Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 27, n. 1, fevereiro a maio de 2019

 

 

 

Emanoel Márcio Nunes[1]
Maria de Fátima Rocha Gondim[2]
Márcia Regina Farias da Silva[3]


 

 

Identidade e reestruturação produtiva nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte[4]

 

 

 

Introdução

O território é lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência (SANTOS, 2011). Nesse contexto, é possível afirmar que o território é formado a partir do espaço, e é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Contudo, com o passar dos anos essa ação tende a ser intensificada pelo uso da técnica, da ciência e da informação para alterar os espaços e, consequentemente, nossas identidades, relações simbólicas, materiais, religiosas, culturais, entre outros atributos que permeiam as ligações da sociedade e seus atores com o “mundo vivido”.[5]

Essas ações são percebidas nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte, em sua abrangência, sendo observados fortes traços identitários, frutos dos processos que forjaram a produção do espaço. No entanto, é possível distinguir em alguns pontos esses traços de identidade, como nas características das cidades que compõem os chamados Vale do Açu e Chapada do Apodi, que juntos possuem a produção de cerâmica, de mel de abelhas, a criação de bovinos e caprinos, a instalação de cooperativas de agricultores familiares e de grandes empresas privadas nacionais e multinacionais que produzem frutas tropicais irrigadas (melão, melancia, banana, entre outras), especialmente para exportação.

Ao analisar essa perspectiva, os territórios que manifestam suas identidades estabelecem a partir dos indivíduos um diálogo profícuo para a promoção das instituições, e até mesmo da coesão social entre os atores territoriais. Para Schneider (2009), os estudos demonstram que o capital social e de instituições, na concepção de Putnam (2003), também possui uma dimensão territorial, e é visto como potencial para criação e/ou legitimação das identidades. Neste contexto, a Identidade representa um conceito que indica a condição social e o sentimento de pertencer a uma determinada cultura. De acordo com Perico (2009), representa um conjunto de características de um povo, oriundas da interação dos membros do território e da forma destes interagir com o mundo. Em um indivíduo, o nível de Identidade Territorial vai depender da sua participação ou exclusão relativa à cultura que o envolve.

Depois da hegemonia econômica e declínio do binômio algodão-pecuária (atividade considerada inicial e “identitária”), entre os anos 1940 e final dos 1980, a implantação de grandes projetos governamentais sob a concepção da modernização agrícola, a partir dos anos 1980, marca todo o desenrolar de ações futuras nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, que têm se configurado como um ambiente de potencialidades e desafios a serem superados. Neste sentido, a partir dessas mudanças, se faz necessário questionar quais alternativas ou estratégias o Estado e as instituições devem adotar que sejam capazes de mobilizar e estabelecer mecanismos de política, e se traduzam em desenvolvimento territorial visando à dinamização dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi e à consolidação das identidades locais? E considerando os desafios para a valorização da dimensão espacial em relação às identidades envolvidas, como possibilitar a inserção do espaço nas políticas nacionais e reduzir as desigualdades existentes e/ou evitar aprofundar ou produzir novas?

Tal questão nos chama a atenção sobre uma suposta “crise” de identidade, ausência ou insuficiência de pertencimento ou, simplesmente, a não identificação com atividades predefinidas que pretendem introduzir o desenvolvimento local. Isto aponta para a configuração de um espaço territorial com problemas múltiplos, mas que apresenta potencialidades e desafios que necessitam ser identificados para a proposição de políticas públicas mais direcionadas à realidade local. Ao considerar a relevância da discussão sobre o território e a construção das identidades locais, atores globais e instituições locais surgem e passam a moldar outra configuração territorial a partir de uma nova direção para as políticas públicas que impulsionam o desenvolvimento territorial.

Diante desse contexto, parte-se do pressuposto que as políticas públicas têm sido fundamentais para o desenvolvimento deste território, seja através do surgimento de novas oportunidades de trabalho no campo, seja através de incentivos à infraestrutura habitacional e produtiva na zona rural e até mesmo a inclusão de agricultores familiares em mercados. Porém, diante dos desafios a serem superados, o seu alcance ainda é deficiente e insuficiente para definir uma dinâmica sustentável de desenvolvimento rural.

Ao considerar esta reflexão, o objetivo é identificar as políticas territoriais com base em uma perspectiva multidimensional das identidades locais como instrumentos que ressignificam ou dinamizam os territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte, levando em conta a produção do espaço a partir do desenvolvimento das diferentes atividades econômicas e os processos que contribuíram para forjar os elementos identitários das populações locais.

 

Identidade e desenvolvimento territorial: aproximação conceitual

As mudanças ocasionadas no decorrer dos séculos que testemunham o desenvolvimento da sociedade imprimem traços marcantes nas relações homem/natureza. Essas relações se tornam mais evidenciadas quando buscam uma aproximação entre os dois (o homem e a natureza), e percebe-se que nós a transformamos através da utilização e/ou apropriação dos seus espaços.  As necessidades da vida em sociedade são intensamente transformadas a todo tempo pelo signo da evolução material das formas. O tempo e o espaço, para Santos (2006), são marcados pelo movimento.

A partir da análise de Santos (2005), torna-se possível afirmar que a sociedade, ao desconsiderar erroneamente a intencionalidade e a evolução desses objetos e ações, deixou de avançar em aspectos importantes (infraestrutura, habitação, reconfiguração do rural e do urbano etc.) para o desenvolvimento, principalmente nas mudanças ocorridas no espaço.

