislações (NOGALES, 2014, p. 10).

Os corredores possuem, logo, uma forte dimensão política. O Estado adquire um papel central (NOGALES, 2014, p. 88-9; LEVIEN, 2014) no seu planejamento e operacionalização. Ele ordena as intervenções de acordo com prioridades, interesses e alianças estabelecidas e orienta os investimentos por meio de traçados, rotas e mapas. Ademais, é o Estado quem define e institucionaliza os arranjos financeiros que permitirão a construção dessas infraestruturas, definindo o tipo de financiamento, o grau possível de endividamento e a forma de utilização de empréstimos. É o Estado que cria a justificativa para a implementação do corredor e, em nome desta, conduz as desapropriações e expropriações de comunidades. Uma importante questão se relaciona à forma como o Estado age na construção do consenso e/ou na aplicação da coerção extraeconômica (violência institucional, forças policiais) (LEVIEN, 2014, p. 44). Por serem grandes infraestruturas encrustadas nos territórios, envolvendo grandes montantes de investimentos, os corredores facilitam a convergência e a coordenação de interesses, em particular, entre governos, atores privados e atores internacionais.

Desde o início do século XXI, a estratégia do desenvolvimento de corredores logísticos tem sido cada vez mais associada às estratégias de desenvolvimento centradas no fomento do agronegócio e da mineração nos países em desenvolvimento. Governos dos países ricos em recursos naturais têm trabalhado na conformação de planos de investimentos em corredores econômicos que potencializem e encorajem investimentos no setor agropecuário e mineral. Eles oferecem grandes pacotes de incentivos fiscais, concedem terras e alteram marcos regulatórios diversos (legislação fundiária, ambiental, tributária, trabalhista, agrícola), assegurando a garantia da segurança jurídica aos investimentos. Essas “máquinas para o crescimento” (NOGALES, 2014, p. 12), ao conectarem os territórios com os mercados globais, transformam o espaço e colocam a fronteira agrícola em movimento.

A crescente demanda por cultivos industriais (alimentos e biocombustíveis), por serviços ambientais e por oportunidades de investimentos financeiros tem conformado um novo mercado global de terras controlado por grandes empresas (SASSEN, 2013, p. 26). No caso dos países em desenvolvimento, esse movimento foi impulsionado pelas políticas de ajuste estrutural neoliberais, iniciadas em 1980. O regime disciplinador da dívida e as políticas neoliberais abriram terreno para que as terras e os recursos naturais se inserissem nos circuitos corporativos globais. De um lado, favoreceram o enfraquecimento de Estados e governos; de outro, legitimaram as interferências de entidades supranacionais e internacionais, de corporações transnacionais e de outros governos nas políticas públicas nacionais. O território se transforma em terra à venda no mercado global (SASSEN, 2016, p. 104-10). Em contrapartida, há a expulsão crescente de pessoas e comunidades de suas terras, a acentuação da pobreza, a mercantilização de recursos naturais, o desmatamento e a contaminação de terras e águas (SASSEN, 2016, p. 100-01; 2013, p. 27).

Alguns países africanos, como Moçambique, têm se tornado crescentemente destino desses investimentos em terras. A iniciativa da Land Matrix sistematizou os negócios com terras (propostos, concluídos e desistências e maiores que 200 ha), desde 2000, realizados por meio da compra, arrendamento e concessão com vistas à produção agrícola, à extração de madeira, à captura de carbono, a projetos industriais, à produção de energia renovável, a atividades de conservação e ao turismo. Em junho de 2019, a Land Matrix contabilizava 1.616 negócios concluídos no mundo (ou 42.744 milhões de ha), sendo 506 (ou 35%) realizados em países no continente africano (ou 15.782 milhões de ha). Só em Moçambique foram contabilizados 138 negócios com terras concluídos envolvendo 3.027 milhões de ha.[5] Estima-se que 142 negócios com terra são tocados por estrangeiros em Moçambique (4 milhões de hectares).

Segundo Sassen (2016), as aquisições em larga escala têm como consequência a produção de um espaço operacional global incrustado nos territórios nacionais. O Estado não se retira, mas passa a atuar fortemente alinhado com o capital corporativo mundial (SASSEN, 2016, p. 138). Com papel ativo do Estado, ou por omissão, esses pedaços do território são reorientados para outras utilidades e propósitos conectados à demanda global e descolados das dinâmicas territoriais (SASSEN, 2013, p. 28-29). Cotula (2013, p. 1623) aponta que isso gera tensões crescentes entre as forças de enraizamento e mercantilização da terra.[6] Os novos negócios e os discursos reforçam a mercantilização da terra, ao mesmo tempo que ignoram o enraizamento social e político que caracteriza as relações com a terra nos contextos locais e o papel da terra na composição da identidade social e em valores espirituais (COTULA, 2013, p. 1610). Esses movimentos, contudo, não se dão sem resistência. Essas forças não mercantis, normalmente aglutinadas em torno da soberania alimentar e do direito a terra, agem em diferentes arenas do local ao global, resistindo à mercantilização e influenciando a forma como os negócios com terras são realizados ou bloqueados (COTULA, 2013, p. 1612).

 

Atores e interesses no Corredor de Nacala, em Moçambique

Em países africanos, a estruturação de corredores tem sido recolocada em diferentes períodos históricos (MOSCA, 2016). Desde o século XV, a busca por novas rotas comerciais com o Oriente se traduziu em impulsos à “roedura” do continente africano (HERNANDEZ, 2008, p. 45), tendo à frente exploradores e missionários  (idem, 2008, p. 53). A procura por eixos de acesso ao interior deu impulso decisivo à exploração do continente  (idem, 2008, p. 55). Em Moçambique, no século XVI, os portugueses estabeleceram relações comerciais com o Império de Monomotapa (1325-1700). O fator localização sempre foi estratégico: era escala no comércio com a Índia e era cortado por vários rios, prometendo distintas rotas comerciais. O avanço para o interior se deu a partir do rio Zambeze, originando novas cidades como Sena e Tete. O domínio comercial foi sucedido pela propriedade da terra (prazos da Coroa por três gerações) e o comércio de escravos fortalecido (XVIII-XIX) (HERNANDEZ, 2008, p. 587). A partir de 1975, com a independência, Moçambique teve sua importância econômica reforçada pela sua localização na África Austral: importante porta para o continente pelo oceânico Índico. Três corredores logísticos ganharam destaque: Maputo, Beira e Nacala (MINISTÉRIO DA PLANIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO, 2013, p. 15).

No início do século XXI, os corredores econômicos voltaram a ter destaque nas estratégias de desenvolvimento dos países africanos (NOGALES, 2014, p. 26; SADC, 2012; BANCO AFRICANO DE DESENVOLVIMENTO, 2017; GRAIN, 2015; SASSEN, 2013). As razões enunciadas são: a) ampliar a conectividade física; b) assegurar a segurança alimentar; c) apoiar a integração comercial regional; d) promover o crescimento agrícola; e d) absorver a expansão das áreas urbanas e conectar polos de crescimento.

