Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 27, n. 1, fevereiro a maio de 2019

 

 

 

Nilson Weisheimer[1]

 

 

 

Situação juvenil e projetos profissionais de jovens agricultores familiares no Recôncavo da Bahia

 

 

 

Introdução

Este trabalho tem como objetivo analisar a situação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo da Bahia para explicar os projetos profissionais formulados por esses jovens. Com isso, busca caracterizar os jovens agricultores familiares e as suas disposições para reprodução do processo de trabalho familiar agrícola. Entende-se que tais questões são relevantes para interpretar as razões dos impasses na sucessão geracional na agricultura familiar.[2]

Parte-se do pressuposto que os projetos profissionais dos jovens traduzem, como um  indicador, a avaliação que eles fazem das suas chances de permanência na agricultura familiar, das possibilidades de reprodução das unidades produtivas das quais participam e de suas disposições à sucessão geracional nessa atividade. A compreensão é de que a formulação de projetos profissionais é propícia aos jovens à medida que eles podem fazer um esforço de reflexividade com vista a estabelecer objetivos de inserção no mundo do trabalho. Entretanto, isso não ocorre no âmbito das escolhas pessoais, mas resulta, antes, do balanço entre as experiências adquiridas na trajetória dos jovens em contraste com seu campo de possibilidades (VELHO, 2003), o qual atua como condicionante estrutural sobre seus projetos. Com base nisso, os projetos formulados por esses sujeitos surgem da interação de múltiplos fatores associados a uma situação juvenil objetiva. Com efeito, este estudo permite tecer prognósticos sobre as possibilidades de sucessão geracional na agricultura familiar no Recôncavo da Bahia a partir da perspectiva dos jovens envolvidos nesse processo.

Com base nas experiências de pesquisas anteriores, foi estabelecida a hipótese segundo a qual a situação juvenil na agricultura familiar seria caracterizada por uma baixa autonomia material, por uma intensa socialização no processo de trabalho familiar agrícola e pelo predomínio de representações positivas sobre esta atividade. Em decorrência disso: a) em situações nas quais os jovens contam com mais autonomia material, eles elaboram projetos profissionais agrícolas; b) quanto maior a participação do jovem no processo de trabalho familiar agrícola, mais se desenvolvem as disposições necessárias para reprodução desse processo de trabalho; c) as avaliações positivas sobre o trabalho agrícola e do modo de vida dos pais seriam acompanhadas por projetos profissionais agrícolas.

Para realizar esta pesquisa, foi utilizado um modelo analítico descritivo da situação juvenil que contempla as dimensões objetivas e subjetivas do fenômeno social estruturado a partir de quatro eixos temáticos: a) as condições materiais; b) os processos de socialização; c) as representações sociais; e d) os projetos juvenis. Buscou-se, com esse modelo, realizar uma interpretação dialética que torna visível as relações entre condições materiais e simbólicas, entre estruturas sociais e processos de ação dos jovens, contribuindo simultaneamente para construir e interpretar o objeto de estudo.

Os procedimentos adotados na construção dos dados correspondem aos propósitos de uma abordagem extensiva, que assegurou condições de ampla representatividade e capacidade inferencial dos resultados. A unidade de análise correspondente à categoria dos jovens agricultores familiares foi estabelecida com base no Censo Demográfico 2000 do IBGE, abarcando os indivíduos na faixa de idade de 15 a 29 anos, por condição de ocupação na agricultura familiar.[3]

O cálculo para a definição da amostra foi realizado tendo como referência a unidade censitária da Microrregião de Santo Antônio de Jesus, como sendo representativa do Território do Recôncavo da Bahia. Ela foi dimensionada, tendo por base o Censo Demográfico do IBGE (2000), para um universo total de 43.737 pessoas ocupadas na Agricultura Familiar, sendo 15.503 jovens de 15 a 29 anos. Sobre esse universo, se impôs um intervalo de confiança de 95%, com admissão de erro amostral de até 3,5% pontos percentuais. Dessa maneira, pode ser estabelecida uma amostra formada por 164 casos.

As informações obtidas com o questionário padronizado foram digitadas em planilha do software SPSS 11.5 (Statistical Package for Social Sciences). Para este artigo, são apresentados parte dos resultados, cruzamentos entre as variáveis-chaves selecionadas por dimensão temática e análise multivariada de dados qualitativos por meio de um método algébrico conhecido como análise de correspondência múltipla (ACM). Esse procedimento permitiu identificar as variáveis com maior poder de diferenciar os entrevistados segundo suas categorias de resposta e identificar as relações entre estas a partir de uma representação gráfica.

No que se refere ao primeiro procedimento, foi feito o cruzamento entre variáveis. Selecionei um conjunto de variáveis consideradas independentes (Quadro 1), que sintetizam as dimensões da situação juvenil analisadas nos capítulos anteriores, para verificar como essas questões se relacionam com as respostas dicotômicas obtidas para a pergunta “Você pretende se estabelecer profissionalmente na agricultura?”, que é tratada como variável dependente.

 

Quadro 1 – Variáveis independentes selecionadas por dimensão analítica

Dimensão analítica

Variáveis independentes

Condições Materiais

Sua família é proprietária da terra em que trabalha?

Grau de autonomia material.

Processo de Socialização

Você está estudando atualmente?

Jornada diária de trabalho na UPF

Representações Sociais

O quanto você gosta do trabalho agrícola?

Como você avalia o modo de vida de seus pais?

Fonte: Elaboração própria.

 

O segundo procedimento corresponde à análise de correspondência múltipla (ACM), que permite a identificação das associações e oposições entre variáveis a partir da representação gráfica dos espaços multidimensionais em que se distribuem os objetos e categorias em análise (CARVALHO, 2008). A este, foram submetidas as mesmas variáveis que se apresentaram com maior poder de discriminação dos indivíduos entrevistados, acrescendo sexo e faixa etária. O objetivo foi, assim, não mais percebê-los como fatores independentes, mas identificar o sistema de relações que se estabelece entre eles, contemplando-se uma análise estrutural dessas múltiplas relações por meio da operacionalização de indicadores categoriais.

 

Da categoria juventude aos jovens agricultores familiares

O que é a juventude? Essa pequena pergunta tem fornecido uma abundância tão grande de respostas, que não é difícil o interessado se encontrar em um labirinto de alternativas. Ao verificar a trajetória da Sociologia da Juventude é possível observar dois enfoques teóricos principais que se alternam e convivem ao longo do tempo. De um lado, predominaram noções generalista e abstrata sobre a juventude. De outro, a ênfase recaiu sobre a especificidade dos jovens vinculados a experiências concretas, destacando a diversidade interna à categoria. Isso permite supor que a categoria juventude resiste a consensos e simplificações, porque é uma representação social em disputa e reúne toda uma diversidade de situações.

Reconhecer que a complexidade de um fenômeno não abstrai a necessidade de sua reconstrução por meio de conceitos gerais e válidos para múltiplas realidades. Para sair do labirinto é necessário recorrer a um fio condutor tramado por sucessivas e consequentes tomadas de posições epistemológicas, teóricas e metodológicas. Com efeito, para conceber a juventude como categoria sociológica é recomendável “pensá-la como forma de um espaço de relações sociais” (BOURDIEU, 1983 p. 280). A juventude se revela como uma construção social cujos sentidos são construídos relacionalmente em determinados contextos de interação social, permeados por conflitos e coesões. Reconhecendo isso, podem ser expostas algumas definições operacionais para as categorias que balizam esse debate.

Primeiramente, é necessário assumir que a juventude é uma categoria relacional fundada em representações sociais que conferem sentidos ao pertencimento a uma faixa etária, posiciona os sujeitos na hierarquia social, atribuindo-lhes papéis sociais através dos processos de socialização, que marcam o desafio das transições da infância à vida adulta. A juventude consiste, simultaneamente, numa fase de vida; numa força de renovação social; e num determinado estilo de existência (FORACCHI, 1965). Entre as características socialmente atribuídas à juventude, destacam-se: a) a ambivalência típica de sua situação liminar e transitória; b) a posição subalterna aos adultos na hierarquia social; c) a conflitividade originada pelo processo de individualização nessa situação liminar e subalterna; c) a criatividade e a capacidade de inovação própria do contato original das novas gerações com a cultura preestabelecida (MANNHEIN, 1982).