Historicamente, alguns espaços são mais dinâmicos e apresentam um vasto potencial para a expansão socioeconômica, ao passo que outros não conseguem avançar, ocasionando dificuldades que resultam em entraves que retardam o seu ciclo de desenvolvimento, seja este social, econômico, político ou cultural.

Os lugares se distinguem pela diferente capacidade de oferecer rentabilidade aos investimentos. Essa rentabilidade é maior ou menor, em virtude das condições locais de ordem técnica (equipamentos, infraestrutura, acessibilidade) e organizacional (leis locais, impostos, relações trabalhistas, tradição laboral). [...] É desse modo que os lugares se tornam competitivos. O dogma da competitividade não se impõe apenas à economia, mas, também, à geografia. (SANTOS, 2006, p. 166-167)

Não obstante, uma nova dinâmica de diferenciação se instala no território mediante a intervenção de mais ou menos conhecimentos e técnicas em determinadas zonas. No entanto, antes mesmo de adotar a expressão cunhada por Santos (2006) de que territórios nacionais se transformam num espaço nacional da economia internacional é imprescindível, para Raffestin (1993), compreender bem que o espaço é anterior ao território.

O território se forma a partir do espaço, e é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Contudo, com o passar dos anos essa ação foi intensificada pelo uso da técnica, da ciência e da informação para alterar os espaços e, consequentemente, nossas identidades, relações simbólicas, materiais, culturais, religiosas, entre outros atributos que permeiam as ligações da sociedade e seus atores com o “mundo vivido”.

Vivemos, hoje, cercados de objetos técnicos, cuja produção tem como base intelectual a pesquisa e não a descoberta ocasional, a ciência e não a experiência. Antes da produção material, há a produção científica. Na verdade, tratam-se de objetos científico-técnicos e, igualmente, informacionais. (SANTOS, 2006, p. 142)

É a partir da dependência dos chamados “espaços da globalização”, como o Açu-Mossoró – onde, desde a década de 1990, tem se intensificado a instalação de empresas multinacionais que utilizam os recursos naturais (expressando pouca ou quase nenhuma preocupação com os efeitos adversos causados à população e ao meio ambiente) e humanos (com a mão de obra barata e flexível) –, que os territórios são redefinidos, bem como as relações neles constituídas. Esses espaços globais influenciam permanentemente o desenvolvimento dos territórios. Dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, mais especificamente o primeiro vem sendo alvo de intencionalidades resultantes desse processo. É possível observar essa intervenção quando, com o desenvolvimento das etapas do Projeto Baixo-Açu, o perímetro irrigado e a construção de grandes obras, como a barragem Armando Ribeiro Gonçalves ainda nos anos 1980 no Açu-Mossoró, assim como da barragem de Santa Cruz no Sertão do Apodi em 2002, os territórios passaram a sofrer uma ação permanente de atores externos com a instalação de grandes empresas multinacionais, influenciando toda uma (re)significação nas estruturas de desenvolvimento que reverberam até os dias atuais:

O Polo Açu-Mossoró, representa um espaço de globalização da região Nordeste, e sua inserção nos circuitos globais ocorre com a passagem do modelo nacional e de caráter fordista regulado pelo Estado, para um modelo regulado pelo livre mercado em um ambiente de globalização. (NUNES; SCHNEIDER, 2008, p. 4)

Tal fenômeno levou agricultores familiares com histórico de viver da agricultura, do extrativismo da palha da carnaúba e da pesca – atividades marcantes desse território – a serem forçados a vender as suas terras para as multinacionais, levando-os a trabalhar como empregados assalariados, desconfigurando a sua identidade de agricultores e pescadores.

[...] embora os camponeses tivessem clareza do significado do Projeto Baixo-Açu como ruptura de sua dinâmica de vida, isto é, percebessem que suas tradições estavam amarradas a um ambiente prestes a desaparecer ou, de outra forma, tornar-se indisponível para eles, o Estado, por contradição, procurou comportar-se como guardião dos interesses desta mesma gente. Logo, a execução do Projeto foi um jogo de negação e afirmação de uma realidade e dos sujeitos dentro dela. (VALENCIO, 1994, p. 59)

Para Harvey (2005), isto resulta da influência do capital e, consequentemente, do mercado mundial, pois ao instalar-se nesse espaço geográfico o propósito é promover a sua reprodução ampliada em decorrência da grande acumulação do capital.

 [...] o Vale do Açu está inserido nos antigos espaços de reservas destinados à expansão geográfica do capital, permitindo a expansão capitalista no meio rural [...] está integrado ao circuito espacial de produção a partir da produção de fruticultura irrigada, o que conferiu ao seu espaço uma intensa fluidez e dinamicidade, além de provocar significativos impactos no meio rural e na economia da região, uma vez que, os agentes capitalistas vêm intensificando o processo de apropriação do espaço, organizando-o em função de seus interesses econômicos no meio rural e na economia da região, uma vez que, os agentes capitalistas vêm intensificando o processo de apropriação do espaço, organizando-o em função de seus interesses econômicos. (SOUSA; LOPES; SILVA, 2012, p. 14)

Assim, segundo Santos (2005), surge para a sociedade como um todo e suas relações sociais no “mundo da vida” uma problemática ao examinar a dialética entre espaço e território na era da mundialização do espaço geográfico, na tentativa de estabelecer um sistema universal em toda parte, onde o território as identidades passam a ser categorias fluídas a serviço da economia e do mercado, regido pelas relações de um mundo técnico e científico altamente globalizado e competitivo.