A região do Corredor Econômico de Nacala sempre ocupou posição estratégica nos planos de desenvolvimento, conectando os serviços de logística com a mineração, a exploração de gás e a produção agrícola. O Corredor permite a convergência de interesses de distintos atores, públicos e privados, atuantes nas mais variadas escalas (do local ao global), criando tensões com relação à posse e ao controle de terras e recursos naturais nessa região. Ademais, opera como um driver importante no avanço do poder das corporações nos territórios, aprofundando políticas de liberalização comercial e acentuando a exploração de recursos. Ao tornar possível o avanço e a exploração de novas áreas, ele tem o poder, também, de moldar o futuro.

Figura 1 – Região do Corredor de Nacala[7]

Fonte: Ministério da Economia e Finanças (2015).

Muitos são os atores interessados no Corredor de Nacala nos tempos recentes. Nos anos 2000, acompanhando o boom das commodities, a região ganhou atenção da mineradora Vale que ali projetou o Corredor Logístico Integrado de Nacala (Clin) como rota estratégica de escoamento do carvão mineral de Tete (via Porto de Nacala e de Nacala-a-Velha). A Vale, que chegou em 2004, é hoje o principal investidor brasileiro em Moçambique. O complexo mina-ferrovia-porto, inaugurado em 2015, envolveu uma complexa aliança entre o governo de Moçambique (Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique) e a mineradora Vale (depois foi incluída a Mitsui).

Os trechos que exigiam a construção de ferrovias ficaram a cargo da concessionária Corredor Logístico Integrado do Norte (Clin), que é uma joint venture detida em 80% pela Vale e 20% pela estatal Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM, controlada pelo governo moçambicano). Onde se requer recuperação, a concessionária é o Corredor de Desenvolvimento do Norte (CDN), que é 51% da Sociedade de Desenvolvimento do Corredor do Norte (SDCN), na qual a Vale tem 85% e investidores nacionais moçambicanos 15%, e 49% da Caminhos de Ferro de Moçambique. Essa concessionária controla também o Porto de Nacala, e a Vale possui um terminal privativo em Nacala-a-Velha. No Maláui existem duas concessionárias. Uma é a Vale Logistics Limited (VLL), que é 100% da Vale e que constrói um novo trecho de ferrovia, a outra é a Central East African Railway Company (Cear), que recupera uma parte da ferrovia já existente (51% da SDCN e 49% detidos da CFM)[8]. Esse complexo arranjo tem viabilizado o Corredor, alinhando distintos interesses públicos e privados.

A instalação (e posteriormente a duplicação) da mina a céu aberto de carvão da Vale foi realizada em conjunto com as construtoras brasileiras Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, que logo ganharam espaço na economia do país.[9] Em 2014, a Vale vendeu 15% da Vale Moçambique (que detém 95% da mina de Moatize e 70% do Corredor Logístico de Nacala) para a Mitsui (um dos controladores da Vale no Brasil). Hoje, a Mitsui e a Vale, associadas ao Estado moçambicano, seguem com o controle da linha férrea, que vem se tornando uma rota de escoamento estratégica. Em 2014, a Rio Tinto vendeu seus ativos em Moçambique (mina de carvão de Benga), devido aos altos custos e às dificuldades para escoar o carvão pela Beira (ferrovia de Sena).[10] Empresas chinesas e indianas têm reclamado dos altos custos no uso do Clin cobrados pelo operador para uso dessa infraestrutura por terceiros (SELEMANE, 2017).

O corredor de Nacala é também um dos seis corredores definidos como prioritários para implementação do Plano Estratégico para o Desenvolvimento do Setor Agrário (Pedsa)[11] (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E SEGURANÇA ALIMENTAR, 2011-2020), que desenha estratégias de desenvolvimento na região calcadas na exploração de seus recursos naturais (agricultura, gás, carvão) e fortalecimento de cadeias globais. O Pedsa se assenta nas orientações da Estratégia da Revolução Verde (de 2007) e da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (Nepad), e vem sendo fortalecido pela Parceria Cresce África. Ele atribui ao Governo a criação de um ambiente propício para o setor privado investir, produzir, processar e comercializar, possibilitando a “transformação” da agricultura de subsistência numa agricultura competitiva. O Plano seleciona alguns produtos e regiões prioritários.

No âmbito da cooperação internacional, o Corredor de Nacala (19 distritos nas províncias de Cabo Delgado, Nampula, Niassa, Zambézia e Tete) coincide com a área de implementação do ProSavana[12] (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E SEGURANÇA ALIMENTAR, 2015, p. 3-7). No Acordo Triangular assinado no dia 17 de setembro de 2009, os representantes de Moçambique, Brasil e Japão definiram que a área de estudo do ProSavana seria o Corredor de Nacala, abrangendo cerca de 14 milhões de hectares em 19 distritos de Nampula, Zambézia e Niassa. O Plano Diretor para o Desenvolvimento Agrário do Corredor de Nacala (2015) é o documento-base para a formulação de estratégias para o desenvolvimento agrário na região. Ele pretende reverter o quadro agrário atual, passando de uma agricultura familiar tradicional e praticante de uma cultura de subsistência e de pousio, para uma agricultura comercial, com sistemas e técnicas de cultivo de alta produtividade (MASA, 2015). O objetivo é contribuir com uma agricultura competitiva e orientada para o mercado por meio da melhoria do acesso a insumos agrícolas, do desenvolvimento de infraestruturas de produção, do fortalecimento das organizações de produtores e da melhoria da pesquisa, extensão agrária e financiamentos.

Os quatro anos iniciais do projeto foram caracterizados por uma intensa luta entre governos e empresários de um lado, e comunidades e sociedade civil de outro. As resistências ao Programa se desdobraram numa articulação dos três países em torno da Campanha “Não ao ProSavana!” (2015), realizando protestos e ações de solidariedade. Em contrapartida, o Mecanismo de Coordenação da Sociedade Civil (2016), patrocinado pela JICA, se coloca a favor do Programa. Mediante o crescimento das resistências, ele foi reformulado, mas não paralisado. De acordo com a primeira versão[13] do Plano Diretor, o Programa irá até 2030 e será implementado em três etapas: 2015-20 (período de consolidação das bases de desenvolvimento); 2020-25 (período de crescimento); 2015-30 (amadurecimento do desenvolvimento). Ele reconhece a importância dos agricultores familiares na segurança alimentar, a preponderância da pequena agricultura de subsistência e se compromete a zelar pela soberania dos produtores (direito à produção de alimentos, à escolha das técnicas produtivas e das culturas a serem cultivadas, bem como ao uso da terra e dos recursos naturais) (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E SEGURANÇA ALIMENTAR, 2015, p. 3-8). As cinco estratégias de ação elencadas, contudo, visam à “conversão” dos produtores familiares de uma lógica de subsistência e extensiva para outra de exploração comercial e de empreendedorismo. Seu foco está nos agricultores emergentes (já produzem cultura de rendimento, áreas até 10 ha), considerados a força motriz da região.

