Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 27, n. 1, fevereiro a maio de 2019

 

 

 

Florence Pinton[1]

Sencébé Yannick[2]

 

 

 

Soberania versus segurança alimentar no Brasil:

tensões e oposições em torno da agroecologia como projeto

 

 

 

O Brasil pode ter cara de bom aluno em termos de segurança alimentar e de governança por ter implementado uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) ao mesmo tempo desterritorizada, participativa e descentralizada. Um resultado significativo é sua saída espetacular do mapa da fome, de acordo com a FAO no relatório de 2014 (FAO et al., 2014). O modelo que o país promulga já é amplamente exportado para diversos países da África, através do seu Programa de Alimentação Mundial, pelo Centro de Excelência de Luta contra a Fome.[3] Esse Programa se traduz por uma cooperação implementada pelo Brasil com outros países do Sul para apoiar os governos na implantação de programas de alimentação escolar (entrevista de abril de 2015, PMA, Brasília). Os representantes da FAO no Brasil insistem, por sua vez, sobre a sua contribuição ao programa carro-chefe do Brasil “Fome Zero” e sobre a importância de replicar a experiência brasileira nos países que sofrem com a insegurança alimentar, exportando as boas práticas (entrevista de abril de 2015, FAO, Brasília). O Brasil também é um país precursor no que se refere à criação de um Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), impulsionado desde o final dos anos 1980, o que pode ser considerado uma antecipação à crise alimentar de 2008. Este Sistema é considerado produto da participação importante dos movimentos sociais cujas propostas alimentaram as políticas públicas da última década e substituíram o referencial mundial de segurança alimentar pelo de soberania alimentar, fruto do reenquadramento operado pela Via Campesina em 1996, na ocasião da cúpula da FAO. A soberania alimentar promove o direito dos povos de definir suas políticas e práticas alimentares, o que passa pela manutenção do campesinato, a reforma agrária, o apoio aos mercados locais e o respeito às tradições alimentares (MARQUES, 2010). Caso especial, além do mais, na medida em que a elite rural não pára de se opor e de promover uma agricultura produtivista e um mercado globalizado em contradição com os valores que sustentam o Sisan. De fato, dois sistemas agroalimentares se opõem e vão entrar em conflito aberto com a mudança recente de governo: por um lado, um sistema técnico-ambiental defendido pelo agronegócio[4] cujo projeto político é de modernização ecológica; por outro, um sistema socioecológico defendido pelo mundo das ONGs, dos movimentos sociais e dos representantes do governo de esquerda reunidos sob a bandeira da agroecologia,[5] com uma forte referência ao fim do modelo patriarcal a partir da emancipação das mulheres e do desenvolvimento local.

O jogo político complexo e próprio do Brasil produziu avanços e numerosas contradições, sendo uma das suas expressões a coexistência desses dois modelos (“securização” produtivista e tecnológica pela oferta versus soberania alimentar). A crise política recente atualizou o lobbying que se exerceu nesses últimos anos para pressionar o Congresso em termos de políticas públicas. O empoderamento do agronegócio e o desmantelamento do projeto político levado pelos movimentos sociais nos remetem ao funcionamento do Estado social versus processo de globalização das economias (BEZERRA; PEREZ-CASSARINO, 2016).

Se a globalização da segurança alimentar enquanto problema público se traduz pela sua difusão em numerosos espaços sociais, alcançando um grande número de atores, em compensação, ela caminha em cada país por vias e formas ligadas aos agenciamentos sócio-históricos que lhes são próprios. Este artigo se propõe a analisar os agenciamentos sociais que acompanharam a promoção da segurança alimentar no Brasil no seio de um governo ambíguo porque dual. Valida-se aqui a hipótese de uma interação forte entre o enquadramento que dela é feito e as representações do desenvolvimento num país emergente que consolidou seu estatuto de exportador de recursos primários nessas últimas décadas, desenvolvendo ao mesmo tempo políticas públicas ambientais ambiciosas e apoio à pequena agricultura familiar. Se o processo de enquadramento é, em geral, ligado a lutas de definição entre diversos atores (GILBERT; HENRI, 2012), o da segurança alimentar tem sido no Brasil uma história ao mesmo tempo de luta pela definição do modelo de desenvolvimento e de convergência entre diferentes movimentos sociais. Na continuidade das análises d’E. Dagnino (2007), descrevendo o processo de inserção institucional dos movimentos sociais na ocasião da democratização do Brasil, e do seu destaque por C. Neveu (2011), que mostra a especificidade histórica e brasileira da sua participação direta, nos parece que é possível falar de uma ação pública que se constrói no contexto instável de dois referenciais de desenvolvimento no seio mesmo do Estado.

Esta análise[6] é fruto de um inquérito multiníveis conduzido no Brasil entre 2014 e 2017 – ou seja, antes, durante e depois da destituição da ex-presidente Dilma Rousseff, composto por aproximadamente cinquenta entrevistas com os principais gestores das políticas agrárias e da segurança alimentar, representantes das agências da Organização das Nações Unidas no Brasil e diversos atores da questão fundiária. Além disso, é preciso acrescentar os discursos gravados com pesquisadores, líderes de movimentos sociais, grupos de agricultores, assim como a observação de determinados eventos sociopolíticos, acadêmicos e militantes (conferências nacionais, congressos, manifestações e ocupações).

A primeira parte deste trabalho trata da “brecha”, noção utilizada para descrever a relação específica que liga o Estado e a sociedade civil em um momento específico da sua história. Assim, a existência dessa brecha na espessa muralha do acesso ao poder, a terra e aos direitos sociais teria permitido aos movimentos sociais flexionar as políticas do Estado em seu favor e, desta maneira, fazer avançar a ideia de soberania alimentar. Porém a participação dos movimentos sociais nas políticas públicas coexistiu com a influência crescente dos atores do agronegócio. A segunda parte mostra como se estruturou essa dualidade no terreno, entrando por intermédio dos atores, dos discursos e das relações de força em jogo. O longo trabalho de envolvimento recíproco e de integração dos movimentos sociais em torno da agroecologia se realizou enquanto se operava um trabalho de legitimação do modelo de exportação associado a uma política de “esverdeamento” dos modos de produção do lado do agronegócio. Na última parte, mostramos o fim do engajamento no período que segue à chegada ao poder do ex-presidente Temer e que, trazido para nossa temática da segurança alimentar, ilustra o desafio recorrente que representa as modalidades do acesso a terra e ao fundiário.