A referência a jovens remete a indivíduos concretos, que se inserem nas estruturas das relações sociais a partir de certos processos de socialização. Eles se caracterizam como seres socialmente dependentes em busca de recursos que lhes permitam efetivar a conquista da autonomia. Os jovens e seus grupos figuram como unidades de análises, suas condições de vida e práticas sociais os objetos de estudos principais da Sociologia da Juventude. O conhecimento sobre esses sujeitos históricos requer, ainda, que sejam descortinadas as características da condição e das situações juvenis.

A condição juvenil reflete como os jovens se inserem no conjunto das relações sociais, históricas e culturais. Mais do que uma faixa etária, a condição juvenil é uma posição na hierarquia social. Esta se manifesta objetivamente como uma posição subalterna do jovem em relação ao adulto. Ou seja, a condição juvenil é de subalternidade. 

Já a situação juvenil diz respeito às diversas manifestações da condição juvenil vividas pelos jovens em certas condições sociais a partir de sua classe social e de processos de socialização correspondentes. Esta última categoria é utilizada, então, para se referir aos variados processos empíricos, condições conjunturais e particularizadas das múltiplas juventudes.

Essas definições seriam incompletas se não reconhecessem a multiplicidade das condições sociais de existência dos jovens e das formas de representação delas resultantes. É possível dizer, assim, que as categorias juventude e condição juvenil são representações homogeneizadoras, uma vez que enfatizam os elementos de unidade na diversidade, enquanto as categorias jovens e situação juvenil permitem destacar as singularidades e a heterogeneidade interna a esse segmento social.

Para efeito de análise, entende-se que os traços distintivos entre os jovens resultam dos processos de socialização nos quais eles estão inseridos. Isso não prescinde da analise da situação de classe na qual se encontram. Dito de outro modo, podemos classificar os jovens conforme a sua classe social e seu processo de socialização correspondente. Com efeito, as diferenças estruturais da sociedade, tais como a classe social, o gênero e a origem étnica, são capazes de produzir diferenciações nos processos de socialização dos jovens, contribuindo para a formação de múltiplas juventudes. Esse posicionamento rompe com as definições de caráter “substancialista” (BOURDIEU, 1998) sobre a juventude, possibilitando construir a categoria analítica de modo relacional, isto é, em termos de sua posição num espaço de relações sociais. A reconstrução sociológica da situação juvenil, com base no processo de socialização, confere mais coerência à proposta de privilegiar as noções de juventudes e jovens no plural.

Assumindo as consequências dessa tomada de posição teórica, é possível indicar a especificidade sociológica dos jovens agricultores familiares. Para isso, é necessário não apenas reunir uma teoria sobre a juventude e outra sobre a agricultura familiar, mas um construto teórico que sintetize a complexidade das suas mútuas determinações.

Conforme sugere Bourdieu (1998, p. 28), “a primeira urgência em todos estes casos seria tomar como objeto o trabalho social de construção do objeto pré-construído: é aí que está o verdadeiro ponto de ruptura”. Isso corresponde ao postulado básico da Sociologia de “afastar-se sistematicamente de todas as pré-noções” (DURKHEIM, 1973, p. 396), o que é válido, também, para noções que se encontram fortemente estabelecidas no campo científico.

As noções de juventudes rurais e juventudes do campo vêm sendo utilizadas por atores políticos, movimentos sociais e pesquisadores acadêmicos como forma de classificar toda uma diversidade de jovens que vivem nos espaços sociais rurais. Elas se constituem, principalmente, como categorias políticas que visam à entrada de segmentos juvenis na agenda de políticas públicas. Isso ocorre porque, no campo de estudos sobre juventudes, a construção do conhecimento, dos sujeitos sociais e das políticas públicas se encontra mutuamente relacionada, havendo uma interação recíproca entre teoria e práticas sociais. Isso conduz à necessidade de qualificar de modo preciso a categoria correspondente aos jovens que objetivamos descrever. Essas formas de classificação devem ser construídas em diálogo com os próprios sujeitos da investigação, reconhecendo elementos de alteridade nos jovens e nas suas formas de autoidentificação, para evitarmos a reprodução de violências simbólicas muitas vezes presentes nessas formas de classificação. Além disso, o expediente a essas categorias requer sempre o cuidado do uso do plural, para enfatizar que ela contém diferentes segmentos no seu interior. Isso porque não existe uma única juventude do rural ou do campo. A homogeneização das diferenças no interior de uma categoria mais ampla acaba contribuindo, mesmo que involuntariamente, para perpetuar a invisibilidade sobre os jovens agricultores familiares e outras categorias de jovens na medida em que oculta as diversas situações juvenis no chamado “mundo rural” (WANDERLEY, 2009). Apesar desses cuidados, como instrumento com finalidades analíticas e heurísticas, essas categorias apresentam fragilidades, principalmente por serem imprecisas.

No campo da pesquisa social empírica a exigência de reflexividade impõe a reconstrução laboriosa do objeto para além de sua aparência fenomênica, fazendo emergir todo um feixe de relações de força que as categorias predefinidas tendem a encobrir. Essa reconstrução sociológica das categorias não se efetiva por meio da reprodução dos recortes demográficos, critérios normativos ou pautas políticas. Ao contrário, exige pôr à prova as categorias preestabelecidas a partir da dicotomia rural-urbana, mesmo que fixadas no senso comum, nos discursos políticos ou no campo acadêmico.

Com efeito, ao buscar conferir mais precisão analítica aos sujeitos do estudo, optou-se pela categoria jovem agricultor familiar para descrever os jovens no contexto da agricultura familiar. Isso porque “os jovens agricultores familiares constituem uma categoria social específica devido à sua socialização no processo de trabalho familiar agrícola”. Como eles são membros de uma unidade doméstica que também atua como unidade de produção agrícola, predomina a instituição de saberes, normas e valores do universo da família e do processo de trabalho que esta realiza. A socialização realizada nessa classe social produz a incorporação de saberes específicos associada à configuração de identidades sociais e profissionais ligadas à agricultura. Diferentemente de outros jovens, sua identidade social se constrói em relação ao trabalho familiar agrícola, o que produz os dilemas e as características diferenciados de sua situação juvenil.

O processo de trabalho familiar agrícola se caracteriza por estabelecer relações produtivas com base na reciprocidade das obrigações familiares e não com base em relações salariais, não havendo, assim, geração de mais-valia. Além disso, esse processo de trabalho visa à reprodução social da família e da unidade produtiva tanto no ciclo curto (reprodução biológica) como no ciclo longo (reprodução geracional), e não à acumulação de capital. Esses dois aspectos conferem, a esse processo de trabalho, um caráter não capitalista, embora os agricultores familiares estejam subordinados ao modo de produção capitalista como produtores simples de mercadorias (MARX, 1985). Além disso, esse processo de trabalho se diferencia por atravessar fases distintas conforme a evolução do ciclo demográfico da família, alterando, ao longo do tempo, a relação entre trabalho e consumo (CHAYANOV, 1974). A composição familiar determina, por sua vez, a forma que assumirá a divisão sexual do trabalho, culturalmente estabelecida. A condição de gênero atua, nesse contexto, como dispositivo mediador entre o material e o simbólico, a exemplo da oposição que se estabelece entre casa e roçado, trabalho e ajuda. Com efeito, esse processo de trabalho constrói não só o espaço agrícola, mas também espaços de relações sociais de geração e gênero. Tal processo é, geralmente, coordenado pelo homem adulto, que assume o papel de chefe do processo produtivo por ser o detentor de um saber agrícola específico. Com efeito, esse processo de trabalho é, também, um espaço de socialização das novas gerações na atividade produtiva, o que envolve a construção de saberes necessários à reprodução do processo de trabalho.