No que concerne ao Japão, Okada (2015) destaca que o ProSavana reflete a nova estratégia de atuação das corporações multinacionais japonesas (pós-crise alimentar de 1973-4 e, mais recente, de 2008), que consiste na liberalização, intensificação e industrialização da agricultura dentro e fora do país. O governo japonês utiliza a assistência oficial para o desenvolvimento para criar um ambiente favorável para a liberalização e a industrialização da agricultura, abrindo espaço para a atuação internacional das empresas japonesas (OKADA, 2015, p. 1). O modelo “três em um” (san-mi-ittai) torna a assistência ao desenvolvimento, os investimentos e o comércio complementares. Para o Japão, a região ganha significância geopolítica, pois é central na criação de cadeias de valor e na competição com a China. Ela interliga regiões produtoras de carvão (Mitsui), a produção de gás (Mitsui via Anadarko Petroleum Corporation) e a produção agrícola (OKADA, 2015, p. 9).

Na medida em que o ProSavana se afunda em meio a polêmicas, a agência japonesa de cooperação, JICA, firmou com o governo moçambicano o Projeto das Estratégias de Desenvolvimento Econômico do Corredor de Nacala (Pedec), 2012-2016, cujo objetivo é orientar investimentos em torno do Clin.[14] Ele pretende organizar distintas dinâmicas econômicas e projetar “cenários de desenvolvimento”[15] para o futuro. O Pedec articula quatro forças motrizes: mineração do carvão para exportação; exploração do gás natural para exportação; crescimento da Zona Econômica Especial (ZEE) de Nacala; e outros projetos de transporte.

No plano nacional, essa diversidade de atores e os múltiplos programas e iniciativas que se direcionam para a região do Corredor de Nacala vão produzindo e fortalecendo narrativas sobre as “vocações” centradas em dinâmicas exógenas puxadas por investimentos estrangeiros. Ao mesmo tempo, o Estado moçambicano, em parceria com grandes corporações (mineradoras) e com a cooperação internacional (brasileira e japonesa), fortalece a narrativa do “vazio” (invisibilizando as comunidades e os produtores que lá vivem), restringindo os caminhos do desenvolvimento à exploração privada de recursos naturais e reforçando a ideia da necessidade de “transformação” da agricultura local numa agricultura comercial e empreendedora. As concessões de terra vão convertendo o território em terra commodity voltada e conectada com as dinâmicas do mercado global e desconectando a terra das dinâmicas territoriais.

Em nível global, o corredor de Nacala vem servindo de ponto focal para a convergência e articulação de diversos interesses públicos e privados, o que vem se refletindo na confecção de pactos, iniciativas e acordos. No âmbito do Fórum Econômico Mundial (WEF, em inglês) a agricultura africana é destaque no interesse de grandes corporações transnacionais. Em 2009, 17 corporações transnacionais[16] lançaram a iniciativa global Nova Visão para Agricultura (com metas até 2050 e englobando 600 organizações), que procura assegurar a segurança alimentar e o desenvolvimento agrícola, via soluções de mercado, na África, Ásia e América Latina. O foco é a “transformação da agricultura” (WEF, 2010). Em parceria com a União Africana, desde 2011, implementam o Programa Cresce África[17] (congrega 200 corporações multinacionais e 12 países), que procura, por meio do aumento do investimento privado, aproveitar todo o potencial agrícola africano (GROW AFRICA SECRETARIAT, 2017). Em Moçambique, o Programa prioriza a cadeia de valor da mandioca e aposta no fortalecimento da plataforma de agronegócios, facilitando o diálogo público-privado.

Fortemente articulada com a Parceria Cresce África, a Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutricional[18] foi lançada em 2012 pelos países do G8. Trata-se de um compromisso desses governos e de grandes corporações transnacionais com países africanos para investimentos na agricultura. Entendem que a “transformação da agricultura africana” requer novos modelos de articulação público-privada e uma transformação do ambiente institucional, legal e político dos países.[19] Moçambique, por meio de um Quadro de Cooperação, assumiu compromissos políticos visando ao restabelecimento da confiança da iniciativa privada. Planeja estabelecer políticas que promovam o mercado de insumos agrícolas liderados pelo setor privado; rever a Política Nacional de Sementes (cessar a distribuição gratuita, implementar normas para leis de propriedade intelectual no registro de sementes, rever critérios que regulamentam a produção, comércio, controle e certificação de sementes); criar nova Estratégia Nacional de Fertilizantes; agilizar as concessões de terras, agilizar os procedimentos de obtenção de Direitos de Uso das Terras (Duat) e permitir o arrendamento ou subarrendamento; promover a liberalização do comércio, entre outros.

Relatório recente da Comissão de Desenvolvimento do Parlamento Europeu (HEUBUCH, 2016) sobre a Nova Aliança pediu a suspensão do apoio da União Europeia à iniciativa, alegando que suas orientações caminhavam para reproduzir, na África, o modelo da revolução verde dos anos 1960-70 centrado na monocultura, mecanização, biotecnologia, dependência de fertilizantes e caracterizado por longos canais de produção para exportação. A relatora aponta que, no geral, o Programa visa à criação de um ambiente favorável às empresas com sérios impactos negativos e riscos para os pequenos agricultores e para o meio ambiente. No que concerne à terra destaca que, embora haja diferentes formas de propriedade fundiária (consuetudinária e comunais, pública e privada), a Nova Aliança estaria centrada apenas na titularização privada de terras, o que acentua a insegurança dos pequenos produtores, promove a expropriação, bem como amplia a mercantilização da terra.

No plano Continental, a União Africana[20] (fundada em 2002) é uma organização que promove a cooperação entre 54 países africanos e que trabalha em prol da integração regional. O Programa Abrangente para o Desenvolvimento da Agricultura na África (CAADP, de 2003) é o subcomponente agrícola da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África[21] (Nepad, em inglês), adotada em 2002, e tem como um dos seus pilares a ampliação do acesso ao mercado por meio do melhoramento de infraestruturas rurais. O Programa para o Desenvolvimento de Infraestrutura na África (Pida, em inglês, com orçamento de US$ 360 bilhões de 2011 a 2040) foi lançado em 2010 pela União Africana, pela Nova Aliança e pelo Banco Africano de Desenvolvimento (AfDB, em inglês). Ele aposta nos corredores econômicos como catalisadores do crescimento econômico multissetorial (BANCO MUNDIAL, 2017) e da exploração dos recursos naturais. O Banco tem apoiado o Clin. 