Entretanto, embora esse processo remeta a implicações na constituição, manutenção ou fluidez das identidades locais, é notório o surgimento do termo aludido por Santos (2006) sobre os “acontecimentos, ou do acontecer solidário”, que se configuram com a instituição de novos recortes territoriais. Pode ser até mesmo o retorno do território, ligado, principalmente, pelos nós, redes e horizontalidades que buscam retomar o “acontecer simultâneo” nos atores locais, como ocorre nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte, onde agricultores, pescadores, apicultores, extrativistas, entre outros, buscam constituir redes de informações, articulações e comercialização para fortalecer suas relações e identidades, caminhando, desta forma, para a obtenção de estratégias conjuntas que poderão potencializar e consolidar a dinâmica do desenvolvimento territorial.

Faz-se necessário, para melhor entendimento, pensar espaço e território como sendo indissociáveis, pois eles são marcados pelas mutações das ações humanas, embora ao longo do desenvolvimento das especialidades das ciências eles tenham sido separados. A fragmentação destas terminações gerou consequências nas dinâmicas do “mundo vivido” de uma sociedade em constante transformação. Ademais, a história não se escreve fora do espaço e não há sociedade a-espacial. O espaço, ele mesmo, é social (SANTOS, 2005).

A partir dessa reflexão, devemos nos esforçar para compreender como se dá a formação social do espaço ao território, e como esses processos desencadeiam um sistema de objetos e ações que são determinantes para a construção das identidades dos atores sociais; isto é, a compreensão do território numa perspectiva integradora entre as diferentes dimensões sociais que marcam as relações da sociedade com a própria natureza. Para tanto, é indispensável analisar como os processos dialéticos foram concebidos ou não, seja para a melhor clareza no debate teórico, seja para a utilização desses termos considerados estratégicos para o conhecimento das sociedades em sua totalidade, identidades e intencionalidades. Como resultado, busca-se compreender o território numa visão integradora. Respondendo pelo conjunto de nossas experiências no/com/através do espaço, estamos considerando as diferentes relações sociais ou culturais que se inscrevem ao longo do tempo.

Para Haesbaert (2002), a história da concepção de território caminha por duas vertentes interpretativas que se opuseram, mas em sua compreensão elas jamais podem ser vistas separadamente. A primeira concepção de território é a de caráter naturalista, a qual vê o território num sentido físico, material, como algo inerente ao próprio homem, quase como se ele fosse uma continuidade do seu ser, como se o homem tivesse uma raiz na terra. Essa tal concepção seria justificada, sobretudo, pela necessidade do território e de seus recursos para a sobrevivência biológica.

De acordo com Santos (2011), o território não é apenas o conjunto de sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. Ele precisa ser entendido como território usado, não território em si. O território usado é o chão mais a identidade. O atributo de identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. Ele é o fundamento do trabalho, o lugar de residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. Desta forma, evidencia-se as várias noções de território, a polissemia no uso do seu conceito.

[...] devemos reconhecer que vivenciamos hoje um entrecruzamento de proposições teóricas [...] Somos levados, mais uma vez, a buscar superar a dicotomia material/ideal, o território envolvendo, ao mesmo tempo, a dimensão espacial material das relações sociais e o conjunto de representações sobre o espaço ou o “imaginário geográfico” que não apenas move como integra ou é parte indissociável destas relações. (HAESBAERT, 2011, p. 42)

Diante do exposto, podemos entender e melhor compreender o território como um sistema. A partir disto, estudiosos como Raffestin (1993) e Santos (1985, 2005, 2006) nos levam a refletir sobre questões que envolvem relações de poder dentro dos sistemas de objetos e ações produzidos pela prática social dos atores do “mundo vivido” que o compõem. Aqui, reforça-se a concepção de Santos (2011), quando ele assegura que o território tem que ser entendido como território vivido e usado: “o território é lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência” (SANTOS, 2011, p. 13).

Isto é perceptível no território Açu-Mossoró, onde, em sua abrangência de quatorze municípios, estes têm fortes traços identitários, produtivos e sociais que os distinguem em alguns pontos, como as características das cidades que compõem o chamado Vale do Açu, que tem a produção ceramista, a instalação de empresas multinacionais que trabalham com monocultura de frutas tropicais (melão, melancia, banana) para o mercado externo. Segundo Santos (2005), cada lugar se define tanto por sua existência corpórea quanto por sua existência relacional; ou seja, existe uma imbricação, um conjunto de formas, objetos e ações que são indissociáveis. Estes, por sua vez, carregam traços que estabelecem elementos que irão influenciar na constituição das identidades.