Por meio das práticas cotidianas do trabalho familiar, realiza-se a formação dos jovens para se tornarem agricultores. Do ponto de vista da análise sociológica, é imperativo compreender que é o domínio sobre esse saber fazer da agricultura e na agricultura, e não apenas a idade do sujeito, que constitui a base para seu reconhecimento como agricultor(a) pleno(a), capaz de construir uma nova família e dirigir uma unidade produtiva independente. Desse modo, o processo de trabalho constitui-se no espaço privilegiado de socialização das novas gerações na lógica do trabalho e da produção agrícola. A socialização dos jovens no trabalho familiar agrícola revela-se, portanto, simultaneamente, na socialização profissional e na socialização de gênero. Esta se configura no meio objetivo no qual se inserem os jovens e possibilita a sua representação social como jovem agricultor familiar.

É importante destacar, ainda, que os jovens são, geralmente, os trabalhadores e os herdeiros da unidade de produção familiar. Essa condição impõe uma ambivalência em relação ao trabalho agrícola e à herança do patrimônio familiar que caracterizará a condição juvenil na agricultura familiar. Esses jovens são protagonistas dos impasses e dilemas das dinâmicas de produção, de reprodução, de transformação e de decomposição da unidade de produção familiar, uma vez que a eles cabe a tarefa de realizar a sucessão geracional desta unidade produtiva. Desse modo, é possível tomar os jovens agricultores familiares como uma categoria sociológica singular, possibilitando a análise das condições sociais que balizam suas existências e a construção de seus projetos profissionais.

 

Características da situação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo da Bahia

O Recôncavo da Bahia[4] encontra-se localizada ao norte e ao sul da capital da Bahia, Salvador, e abrange a Baía de Todos os Santos e a Região Metropolitana de Salvador. A Microrregião de Santo Antônio de Jesus, que é o universo desta pesquisa, também é desguiada no âmbito das políticas estaduais de Território de Identidade do Recôncavo. Esse foi historicamente reconhecido por seu potencial agrícola. No período da colonização, essa região foi responsável pela produção da cana-de-açúcar e, mais tarde, veio o plantio de fumo, ainda proeminente na economia da Microrregião de Santo Antônio de Jesus. Em fins do século XIX, a região dava grande contribuição de produtos de exportação, como açúcar, tabaco, algodão e café, bem como de produtos de consumo interno da província, como feijão, mandioca e cereais (MATTOSO, 1992). Atualmente, de acordo com informações da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, no ano de 2013, o setor de comércio e serviços apresentou a maior participação no volume (70%), seguido pela indústria, com 20%, e, por fim, pelo setor agropecuário, que representou 9%. O PIB do território para o mesmo ano foi de R$ 5,9 bilhões, o que corresponde a 2,9% do total do estado baiano. O PIB per capita do Recôncavo foi de R$ 10.766,75, abaixo da Bahia, que apresentou valor de R$ 13.577,74 (SEI, 2016). O IDH do território é de 0,630, um pouco abaixo do registrado no estado da Bahia, que é de 0,660. Contudo, o Recôncavo apresenta diferenciação impotente no IDH, pois existem municípios que estão entre os primeiros na lista dos melhores índices do estado, como Santo Antônio de Jesus, na 8a posição, com 0,700, e outros posicionados entre os últimos, a exemplo de Cabaceiras do Paraguaçu, na 249a posição, com 0,581 (SEI, 2016).

A mão de obra encontra-se ocupada, principalmente no setor de serviços, com destaque para o comércio, seguido da construção civil e da indústria (SEI, 2016). A ocupação na agricultura no estado da Bahia corresponde a 1.425.397 pessoas. Estas estão distribuídas entre agricultura familiar, com 894.480 pessoas ocupadas, e 530.917 pessoas ocupadas na agricultura não familiar. Dentre os ocupados na agricultura familiar, 279.530 são jovens de 15 a 29 anos de idade, o que corresponde a 31,25% do total dos ocupados nessa atividade no estado baiano (IBGE, 2000).

O Território de Identidade do Recôncavo conta com 59.039 pessoas ocupadas na agricultura, sendo que 43.737 estão ocupadas na agricultura familiar e 15.302 estão ocupadas na agricultura não familiar. Esses dados indicam que 64,6% da ocupação agrícola da microrregião ocorrem no âmbito da agricultura familiar. Considerando a faixa etária da população ocupada na agricultura, o maior contingente é formado por pessoas de 30 a 44 anos de idade. Os jovens de ambos os sexos totalizam 15.503 pessoas ocupadas na agricultura familiar, o que corresponde a 35,4% do total dessa ocupação. Entre estes, a participação maior se dá na faixa etária de 15 a 19 anos de idade, com 6.478 ocupados. Os jovens com 20 a 25 anos de idade somam 4.886 agricultores familiares, e os jovens de 25 a 29 anos de idade chegam a 4.139 ocupados na agricultura familiar (IBGE, 2000).

A composição da amostra de jovens teve como referência os percentuais de participação juvenil na agricultura familiar. Deste modo, a distribuição etária da população entrevistada é composta por 41,5% de 15 a 19 anos, 31,7% de 20 a 24 anos e por 26,8% com idades entre 25 a 29 anos. Entre os jovens do sexo masculino, 42,1% têm 15 e 19 anos, 33,6% de 20 a 24 anos e 24,3% de 25 a 29 anos de idade. Entre as mulheres, 40,4% têm de 15 a 19 anos de idade, 28,1% de 20 a 24 anos e 31,6% de 25 aos 29 anos. Entre os 164 jovens entrevistados, 81,7% se declaram solteiros, enquanto 18,3% se disseram casados. Como era de esperar, a maioria dos jovens entrevistados (75,6%) não tem filhos. Entre os homens, 21% são pais e, entre as mulheres, 29,8% já têm filhos. Eles fazem parte de famílias nucleares, com uma média de 4,7 pessoas. A amostra é formada principalmente por jovens que se definiram como negros (68%), enquanto apenas 6% se identificaram como brancos. Houve uma série de outras denominações como “brasileiro”, “moreno”, “pardo”, “mulato” e “mestiço”, que foram agrupadas, compondo 26% da amostra. A totalidade dos entrevistados residia na zona rural de seus respectivos municípios.

As condições materiais dos jovens agricultores familiares podem ser observadas, inicialmente, considerando a condição fundiária das famílias, em que se registra que 80% dos inqueridos estão em unidades produtivas cujas terras pertencem à própria família. O principal meio de acesso a propriedade fundiária tem sido a herança, com 54,5% da amostra. A compra de terra de terceiros ocorreu em apenas 10,3% dos casos. Isso revela a importância dos mecanismos de herança da terra para viabilizar a sucessão geracional na agricultura familiar do território. A área média das unidades produtivas é de 2,7 ha, sendo que entre os entrevistados a maior propriedade tinha área de 22,5 ha, porém 87,9% dos jovens se encontram em unidades produtivas inferiores a 5 hectares.

O nível de autonomia material dos jovens é muito baixo para todos os indicadores adotados.[5] Entre os jovens agricultores familiares, a autonomia material refere-se às condições que possibilitam a eles construir um espaço próprio no processo de trabalho familiar agrícola e obter uma renda própria. Logo, as condições materiais que possibilitam ao jovem construir sua autonomia podem ser observadas através de indicadores empíricos referentes à estrutura fundiária, à integração mercantil e ao acesso a rendas agrícolas entre os jovens. Verifica-se que 87,3% dos jovens se encontram em condição de baixa autonomia material, 7,9% atingem o nível médio e que menos de 1% atinge o nível de alta autonomia.[6] Ao serem detalhadas as condições de autonomia material, pode-se verificar que a situação juvenil na agricultura familiar é marcada por uma baixa autonomia. Esta é ainda mais precária para as jovens mulheres e para os jovens adolescentes. Com a progressão das idades dos entrevistados, esperava-se que o nível de autonomia fosse aumentando progressivamente. Contudo, não é bem assim que as coisas acontecem. A baixa autonomia material persiste em índices bastante elevados mesmo entre os jovens adultos. Pode-se dizer que a situação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo é caracterizada por uma baixa autonomia material.