Desde 2010, o Banco Mundial implementa com o governo de Moçambique a estratégia de desenvolvimento por meio de polos de crescimento, centrada na seleção de sub-regiões dos corredores a serem potencializadas. Os polos são pontos de crescimento econômico ou centros de atividade econômica que se beneficiam de economias de aglomeração. O projeto é coordenado pelo Ministério da Planificação e Desenvolvimento e terá como áreas prioritárias de implementação o Vale da Zambézia (Província de Angônia) e o Corredor de Nacala (Nacala Porto e Nacala-a-Velha), aproveitando-se do maior dinamismo econômico da exploração do carvão mineral em Moatize (MINISTÉRIO DA PLANIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO, 2013). Com um orçamento de US$ 100 milhões (2013-2019, vídeo de 2016), o projeto pretende maximizar os ganhos, explorando sinergias, favorecendo a inclusão, a criação de empregos e a geração de renda (BANCO MUNDIAL 2010, p. 6). O projeto destaca o polo do agronegócio em Tete e o Corredor de Nacala, com apoio à Zona Especial Econômica de Nacala (MINISTÉRIO DA PLANIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO, 2013, p. 9).

Importante mencionar que o processo de internacionalização da agricultura moçambicana e a conexão com os circuitos globais é favorecido pela contínua aplicação de políticas agrárias que, ao não priorizarem suas especificidades, acabaram vulnerabilizando a agricultura tradicional e os produtores familiares. Mosca (2010, p. 217) destaca, no caso de Moçambique, após a independência, dois períodos principais no que concerne às diretrizes de desenvolvimento da agricultura nacional. Na primeira fase, de construção do socialismo e de “socialização do meio rural”, centrou-se em cooperativas com propriedade coletiva da terra, aldeias comunais e empresas estatais. Segundo o autor, os projetos apresentavam pouca aderência à realidade (desconsideração das especificidades dos camponeses e do meio rural), não considerava os mecanismos econômicos de funcionamento da economia de mercado e esbarrava nos desequilíbrios setoriais na economia planificada. A segunda fase, corresponde ao período de ajuste estrutural (1983),[22] com a adoção do Programa de Reestruturação Econômica (PRE) de reformas macroeconômicas liberalizantes. As reformas prejudicaram, na maior parte, os pequenos agricultores (pequena escala e pouca influência nas cadeias de valor), gerando mais competição com importações e doações, e fomentando o crescimento dos mercados informais. Essas políticas foram responsáveis pela secundarização da agricultura e do meio rural nas estratégias nacionais de desenvolvimento e pela priorização da agricultura de exportação. Nos tempos recentes, segundo Mosca (2010), o governo de Moçambique segue aplicando uma política neoliberal.

 

O Corredor de Nacala e as Dinâmicas de Expropriação

No caminho que liga Nacala a Nacala-a-Velha podemos avistar uma placa que diz: “Nacala-a-Velha, a porta de saída do carvão de Tete”. Entre a extração do carvão mineral a céu aberto, em Moatize, e o terminal privativo em Nacala-a-Velha, contudo, há um longo caminho que corta comunidades, estruturas que levaram ao reassentamento de famílias e expulsaram oleiros e trens em alta velocidade que causam atropelamentos. O Corredor Econômico de Nacala tem se mostrado um caso privilegiado de análise e um importante driver de expansão das fronteiras de acumulação de capital e de expropriação de terras, favorecendo a articulação de interesses público e privados e reforçando narrativas de desenvolvimento em torno da exploração de recursos naturais e da “transformação” da agricultura tradicional.

Desde o início da sua construção, em 2012, surgem ao longo do corredor dinâmicas de expropriação de terras e de conversão da terra de formas tradicionais de uso para formas mais comerciais. O início da exploração da mina de Moatize pela Vale produziu inúmeros impactos negativos no território, incluindo deslocamento e reassentamento de comunidades (mais de 1313 famílias em dois assentamentos, Cateme e 25 de setembro), denúncias de poluição e de violação de direitos trabalhistas. O Corredor de Nacala, por sua vez, ao articular distintos investimentos, tem produzido diferentes pressões sobre a terra e dinâmicas de expropriação. Estima-se que a implementação do Clin tenha deslocado mais de 1600 famílias.

Selemane (2017) destaca outros investimentos que se instalaram na região do Corredor de Nacala:

– AgroMoz (2012), com 9 mil ha em Lioma (Gurué) para produção de soja, detida pelo Grupo Amorim e ESF Participações, responsável pelo desalojamento de mais de mil camponeses da aldeia de Wakhua.

– Rio Lurio (2014), com projeto de ocupar 240 mil hectares em Nampula, Niassa e Cabo Delgado, para construção de hidrelétricas e plantação de eucaliptos, com potencial para desalojar até 100 mil pessoas. Gerido pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio.

– Mozaco (2013), com Duat de 2.389 hectares no povoado de Natuto, (Nampula) para produzir soja e algodão. Sociedade entre o Grupo Espírito Santo e o grupo moçambicano João Ferreira dos Santos (JFS), que faz parte da Nova Aliança para a Segurança Alimentar.

– AgroAlfa (2014), ocupou 650 hectares para produção de soja em Monapo.

– Matharya (2014), deslocou 200 famílias em Ribaué. Financiada pelo Fundo da Iniciativa de Desenvolvimento do ProSavana.

– Mozaco (2013), ocupante de 2.380 hectares de terras em Natuto (Malema), com deslocamento de 1.500 famílias, para a produção de soja.

A Lei de Terras[23] de Moçambique é bastante avançada e reserva a propriedade da terra ao Estado (MOSCA, 2010, p. 202). Isso pode complexificar, mas não impede a mercantilização de terras. A terra foi uma das primeiras nacionalizações após a independência (24 de julho de 1975): a luta de libertação foi feita para libertar a terra e os homens (MOSCA, 2010, p. 39; GRAIN, 2015). Isso lhe confere um peso simbólico muito forte. É símbolo da luta contra o colonialismo e recurso fundamental na reprodução econômica, cultural e social das populações rurais (onde estão enterrados os antepassados).

O Estado concede direitos de uso para indivíduos e comunidades por meio de títulos (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra – Duat) que podem durar 50 anos, passíveis de renovação (revisão da Lei de Terras em 1986 – número 1/1986). Concessões de Duat de até mil ha devem ser submetidas aos governadores das Províncias, áreas dentre 1 mil e 10 mil ha são submetidas ao Ministério da Agricultura e da Segurança Alimentar; e as extensões superiores precisam passar pelo Conselho dos Ministros. A legislação protege direitos costumeiros, adquiridos por herança e ocupação (Constituição de Moçambique de 2004 e Lei de Terras no 19/1997). É atribuído um importante papel às autoridades locais (régulos, chefes clânicos etc.) que zelam pela terra e realizam consultas comunitárias. Matavel et al. (2011, p. 21) apontam que a Lei de Terras, contudo, abre as portas para estrangeirização, pois permite que indivíduos e coletivos estrangeiros possam ter facilmente Duats, desde que residentes ou registrados em Moçambique.