 

 

 

A brecha: construção, enquadramento e ancoragem da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

A definição de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) é baseada num elemento fundamental, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). A inovação institucional que este constitui deve-se à singularidade do contexto em que nasceu com a inscrição na Constituição de 1988 de “direitos garantidos” que vão estimular a criação de mecanismos de mediação das demandas sociais para facilitar a participação política dos cidadãos nos processos decisórios. A sociedade civil, amplamente representada, tem um papel de proposição e elaboração das políticas públicas ao lado dos representantes ministeriais cuja diversidade de áreas permite teoricamente garantir a apreensão global do problema da fome. Sua implantação na paisagem política é também fruto da história da luta contra a fome no Brasil que preparou as diretrizes militantes e globais que vamos retraçar. Essa história é produzida a partir de trajetórias múltiplas que se desenvolvem em temporalidades específicas.

Josué de Castro[7] é o primeiro a estabelecer a ligação entre o subdesenvolvimento da região do Nordeste, submetido a episódios de seca recorrentes, e a fome da qual sofrem suas populações rurais. Durante a ditadura (1964-1984), período de regressão dos direitos e de aumento das desigualdades e da pobreza, o tema da fome se tornou tabu (LEÃO; MALUF, 2012). Com a chegada dos militares ao poder, ocorre também a dos grandes proprietários, preocupados em cortar de imediato o crescimento das lutas agrárias que marcam um país cuja história colonial corre atrás dele. No crepúsculo da ditadura, para pesar sobre a nova Constituição de 1988 e limitar as veleidades de reforma agrária (MENDONÇA, 2010), uma Frente Ampla da Agricultura Brasileira (Faab) se constitui para prosseguir na “modernização conservadora” empreendida durante o governo militar. Pois os anos de transição democrática do Brasil vão colocar de novo na agenda esse desafio e imprimir seu marco de forma durável na concepção multidimensional da segurança alimentar e nutricional, num contexto internacional em que os princípios neoliberais são reafirmados. O sociólogo Herbert José de Sousa (Betinho)[8] assume um papel considerável apoiando a mobilização contra a fome e a miséria de amplos setores da sociedade civil que terão uma ação determinante sobre a criação do primeiro Consea, em 1993. A realização da 1a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, um ano depois, gera as primeiras ações nesse sentido, mas o contexto político da época leva à extinção do Consea, apesar dos avanços realizados. A publicação do mapa da fome pelo Ipea[9] em 1993 revela que 32 milhões de brasileiros estão na pobreza, enquanto importantes mobilizações sociais fazem nascer, alguns anos depois (1998), o Foro Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). Este constitui o berço ativista que vai alimentar a governança e as ideias do segundo Consea recriado em 2003, notadamente o direcionamento para a soberania alimentar e a luta contra a concentração da terra. A composição desse Foro, no qual múltiplas entidades podem se expressar, marca a concepção do Consea e permite-lhe assumir o papel de caixa de ressonância das reivindicações da sociedade civil, assim como de arena, tendo múltiplas antecâmaras e locais de ecos (NASCIMENTO, 2012). Francisco Menezes, presidente do Consea de 2004 a 2007, resume a situação nesses termos:

Nos anos 1990, a campanha contra a fome coincide com a retração do Estado e o desenvolvimento de uma visão neoliberal. Frente a um Estado cada vez mais fraco, precisava criar um movimento de cidadãos para manter a continuidade e defender também a importância de políticas públicas para lutar contra a fome. (Entrevista de abril de 2017, Rio de Janeiro)

Vale ressaltar nesse processo o peso dos nutricionistas e do setor da saúde pelo seu papel precursor na definição do direito à alimentação. A primeira Conferência tratando de nutrição ocorreu em 1986, na ocasião da 8a Conferência Nacional de Saúde. Já se preconiza a implementação de uma política nacional de alimentação e nutrição e de um conselho com ampla representação da sociedade civil (LEÃO; MALUF, op. cit.). Encontra-se essa mesma preocupação dez anos mais tarde, na Cúpula Mundial da Alimentação de 1996, em Roma, levada à frente pela delegação brasileira. A preparação da Cúpula foi a oportunidade de reanimar a mobilização da sociedade civil e a coordenação entre movimentos sociais através de um comitê associando governo, sociedade civil e iniciativa privada (NASCIMENTO, op. cit.). Os objetivos desse comitê são o reconhecimento do Direito Humano a uma Alimentação Adequada (DHAA), e suas ações se situam tanto na escala nacional quanto na internacional, em cooperação com outras ONGs. O DHAA foi inscrito na Constituição brasileira em 2010. Retomando certos relatórios da ONU (1999), a alimentação adequada integra dimensões políticas, tais como a cultura, o gênero, a etnia, a biodiversidade. As consequências são importantes: a afirmação de uma dimensão pluricultural e étnica da nação através da garantia de um dos seus direitos fundamentais, fazendo da alimentação um patrimônio cultural nacional. A publicação em 2005 do primeiro guia alimentar destinado à população brasileira com diretrizes oficiais abre caminho à crítica do setor da agroindústria e dos seus alimentos “ultratransformados” e “contaminados pelos agrotóxicos e os OGM”.

Vale ressaltar também, e paralelamente, o papel dos sindicatos e das lutas agrárias que obterão o reconhecimento progressivo da agricultura familiar na paisagem agrícola brasileira marcada pelo impulso de uma agricultura industrial promovida pela revolução verde, mas cujas consequências exacerbam mais do que resolvem o problema da fome. O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), criado em 1979, conseguiu mobilizar o campo, organizar ocupações de fazendas até obter a adoção de um vasto Plano de Reforma Agrária pela Nova República (1985) cuja aplicação, todavia, muito limitada, por conta das oposições da elite agrária (SENCÉBÉ; CAZELLA, 2015). No entanto, a criação, em 1999, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ao lado do muito poderoso Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), dedicado à exportação, institucionalizou a agricultura familiar, reconhecendo sua participação na alimentação dos brasileiros.[10] Por outro lado, a criação do MDA levou as organizações de movimentos sociais a adaptar suas estratégias e a se unir aos conselhos e comissões de gestão de política pública ad hoc que se criaram (ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2011), tais como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e de Agricultura Familiar (Condraf), em 2003. Essa criação ministerial acabou igualmente nas instituições e nas políticas, com uma abordagem dualista do desenvolvimento do país fundada na coexistência de dois tipos de agricultura: a agricultura patronal de empresa e a agricultura familiar camponesa (SABOURIN, 2007). Ela é o resultado de um meio-termo entre a permanência de uma diretriz exportadora e das políticas redistributivas (de terras, de benefícios sociais, de meios de acesso ao mercado para os pequenos produtores) fundadas na soberania alimentar. O acesso ao poder em 2003 de um presidente de esquerda (Lula), ele mesmo oriundo do sindicalismo, abriu uma nova etapa de consolidação no acesso dos movimentos sociais à gestão das políticas públicas. Esses ganharam legitimidade, chegando até a participar da designação de certos postos em ministérios. Defendemos a ideia que a euforia da pós-ditadura, associada à instabilidade dos regimes políticos que se seguiram, foi favorável à emergência de uma política de segurança alimentar, à obtenção de novos direitos para as populações mais vulneráveis e ao envolvimento da sociedade civil, constituindo desta forma uma primeira brecha.