A socialização dos jovens se realiza, principalmente, como imersão no processo de trabalho familiar agrícola. Constata-se que 43% afirmam trabalhar por tempo parcial (de 4 a 5 dias) por semana, enquanto 30,3% declaram trabalhar em tempo integral (6 dias) por semana. Outros 20,1% exercem trabalho parcial de 2 a 3 dias por semema, enquanto 6,1% participam ao menos um dia por semana desta atividade. A jornada diária de trabalho dos entrevistados é de 5 horas e 50 minutos em média. Quando se perguntou aos jovens sobre quantas horas eles trabalham por dia na agricultura familiar, 27% responderam que trabalham até 4 horas, 23,6% declaram trabalhar de 4 a 6 horas diariamente, 13,3% afirmam trabalhar de 6 a 8 horas por dia, 23,6% declararam trabalhar de 8 a 10 horas por dia. Trata-se, na verdade, de uma socialização profissional que tem como finalidade prepará-los para, no futuro, tornarem-se agricultores independentes. Portanto, será o domínio sobre o saber fazer da agricultura, e não a idade, que proporcionará seu reconhecimento social como agricultor pleno, isto é, apto a construir uma nova família e dirigir uma unidade produtiva independente. Desta forma, o processo de trabalho familiar agrícola se estabelece de modo objetivo entre os jovens agricultores, impondo-lhes uma posição no mundo e construindo sua identidade social. Essa socialização no trabalho familiar é marcada por diferenciação de gênero quanto ao tempo, a intensidade e o tipo de trabalho realizado por jovens homens e mulheres.

As diferenças de intensidade na participação no trabalho agrícola correspondem às dinâmicas da divisão sexual e etária do trabalho no interior da unidade de produção familiar e a respectiva atribuição de papéis sociais distintos com base nestes critérios. As respostas dos informantes, que apontam a participação no trabalho agrícola inferior de jovens adolescentes e mulheres em comparação a dos jovens adultos e homens, têm duas explicações: a) entre os adolescentes, o trabalho é associado ao estudo formal; e b) entre as jovens mulheres, as suas respostas podem não considerar o tempo dedicado às atividades domésticas. Nestes casos, isto corresponderia a uma expressão da cultura que percebe o trabalho feminino como “parcial”, “leve” e “de ajuda”, como discutido anteriormente. Ou seja, esta assimetria na participação por sexos e idades pode ser explicada, de um lado, por uma desvalorização da participação juvenil feminina no trabalho agrícola, que não reconhece as atividades domésticas como parte do trabalho familiar agrícola. De outro, as jovens mulheres, com destaque para as adolescentes, estão tendo uma inserção parcial e realizando jornadas diárias de trabalho menores do que a dos jovens homens por apresentarem outras formas de ocupação do tempo, principalmente no ensino formal.

Ao obter informações referentes à socialização no sistema formal de ensino, constatamos que a maioria dos jovens agricultores entrevistados (60%) não estava estudando no ano de realização da pesquisa. Entre as mulheres, a inserção da escola é um pouco maior, uma vez que 42,1% das entrevistadas encontravam-se estudando contra 39,3% dos homens. Esta inserção na escola, que já é relativamente baixa, diminui com o avançar das idades. Enquanto 82,4% dos jovens adolescentes (de 15 a 19 anos) frequentavam a escola, este índice caiu para 6,8% entre os jovens adultos (de 25 a 29 anos). Avaliando o nível de escolarização dos entrevistados verificou-se que 44,2% dos entrevistados possuem o nível fundamental incompleto. Os jovens com Ensino Médio incompleto representam 30,3% da amostra, enquanto aqueles que concluíram o Ensino Médio contabilizam 20,6%. Nenhum jovem entrevistado havia concluído sua formação no Ensino Técnico ou Superior. Deste modo, percebe-se que os níveis de escolarização formal dos jovens agricultores familiares do recôncavo são baixos, seja para se inserirem no mercado de trabalho urbano ou para incorporarem inovações tecnológicas capazes de elevar os níveis de produtividade e de rendas agrícolas das famílias.

As diferenças entre estas duas situações discutidas acima servem para chamar a atenção para as relações estabelecidas pelos jovens agricultores familiares entre educação escolar e trabalho familiar. A este respeito, Sposito (2005, p. 106) afirma que “não se pode configurar nem uma adesão linear à escola ou um abandono ou exclusão total de aspirações de escolaridade no âmbito das orientações dos jovens que trabalham”. Parafraseando esta autora, podemos dizer que, para os jovens agricultores, “escola e trabalho são projetos que se superpõem ou poderão sofrer ênfases diversas de acordo com o momento do ciclo de vida e as condições sociais que lhes permitem viver a condição juvenil” (SPOSITO, 2005, p. 106). Neste sentido, outra questão que precisa ser analisada com mais profundidade diz respeito às possibilidades dos jovens agricultores equacionarem uma dupla inserção no trabalho agrícola e no estudo formal no contesto da oferta de ambos no Recôncavo da Bahia.

As avaliações dos jovens sobre o trabalho agrícola indicam que pouco mais da metade (53%) dos entrevistados adotou uma posição ambígua a respeito da atividade que realizam, optando pela resposta mais ou menos. Esta resposta é significativa dos impasses dos jovens na agricultura e reflete, simultaneamente, a disposição ao engajamento na atividade e os contratempos e desconfortos desta. Outros 32% dos entrevistados responderam gosto muito. Ainda 15% dos entrevistados disseram não gostar do trabalho agrícola.

Para as informações relativas às avaliações que os jovens agricultores fazem do modo de vida de seus pais e de sua disposição em viver da mesma maneira que eles, foi utilizado, deliberadamente, o conceito de modo de vida para apreender as percepções dos jovens sobre as condições materiais e práticas sociais dotadas de particularidades próprias do processo de trabalho que realizam. Nas respostas obtidas, 37,2% dos inquiridos avaliam o modo de vida dos pais como bom e outros 2,8% como ótimo, enquanto 27,4% avaliam-na como regular. Deste modo, percebe-se que predominam avaliações positivas sobre a questão. Estas respostas apresentam diferenças por sexo. Como se pode observar, entre os homens predominam avaliações como bom (39,2%) e ótimo (30,8%), enquanto entre as mulheres prevalecem as respostas regular (35,1%) e bom (33,3%). Os homens revelam mais conformidade com o modo de vida dos pais do que as jovens mulheres que figuram com índices mais altos do que eles para ruim e péssimo. Elas apresentam avaliações mais críticas do que eles sobre este assunto, visto que quase a metade dos entrevistados respondeu regular, ruim e péssimo. Considerando as idades dos entrevistados, 41,2% dos adolescentes disseram que o modo de vida dos pais era bom, enquanto essa resposta obteve a adesão de 28,5% dos jovens adultos. Como a maior parte destes jovens adultos desempenha funções mais intensas e complexas na propriedade dos pais, ou já se encontram casados e responsáveis por uma unidade produtiva própria, suas respostas refletem uma avaliação mais profunda e efetiva das contradições desse modo de vida. Além disto, esta posição crítica está relacionada com o aumento dos conflitos entre os jovens desta faixa de idade e seus pais, geralmente relacionados à busca por mais autonomia e independência financeira ou – ainda – para desenvolverem inovações nas unidades produtivas das famílias, enfrentando resistências dos responsáveis pelo estabelecimento.

A situação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo é marcada por uma ambiguidade própria dessa categoria social. Se for jovem agricultor familiar, não necessariamente será um agricultor familiar no futuro. Inicialmente, porque na agricultura familiar da região predomina um tipo mais próximo do camponês tradicional do que na agricultura moderna, o que por si já impõe sérios limites a sua reprodução social, uma vez que se trata de unidades produtivas muito pequenas e com baixa criação de valor, o que impõe restrições à sucessão hereditária da propriedade. Nesse contexto, os jovens, mesmo os jovens adultos, não possuem autonomia material que lhes permitam romper, nos marcos da atividade familiar, com as relações de dependência em relação aos pais. A principal característica distintiva desses jovens encontra-se no fato de serem socializados principalmente no âmbito do trabalho familiar. É dessa esfera que obtêm o seu principal capital cultural, em termos de orientação social, saberes profissionais e identificação, visto que não registram uma maior escolarização formal. Disso advém uma identificação positiva com o trabalho agrícola e o modo de vida dos pais. Contudo esses fatores, a intensa socialização no trabalho agrícola e as representações positivas sobre esse modo de vida não são suficientes para assegurar as condições necessárias à formulação de projetos profissionais que assegurem a sucessão geracional na agricultura familiar.