Mosca (2010, p. 207) destaca que, ao fim dos anos 1990, a maior procura por títulos[24] gerou um processo crescente de mercantilização da terra com vistas à implementação de empreendimentos, à entrada em sociedades com capital internacional, à especulação com o valor da terra, à exploração de recursos naturais, entre outros. Cresce a utilização da terra como negócio no país (MOSCA, 2010, p. 209). Com a garantia da segurança jurídica pelo Estado, as concessões de 50 anos mostram-se atrativas e baratas aos investidores. Segundo entrevistas, um dos obstáculos para os investimentos na agricultura na região tem sido a proibição do uso de organismos geneticamente modificados e transgênicos, bem como a debilidade de um sistema de financiamento à produção agrícola.

O Estado moçambicano tem um papel importante na garantia da segurança jurídica. Coube a ele negociar o reassentamento de comunidades por ocasião da instalação da mina de Moatize e construir uma narrativa justificadora do investimento, garantindo as concessões, e convencendo comunidades a deixarem suas terras. Coube ao Estado também reprimir protestos e greves por meio da força policial.

Em contrapartida, os relatos de disputa por terra, de expropriações e de deslocamentos foram recorrentes em nosso trabalho de campo ao longo do Clin. Com o corredor, o Estado vem alterando a aplicação de leis, passando a impor o respeito a zonas de proteção parcial de 50 metros a cada lado ao longo de quase 200 km de ferrovia (Regulamentação da Lei de Terras – Decreto no 66/1998). Desde a independência, muitas famílias e comunidades passaram a residir no entorno das ferrovias. O crescimento do interesse das empresas e o Clin mudaram a forma como o governo moçambicano aplicava a lei, e essas famílias precisaram ser removidas. O deslocamento de muitas famílias gerou uma maior procura por terras na região do Corredor de Nacala, resultando não raro em rusgas e na pressão sobre as terras.

Camponeses[25] relataram que era o Estado, por meio da CDN, que negociava com as comunidades, justificando os deslocamentos pela importância do projeto para o desenvolvimento nacional. A Vale acompanhava. O Estado aparecia, assim, ora como sócio, ora como regulador. No caso das comunidades rurais em que a tradição tem um papel importante, a Vale chegou até mesmo a realizar cerimônias tradicionais e religiosas. As negociações e compensações pelas benfeitorias realizadas na terra e as consultas comunitárias foram pouco transparentes. Havia pouca clareza com relação aos cálculos que orientaram as indenizações e, numa situação de ausência de títulos ou registros formais, subestimação das áreas de pousio e de pastoreio, próprias de uma agricultura itinerante. Em certos casos, muito embora as desapropriações abrangessem 50 metros, alguns entrevistados informaram que apenas o que estava dentro de 15 metros fora, de fato, indenizado. Adicionalmente, entrevistas relataram a realização, recentemente, de iniciativas que pretendem ampliar a regularização do uso da terra (concessão de DUATs) para comunidades ou famílias, o que, em muitos casos, diante da ausência de um sistema jurídico e político que garanta os direitos de posse das comunidades (consuetudinários) e do tamanho dos investidores privados, responderia mais a uma lógica de garantia da segurança jurídica aos investimentos e de facilitação da “venda” de terras.[26]

Muito embora a terra em Moçambique não possa ser vendida, os deslocamentos e as compensações impulsionaram uma corrida por terras e a formação de um mercado informal de concessões de uso e posses. Muitos investidores passaram a buscar terras na região do Corredor de Nacala, tendo em vista as perspectivas do Clin. Durante o trabalho de campo, entrevistamos um produtor brasileiro de soja (de Minas Gerais) que se instalou na região do entorno da ferrovia, considerando as perspectivas de utilização dessa estrutura logística para os mercados asiáticos. Segundo o entrevistado, no momento da entrevista (2017), a soja era destinada ao mercado interno, para a produção de ração para aves. Na próxima subida dos preços, ele pretendia utilizar a ferrovia para alcançar os mercados internacionais. Ademais, as famílias deslocadas passaram a procurar outras áreas para ocupar o que, em muitos casos, envolveu a negociação de posses.

Grande parte dos entrevistados que foram deslocados de suas casas (alguns ainda nem tinham sido reassentados, passando a viver em moradias provisórias alugadas) ressaltou a falta de transparência dos projetos. Nesses arranjos, não raro, apareceu o papel de mediador das lideranças locais, régulos ou outras autoridades tradicionais. A Lei de Terras estabelece que a concessão de terras ocupadas por comunidades deve incluir o parecer das autoridades locais precedido da realização de consultas às comunidades. Matavel et al. (2011, p. 30), em estudo, questionam a forma como essas consultas comunitárias vêm sendo implementadas. Para eles, nas consultas, as comunidades são mal informadas sobre o projeto; não podem influenciar as negociações; e são proibidas de questionar. O projeto chega como um fato consumado e as pessoas são incentivadas a aceitar a proposta sob pena de acabarem sem nada. Essas evidências reforçam aspectos ressaltados pela literatura contemporânea que enfatizam que os negócios com terras não se dão no vazio, mas dependem da articulação, em diferentes graus, de atores globais com elites e atores públicos e privados do local (EDELMAN et al., 2013). Selemane (2017), nessa direção, aponta como os investimentos direcionados ao Corredor de Nacala têm contado com a parceria, não só de autoridades locais, mas de atores políticos ligados à Frelimo (em sociedades) que, além de uma oportunidade lucrativa, buscam ampliar a influência política numa região dominada, em grande parte, pela oposição.

O Estado tem um papel central na construção do discurso do interesse público. Muito embora haja resistência aos deslocamentos, as entrevistas mostraram que os camponeses tendem a se convencer mais facilmente quando o projeto é enquadrado como importante para o “desenvolvimento do país”. Aqueles que tentam resistir ou questionar logo são repreendidos por se “colocarem contra o desenvolvimento”. A esperança nos empregos e em ações de responsabilidade social empresarial (doação de livros e materiais, construção de escolas e hospitais, oferecimento de presentes) tem operado, também, como importante fator de convencimento e de melhoria da vida das comunidades. Nas entrevistas, os poucos empregos gerados pelo Clin (segurança, fiscalização ou construção) para pessoas das comunidades do entorno da linha férrea, ainda que temporários, foram ressaltados como fatores positivos. Contudo, segundo relatos, as vagas criadas foram poucas e, em grande parte, temporárias.