Ao chegar ao poder, Lula tem a experiência dos movimentos sociais e da participação cidadã.[11] Uma das suas primeiras ações foi reinstituir o Consea. Esse recebe atribuições ampliadas e uma composição marcando o reconhecimento da participação social na elaboração das políticas públicas.

O programa “Fome Zero” se baseou nos conhecimentos acumulados em dez anos nas áreas de nutrição e alimentação, e ganhou uma forte adesão do conjunto dos movimentos sociais. A segurança alimentar é claramente pluridimensional e direcionada para a luta contra a pobreza. O Fome Zero inscreveu a SAN como objetivo prioritário do governo e se concretizou com uma política nacional.[12] A criação do Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate contra a Fome (MDS) tem por objetivo coordenar os 19 ministérios e os 49 programas envolvidos nessa luta (MARQUES et al., 2014)[13]. Graziano, próximo de Lula, agrônomo e economista, que assumiu mais tarde a direção da FAO, organiza a estruturação e se torna ministro do mesmo. O MDS é, junto com o MDA, o apoio principal e o transmissor dessa política perante as outras engrenagens do Estado, acentuando o princípio de dualidade, já instituído. O decreto constitutivo do Consea o nomeia como responsável direto pela elaboração das diretrizes gerais da Política Nacional de SAN e o coloca sob a autoridade da Presidência da República. Abre-se então um período de aprendizagem, como conta Francisco Menezes (NASCIMENTO, op. cit., p. 29): “Tanto o governo quanto a sociedade tiveram que aprender o caminho da participação, cada um no seu ritmo”. Precisa esperar dessa forma o decreto de 2007 para que uma câmara interministerial (Caisan) seja baixada a fim de implementar o trabalho intersetorial e participativo. A Caisan tem por objetivo elaborar “a partir das diretrizes emanando do Consea” a PNSAN e o Plano Nacional. É estipulado no decreto que ela deve agir em “interlocução permanente” com a instância participativa.

A temática da fome permanece na agenda governamental desde o final da ditadura, com alternância de períodos de avanços e períodos de regressão, e uma reversibilidade sempre presente. Sua inserção na agenda e sua conceituação como problema público remete à mobilização e à articulação de múltiplos atores da sociedade civil e da integração de duas grandes áreas de políticas públicas – saúde e nutrição de um lado, agricultura e abastecimento de outro lado – em torno de um projeto de sociedade em que a alimentação se torna um operador que federa. Porém, esse projeto avança num contexto desfavorável quando se considera o peso de outras esferas de influência. No nível internacional, as grandes organizações como a FAO e a OMC são ambíguas quanto à sua prioridade referente aos modos de produção agrícola e ao regulamento da segurança alimentar. Na cúpula da Terra de 2012, a promoção da economia verde como melhor engajamento para salvar o crescimento (FOYER, 2015) se confirmou, seguida, na escala da nação, pelo reforço do agronegócio e o “esverdeamento” do discurso dos seus representantes. Esse processo avançou opondo as demandas das classes populares às elites da agroindústria, entre objetivo de crescimento baseado na exportação de commodities e reivindicação de justiça social e de soberania alimentar. A dualidade, espécie de compromisso institucional instaurado no decorrer da transição democrática, permitiu que esses dois mundos convivessem no seio do Estado na base do estreito suporte constituído pela aliança dos partidos de esquerda no governo, com as forças conservadoras.[14] É o que fazia o Lula dizer: “Nós não chegamos ao poder, nós chegamos ao governo” (DELCOURT, 2010, p. 14). Esse compromisso institucional não aguentará muito tempo.

 

Caminhos paralelos: alianças e estratégias em torno da dualidade dos modelos agroalimentares no Brasil

Os movimentos sociais, assim como o setor do agronegócio, tentaram, cada um do seu lado, mas numa incessante relação de força, construir uma certa unidade, a fim de reforçar suas redes de influência e sua capilaridade na sociedade. O compromisso institucional é levado à sua mais viva expressão no governo Lula com a chegada de gestores próximos dos movimentos sociais no seio de um Estado ainda em parte nas mãos das elites tradicionais.

 

Movimentos sociais

A convergência dos movimentos sociais, no seio do Consea, funciona por agregação de reivindicações dos grupos sociais em busca de direitos (trabalhadores rurais sem-terra, agricultores familiares, negros, jovens, mulheres, índios etc.), fazendo da questão da fome um ponto de passagem obrigatório. O Foro Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) é o primeiro fermento de articulação em torno do direito humano à alimentação. Ele é oriundo de duas entidades: o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase).[15] Seus objetos, a educação popular, a formação da sociedade civil e a produção de informações fazem deles focos de mobilização e de participação e os arquitetos da implementação em rede. Os três presidentes do Consea que encontramos são oriundos deles. Francisco Menezes (2004-2007), economista do desenvolvimento, tem participado ativamente desse Foro como diretor do Ibase. Renato Maluf, economista e membro do centro de referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) assumiu a Presidência entre 2007 e 2011. Finalmente, Maria Emília Pacheco, antropóloga (mandato 2011-2017), participa também do Foro como responsável da Fase. Vale frisar na ocasião o papel dos científicos, notadamente economistas, agrônomos, sociólogos e nutricionistas que têm a capacidade de levar o pleito dos “Sem” e dos excluídos que conta o país. Os temas das Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN) retomados em 2004 mostram igualmente a ampliação do enquadramento da questão da fome, em eco ao movimento socioambiental que se estruturou também desde os anos 2000. Assim, o tema da 3a CNSAN em 2007, “Por um desenvolvimento sustentável com soberania e segurança alimentar e nutricional”, integrou os desafios ambientais às suas temáticas e os indígenas como novos aliados. Se a SAN assume, durante um primeiro momento, o papel de agregador de reivindicações na conquista dos direitos cidadãos, uma dinâmica de “coalisão de causa”[16] em torno de um projeto agroecológico afirma-se depois.