 

Dimensões da situação juvenil e projetos profissionais de jovens agricultores familiares no Recôncavo da Bahia

O Projeto Profissional é o projeto de inserção socioprofissional em médio prazo. Reflete as imagens profissionais que os jovens agricultores reservam para si, os tipos de grupos profissionais e respectivos recursos a que aspiram. Essa projeção em futuros profissionais possíveis estrutura o reconhecimento de uma identidade profissional construída, socialmente, por meio de interações entre trajetórias individuais e sistemas de emprego, de trabalho e de formação, logo, são construídas por meio de processos de socialização cada vez mais diversificados que ampliam as alternativas projetivas (WEISHEIMER, 2009). Os projetos profissionais permitem a objetivação das representações dos jovens sobre suas possibilidades futuras de permanência ou saída da atividade agrícola. Ou seja, é a expressão de um esforço de reflexividade dos jovens em estabelecer objetivos de inserção no mundo do trabalho.

Quando os jovens são colocados diante deste tema por meio da pergunta (Você pretende se estabelecer profissionalmente na agricultura?) se constata que predomina entre eles (64%) a recusa da agricultura familiar como profissão desejada para o futuro. Comparando as respostas, segundo a condição de gênero dos entrevistados, percebe-se que 40,2% dos homens pretendem se estabelecer na agricultura familiar, enquanto 28,1% das mulheres apresentam o mesmo desejo. Assim, apesar do predomínio das respostas negativas no universo do estudo há uma importante diferenciação social de gênero nas disposições juvenis para a reprodução do trabalho familiar agrícola, visto que os jovens do sexo masculino demonstram mais interesse por essa atividade do que as mulheres da mesma idade. Quando esta questão é comparada por faixa etária, percebe-se que a disposição para permanência no trabalho agrícola aumenta com a idade dos entrevistados. As respostas positivas, que foram 22,1% entre os jovens adolescentes, passam a ser 42,3% entre os entrevistados de 20 a 24 anos de idade, e chegam a 50% entre os jovens adultos.

 

Gráfico 1 – Você quer se estabelecer profissionalmente como agricultor(a) familiar?

Fonte: Banco de dados Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia – Weisheimer/CNPq, 2012.

 

Ao proceder a análise dos projetos profissionais dos jovens agricultores familiares do Recôncavo da Bahia percebe-se a recusa destes por dar continuidade a este trabalho. Neste caso, os jovens não manifestam disposições necessárias à reprodução do processo de trabalho familiar agrícola. Isto indica que nestas unidades produtivas a sucessão geracional encontra-se comprometida, visto que a maior parte dos possíveis sucessores não manifesta interesse em continuar nesta atividade. A exceção fica por conta dos jovens adultos do sexo masculino, o que confirma a tendência de masculinizarão e envelhecimento da agricultura na região de abrangência deste estudo. Essas respostas são uma representação que resulta da interação de múltiplos fatores, entre os quais uma síntese possível pode ser encontrada no modelo analítico-descritivo da situação juvenil proposto neste estudo.

Com efeito, interessa identificar como tais dimensões da situação juvenil – condições materiais; processo de socialização e; representações sociais – relacionam-se aos projetos profissionais dos entrevistados. Para dar consequência a essa perspectiva relacional da construção dos projetos dos jovens agricultores familiares, são analisadas essas interações com base em dois procedimentos: um típico da estatística descritiva e outro referente à análise multivariada de dados qualitativos.

Primeiramente verificam-se como os projetos profissionais dos jovens agricultores familiares se constroem em relação às suas condições materiais. Intenta-se demonstrar que os recursos alocados pelos jovens estruturam suas disposições para reprodução do processo de trabalho familiar agrícola. Isso pode ser percebido através da condição fundiária das famílias dos entrevistados e pelo grau de autonomia material desfrutado por eles na agricultura familiar.

Não deve causar estranhamento a escolha da condição fundiária como fator explicativo, visto que “o estatuto fundiário é central em toda a análise de funcionamento das unidades de produção” (LAMARCHE, 1998, p. 63). Como mencionado anteriormente, essa variável foi construída a partir da pergunta: Sua família é proprietária da terra em que trabalha? A intenção, aqui, é perceber como a propriedade da terra pela família relaciona-se com a disposição do jovem em reproduzir o trabalho familiar agrícola, isto é, ser agricultor familiar. Isso é possível de ser verificado a partir do cruzamento dessa primeira questão com outra considerada variável dependente: Você pretende se estabelecer profissionalmente na agricultura? Desse modo, a Tabela 1 apresenta a relação entre condição fundiária da família e projeto profissional dos jovens.

Constata-se que entre proprietários e não proprietários predomina a vontade de não se estabelecer profissionalmente como agricultor familiar. Contudo, esta informação precisa ser considerada, tendo como referência a distribuição de resposta para a média de 36% do contingente analisado. Desta forma, percebe-se que os entrevistados membros de famílias proprietárias apresentam um percentual um pouco mais elevado de respostas positivas quanto à permanência na agricultura (38,6%), enquanto os jovens de famílias não proprietárias encontram-se onze pontos percentuais abaixo do índice de referência, ou seja, 25%. Disto resultam duas conclusões: a primeira é que os jovens planejam projetos profissionais não agrícolas mesmo quando as famílias possuem a propriedade fundiária; a segunda, derivada desta, é que esta disposição é ainda menor entre os que não são proprietários.

 

Tabela 1 – Cruzamento entre projeto profissional e condição fundiária da família (f e %)

 

Sua família é
proprietária da terra
em que trabalha?

Você quer se estabelecer profissionalmente como agricultor(a) familiar ?

Total

Sim

Não

 

Sim

f

51

81

132

%

38,6%

61,4%

100,0%

Não

f

8

24

32

%

25,0%

75,0%

100,0%

Total

f

59

105

164

%

36,0%

64,0%

100,0%

Fonte: Banco de dados Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia (WEISHEIMER/CNPq, 2012).

 

A Tabela 2 traz os resultados do cruzamento entre grau de autonomia material e projeto profissional. Considerando que a autonomia material sintetiza os recursos a locativos que permitem aos jovens projetar suas possibilidades futuras, há o registro de que na amostra predomina a situação de baixa autonomia material. Nesta condição, os jovens tendem a elaborar projetos profissionais não agrícolas (63,9%), índice igual ao registrado para o total dos entrevistados. A variação estatística que se registra entre os jovens que contam com um nível de média autonomia não é suficiente para afirmar que há mais disposição para a agricultura entre estes, uma vez que se registra que 61,5% deles não querem permanecer profissionalmente nessa atividade. O único caso de alta autonomia parece confirmar a tendência de ruptura com esse processo de trabalho entre os jovens agricultores familiares do Recôncavo. Assim, tal cruzamento demonstra que os entrevistados tendem a sair da atividade agrícola, visto que não dispõem de autonomia material suficiente para construírem projetos profissionais agrícolas. O que precisa ser aprofundado nesses casos é a existência de 36% de jovens que, mesmo com baixa autonomia, desejam permanecer nessa atividade, e 38,5% dos que têm média autonomia também querem ser agricultores profissionais no futuro.

 

Tabela 2 – Cruzamento entre projeto profissional e grau de autonomia material (f e %)

 

Nível de autonomia material

Você quer se estabelecer profissionalmente como agricultor(a) familiar?