Sendo assim, nas condições atuais que permeiam o “mundo da vida” onde os atores sociais estão inseridos, as identidades têm sofrido uma carga intensa no conjunto das relações sociais, a partir da universalidade ou fragmentação dos espaços nos quais elas estão inseridas e onde constroem seu sentimento de pertença e de identidade com o local. O espaço para a construção da identidade, de acordo com Bauman (2005), assumiu a forma de uma experimentação infindável. Para este autor, os experimentos jamais terminam:

[...]. Você assume uma identidade num momento, mas muitas outras, ainda não testadas, estão na esquina esperando que você as escolhas. Muitas outras identidades não sonhadas ainda estão por ser inventadas e cobiçadas durante a sua vida. Você nunca saberá ao certo se a identidade que agora exibe é a melhor que pode obter e a que provavelmente lhe trará maior satisfação. (BAUMAN, 2005, p. 91-92)

Tais reflexões nos remetem ao vasto contexto na produção social dos discursos e como estes são distribuídos e introjetados nas relações que constroem as identidades no que Bauman (2005) chama de modernidade fluída e globalizada. Ou seja, elas são produzidas socialmente e culturalmente, aqui considerando a contribuição de Hall (2006) sobre a identidade cultural, e, como tal, devem ser questionadas e problematizadas. Schneider (2004) acredita que o retorno do território ganha relevo, agora não mais com o conteúdo geopolítico, mas como uma noção com estatuto operacional que permite a superação dos condicionantes e limites do aporte regional anteriormente aplicado. Agora o território emerge como uma nova unidade de referência para a atuação do Estado e a regulação das políticas públicas.

Nesse novo paradigma territorial, as identidades são um dos condicionantes que têm merecido destaque, pois, no passado, tendo em vista a ineficácia e ineficiência de suas ações, as políticas públicas tinham um custo vultoso para a sociedade e buscavam, a partir de suas intervenções, homogeneizar ou forjar as identidades, desconsiderando a diversidade e renegando, assim, o debate. Ao analisar essa perspectiva, os territórios que manifestam suas identidades estabelecem a partir dos indivíduos um diálogo para a promoção do que Putnam (2003) define como capital social, ou seja, no que se refere a práticas sociais, normas e relações de confiança que existem entre atores de uma dada sociedade. Para Schneider (2009), os estudos passaram a demonstrar que o capital social também possui uma dimensão territorial, e esta é percebida como uma fonte em potencial para criação e/ou legitimação das identidades.

Para esta perspectiva, a cultura e a identidade social são os pontos de partida que permitem mobilizar indivíduos e atores em torno de uma ideia ou de um projeto coletivo, política e socialmente legitimado de “baixo para cima” (bottom up). O território e o espaço local se constituem na esfera privilegiada deste tipo de processo porque é nesta escala que os indivíduos interagem, cooperam, trocam informações e estabelecem mecanismos de controle e coesão social. (SCHNEIDER, 2009, p. 28)

Em termos analíticos, a identidade, nos estudos sobre território feitos por Perico e Ribeiro (2005), Perico (2009), Schneider (2009) e Souza (2010) têm revelado que o processo de legitimação social dos indivíduos é fundamental, pois dele se origina o sentimento de pertencimento e de comprometimento. Segundo Souza (2010), a ocupação do território é vista como algo gerador de raízes e identidade, no sentido de que a identidade sociocultural das pessoas estaria inarredavelmente ligada aos atributos do espaço concreto. Assim, sendo o território um “espaço vivido e usado” pelos atores sociais, os diferentes tipos de identidade estão relacionados a um contexto social, pois a sua construção, desconstrução e reconstituição é perpassada por valores progressivos que se confrontam na não linearidade dos processos históricos através dos séculos, décadas, anos, meses ou dias.

Quanto à Política Nacional de Desenvolvimento Territorial, é a partir de 2003 que a Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) adota em todo país a abordagem territorial no Programa Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais, o que leva à criação dos Territórios de Identidade e dos Territórios Rurais. É a partir dos Territórios Rurais e de Identidade que tem início no Brasil a promoção de políticas públicas com viés territorial, viés que, conforme Nunes et al. (2015), foi influenciado por práticas existentes, especialmente para promover o desenvolvimento local na região Nordeste do Brasil e que, apesar de estarem direcionadas na esfera municipal, contribuíram com experiências participativas de planejar e executar o desenvolvimento rural.

De acordo com Perafán e Oliveira (2013), desde o final dos anos 1990 que no interior das Universidades vinha sendo discutida a temática do desenvolvimento territorial e suas interfaces com uma nova concepção de desenvolvimento rural. Agências, a exemplo do Instituto Interamericano de Cooperação para Agricultura (IICA) e do Centro de Cooperação Internacional de Pesquisas Agronômicas para o Desenvolvimento (Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement – Cirad), contribuíram de forma significativa. Conforme Perafán e Oliveira (2013), essas agências compartilharam espaços e aproveitaram um ambiente adequado no governo brasileiro por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead) e, desde 2003, da Secretaria de Desenvolvimento Territorial.

Para a Secretaria de Desenvolvimento Territorial, o Território de Identidade “é um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, compreendendo a cidade e o campo, caracterizado por critérios multidimensionais – tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições – e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, donde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial”. (PERAFÁN; OLIVEIRA, 2013, p. 15)

Tais considerações foram essenciais para elaborar a estratégia, e para adotar o enfoque territorial para o desenvolvimento rural, o qual se materializou na criação, em 2003, do Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (Pronat), em que para a SDT a abordagem territorial representa uma “visão integradora de espaços produtivos, atores sociais, agentes, mercados e políticas públicas de intervenção”.