Essa última é desencadeada pela constituição da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) em 2002, que compartilha com o Consea muitos campos por terem linhas de pensamento semelhantes, interações constantes e organizações conjuntas.[17] Ela traz ao Consea a dimensão ambiental militando por uma Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), enquanto ela escolhe a SAN como referencial prioritário, ao lado da agricultura familiar e da agroeologia. Formada hoje por 23 redes regionais e locais e centenas de organizações, a ANA se define como um espaço de coordenação e de convergência entre os movimentos, redes e organizações da sociedade civil engajados em experiências de campo (KALIL, 2016). Sua abordagem tem como estratégia a aliança com os movimentos de contestação do modelo agrícola industrial e a capacidade de negociar diretamente com o Estado para planejar a implementação de uma Pnapo. Ela tem suas raízes na ação de ativistas de campo para uma agricultura alternativa entre os quais membros da Fase, ao lado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que lança em 1983 o tema da agricultura familiar e do desenvolvimento rural em contraponto ao referencial da revolução verde. A implementação em rede dessas experiências leva a ANA a se abrir além da agroecologia para constituir um nível federalizador de extensão maior (entrevista da ANA, abril de 2017, Rio de Janeiro). A ampliação dos debates convenceu uma parte das organizações indígenas do interesse de se juntarem à coordenação para defender seu sistema agrícola tradicional e a sociobiodiversidade que o mesmo garante.[18] A ANA adquiriu também visibilidade pelos seus Encontros nacionais e o apoio da pesquisa através da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), que organiza congressos nacionais desde 2003.[19] Duas instâncias de gestão foram implantadas no seio do MDA para definir a Pnapo: uma Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (Ciapo) e uma Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), e ambas têm como vocação facilitar a participação e a intersetorialidade através dos grupos de trabalho formados por representantes ministeriais, do Consea e dos movimentos sociais, assim como por pesquisadores. Vale assinalar a constituição, em 2013, do grupo de trabalho encarregado de elaborar o futuro Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara).

É preciso evocar também o trabalho de envolvimento da sociedade civil e de apoio governamental que se tornou efetivo com a descentralização do Sisan e as ações do Consea. O enraizamento do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) nas realidades locais acontece no momento da inscrição desse direito na Constituição. As Conferências Nacionais são preparadas a partir das conferências estaduais e municipais, durante um processo participativo, e são, desta forma, uma das correias de transmissão  em direção à sociedade civil, tanto quanto uma engrenagem de elaboração das políticas públicas. O Consea assume nisso um papel estratégico de formulação e de encaminhamento das reivindicações sociais consignadas nos documentos produzidos na montante e na jusante de cada Conferência. Os documentos preparatórios da 5a Conferência (2011-2015), da qual nós participamos, denunciam “os danos causados pelo modelo agrícola concentrador de terra, pela monocultura intensiva e pelos riscos da utilização de OGM”. Os autores solicitam

novas bases para um modelo de produção e de consumo em acordo com os princípios de soberania alimentar, sustentabilidade, justiça social e climática e participação social”  e a “garantia dos direitos territoriais e patrimoniais, e o acesso à terra e aos recursos naturais para os povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.

Essas temáticas foram tratadas na ocasião de “mesas de controvérsias”, organizadas pelo Consea, para as quais são convidadas diversas partes interessadas (empresários, pesquisadores, deputados, ativistas etc.), o que confere a essa instância dois papéis habitualmente separados pela fronteira entre governantes e governados: a expressão da crítica e de um contrapoder por uma parte, e a elaboração das políticas públicas por outra parte. Duas reivindicações vão aliás ressurgir durante a Conferência: “Pronara já”, programa amplamente defendido pela sociedade civil com o apoio do Consea, do Condraf e da Cnapo, e “Não à PEC 215”, vindo dos indígenas em referência ao projeto de emenda constitucional ameaçando seus direitos territoriais. Mas o estouro de uma crise econômica e política, assim como a nomeação, em 2014, de Kátia Abreu para a chefia do Mapa, apoiada pelas indústrias agroquímicas, bloqueou qualquer possibilidade de compromisso.

 

O agronegócio

O conjunto socioeconômico que constitui hoje o agronegócio, apesar de ser heterogêneo e espalhado no território, soube estruturar suas diferenças e organizá-las em agrupamentos de interesses e lobbies, ativos nas múltiplas dimensões da vida cotidiana. Esse setor dispõe atualmente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), criada em 1993 por Ney B. de Araújo, herdeiro do Grupo Agroceres,[20] de um sindicato (a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA),[21] da Academia Nacional de Agricultura, de um sistema de formação (Sociedade Nacional de Agricultura – SNA), sem omitir a criação de diversos órgãos de reflexão e ramificações importantes nas esferas universitárias. Pode ser acrescentado a isso o setor portuário, de transporte e de energia, cujas atividades são integradas à “cadeia de valor agroindustrial” e cujas certas unidades pertencem aos grandes grupos do agronegócio, e, finalmente, a imprensa e canais de televisão. A unidade ideológica e a coerência de ação estratégica para estender seu poder são o resultado de um longo trabalho político e de meios consideráveis implementados pelo Estado para assegurar a modernização econômica do setor agrícola a partir dos anos 1970. A construção política da Faab reflete a vontade de soldar o setor no seio da Nova República (BRUNO, 2002), além da antiga elite rural, símbolo do passado colonial do país. O movimento de integração da agricultura nas cadeias industriais e do mercado financeiro se encontra nos componentes dessa frente que integra organizações por produto tanto quanto uniões bancárias ou a indústria dos agroequipamentos.  