Total

Sim

Não

 

Baixa autonomia

f

52

92

144

%

36,1%

63,9%

100,0%

Média autonomia

f

5

8

13

%

38,5%

61,5%

100,0%

Alta autonomia

f

0

1

1

%

0%

100,0%

100,0%

Total

f

57

101

158

%

36,1%

63,9%

100,0%

Fonte: Banco de dados Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia (WEISHEIMER CNPq, 2012).

 

Prosseguindo, se busca identificar as relações entre os processos de socialização que se efetivam através da participação juvenil no trabalho familiar agrícola e no ensino formal com os projetos profissionais elaborados pelos entrevistados. Esse tipo de relação se estabelece entre a socialização no sistema formal de ensino e a disposição dos jovens de serem agricultores. Conforme a Tabela 3, há uma relação negativa entre condição de estudo e projeto agrícola, uma vez que prevalece com ampla vantagem, entre os jovens que estavam estudando, a recusa de ser agricultor (74,2%), índice que é 10% superior ao registrado para essa resposta entre o total de entrevistados. Em contrapartida, entre os que não estudavam na ocasião da entrevista, 42,9% afirmam querer se estabelecer profissionalmente na agricultura familiar. Isso confirma o que foi identificado em outros estudos: ficam na atividade agrícola os jovens que não estão inseridos no sistema formal de ensino.

 

Tabela 3 – Cruzamento entre projeto profissional e situação de estudo (f e %)

 

Você está estudando atualmente?

Você quer se estabelecer profissionalmente como
agricultor(a) familiar ?

Total

Sim

Não

 

Sim

f

17

49

66

%

25,8%

74,2%

100,0%

Não

f

42

56

98

%

42,9%

57,1%

100,0%

Total

f

59

105

164

%

36,0%

64,0%

100,0%

 Fonte: Banco de dados Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia (WEISHEIMER/CNPq, 2012).

 

Muitas vezes, o estudo formal e o trabalho agrícola aparecem como alternativas contrapostas nas práticas sociais dos entrevistados. Desse modo, podem ser esperados efeitos distintos de cada uma dessas agências de socialização. Tudo indica que é esse o caso. Conforme pode ser verificado na Tabela 4, quanto maior o envolvimento com o trabalho familiar, maior é a disposição do jovem de se estabelecer profissionalmente como agricultor. Isso pode ser evidenciado relacionando-se a jornada de trabalho diário na agricultura e com a disposição de ser agricultor. Entre os jovens com menores jornadas diárias de trabalho, predominam projetos profissionais não agrícolas. Entre os que desenvolvem jornadas de até quatro horas, predominam (82%) os que não pretendem ser agricultores; os jovens que trabalham até seis horas diárias, 59%, não querem permanecer nessa atividade. Na categoria com jornadas acima dessa carga horária, existe a ascensão de projetos profissionais agrícolas. Estes se tornam mais frequentes entre os jovens à medida que se constata uma ampliação de sua jornada de trabalho, passando a 53,8% entre os que têm jornadas de oito a dez horas e chegando a representar 66,7% entre os jovens com a maior jornada de trabalho.

Isso demonstra a influência do uso do tempo na alocação de papéis-chave – aquele aos quais se dá prioridade sobre outros papéis –, estando este na base da internalização das disposições adquiridas ao longo dos processos de socialização. Dessa maneira, entre os jovens com jornadas parciais, com quatro horas diárias, fica pressuposto de que as horas restantes sejam ocupadas por outras agências socializadoras, produzindo efeitos de incorporação de valores que embasam a busca por realizar projetos profissionais não agrícolas. Por outro lado, o predomínio do uso do tempo em atividades agrícolas produz a internalização do habitus do trabalho familiar agrícola, fazendo com que eles venham a querer reproduzir esse processo de trabalho. Com efeito, uma socialização no trabalho familiar tende a ser acompanhada de mais disposição para a reprodução desse processo de trabalho.

 

Tabela 4 – Cruzamento entre jornada de trabalho na UPF por projeto profissional (f e %)

Jornada diária de trabalho
na UPF

Você quer se estabelecer profissionalmente como agricultor(a) familiar?

Total

Sim

Não

 

Até 4h

f

11

50

61

%

18,0%

82,0%

100,0%

Mais de 4h a 6h

f

16

23

39

%

41,0%

59,0%

100,0%

Mais de 6h a 8h

f

9

13

22

%

40,9%

59,1%

100,0%

Mais de 8h a 10h

f

21

18

39

%

53,8%

46,2%

100,0%

Mais de 10h

f

2

1

3

%

66,7%

33,3%

100,0%

Total

f

59

105

164

%

36,0%

64,0%

100,0%

Fonte: Banco de dados Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia (WEISHEIMER/CNPq, 2012).

 

As representações dos jovens sobre o trabalho agrícola podem ser resumidas na pergunta “O quanto você gosta do trabalho familiar agrícola?”. A Tabela 5 apresenta o cruzamento das respostas a essa questão com outra que expressa o projeto profissional dos jovens entrevistados. Assim, é possível demonstrar que avaliações sobre o trabalho e a disposição de reproduzi-lo apresentam uma relação positiva, isto é, quanto mais o jovem gosta do trabalho, mais quer reproduzi-lo. Como resultado, entre os entrevistados que responderam que gostam muito, 69,8% pretendem se estabelecer na agricultura familiar; dos que apresentaram uma posição ambígua para a resposta “mais ou menos”, 77% não pretendem ser agricultores; dos que responderam “não gosto”, 91,7% não querem ser agricultores.

 

Tabela 5 – Cruzamento entre representação sobre o trabalho agrícola e projeto profissional (f e %)

 

O quanto você gosta de trabalhar
na agrícultura?

Você quer se estabelecer profissionalmente como agricultor(a) familiar ?

Total

Sim

Não

 

Gosto muito

f

37

16

53

%

69,8%

30,2%

100,0%

Mais ou menos

f

20

67

87

%

23,0%

77,0%

100,0%

Não gosto

f

2

22

24

%

8,3%

91,7%

100,0%

Total

f

59

105

164

%

36,0%

64,0%

100,0%

Fonte: Banco de dados Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia (WEISHEIMER/CNPq, 2012).

 

A Tabela 6 apresenta a relação entre a avaliação dos jovens sobre o modo de vida dos pais e projeto profissional. Nesta, predomina, em todas as alternativas, o desejo de não ser agricultor, inclusive entre aqueles que avaliaram como “ótimo” e “bom” o modo de vida dos pais. Entre os que avaliaram como “ruim” o modo de vida, está o maior percentual de respostas positivas para a profissão agrícola (44%). O que revela os impasses desses jovens e que há contradição entre essas representações. Os jovens que avaliaram como “bom” o modo de vida dos pais apresentaram um percentual maior (39,3%) do que o do total (36%) para respostas positivas sobre a permanência no trabalho agrícola. No seu conjunto, essas respostas indicam uma ambivalência na posição dos jovens, avaliação do modo de vida dos pais e a disposição em viver como eles.

 

Tabela 6 – Cruzamento entre avaliação do modo de vida dos pais e projeto profissional (f e %)

 

Como você avalia o modo
de vida de seus pais?

Você quer se estabelecer
profissionalmente como
agricultor(a) familiar ?

Total

Sim

Não

 

Ótimo

f

14

30

44

%

31,8%

68,2%

100,0%

Bom

f

24

37

61

%

39,3%

60,7%

100,0%

Regular

f

16

29

45

%

35,6%

64,4%

100,0%

Ruim

f

4

5

9

%

44,4%

55,6%

100,0%

Péssimo

f

0

3

3

%

,0%

100,0%

100,0%

NS/NR

f

1

1

2

%

50,0%

50,0%

100,0%

Total

f

59

105

164

%

36,0%

64,0%

100,0%

Fonte: Banco de dados Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia (WEISHEIMER/CNPq, 2012).