 

Materiais e métodos

Para situar o ambiente do estudo, de acordo com o Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS, 2010), o Território Açu-Mossoró abrange uma área de 7.974 km², sendo composto por 14 municípios, a saber: Alto do Rodrigues, Areia Branca, Assú, Baraúna, Carnaubais, Grossos, Ipanguaçu, Itajá, Mossoró, Pendências, Porto do Mangue, São Rafael, Serra do Mel e Tibau. Já o Território Sertão do Apodi abrange uma área de 8.280,20 km², e é composto por 17 municípios: Apodi, Campo Grande, Itaú, Janduís, Rodolfo Fernandes, Umarizal, Caraúbas, Felipe Guerra, Governador Dix-Sept Rosado, Messias Targino, Olho-d’água do Borges, Paraú, Patu, Rafael Godeiro, Severiano Melo, Triunfo Potiguar e Upanema, como mostra a Figura 1.

 

Figura 1 – Mapas dos territórios da cidadania Açu-Mossoró e Sertão do Apodi (RN)

 

Territórios Estudados Açu-Mossoró

Fonte: Nedet-Uern, 2015.

 

O cálculo dos indicadores de identidade, segundo os fatores mencionados, é feito pelas Células de Acompanhamento e Informação. Para isso, desenhou-se um instrumento que indaga os integrantes dos Colegiados sobre sua percepção a respeito da influência de tais  fatores  nos  seguintes  aspectos- chave para o desenvolvimento territorial: i) a delimitação  territorial; ii) a gestão territorial em termos de participação de organizações; iii) o  planejamento relacionado com a visão de futuro, a definição de metas e objetivos e diagnóstico das características marcantes do território; iv) a construção da  história comum  do  território; e v) a resolução de conflitos. A identificação das identidades permite à Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) elaborar tipologias de territórios que orientam suas ações com relação ao desenvolvimento rural sustentável.

As sete perguntas que tratam dos aspectos-chave de desenvolvimento, como mostradas no Quadro 1, são compostas por sete itens a serem avaliados em uma escala de 1 (nenhuma importância) a 5 (muito importante), que se referem aos indicadores de Identidade Ambiental, Agricultura Familiar, Economia, Pobreza, Etnia, Colonização e Políticos. Como mencionado anteriormente, mede-se o efeito de cada característica de identidade em relação aos aspectos-chave do desenvolvimento territorial.

 

Quadro 1 – Apresentação dos indicadores de Identidade Territorial

Indicador de Identidade

Descrição

Ambiental

Demonstra o peso que têm os atributos relativos aos recursos naturais, áreas de proteção, patrimônio natural e problemas ambientais nos aspectos do desenvolvimento territorial.

Agricultura familiar

Aponta para a influência das condições de desenvolvimento da agricultura local, suas organizações, os problemas e as expectativas dos agricultores familiares.

Economia

Indica o efeito dos processos produtivos, polos de desenvolvimento, geração de emprego e da estrutura econômica local.

Pobreza

Refere-se ao impacto da marginalidade, exclusão social, desigualdade e outras precariedades econômicas.

Etnia

Mostra a interferência dos grupos que agem baseados em suas crenças e perfis étnicos.

Colonização

Trata do processo de ocupação territorial

Políticos

Refere-se à influência dos grupos políticos, à filiação partidária e das organizações comprometidas com os processos políticos nos aspectos-chave do desenvolvimento territorial.

Fonte: SGE/MDA, 2011.

 

Cada indicador de identidade varia entre 0 (zero) e 1 (um), sendo que o valor 1(um) indica maior influência da identidade nos aspectos-chave de desenvolvimento do território, e 0 (zero), menor influência da identidade. A coleta dos dados referentes à Identidade Territorial é realizada a partir do Questionário de Identidade Territorial (Q2). Este questionário é composto por 14 perguntas: as sete primeiras correspondem à identificação da entrevista; e as outras sete correspondem aos aspectos-chave para o desenvolvimento – definição dos limites territoriais, gestão territorial, visão de futuro, metas e objetivos, características marcantes, história e conflitos existentes no território.

O Questionário de Identidade Territorial foi aplicado a todos os integrantes do Colegiado Territorial (Codeter) dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, de duas formas: i) individualmente, a cada membro do colegiado; e ii) distribuído em uma das plenárias do Colegiado. Entretanto, antes, os representantes do Colegiado foram informados sobre a pesquisa e esclarecidas eventuais dúvidas, assim como acompanhado todo preenchimento do questionário pelos representantes. Para identificar os integrantes do Colegiado, nomes e endereços foram consultados do Sistema de Gestão Estratégica (SGE).

O cálculo da Identidade Territorial, conforme mostrado no Quadro 2, é aferido a partir da média aritmética simples dos itens referentes às características: Ambiental, Agricultura Familiar, Economia, Pobreza, Etnia, Colonização e Políticos – em cada uma das perguntas sobre os aspectos-chave de desenvolvimento, conforme Quadro 2:

 

Quadro 2 – Cálculo das Identidades Territoriais

Indicador

Fórmula

Ambiente

[(Q2_P8_i1)+(Q2_P9_i1)+(Q2_P10_i1)+(Q2_P11_i1)+(Q2_P12_i1)+(Q2_P13_i1)+(Q2_P14_i1)]/7

Agricultura

Familiar

[(Q2_P8_i2)+(Q2_P9_i2)+(Q2_P10_i2)+(Q2_P11_i2)+(Q2_P12_i2)+(Q2_P13_i2)+(Q2_P14_i2)]/7

Economia

[(Q2_P8_i3)+(Q2_P9_i3)+(Q2_P10_i3)+(Q2_P11_i3)+(Q2_P12_i3)+(Q2_P13_i3)+(Q2_P14_i3)]/7