Essa modernização técnico-econômica exige, no entanto, do patronato rural, uma legitimação ideológica da qual se encarrega a Abag, por meio da organização de congressos que representam um momento forte do movimento. O título da obra fundadora da Abag em 1993 é eloquente (Segurança alimentar: uma abordagem do agronegócio). A referência à segurança alimentar justifica a demanda de apoio público ao setor que o Estado sempre honrou, sem falha. Além dos orçamentos consideráveis transferidos ao setor através do seu Ministério,[22] existe um amplo leque de ferramentas de intervenção que os atores integraram à sua estratégia (LEITE, 2015): políticas de ordenamento (infraestruturas rodoviárias, represas), regulamento do trabalho, regulamentação ambiental e florestal, e, finalmente, política de oferta de crédito. Vale observar, para frisar a proximidade – senão a colusão dos poderes – do agronegócio com o Estado, que o Mapa é muitas vezes dirigido por representantes de primeira linha do setor,[23] qualquer que seja a cor política do governo. Mesmo se a expansão do setor da agroindústria vai em sentido oposto aos projetos de sociedade defendidos pelos movimentos sociais, as divisas geradas pelas exportações sustentam as políticas redistributivas implementadas na Presidência do Lula e têm a fama de contribuir amplamente com o emprego e o PIB.

Essa legitimação ideológica é complementada por ações de formação e uma atividade editorial importante. Roberto Rodrigues, líder maior do agronegócio[24] e ministro da Agricultura no governo Lula (2003-2006), foi um dos que a construíram. Esse diplomado da Escola de Agronomia da Universidade de São Paulo, que fornece ao setor seus principais executivos e pensadores,[25] dirigiu o Centro do Agronegócio da Faculdade de Economia da Fundação Getulio Vargas. A Abag está também inserida numa ampla rede de agências e de think tanks, o que lhe permite estender sua influência e reforçar sua legitimidade. Campanhas publicitárias completam esse arsenal para alcançar o público através dos slogans valorizando a produção agrícola do país e mostrando a corrente de interdependência que liga cada cidadão-consumidor ao agronegócio. Desse conjunto de ações, emerge um verdadeiro projeto político visando reformar o Estado, apoiar a vocação exportadora do país e finalmente

construir a família Brasil, no sentido de uma sociedade que se preocupa com o seu próprio futuro, na qual os cidadãos sejam capazes de produzir e consumir em benefício da competitividade global do país. (LACERDA, 2011, p. 193)

Um processo de descentralização e de estruturação da base dos produtores, notadamente através da Organização das Cooperativas Brasileiras,[26] assegura a dominação territorial do agronegócio e a integração setorial de uma parte modernizada da agricultura familiar.

A partir dos anos 2000, o agronegócio posicionou seu discurso na cena internacional. O argumento da demanda crescente de produtos para alimentar o mundo é então apresentado, enquanto a bandeira da sustentabilidade e da “ecologização” da agricultura vem “esverdear” a temática da segurança alimentar, estimulada pela preparação da Conferência Rio+20. O enquadramento da segurança alimentar se concentra na oferta de alimentos, excluindo o tema da nutrição presente, no entanto, na agenda das instituições internacionais (DEMEULENAERE; CASTRO, op. cit.). O congresso de 2015, que ocorreu alguns meses antes da COP 21 de Paris, é revelador da mudança iniciada (Relatório final, 2015): a intensificação tecnológica sustentável associada a uma engenharia ecológica[27] constitui a ferramenta conceitual da promoção de um modelo altamente produtivo capaz de alimentar o mundo protegendo o clima, graças a uma Agricultura de Baixa Emissão de Carbono – ABC, cujo plano nacional foi implementado desde 2012. Essa “climatização da agricultura” (FOYER, 2017) constitui o projeto defendido pela delegação brasileira, que foi das mais numerosas (850 delegados) na ocasião da Conferência de Paris, com uma forte representação do agronegócio (AUBERTIN; KALIL, 2017). “O agronegócio do futuro”, apresentado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e defendido pela delegação, apagou a realidade dual do Brasil.

 

Objetivo terras. O agronegócio no poder

O compromisso institucional cedeu com a destituição da ex-presidente Dilma Rouseff e a chegada no poder de uma aliança de partidos ligados ao agronegócio. O governo interino que se instalou lançou diversas reformas e, entre elas, umas contra a corrente das políticas de SAN. A questão fundiária volta ao centro dos desafios. Trazida para nosso objeto, a segurança alimentar, tal como defendida pelos detentores do agronegócio, chama para uma “nova ordem rural”,[28] propícia ao desenvolvimento de uma agricultura à grande escala, produtivista e de alta tecnologia, e que demanda sempre mais terra para satisfazer essa missão. A Bancada Ruralista é o ator dominante dessas propostas. Essa frente, cujos parlamentares cobrem completamente o xadrez político e todos os Estados, se tornou muito majoritária no Congresso. Ela integra uma frente oficial, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que dispõe no mandato atual (2015-2020) de 40% das vozes do Congresso (DELCOURT, 2017). Sua linha de ação é a defesa dos interesses do grande latifúndio e a exploração em grande escala dos recursos que possui o país. Deve-se a eles a reforma do Código Florestal (AUBERTIN, 2016), seguida de inúmeras leis indo no sentido de um enfraquecimento das políticas de conservação e da fragilização dos direitos fundiários obtidos pelo Movimento dos Sem Terras (MST). O acometimento à integridade dos territórios indígenas traduz a força dessa nova e última frente de conquista das terras agrícolas.

Uma das primeiras medidas do governo interino foi a supressão de dois ministérios essenciais à realização da PNSAN, o MDA e o MDS, substituídos por duas pequenas secretarias colocadas sob a tutela da Presidência. A isso, acrescenta-se o bloqueio dos fundos destinados à agricultura familiar previstos no plano de campanha de 2016-2017, ao passo que as reformas dos sistemas de proteção e do regime de aposentadoria agrícola acabam com o sistema redistributivo indispensável à manutenção de numerosas famílias camponesas.[29]