Alguns entrevistados afirmaram que, no início, tinham a esperança de que o funcionamento da ferrovia pudesse melhorar suas condições de vida. Havia uma perspectiva de que o trem melhorasse a mobilidade (transporte) e ampliasse a oferta de serviços, como energia e serviços sociais. Com o tempo, contudo, essas perspectivas foram frustradas. A energia elétrica e os serviços sociais não chegaram com o trem e, ao contrário do esperado, o transporte não melhorou. Conseguimos acompanhar, durante o trabalho de campo, a partida do trem de passageiros da estação de Cuamba e verificar a grande quantidade de pessoas que tentavam ingressar no trem, sem sucesso. Poucos conseguiram garantir um lugar.

O trem tem uma importância grande na vida dessas comunidades. É a principal alternativa de deslocamento (mais barata) e um ponto para comercialização de produtos. As estações funcionavam como mercados devido ao intenso fluxo de pessoas. A conversão da linha férrea para o transporte de carvão alterou o número e a frequência dos trens, reduzindo pela metade os de passageiros.[27] O número de estações (apeadeiros) foi reduzido.[28] O Clin, nesse sentido, não parece ter melhorado a mobilidade das comunidades. O território no qual se estruturou o Clin, dessa feita, se moldou aos fluxos de escoamento de mercadorias e às necessidades das empresas, operando numa lógica que deixa pouco espaço para a vida cotidiana. Muitos entrevistados ressaltaram o crescimento no número de acidentes (atropelamentos) com trens, em particular, envolvendo crianças e animais.

O corredor econômico, nesse sentido, transporta com mais rapidez o carvão de Tete em direção “à sua porta de saída”, mas reserva poucas vagas para o transporte de pessoas. A região do Corredor de Nacala, por outro lado, permanece um importante ponto de convergência para investimentos nacionais e internacionais em Moçambique, o que deve acentuar a mercantilização da terra e colocar desafios ainda maiores para o desenvolvimento rural no país.

 

Considerações finais

Está na raiz do sistema capitalista a constante busca pela ampliação dos espaços de acumulação de capital, e as dinâmicas econômicas e políticas do século XXI parecem indicar que os recursos naturais e a terras permanecerão no centro desse processo. Sendo assim, ainda que desde 2012 o boom das commodities venha perdendo força,[29] nada indica que isso se reverta na retirada dos recursos naturais da mira dos investidores ou em um arrefecimento dos megaprojetos extrativos nos territórios. Ao contrário. Buscando manter seus lucros e dividendos, bem como ganhar maiores fatias de mercado, boa parte das corporações que operam na extração de recursos opta por aprofundar a extração, ampliando a produção e cortando custos como forma de contrabalançar os preços mais baixos.

O fim do superciclo das commodities e o imbróglio em torno do ProSavana, portanto, podem até atenuar o ritmo com que os investimentos chegam ao Corredor de Nacala, mas não significam que os planos de desenvolvimento, baseados na exploração de recursos e de fomento à agricultura em larga escala, tenham sido superados. O trabalho de levantamento bibliográfico e documental empreendido, bem como as entrevistas realizadas, nos levam a crer que muita coisa ainda está por vir. Chama a atenção a quantidade de iniciativas que são planejadas para essa região estratégica e o leque diversificado de atores que disputam as terras. Enquanto o ProSavana encontra-se imobilizado e sob os holofotes, outras iniciativas são aceleradas e articuladas. Na atual conjuntura, não está no ProSavana a grande força motriz dos processos de land grabbing no Norte de Moçambique, mas em torno do Corredor Econômico para o qual convergem inúmeras iniciativas protagonizadas por grandes corporações, organismos internacionais e elites nacionais e locais.

No que concerne aos investimentos e à cooperação brasileiros, desde 2016, com a queda acentuada no preço das commodities e a mudança do governo, fruto do impeachment da presidenta Dilma Roussef, observa-se uma mudança nos investimentos e na cooperação brasileira. Os investimentos, tendo em vista o amadurecimento de alguns empreendimentos e a crise econômica e política pelas quais passa a economia brasileira, parecem desacelerar. A cooperação, por outro lado, tem sua lógica alterada, parecendo adotar uma perspectiva mais pragmática de reforço à busca da eficiência e à abertura de novos mercados para as exportações nacionais. A economia moçambicana no contexto atual, por sua vez, também enfrenta uma grave crise, fruto da descoberta de dívidas escondidas do governo e da suspensão das doações internacionais. Nesse contexto, não obstante os resultados tímidos em termos de desenvolvimento humano, o governo segue apostando na exploração dos recursos naturais como saída para a crise.

Nem sempre valorizada nas análises, chamamos a atenção neste artigo para a importância das estruturas logísticas (corredores), em particular na sua dimensão política e na sua capacidade de orientar e articular investimentos. Em torno dos corredores econômicos são instituídos espaços vigência de políticas econômicas (trabalhistas e ambientais) diferenciadas ou flexibilizadas e são implementados esforços na direção da aceleração e facilitação de concessões de terra. Ao encurtarem e baratearem a distância entre extração e consumo, essas estruturas cumprem um importante papel na abertura de novos espaços para o avanço do capital e para o estímulo a outros setores econômicos (mineral, agrícola entre outros).

Ao cruzar múltiplos territórios e comunidades, bem como ao produzir impactos diferentes ao longo do seu trajeto, o Corredor torna ainda mais desafiadora a construção e o fomento de resistências que permanecem dispersas e movidas por interesses diferenciados (resistência por reconhecimento, pela paralisação do programa, por compensações por danos causados, por incorporação nos negócios de terra etc.). Ao considerarmos que, nos tempos futuros, as terras e os recursos naturais seguirão no centro da dinâmica e das disputas capitalistas, percebemos a importância da consolidação de uma abordagem teórica abrangente dos corredores econômicos, bem como das resistências que se conformam ao longo deles. Cabe-nos, portanto, buscar novos instrumentos que nos permitam analisá-los com maior profundidade e que nos possibilitem avançar nessas questões.

 

 

 

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Resumo: (Traçando a saída para o desenvolvimento: o caso do Corredor de Nacala em Moçambique). O artigo aqui proposto faz uma leitura crítica da trajetória recente do boom das commodities, procurando problematizar as estratégias recentes de construção de corredores econômicos centrados em dinâmicas de expropriação de terras e exploração de recursos naturais. Tomamos como caso de análise o Corredor de Nacala, em Moçambique, área preferencial dos investimentos brasileiros no país (em particular, da mineradora Vale) e ponto de interesse de muitos projetos de organizações internacionais e de corporações transnacionais. Defendemos que o Corredor tem operado como um espaço privilegiado de articulação e convergência dos interesses de diferentes atores, nacionais e internacionais, destacando-se o papel realçado do Estado moçambicano. O artigo demonstra que os investimentos na construção dos megaprojetos logísticos, para além dos seus efeitos diretos, preparam o terreno para a expansão do agronegócio e para o avanço de megaempreendimentos de exploração mineral, numa dinâmica desigual e concentradora, de ampliação das fronteiras de acumulação de capital. Adicionalmente, com o artigo, pretendemos avançar na construção de um quadro teórico que dialogue com as duas pesquisas de campo realizadas (2014 e 2017) em Moçambique, no Corredor de Nacala.