Pobreza

[(Q2_P8_i4)+(Q2_P9_i4)+(Q2_P10_i4)+(Q2_P11_i4)+(Q2_P12_i4)+(Q2_P13_i4)+(Q2_P14_i4)]/7

Etnia

[(Q2_P8_i5)+(Q2_P9_i5)+(Q2_P10_i5)+(Q2_P11_i5)+(Q2_P12_i5)+(Q2_P13_i5)+(Q2_P14_i5)]/7

Colonização

[(Q2_P8_i6)+(Q2_P9_i6)+(Q2_P10_i6)+(Q2_P11_i6)+(Q2_P12_i6)+(Q2_P13_i6)+(Q2_P14_i6)]/7

Políticos

[(Q2_P8_i7)+(Q2_P9_i7)+(Q2_P10_i7)+(Q2_P11_i7)+(Q2_P12_i7)+(Q2_P13_i7)+(Q2_P14_i7)]/7

Fonte: SGE/MDA, 2011.

Sendo que: Q = Questionário; P = Pergunta; i = Item de resposta (relativos a Identidades).

 

Resultados e discussão

Identidade e reestruturação nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi

As atividades econômicas baseadas especialmente no binômio algodão-pecuária são consideradas iniciais e “identitárias” nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, desenvolvidas por cooperativas que adquiriam a produção e beneficiavam através das usinas de algodão. A produção de algodão, segundo Clementino (1985), sempre esteve presente em quase todos os municípios dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, sendo reduzida a partir dos anos 1980 e intensificando a sua redução nos anos 1990, por ocasião da abertura comercial combinada com a já acentuada crise do modelo nordestino de produção.

Segundo Clementino (1985), ainda na década de 1940 houve uma intensificação do processo de desaparecimento dos pequenos descaroçadores de algodão, em virtude da chegada das primeiras usinas no interior. De acordo com a autora, a ação do governo estadual na época foi de restringir o acesso das multinacionais e resguardar o mercado do algodão para agroindústrias e cooperativas locais, ou apenas para duas indústrias multinacionais de capital inglês, tidas como “de casa” – nesse caso, a Machine Cotton e a Wharton Pedroza. Entre os anos 1940 e 1990, a atividade econômica baseada no algodão foi predominante no Rio Grande do Norte, e ditou a identidade da dinâmica econômica, em que municípios dos territórios Açu-Mossoró (Mossoró como o grande centro agroindustrial) e Sertão do Apodi (Apodi, Campo Grande e Caraúbas) protagonizaram importante papel na economia potiguar, ver Tabela 1.

 

 

Tabela 1 – Estabelecimentos industriais de algodão do Rio Grande do Norte (ano de 1942)

 

Municípios do Rio Grande

do Norte

Natureza do Estabelecimento

Total

Fiação e Prensagem

Benefici-amento

Óleos Vegetais

Fab. Máq. Benefici-amento

Estopa

Natal

Acari

Alexandria

Angicos

APODI

CAMPO GRANDE

João Câmara

Caicó

CARAÚBAS

Currais Novos

Jardim do Seridó

Jucurutu

Lages

Luís Gomes

Macaíba

Martins

MOSSORÓ

Nova Cruz

Parelhas

Patu

Pau dos Ferros

Pedro Velho

Santana do Matos

Santa Cruz

Santo Antônio

São Gonçalo

São Miguel

São Tomé

Serra Negra

01

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01

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06

04

08

01

09

03

03

06

11

05

04

05

03

04

07

03

06

13

08

05

01

08

12

01

02

07

11

01

-

-

-

01

-

-

01

-

-

01

-

-

-

-

-

-

04

-

-

-

-

-

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-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

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-

-

-

01

-

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-

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-

-

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-

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-

-

-

-

-

-

01

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

01

06

04

09

01

09

04

03

06

13

05

04

05

03

04

07

09

06

13

08

05

01

08

12

01

02

07

11

01

Total

02

157

07

01

01

168

Fonte: CLEMENTINO, 1985.

 

Com o declínio da atividade econômica do binômio algodão-pecuária, começa a surgir na segunda metade dos anos 1980 atividades consideradas novas e “identitárias”, que logo constituem uma nova dinâmica bem mais intensamente nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi. Conforme Nunes e Schneider (2013), é a atividade da fruticultura irrigada baseada em um modelo exógeno, especializado e empresarial exportador, que a partir de programas governamentais grandes empresas são atraídas devido à construção de infraestrutura, a exemplo de grandes barragens, e por sedutores incentivos de políticas regionais capitaneadas especialmente pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).

De acordo com Nunes e Schneider (2013), a fruticultura irrigada teve início ainda nos anos 1980 e se intensificou nos anos 1990 no Território Açu-Mossoró, como mostra o Quadro 1, a partir do vale do rio Piranhas-Açu (com a construção da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, inaugurada em 1983), e em Mossoró e Baraúna (a partir da oferta abundante da água subterrânea do aquífero Jandaíra-Açu, prospectada através de poços artesianos profundos), especialmente para a produção irrigada de melão para a exportação.

 

Quadro 1 – Empresas de fruticultura irrigada, no estado do Rio Grande do Norte (ano de 2015)

 

Empresa

Município

Ano de criação

Tamanho

Mossoró Agroindustrial S.A. – Maisa

Mossoró

1968

Grande

Itapetinga Agroindustrial

Mossoró

1980

Grande

Finobrasa Agroindustrial S/A

Ipanguaçu

1986

Grande

Frutas do Nordeste Ltda. – Frunorte

Assu

1985

Grande

TWA – Agropecuária Export. e Import. Ltda. – ME

Baraúna

1996

Médio

Norfruit Nordeste Frutas Ltda.