Outra série de medidas é destinada a oferecer as terras ao mercado nas margens que escapavam ainda da propriedade privada, quer seja em detrimento das populações que as utilizam ou que isso se refira a terras sem título de propriedade estabelecido. Nessa nova agenda política, a reforma agrária, a consolidação de direitos fundiários ou a luta contra a desflorestamento (PINTON; AUBERTIN, 2010) não estão mais na pauta, senão de maneira invertida. É através de uma medida provisória que, em dezembro de 2016, o governo tornou possível a venda no mercado fundiário de parcelas de terras atribuídas aos “sem-terras”. Porém, essa reforma agrária inacabada tinha permitido instalar um total 1,3 milhão de famílias em 88 milhões de hectares até 2014 (CAZELLA et al., op. cit.). Essa medida é ainda mais insidiosa pelo fato de arriscar enfraquecer a coesão do movimento social, introduzindo a discórdia entre pequenos camponeses em busca de dinheiro e ativistas opostos a essa mercantilização. A PEC 215, emenda proposta pelo FPA,[30] pretende paralisar o processo de delimitação de territórios indígenas, de criação de áreas protegidas e de titulação de terras quilombolas. Ela pretende também favorecer o estabelecimento de atividades de alto impacto ambiental (exploração de mineiros, estradas, represas) em nome do crescimento e do desenvolvimento e da ideia difundida na classe ruralista segundo a qual “a Amazônia, são muitas terras para poucos índios”.[31] Essa versão foi transmitida pelo “Canal do produtor”, o canal numérico do CNA no seu site “Terras do Brasil”.[32] As instituições encarregadas de defender o meio ambiente, a floresta, os direitos dos pequenos camponeses e dos indígenas são fortemente enfraquecidas nas suas competências e meios de ação. Vale citar o caso particularmente significativo do Ministério da Justiça em que foi nomeado como ministro um dos líderes da frente ruralista, que iniciou a PEC 215 alguns anos atrás, o caso do Ministério do Meio Ambiente, que teve seu orçamento de 2017 reduzido em 53% (DELCOURT, 2017), ou ainda o caso do desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai).[33] A supressão do Entendimento Agrário, órgão de concertação criado no governo Lula para pacificar os conflitos fundiários, deixou espaço para a explosão de violências contra populações vulneráveis. Essas exações, chegando até massacres, exercidas até então nas áreas de fronteiras agrícolas se referem doravante aos territórios indígenas (CUNHA, 2017). Esse contexto é também favorável à retomada do desflorestamento na Amazônia (INPE, 2016).

Diante dessa volta da elite agrária ao poder, o Consea, em acordo com outros Conselhos participativos, decidiu se manter no novo governo como “lugar de produção de conhecimentos” e “como lugar possível de reconquista da democracia” (entrevista de E. Recine, nova Presidente, abril de 2017). Mas é uma dupla estratégia de resistência no interior do Estado, e de ofensiva no exterior, que se instala para responder a relações de força muito desequilibradas. Antigas figuras do Consea marcadas pela ditadura, tais como Maria Pacheco, Francisco Menezes ou ainda Renato Maluf, estão na frente, se esforçando para manter as instâncias de participação em vida, exercer seu papel de disparador de alerta para as ONGs internacionais quanto aos efeitos sociais das reformas em andamento[34] ou ainda mobilizar as redes universitárias estrangeiras. Os militantes ligados diretamente à agroecologia se ativam também através das redes e em campo. Um movimento de resistência “contra as medidas do governo Temer e da bancada ruralista” nasceu em maio de 2017.[35] A ele se juntaram rapidamente 83 entidades, cujas principais são ligadas às questões fundiárias, aos povos indígenas e comunidades tradicionais, ao setor ambiental e aos órgãos de destaque do Consea (Ibase e Fase). Esse movimento nacional, que pretende “denunciar e resistir”, se expande por capilaridade em todas as regiões e multiplica suas intervenções. Sua capacidade de mobilização e de ação é sem dúvida o produto das múltiplas ramificações que organizam a sociedade civil e que os movimentos sociais ligados à SAN contribuíram a tecer. O agronegócio é declarado principal inimigo dos direitos humanos e o acesso à terra recolocado no centro dos desafios. O último Congresso organizado pela ABA se inscreve nessa mesma filosofia. Sua dimensão internacional e a participação de numerosos líderes de movimentos sociais e de representantes da agroecologia, ao lado do mundo universitário, foram propícios à reivindicação de outro modelo de desenvolvimento valorizando sistemas agroalimentares alternativos como projeto político e estruturante das classes dominadas.

 

Conclusão

O último relatório da FAO (2017) mostra na América Latina uma retomada crescente do número de pessoas subalimentadas e de pessoas em situação de insegurança alimentar. Se o Brasil parece ter voltado na cronologia mundial da história da fome, ele se apresenta no entanto como um cometa peculiar por diversas razões.

O afresco histórico que acabou de ser apresentado aparece dissincronizado da crise de 2008 que terá sido, de acordo com a palavra do ex-presidente Lula, apenas uma pequena onda para esse país, então em pleno crescimento e tendo se tornado emergente (DELCOURT, 2010). Enquanto a crise joga nas ruas da África e da Ásia milhares de famintos, o Brasil implementa uma PNSAN de grande envergadura, pois multidimensional, intersetorial e participativa. Os conflitos acontecem na ambivalência do compromisso e no espaço da brecha. A tensão sobre as commodities que ocorre na escala internacional é, no Brasil, uma oportunidade para o setor de consolidar sua vocação exportadora e legitimar a produção em grande escala pelas divisas que alimentam as políticas sociais.

A dualidade do seu modelo de desenvolvimento defendido até o topo do Estado tem poucos equivalentes no mundo. Como se se tratasse de fortalecer a imagem de “país de todos os contrastes”, a partilha do poder permitiu ao país sair do mapa da fome, acelerar os processos de acesso à terra àqueles que tinham sido espoliados, reconhecer e reforçar o lugar da agricultura familiar na soberania alimentar, mas sem tocar fundamentalmente na estrutura fundiária que permanece nas mãos dos antigos donos de latifúndios e da agroindústria.

A singularidade do caso brasileiro revela também, sob forma paroxística, oposições e escolhas de desenvolvimento que se apresentam em outros lugares sob formas mais tênues ou parcialmente híbridas. Da sua história recente emerge uma paisagem cujos componentes se articulam, opondo-se para dar à luz dois projetos divergentes: uma soberania alimentar que seria baseada num sistema agroalimentar territorializado versus uma concepção globalizada da segurança alimentar, orientada para uma oferta estandardizada e de massa produzida por um complexo agroindustrial. O fim da dualidade institucionalizada é um convite a fazer a pergunta da coexistência, até da possível hibridação desses dois modelos; pois a concentração do poder entre as mãos da elite rural do país nos leva de volta, em espelho invertido, para a consistência, em outros lugares, dos roteiros fundados na transição dos modelos. A generalização da noção de transição, com suas vertentes múltiplas (alimentar, ecológica, energética etc.), parece inscrever-se num paradigma de coexistência tranquila que evitaria as relações de força e, ao mesmo tempo, caminharia em direção a um desenvolvimento sustentável. Mas a ambiguidade da noção, assim como a de desenvolvimento sustentável, faz questão também das suas apropriações múltiplas, desde uma vertente em ruptura com o sistema técnico-capitalista em torno da reconquista de uma autonomia através de movimentos sociais orientados para a agroecologia, até o polo da continuidade com o sistema imbuído pelo crescimento verde, e apoiado na economia circular, na agricultura de precisão e na intensificação ecológica. Nessa última interpretação, a transição deveria então permitir “reciclar o afresco tradicional do progresso em teleologia de um futuro ecológico” (BONNEUIL; FRESSOZ, 2013, p. 118).