 

Conforme aponta Bourdieu (2008), as relações singulares entre uma variável independente e outra dependente tendem a dissimular o sistema completo de relações que “constituem o verdadeiro princípio da força e da forma específicas registrados em determinada correlação particular” (BOURDIEU, 2008, p. 98). Com efeito, para além das análises dos fatores vistos acima como unidades independentes, buscou-se identificar, pela Análise de Correspondência Múltipla (ACM), o sistema de relações que se estabelecem entre elas, acrescidas ainda das variáveis sexo e faixa etária dos entrevistados. Isso se faz necessários porque a realidade estudada detém uma complexidade que nem sempre é revelada por procedimentos descritivos como os que foram realizados até o momento. O próprio modelo analítico adotado compreende o fenômeno, a situação juvenil, como multidimensional. Com efeito, interessa, para finalizar este relato, buscar interpretar o significado do fenômeno em sua totalidade. Por isso, recorre-se às medidas de discriminação que quantificam a variância de cada variável: quanto menos seu limite se aproximar do valor superior, equivalente a 1, mais as variáveis em questão discriminam os indivíduos em análise, ou seja, os indivíduos serão tanto mais distintos quanto mais diferenciadora for a variável em causa. Do ponto de vista geométrico, os pontos representativos das suas categorias tendem a registrar projeções distantes entre si (CARVALHO, 2008, p. 75) ou, em caso contrário, quanto mais próximos os pontos, mais homogêneos são os sujeitos estudados em relação às variáveis em apreciação.

Esse procedimento analítico produz um conjunto de resultados a partir das variáveis selecionadas, dos quais se optou por dois: 1) A medida de discriminação que quantifica a variância de cada variável. Seus valores variam entre 0 e 1, assim, quanto mais perto de 1, mais a variável discrimina os indivíduos em uma dada dimensão.[7] 2) A quantificação das categorias, que é uma representação gráfica que distribui as categorias em quadrantes adjacentes, permitindo identificar as distâncias destas entre si e a configuração da interação entre elas formando grupos cujos perfis são distintos.

No primeiro procedimento, que revelou as medidas de discriminação das variáveis selecionadas, pode-se notar que predomina uma homogeneidade do universo de estudo com relação às variáveis em questão. O que mais diferenciou inteiramente os entrevistados na dimensão 1, que corresponde à dimensão objetiva, foram as respostas para Jornada diária de trabalho na UPF, Você está estudando atualmente? e Faixa etária do entrevistado. Para a dimensão 2, subjetiva, a variável com maior poder de discriminação de categorias foi Como você avalia o modo de vida de seus pais? É importante citar que a baixa medida de discriminação de algumas categorias e, por consequência, o fato de as proporções de variância serem pouco sugestivas não retiram o poder explicativo do instrumento. Ele revela – isso sim – uma homogeneidade dos entrevistados em relação às variáveis analisadas, assim como a ocorrência de medidas de discriminação, semelhantes entre si nas duas dimensões, demonstram que há uma acentuada homogeneidade entre os eixos, não permitindo sua diferenciação temática. Assim, se essas discriminações são fracas, não são menos importantes para a interpretação de suas múltiplas relações, demonstrando que indivíduos em condições diferentes compartilham posições próximas no espaço social.

A configuração do espaço social das categorias segundo as variáveis selecionadas pode ser verificada no Gráfico 1. Ele traduz as medidas de discriminação anteriormente apresentadas. A demonstração mostra que os jovens agricultores familiares do Recôncavo formam um grupo social bastante homogêneo, tendo em vista a aglomeração das categorias na representação gráfica. As categorias de resposta não se afastam do ponto de origem. Essa informação vem colaborar para os resultados obtidos com os cruzamentos das variáveis, mostrando que o predomínio das respostas negativas ao trabalho agrícola se faz em relação aos fatores materiais, a socialização e as representações sociais, sem grande diferenciação interna.

 

Gráfico 1 – Configuração do espaço social conforme variáveis selecionadas

Fonte: Banco de dados Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia (WEISHEIMER/CNPq, 2012).

 

Mesmo diante da grande homogeneidade da amostra, os resultados permitem identificar que existem categorias que se relacionam mais intimamente. Para isso, é necessário atentar para a disposição espacial dessas diferentes configurações no interior de cada um dos quadrantes. Assim, no primeiro quadrante, existe mais proximidade e mesmo sobreposição entre as categorias “não quer se estabelecer profissionalmente na agricultura”, “jornada de trabalho de até quatro horas diárias”, “não gosto do trabalho agrícola”, e “a avaliação como ruim para o modo de vida dos pais”. Próximas a essas respostas, porém, já no segundo quadrante, encontram-se as categorias sexo feminino, faixa etária de 15 a 19 anos, baixa autonomia e avaliação do modo de vida dos pais como péssima. A principal diferenciação na amostra estudada aparece no terceiro quadrante, e diz respeito à jornada de trabalho. Nela é possível observar uma correspondência entre a faixa etária de 25 a 29 anos de idade e jornadas de trabalho superiores a dez horas diárias e os que não sabem ou não responderam sobre o modo de vida dos pais. É justamente neste quadrante que se encontra a resposta sim para a profissão de agricultor. Por sua vez, no quarto quadrante estão muito próximas as categorias sexo masculino, jornadas de trabalho de 6 a 8 horas e de 8 a 10 horas, média autonomia, ótimo e bom para o modo de vida dos pais e faixa etária de 20 a 24 anos.

Como destacado anteriormente, chama a atenção a grande homogeneidade interna no grupo estudado. Isso indica que estamos diante de jovens que formam uma unidade geracional, mas, além disso, constituem uma comunidade de destino comum, como diria Mannhein (1982). Esse é um fenômeno sociológico relevante, porque essa situação comum revela que se trata de unidade geracional na qual os sujeitos partilham um padrão de existência e atribuem os mesmos significados as suas experiências e respondem aos mesmos impulsos socializadores. Isso explica a tendência da quase totalidade desses jovens de não querer reproduzir o processo de trabalho familiar agrícola.

 Não há fatores que, isolados, nos permitam explicar os projetos profissionais dos jovens, mas, em seu conjunto, pode-se perceber que há contradições entre a atual situação juvenil na agricultura familiar e as aspirações de autonomia desses jovens. Mesmo numa intensa socialização, o que pode contribuir para gerar as disposições necessárias à reprodução geracional, a baixa autonomia material parece ser o tenaz a reunir os jovens em tomadas de posição que apontam para a ruptura com o processo de trabalho familiar agrícola. Isso revela os impasses na sucessão geracional da agricultura familiar no Recôncavo da Bahia.

 

Considerações finais

Os resultados obtidos permitem cotejar as hipóteses iniciais e avaliar as possibilidades de reprodução da agricultura familiar na região do estudo. A maioria dos jovens entrevistados não deseja permanecer profissionalmente na agricultura familiar, o que indica que eles fazem avaliações negativas sobre suas possibilidades nessa atividade. Essa recusa em reproduzir o processo de trabalho familiar agrícola explica-se pela própria situação juvenil que lhes é característica.

As análises empreendidas indicam como os jovens lidam com os papéis que desempenham no trabalho agrícola, as posições que ocupam na família e em suas estratégias de reprodução. Ou seja, revela como os jovens avaliam sua situação atual na agricultura familiar e projetam seu futuro. Os projetos profissionais dos jovens revelam que mesmo inseridos no trabalho familiar prevalece o desejo de mudar de atividade, porque a situação juvenil na agricultura não favorece o desejo de ser agricultor. Destaque-se que a estrutura objetiva dessa reprodução não se limita às formas de acesso à propriedade fundiária, mas, principalmente, ao acesso efetivo aos recursos materiais que lhes possibilitem dispor de autonomia material. Com efeito, a situação juvenil marcada por uma baixa autonomia material se revela como um dos fatores determinantes para que os jovens não permaneçam na agricultura familiar.

Por outro lado, os processos de socialização atuam como um fator objetivo fundamental, através dos quais os jovens internalizam os conhecimentos, os valores e a ética própria do trabalho familiar agrícola. Assim, são geradas as disposições necessárias à sua reprodução geracional, como revela a relação positiva entre jornada de trabalho e projetos profissionais agrícolas. Nesse sentido, a socialização no trabalho agrícola pode ser percebida como o principal instrumento de reprodução social na agricultura familiar, porque produz uma nova geração de agricultores familiares. Todavia, diante das condições de precariedade material observadas no Recôncavo, a intensa participação no trabalho familiar não é suficiente para assegurar aos jovens a formulação de projetos profissionais agrícolas que permitam a sucessão geracional nessas unidades produtivas.