Mossoró

2001

Médio

WG Produção e Distribuição de Frutas Ltda.

Baraúna

2003

Médio

Brazil Melon

Mossoró

2001

Médio

Agrícola Famosa S.A.

Mossoró

2010 

Grande

Agrícola Famosa S.A.

Apodi

2014 

Grande

Vitória Agrícola Ltda.

Baraúna

1999

Pequeno

Agro Oriente Ltda.

Baraúna

1996

Médio

Intermelon Comercial Exportadora e Importadora

Mossoró

2002

Média

Finoagro (Finobrasa)

Ipanguaçu

1986

Grande

Dina Dinamarca Industrial Agrícola Ltda.

Mossoró

1995

Média

Comercial Frutas Dantas Ltda.

Mossoró

1997

Pequena

Unifrut Produção e Comercialização de Frutas Ltda.

Mossoró

2006

Pequena

Melão Brasil Ltda.

Mossoró

1990

Pequena

FF Moreira ME

Mossoró

1996

Pequena

A. A. M. do Couto

Mossoró

1998

Pequena

Terra Vida Importação e Exportação Ltda.

Mossoró

2009

Pequena

Mila Comercial Agrícola Ltda.

Mossoró

2004

Pequena

GJ de Medeiros

Mossoró

2011

Pequena

Claudimiro Barbosa dos Santos

Mossoró

1999

Pequena

Hortigran Hortigranjeiros e Graos Ltda. – EPP

Mossoró

1996

Pequena

Bollo Brasil Produção e Com. de Frutas Ltda.

Mossoró

2005

Grande

Telma Gomes de Oliveira

Mossoró

1998

Pequena

Fruta Vida Produção Importação e Exportação Ltda.

Mossoró

2009

Média

Fazenda Santa Helena Com. Import. e Exportação Ltda.

Mossoró

1999

Pequena

Lis Agrícola e Comércio Ltda.

Mossoró

2008

Pequena

Agrocanaã Indústria e Comércio Ltda. – ME

Mossoró

2008

Pequena

Multi Agro Exportadora e Importadora Ltda.

Mossoró

2002

Pequena

Agrobio Nordeste Ltda.

Mossoró

2012

Pequena

Comfrutas Empreendimentos Ltda.

Mossoró

2003

Pequena

Amaral & Freitas Ltda. – ME

Mossoró

2010

Pequena

Mata Fresca Ltda.

Mossoró

1997

Grande

E W Empreendimentos Agrícola Ltda (Otani)

Apodi

2003

Pequeno

Lessa Produção e Distribuição de Frutas Ltda.

Baraúna

1997

Média

Fonte: Pesquisa de campo, 2015. Elaborado pelos autores.

 

É a partir dos anos 2010 que a fruticultura irrigada migra para o território Sertão do Apodi, um território com forte presença da agricultura familiar e histórico de organizações coletivas de agricultores familiares. É num período mais recente que acontece nesse território a instalação de grandes empresas dispostas a produzir frutas para exportação e a utilizar a água das bordas do aquífero Jandaíra-Açu e, especialmente, da Barragem de Santa Cruz, construída em Apodi e inaugurada em 2002, sendo este o segundo maior reservatório de água do Rio Grande do Norte, atrás apenas da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves do Açu-Mossoró.

Enquanto as atividades “identitárias”, a inicial do binômio algodão-pecuária e a posterior da fruticultura deram e ainda influenciam a economia dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, a agricultura familiar iniciou nos anos 1990 uma significativa reação, buscando se afirmar como segmento “identitário” da dinâmica socioeconômica desses dois territórios. Esse movimento da agricultura familiar se intensificou, inicialmente, com o Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária (Procera),[6] e depois com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1996, impulsionando o surgimento dos projetos de assentamento de reforma agrária. E os territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, como mostra a Tabela 2, se destacam entre os três primeiros dos dez territórios do Rio Grande do Norte na criação de assentamentos.

 

Tabela 2 – Assentamentos de reforma agrária e famílias por território no Rio grande do Norte (em %)

Territórios

Total de Municípios

% do Estado

Total de Assenta-mentos

% do Estado

NO de Famílias Assentadas

% do Estado

Estado do Rio Grande do Norte

167

100,00

298

100,00

20.216

100,00

Alto Oeste Potiguar

30

17,96

0

0,00

0

0,00

Açu-Mossoró

14

8,38

78

26,17

6.461

31,96

Mato Grande

15

8,98

85

28,52

5.393

26,68

Potengi

11

6,59

14

4,70

1.233

6,10

Seridó

25

14,97

22

7,38

1.016

5,02

Sertão do Apodi

17

10,18

54

18,12

2.855

14,12

Trairi

15

8,98

11

3,69

834

4,13

Agreste/Litoral Sul

24

14,37

6

2,02

223

1,10

Terra dos Potiguaras

6

3,60

8

2,68

418

2,07

Sertão Central Cabugi e Litoral Norte

10

5,99

20

6,72

1.783

8,82

Fonte: Pesquisa de Campo. Incra-RN – Seção de Assentamentos, 2015.