Finalmente, a situação brasileira permanece aberta para um futuro incerto que interroga as condições de resistência como de resiliência de práticas sociais cujos avanços são, no entanto, internacionalmente reconhecidos. Diferentes vias devem ser exploradas. Desta forma, deve-se reconhecer, desde os anos 1980, a capacidade dos desafios ecológicos a operar como federadores de causa (crítica do capitalismo) do norte ao sul do Brasil, associada à dimensão prática e situada da agricultura que permitiu reunir em torno da agroecologia, como projeto coletivo, mundos sociais que, durante muito tempo, se opuseram. Mesmo se a convergência das lutas é uma ilusão para alguns (como a reconciliação entre autóctones e não autóctones), “uma trama comum emerge por trás da extrema diversidade das causas” (CHATEAURAYNAUD, 2017, p. 534). Num outro registro, o relatório do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a agenda 2030, da qual Francisco Menezes participou, foi publicado (GTSC A2030, 2017).[36] Ele tinha por objetivo pesar sobre o Foro Político de Alto Nível da ONU que seria realizado em julho[37] de 2018, onde o Brasil tinha que apresentar seu relatório para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), do qual ele é signatário, e explicar seus avanços quanto a esses objetivos e, entre eles, o da erradicação da fome, sob o olhar das organizações da sociedade civil.

 

 

 

Agradecimentos: Agradecemos a todas as pessoas da sociedade civil brasileira que responderam as nossas perguntas e aos colegas que nos deram um pouco do seu tempo.

 

 

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Resumo: (Soberania versus segurança alimentar no Brasil: tensões e oposições em torno da agroecologia como projeto). O Brasil pode ter cara de bom aluno em termos de segurança alimentar e de governança por ter implementado uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) ao mesmo tempo desterritorializada, participativa e descentralizada. O modelo que ele promulga é o produto da participação importante dos movimentos sociais cujas propostas alimentaram as políticas públicas da última década e substituíram o referencial mundial de segurança alimentar pelo de soberania alimentar. Este artigo se propõe a analisar os agenciamentos sociais que acompanharam a promoção da soberania alimentar no Brasil, herança da história de luta contra a fome no país. Desde o fim da ditatura, as ações foram realizadas no contexto instável de dois referenciais de desenvolvimento no seio mesmo do Estado. O compromisso institucional associado é levado à sua mais viva expressão no governo Lula com a chegada de gestores próximos dos movimentos sociais no seio de um Estado ainda em parte nas mãos das elites rurais tradicionais. De fato, dois sistemas agroalimentares se opõem e vão entrar em conflito aberto durante e depois da destituição da ex-presidente Dilma Rousseff: por um lado, um sistema técnico-ambiental defendido pelo agronegócio cujo projeto político é de modernização ecológica; por outro, um sistema socioecológico defendido pelo mundo das ONGs, dos movimentos sociais e dos representantes do governo de esquerda reunidos sob a bandeira da agroecologia. Os movimentos sociais, assim como o setor do agronegócio, vão tentar, cada um do seu lado, mas numa incessante relação de força, construir uma certa unidade, a fim de reforçar suas redes de influência e sua capilaridade na sociedade. O fim da dualidade institucionalizada é um convite a fazer a pergunta da coexistência, até da possível hibridação desses dois sistemas.

Palavras-chave: segurança alimentar; agroecologia; agronegócio; modelo de agricultura; movimentos sociais.
 

Abstract: (Food sovereignty vs food security in Brazil: tensions and oppositions within agroecology as an objective). Brazil may appear to be a good student regarding food security and governance. Indeed, it implemented a national policy for food and nutrition security (FNSP) which is simultaneously unsectoralised, participatory and decentralised. The advocated model is the result of a significant contribution from social movements whose proposals have nurtured public policies during the last decade and have replaced the global food security framework with that of food sovereignty. This article aims to analyse the social changes that have accompanied the promotion of food sovereignty, which stands as a legacy to the history of the fight against hunger in Brazil. Since the end of the dictatorship, actions towards food sovereignty have been carried out in an unstable context of two development benchmarks within the State itself. The institutional commitment associated with it is epitomised under Lula by the arrival of managers close to social movements in a State still partly in the hands of traditional rural elites. In fact, two agrifood systems clashed and entered into open conflict after the destitution of Dilma Rousself. On the one hand, agribusiness, whose political aim is that of ecological modernization, drove a techno-environmental system. On the other hand, the world of NGOs, social movements and representatives of the left-wing government were united under the banner of a socio-ecological system: agroecology. Both social movements and agribusiness, amidst an unceasing struggle for power, attempted to build a certain level of unity in order to strengthen their networks of influence and increase their penetration within society. The end of institutionalised duality begs the question of the ability of these two models to coexist or even possibly evolve to become a hybrid of the two.

Keywords: food security; agroecology; agrobusiness; agricultural models; social movements.

 

 

Recebido em setembro de 2018.

Aceito em dezembro de 2018.



[1] Doutorado em Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e professora de Sociologia pelo Institut des sciences et industries du vivant et de l'environnement (AgroParisTech – França). E-mail: florence.pinton@agroparistech.

[2] Professora  de Sociologia do Institut National Supérieur des Sciences Agronomiques, de l'alimentation et de l'environnement (AgroSup, Dijon), França. E-mail:  yannick.sencebe@inra.fr.

[3] Consultar https://www.wfp.org/.

[4] O termo agronegócio, utilizado pela primeira vez no início dos anos 1990, designa um novo setor de economia que agrega diferentes cadeias produtivas (indústria, comércio e finanças) em relação à agricultura. Ver trabalhos de Bruno et al. (2009).

[5] Demeulenaere e Castro (2015) mostram, a partir da análise de um corpus importante de textos reunidos na ocasião da Rio+20, que as diferentes formas lexicais identificadas na área agrícola remetem a quatro principais modelos de “esverdeamento” da agricultura.