Por sua vez, as representações dos jovens sobre o trabalho agrícola revelam-se mais coerentes com seus projetos profissionais do que a avaliação que fazem do modo de vida dos pais. A interação entre representações permitem-nos compreender mais as dinâmicas da reprodução geracional do trabalho familiar, que depende da reafirmação não só de uma posição no mundo social, mas também de sua visão de mundo correspondente. Com efeito, apesar de minoritários, os projetos profissionais agrícolas são mais frequentes entre os jovens com avaliações mais positivas sobre o trabalho agrícola e o modo de vida dos pais.

Além disso, se destaca no caso estudado a ocorrência de grande homogeneidade interna ao grupo. Isso revela que há pouca diferenciação social entre os entrevistados e explica as tomadas de posições comuns entre os jovens, com relação a seus projetos profissionais. Mostra também que não se tratam de casos isolados, mas que há uma crise sucessória generalizada na agricultura familiar do Recôncavo da Bahia. Essa unidade de geração que elabora as experiências comuns tem o defeito de lidar com os mesmos sintomas contraditórios de uma agricultura familiar que não consegue efetuar dinâmicas produtivas que assegurem a autonomia aos jovens. Uma questão a ser identificada é em que condições, diante dessa homogeneidades de situação e de destino, esses jovens seriam capazes de tomar consciência de sua situação comum e transformar essa consciência em base da solidariedade grupal ou da formação de grupos concretos para a emergência de um movimento de jovens agricultores que promovesse ações coletivas por mudanças na sua própria situação juvenil.

Conclui-se que os projetos profissionais dos jovens agricultores derivam da própria situação juvenil na agricultura familiar. E que apesar das diferenciações entre os sexos e etárias, que estão presentes na distribuição desigual dos recursos materiais, nos processos de socialização e nas representações sociais resultantes destas, esses jovens compartilham da mesma situação juvenil precária. Por isso, não parece adequado afirmar que os jovens estão deixando a agricultura familiar. Antes, o que ocorre é que a agricultura familiar, tal como se manifesta no caso do Recôncavo da Bahia, não está possibilitando que os jovens permaneçam nessa atividade. Principalmente por não assegurar a conquista de autonomia na transição para a vida adulta. Com efeito, essa agricultura familiar registra dificuldades para garantir a reprodução do processo de trabalho familiar e a sucessão geracional nas unidades de produção familiares.

Para provocar, aos cientistas sociais cabe buscar conhecer com maior extensão, profundamente e rigor metodológico esse fenômeno social. O desenvolvimento de uma agenda de pesquisa com jovens agricultores familiares tem permanentemente renovado o desafio à imaginação sociológica e, simultaneamente, contribuído para conferir mais visibilidade a essa categoria social que se revela um agente estratégico de qualquer plano de desenvolvimento rural que se queira sustentável.

 

 

 

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Resumo: (Situação juvenil e projetos profissionais de jovens agricultores familiares no Recôncavo da Bahia). O artigo traz uma análise da situação juvenil na agricultura familiar do Recôncavo da Bahia, buscando explicar os projetos profissionais formulados por esses jovens. Sendo os jovens agricultores familiares uma categoria social específica, devido à socialização no processo de trabalho familiar agrícola, o estudo coloca em evidência a situação social desses jovens, suas disposições à sucessão geracional e as possibilidades de reprodução social do processo de trabalho familiar agrícola, com  base em uma pesquisa extensiva e representativa da população jovem de 15 a 29 anos ocupada nessa atividade e num modelo analítico da situação juvenil estruturado em quatro eixos temáticos: a) as condições materiais; b) os processos de socialização; c) as representações socais; e d) os projetos juvenis, foram realizadas análises descritivas e de correspondência múltiplas. Os resultados indicam que no caso estudado a situação juvenil na agricultura familiar é marcada por baixa autonomia material, mesmo entre jovens adultos; por práticas de socializações no processo de trabalho familiar agrícola e na educação formal desiguais entre gênero e idades; e por representações negativas sobre esta atividade. São constatadas diferenciações de gênero e idades, contudo chama a atenção a forte homogeneidade do grupo. Concluindo-se que esses jovens formam uma comunidade de destino comum em ruptura com o trabalho familiar agrícola, entre outros fatores, porque essa atividade não assegura autonomia material a eles.

Palavras-chave: jovem agricultor familiar, situação juvenil, projetos profissionais.

 

Abstract: (Social situation and professional aims of young family farmers in the Bahian Recôncavo). The article presents an analysis of the juvenile situation among family farmers of the Bahian Recôncavo region (Brazil), seeking to explain the professional aims formulated by these young people. As young family farmers represent a specific social category due to socialization in family agricultural work, the study highlights the social situation of these young people, their disposition regarding generational succession end the possibilities of social reproduction of the family farming labor force. The study was based on an extensive and representative survey of the youthful population aged 15 to 29 years old employed in this activity and on an analytical model of youth situation structured along four thematic axes: a) material conditions; b) processes of socialization; c) social representations; and d) aims of youth. Both descriptive and multiple correspondence analyses were carried out. The results indicate that in the case studied the situation of youth in family farming is marked by low material autonomy even among young adults, by socializing practices in the processes of family agricultural work and unequal formal education between gender and age groups. It was concluded that these young people possess a strong homogeneity of common destiny in rupture with family agricultural work, among other factors, because this activity does not guarantee their material autonomy.

Keywords: young family farmers; youth situation; professional aims.

 

 

Recebido em agosto de 2018.

Aceito em outubro de 2018.



[1] Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-Doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e Desenvolvimento da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (PPGCS/UFRB) e líder dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural (NEAF/UFRB) e Observatório Social da Juventude (OSJ/UFRB).  E-mail: weisheimer@pq.cnpq.br.

[2] O presente artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa Estudo sobre a situação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo da Bahia, realizada com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq).

[3] Essa categoria foi obtida selecionando-se entre os ocupados na agricultura os que se enquadram na situação de ocupação como: conta própria; não remunerado em ajuda a membro do próprio domicílio; trabalhadora na produção para próprio consumo.

[4] O território do Recôncavo da Bahia é constituído administrativamente pelos municípios de Cabeceiras do Paraguaçu, Cachoeira, Castro Alves, Conceição do Almeida, Cruz das Almas, Dom Macedo Costa, Governador Mangabeira, Maragogipe, Muniz Ferreira, Muritiba, Nazaré, Salinas da Margarida, Santo Amaro, Santo Antônio de Jesus, São Felipe, São Félix, Sapeaçu, Saubara e Varzedo (SEI, 2016).

 

[5] Estas informações foram obtidas solicitando-se aos entrevistados que respondessem sim ou não, conforme a sua situação por ocasião da entrevista, para um conjunto de sete assertivas. 1) Desenvolvo atividade produtiva autônoma na unidade de produção familiar; 2) Possuo inscrição na Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) em meu nome; 3) Recebo remuneração em dinheiro por minha participação no trabalho familiar agrícola; 4) Tenho área de terra em meu nome; 5) Tenho conta-corrente em meu nome; 6) Tenho conta poupança em meu nome; 7) Tenho financiamento em meu nome.

[6] Para construir o índice sintético de autonomia material dos jovens agricultores familiares, os sete indicadores vistos anteriormente foram agrupados, considerando as respostas positivas dos indivíduos distribuídos em três categorias: (1) com respostas positivas para até dois indicadores (de 0 a 2) foram classificados como baixa autonomia; (2) com resposta positivas para três a quatro indicadores como média autonomia; (3) com resposta positivas para cinco ou mais indicadores (de 5 a 7) como alta autonomia.

[7] Devido às limitações de tamanho desse artigo, optou-se por não apresentar essas informações em quadro e gráfico e apenas registrar seus resultados mais expressivos no texto.