Palavras-chave: corredores econômicos; terra; desenvolvimento.

 

Abstract: (Tracing a path toward development: the case of the Nacala Corridor in Mozambique). The article performs a critical analysis of the recent trajectory of the commodity boom, focusing on the strategies of construction of economic corridors centered on the dynamics of land expropriation and exploitation of natural resources. We discuss the Nacala Corridor, in Mozambique, the preferred destiny of ​​Brazilian investments in the country (in particular, that of the mining company Vale) and a point of convergence for many projects of international organizations and transnational corporations. We defend a view that the Corridor has operated as a privileged space of articulation and convergence of the interests of different actors, both national and international, highlighting the central role of the Mozambican State. The article demonstrates that investments in logistics megaprojects, in addition to their direct effects in the territory, prepare the ground for the expansion of agribusiness and mineral exploration in an uneven and concentrated dynamic that opens up new frontiers for capital accumulation. In addition, with the article, we intend to build a theoretical framework that dialogues with two field surveys carried out in Mozambique, in the Nacala Corridor (2014 and 2017).

Keywords: economic corridors; land; development.

 

 

 

 

 

Recebido em fevereiro de 2019.

Aceito em abril de 2019.



[1] Professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e pesquisadora do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA/CPDA) e do Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (GEMAP/CPDA). E-mail: anirakato@yahoo.com.

[2] O atual período de boom das commodities pode ser caracterizado por ser um superciclo, pois não foi derivado de flutuações de curto prazo causadas apenas por fatores microeconômicos (ERTEN; OCAMPO, 2012). Para esses autores, o aquecimento dos mercados das commodities foi impulsionado por: efeitos de mudanças climáticas sobre algumas lavouras (algodão, café, soja e açúcar); sensível redução no ritmo das inovações agrícolas e estagnação das taxas de produtividade; influência da desvalorização do dólar; aumento no preço do petróleo com impactos nas commodities (em particular agrícolas), em virtude do aumento no custo dos transportes, do aumento dos custos dos insumos (fertilizantes, petroquímicos) e do aumento do custo de oportunidade em razão da ampliação da demanda por agrocombustíveis (flex-crops). Adicionalmente, essa valorização refletiu, também, no movimento de baixa de juros promovido pelo Federal Reserve (FED), no início dos anos 2000, e na busca por alternativas lucrativas aos investimentos financeiros num momento de instabilidade dos mercados financeiros (BLACK, 2012), fortalecendo estratégias de diversificação do risco. Essa influência tem sido maior na medida em que se amplia o papel dos investidores institucionais como fundos de pensão, fundos soberanos entre outros, que administram e direcionam ao mercado somas consideráveis de recursos que são aplicados em mercados futuros de commodities, exercendo uma forte pressão sobre os preços.

[3] Segundo estudo da Apex-Brasil (2012), a China constituiu um caso paradigmático desse período na medida em que ganhou market share nas exportações de produtos primários e manufaturados intensivos em recursos naturais, ao mesmo tempo que apresentou perda relativa da importância destes produtos primários em sua pauta exportadora. A China, logo, não apresentou nesse período uma tendência à primarização.

[4]As informações tratadas nesse artigo foram obtidas e trabalhadas no âmbito da pesquisa Expansão do “agronegócio”, estrangeirização de terras e ação do Estado, financiada pelo CNPq e Faperj, realizada no âmbito do Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap/CPDA/UFRRJ), coordenado pelo professor Sergio Leite. A pesquisa de campo contou também com o apoio e a parceria do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS). Foram realizadas duas pesquisas de campo em Moçambique: uma em 2014 (15 entrevistas) e outra em 2017 (9). Entrevistamos camponeses, atores governamentais, lideranças tradicionais, representantes de movimentos sociais, trabalhadores da linha férrea, funcionários do porto, gestores públicos, pesquisadores e acadêmicos, entre outros.

[5] No momento de consulta, a Land Matrix não contabilizava os negócios feitos em Moçambique pela Vale. Estes não aparecem nem na contabilização dos negócios com terras que o Brasil faz no exterior nem na contabilização dos negócios com terras feitos por estrangeiros em Moçambique.

[6] O autor destaca que, ainda que a corrida por terras global tenha propiciado a consolidação de relações mais mercantis com a terra em muitas sociedades, a mercantilização da terra, contudo, não se resume aos negócios com terras promovidos por estrangeiros: muitos têm envolvimento de atores nacionais e locais, e boa parte dos negócios têm sido realizados fora do mercado (COTULA, 2013, p. 1611).

[7] Sem contar as áreas que estão no Malauí e Tete, o Corredor abrange uma área de cerca de 14 milhões de hectares em 10 distritos de Nampula; 7 de Niassa; e 2 da Zambézia.

[8] Informações obtidas em entrevista concedida por funcionária do Portos do Norte, administradora do Porto de Nacala, em Nacala.

[9] GOES, F. “Empreiteiras compete com as chinesas na África”, Valor Econômico, 23 de junho de 2014.

[10] Ver: Sousa (2014) e A Verdade (2017).

[11] O Plano Nacional de Investimento do Setor Agrário – Pnisa operacionaliza o Pedsa.

[12] Durante o Encontro do G8, em Águila, o presidente brasileiro e o primeiro ministro japonês assinaram um acordo bilateral para desenvolver a agricultura nas savanas tropicais africanas por meio da cooperação japonesa e brasileira inspirada na cooperação para o desenvolvimento agrícola do Cerrado, realizada nos anos 1970 (HOSONO, 2012 apud FERRANDO, 2015). Moçambique foi escolhido depois para integrar o programa de cooperação. O Programa de Cooperação Nipo-brasileiro para o Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados (Prodecer) foi instituído em 1979 e envolvia cooperação financeira e técnica com vistas a tornar a região dos cerrados brasileiros apta para a produção de commodities agrícolas.

[13] Em setembro de 2013, vazou um documento intitulado Elaboração do Plano Diretor do Desenvolvimento Agrícola no Corredor de Nacala (Nota Conceitual). A estratégia delineada, em harmonia com o Pedsa, tinha o objetivo de aumentar o lucro do agricultor, por meio do aumento da produtividade, melhoramento da tecnologia agrícola, aumento da produção, em termos de expansão vertical e horizontal, e a diversificação da produção agrícola pela combinação de culturas alimentares e culturas de rendimento (PROSAVANA, 2013).

[14] A área-alvo do Pedec Nacala inclui quatro províncias: Nampula, Cabo Delgado, Niassa e Tete, e quatro distritos da parte norte da Província da Zambézia.