[6] Nosso estudo faz parte de uma pesquisa maior, cujo título é: “Segurança Alimentar: a globalização de um problema público – Sage”, cobrindo quatro países, e que foi financiada pela Agência Nacional de Pesquisa Científica da França (ANR).

[7] Nascido em 1908, Josué de Castro, médico e geógrafo, é uma figura de renome mundial da luta contra a fome. Seu engajamento na reforma agrária leva-o ao exílio na França, em 1964. Ele foi presidente do Comitê Executivo da FAO em 1952.

[8] Nascido em 1935, Betinho, sociólogo e ativista dos direitos humanos, é forçado ao exílio no Chile em 1971, em função da sua ação a favor da reforma agrária. Ao retornar ao Brasil, se torna líder do movimento “Ética em política” para a democratização do país e cria a ONG “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e para a Vida”.

[9] O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada é uma fundação pública, sob responsabilidade do Ministério do Planejamento.

[10] A lei de 2006 define a agricultura familiar e permite publicar os primeiros dados estatísticos sobre sua importância. O conceito é também amplamente utilizado pelos pesquisadores, o Estado e as organizações internacionais e, entre elas, a FAO.

[11] Durante o período de interim do Presidente Itamar Franco, Lula participa do “governo paralelo”, uma instância de vigilância e de elaboração de propostas, reunindo diversos movimentos sociais, entre eles, o de Betinho.

[12] O Decreto no 4.582 de 2003 constitui o primeiro instrumento legal da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

[13] Podemos citar entre elas, o Bolsa Família, que constitui o programa mais importante de transferência direta de renda do país, mas também o reforço das políticas de compra alimentar pública, através de dois programas, privilegiando as compras na agricultura familiar (Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE).

[14] O regime brasileiro pode ser qualificado de presidencialismo de coalizão: a extrema divisão dos partidos no Congresso Nacional obriga o partido que obteve maioria relativa a fazer alianças para governar (ABRANCHES, 1998).

[15] O Ibase, fundado em 1981, por Betinho e mais dois companheiros de exílio, é uma ONG dedicada à articulação de redes em prol de uma “cidadania ativa”. A Fase, fundada em 1961, é uma ONG guiada pela Teologia da libertação, que participou da formação da sociedade civil em comunidades de base, focos de redemocratização do pais, antes de se laicizar e de participar da criação da CUT, principal central sindical do país.

[16] Cf. Sabatier e Jenkins-Smith (1999).

[17] Existem numerosas porosidades entre a ANA, o Consea e o Condraf (Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário).

[18] Nesse sentido, a agroecologia, reivindicada por movimentos sociais, defendendo um modelo de agricultura familiar, permite juntar as populações autóctones e tradicionais conclamando a sociodiversidade.

[19] O último congresso “Agroecologia 2017” de envergadura latino-americana aconteceu em Brasília em setembro de 2017.

[20] Criado em 1945, esse grupo é pioneiro na produção de milho híbrido no Brasil.

[21] A CNA federaliza inicialmente os grandes proprietários de terra e representa o retrato “tradicional” da agricultura patronal no Brasil.

[22] Em 2012-2013, os subsídios concedidos pelo MDA à agricultura familiar são de R$ 18 bilhões, enquanto os do Mapa à agricultura patronal são de R$ 107 bilhões. Oitenta e quatro por cento das fazendas contadas no censo de 2006 são familiares (SENCÉBÉ; CAZELLA, op. cit.).

[23] Roberto Rodrigues, sob a presidência de Lula, Kátia Abreu, sob a de Dilma, e Blairo Maggi, primeiro produtor mundial de soja, nomeado por Temer.

[24] Ele presidiu, entre outras, a Sociedade Rural Brasileira (SRB), a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), a Abag e a Aliança Cooperativa Internacional.

[25] Vale observar os laços que os unem à Harvard Business School, onde o conceito de agronegócio foi desenvolvido.

[26] Fundado em 1969, o “Sistema OCB” integra todos os setores da economia, tendo uma relação com a agricultura. Coexiste com a Unicafes (União Nacional de Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária), mais próxima da agroecologia e dos pequenos produtores.

[27] Podemos citar a recuperação de pastos degradados, a agricultura sem arar, as fazendas integradas, o reflorestamento.

[28] Slogan da ministra Kátia Abreu que exaltava um modelo de desenvolvimento rural baseado numa agroindústria, provedora de empregos e produtora de riquezas para todo o país.

[29] As contribuições dos ativos agrícolas representam apenas 15% do valor das pensões pagas a 9 milhões de aposentados e a 5,3 milhões de famílias agrícolas com um aposentado (CAZELLA et al., 2016).

[30] O projeto propõe que o Congresso tenha competência exclusiva para aprovar a delimitação de terras e ratificar as homologações, competência até agora exercida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), vinculada ao Ministério da Justiça.

[31] Acusação formulada por Kátia Abreu (Folha de S.Paulo, 5 de janeiro de 2015).

[32] Esse site, consultado em 2015, visava derrubar o argumento da concentração fundiária, mostrando a distribuição desigual das terras entre indígenas (136 ha/pessoa) e produtores rurais (27 ha/pessoa) e denunciando a parcialidade dos antropólogos envolvidos no debate. O site foi retirado após divulgação e denúncia feita por pesquisadores.

[33] Criada em 1967.

[34] Na hora da nossa entrevista (25/4/2017),  Francisco Menezes acabava a redação de um relatório com um conjunto de movimentos sociais reunidos no Grupo de Trabalho da Sociedade Civil-GTSC para a agenda 2030 sobre a avaliação das políticas da SAN e as regressões atuais. Esse relatório era financiado pela União Europeia, através das ONGs que financiavam o Ibase.

[35] A apresentação pode ser encontrada no site da ANA em http://www.agroecologia.org.br/2017/05/09/resista-sociedade-civil-se-une-em-movimento-contra-temer-e-ruralistas.

[36] As organizações, redes ou movimentos vinculados ao GTSC A2030 defendem vários princípios: “têm como missão a defesa de direitos e bens comuns, ou seja, aqueles de cujo benefício não pode ser excluído qualquer membro da coletividade”. 

[37] O Foro Político de Alto Nível para o desenvolvimento sustentável é organizado com o apoio do Conselho Econômico e Social (Ecosoc). Ele pretende orientar os países na busca de sustentabilidade no horizonte de 2030.