[15] Um “cenário de desenvolvimento” é um conjunto de descrição narrativa das maneiras de desenvolvimento, incluindo ênfase nos setores econômicos, nos padrões espaciais de desenvolvimento e na sequência de desenvolvimento (MINISTÉRIO DA ECONOMIA E DAS FINANÇAS, 2015).

[16]São elas AgCo, Archer Daniels Midland, BASF, Bayer CropScience, Bunge, The Coca-Cola Company, Diageo, DuPont, General Mills, Heineken, Kraft Foods, Metro, Monsanto Company, Maersk, Mosaic, Nestlé, PepsiCo, Rabobank International, SABMiller, Swiss Re, Syngenta, Teck Resources, Unilever, Vodafone, Wal-Mart Stores and Yara International.

[17]A parceria Cresce África (Growth Africa) mobiliza grandes corporações que demonstrem interesse em investir no setor do agronegócio em países africanos. Essas empresas escrevem uma carta de intenções se comprometendo a investir na agricultura. Essa carta, por meio da Parceria Cresce África, é encaminhada para os governos dos países nos quais as empresas pretendem investir (voluntária). Em 2017, no Fórum Econômico Mundial em Durban, a Parceria Cresce África fomentou dois diálogos sobre Alinhamento entre Investimentos no Agronegócio e Sistema Alimentar, com a participação de chefes de Estado, ministros das Finanças, da Agricultura e do Planejamento de diversos países, líderes em negócios alimentares e da agricultura, organizações da sociedade civil e do mercado financeiro, entre outras, para clamar por mais velocidade nos investimentos do agronegócio e nos sistemas alimentares dos países africanos por meio de diálogos sobre reformas políticas e programas prioritários. Para mais informações, ver: https://www.growafrica.com/news/call-action-accelerated-agribusiness-investments-and-food-system-alignment-africa.

[18] Iniciada pelos países do G8: Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Rússia, RU e EUA, com período de vigência: 2012-2022. Vem sendo implementada em dez países africanos: Benim, Burquina Faso, Costa do Marfim, Etiópia, Gana, Malawi, Moçambique, Nigéria, Senegal e Tanzânia.

[19]Dezenove empresas prepararam e assinaram Cartas de Intenções, que descrevem suas intenções de investimentos em Moçambique: Enica, JFS Holding, Khulima Púnguè Agricultura e Serviços, Lozane Farms, Rei do Agro, Sunshine Nut Company, em Moçambique. Internacionais: African Cashew Initiative, AGCO, Cargill, Competitive African Cotton Initiative, Corvus International, Itochu, Jain Irrigation, Nippon Biodiesel Fuel co. Ltd., SABMiller, Sumitomo Corporation, Toyo Engineering Corporation, United phosphorous Limited, Vodafone (G8, s/d).

[20] É sucessora da Organização da Unidade Africana, de 1963, cuja origem remete ao ideal do pan-africanismo. Seu objetivo era incrementar a cooperação entre os seus membros, estabelecer a unidade e a solidariedade entre os estados africanos, defender sua integridade territorial, a independência e a soberania dos seus membros.

[21] Ela é um compromisso dos líderes africanos em torno de um programa em prol do desenvolvimento sustentável. Suas prioridades setoriais incluem investimentos em infraestrutura, saúde, educação, agricultura, ambiente e igualdade entre os sexos.

[22] Vários fatores forçaram a Frelimo às mudanças politico e econômicas, como: a situação de Guerra tinha alcançado a insustentabilidade política, militar, econômica; a economia se ressentia da Guerra e as despesas militares eram muito altas; o conflito acabou com a infraestrutura e o setor estatal tinha dificuldades para produzir; a fome se acentuava; os indicadores macroeconômicos estavam descontrolados, como a inflação, endividamento externo etc.; os aliados naturais, os socialistas, estavam em crise.

[23] Segundo entrevista de um docente da Universidade Eduardo Mondlane, depois da Independência, o debate da terra em Moçambique teve alguns momentos principais: Constituição de 1975, Lei de Terras de 1979, Alteração da Lei de Terras em 1986, Constituição de 1990, Nova Lei de Terras de 1997, Constituição de 1994 (MOSCA, 2010).

[24] Mosca (2010, p. 209) aponta que dificilmente se sabe quem são os concessionados, tendo em vista que aparentemente o registro de terras está blindado. Ele lembra que não é obrigatória a publicação de despachos de autorização de pedidos de aquisição do direito do uso e aproveitamento da terra no Boletim da República ou qualquer outro documento. Normalmente são elites que dominam os centros de decisão, investidores externos, investidores nacionais, comunidades que se organizam por intermédio de organizações internacionais e que, depois, repassam ou alugam terras. O “tabu” em torno desse processo, questiona: Seria a intencionalidade de tornar a privatização mais fácil, pela simples troca de títulos?

[25] Optamos por utilizar o termo camponês, livremente, tendo em vista que era como as famílias se reconheciam durante as entrevistas (camponeses e agricultores, em alguns momentos). Apoiados na definição de Mosca (2010, p. 81), nos referimos aos produtores de pequena dimensão que têm como características: detêm pequenas áreas de produção (menos de 4 ha em sequeiro e 2 ha em irrigação) dispersas em mais de uma parcela como estratégia de redução de risco e em virtude da diversidade do solo; utilizam tecnologias intensivas em trabalho; não usam insumos externos; produzem em grande parte para autoconsumo (apenas alguns com culturas de rendimento); pouca integração nos mercados.

[26] Foram citadas algumas iniciativas nessa direção. Um exemplo citado foi a Fundação Iniciativa para Terras Comunitárias (ITC-F), que trabalha com as comunidades de Cabo Delgado, Gaza, Manica, Nampula, Niassa, Sofala, Tete e Zambézia com vistas a delimitar e registrar terras (Cadastro Nacional de Terras), com o objetivo de fortalecer os direitos territoriais e ampliar a capacidade negocial das comunidades diante das oportunidades de investimentos.

[27] Disponível em: http://cdn.co.mz/transporte-de-passageiros/. Os trens de Cuamba a Nampula são diários (num dia um trem de passageiros segue em direção a Nampula, no dia seguinte, inverte a direção), sendo que às segundas-feiras não tem trem.

[28] Segundo matéria de jornal de julho de 2013, houve uma redução no número de paragens entre Cuamba e Nampula. De um total de 27 paragens (entre estações e apeadeiros) foram mantidos apenas nove estações e apeadeiros. O tempo de viagem foi reduzido de 10 para 7 horas. Fonte: http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2013/07/comboio-de-passageiros-nampula-cuamba-passa-a-ser-mais-rápido.html

[29] Importante destacar que os preços caem mas, de modo geral, permanecem acima dos patamares observados em 2007 (FAO, 2018).