 

Dessa forma, considerando os indicadores de identidade dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, os resultados da pesquisa mostraram que as atividades econômicas “identitárias” do binômio algodão-pecuária e da fruticultura irrigada definiram a percepção dos entrevistados mais para o indicador de identidade da “Economia”, e o movimento de afirmação dos agricultores familiares e de suas organizações coletivas contribuíram para a percepção dos entrevistados para o indicador de identidade “Agricultura Familiar”.

Conforme mostra a Figura 2, para o território Açu-Mossoró o indicador de identidade “Agricultura Familiar”, que revela a influência das condições da agricultura local, suas organizações, os problemas e expectativas dos agricultores familiares (considerando a escala de 0 a 1), alcançou na percepção dos entrevistados o valor de 0,877. Esse valor representa uma classificação “Alta” entre as categorias de indicadores de Identidade Territorial. Da mesma forma, o indicador de identidade “Economia”, que indica o efeito dos processos e da reestruturação produtiva e da estrutura econômica local, obteve na percepção dos entrevistados o valor de 0,831, também representando uma classificação “Alta” no ranking das categorias de indicadores de identidade. O terceiro indicador de Identidade Territorial para o território Açu-Mossoró foi o “Ambiente”, com valor de 0,810, também obtendo a classificação “Alta”, mas figurando atrás dos indicadores “Agricultura Familiar” e “Economia”.

 

Figura 2 – Território Açu-Mossoró: classificação dos indicadores de identidade

FIGURA01_IDENTIDADE.png

 

Categorias

Valor

Classificação

1. Ambiente

0,810

Alto

2. Agricultura familiar

0,877

Alto

3. Economia

0,831

Alto

4. Pobreza

0,793

Médio Alto

5. Etnia

0,485

Médio

6. Colonização

0,648

Médio Alto

7. Políticos

0,739

Médio Alto


Fonte
: SGE/MDA, 2011.

Legenda: 0,00–0,20 = Baixo; 0,20–0,40 = Médio Baixo; 0,40–0,60 = Médio; 0,60–0,80 = Médio Alto; 0,80–1,00 = Alto.

 

Cabe ressaltar que o território Açu-Mossoró é considerado ambiente de globalização, que passou por uma reestruturação produtiva no final dos anos 1990, e possui historicamente uma relação com a concepção de modelo exógeno, empresarial e exportador, uma crença da modernização agrícola difundida por décadas pela antiga Escola Superior de Agronomia de Mossoró (Esam), atual Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa). Apesar dessa influência, a agricultura familiar se destacou na percepção dos entrevistados em primeiro lugar como indicador da Identidade Territorial, vindo logo em seguida a economia. Na verdade, os dados da pesquisa mostraram que no território Açu-Mossoró, além da agricultura familiar, da economia e do meio ambiente, o indicador de identidade “Política”, com valor de 0,739 (que se refere à influência dos grupos políticos e das organizações) e o de “Pobreza”, com 0,793 (que trata de problemas como a exclusão social, desigualdade etc.), considerado “Médio Alto” na classificação, têm influência menor como indicador da Identidade Territorial.

A promoção do desenvolvimento territorial deve ter como estratégia a participação da sociedade civil e das instâncias do Poder Público (municipal, estadual e federal), na articulação e organização das forças políticas para o processo de gestão do território Açu-Mossoró. E isso é percebido na própria dinâmica do Colegiado Territorial (Codeter), uma divisão geográfica do seu recorte, ou seja, a composição dos integrantes do Codeter é dividida em dois núcleos diretivos: o núcleo de Assu (com uma identidade mais definida pelo espaço constituído pelos municípios do Vale do Açu), e o núcleo do Oeste Potiguar (com uma identidade mais definida pelo espaço de influência do município de Mossoró). Essa configuração se traduz por meio da identidade dos membros do território e se reflete como fator de interesse visível na arena de conflitos sociopolíticos que conduzem o colegiado.

Por outro lado, o indicador “Etnia”, com valor de 0,485 (que revela a interferência de grupos que atuam baseados em crenças, perfis étnicos etc.), e o indicador “Colonização”, com valor de 0,648 (que aponta o processo de ocupação do território), ambos com valores abaixo de 0,7, demonstraram menor impacto na formação da Identidade Territorial. Graficamente, os valores das categorias de Identidade Territorial ficaram conforme mostrado no Gráfico 1.



Gráfico 1 – Território Açu-Mossoró: valores das categorias de Identidade Territorial

Fonte: SGE/MDA, 2011.

 

Quanto ao território Sertão do Apodi, os indicadores de identidade seguiram a mesma configuração e ordem do território Açu-Mossoró, mas afirmando a sua identidade ainda mais a partir do indicador “Agricultura Familiar”, alcançando o valor de 0,922, que representa uma classificação “Alta” entre as categorias de Identidade Territorial, conforme mostra a Figura 3. Esse indicador de identidade, com esse valor bastante elevado e muito próximo de 1 (considerando a escala de 0 a 1), sugere a influência das condições da agricultura familiar local, e o histórico dos agricultores familiares do território Sertão do Apodi no que se refere às suas especificidades. Das características da agricultura familiar desse território, encontra-se um ambiente mais adequado para práticas do cooperativismo e do associativismo, o que possibilitou a constituição de organizações coletivas (cooperativas, associações, redes etc.), e estratégias voltadas para o enfrentamento de problemas e para a inserção em mercados.

No que diz respeito ao indicador de identidade “Economia”, na percepção dos entrevistados da pesquisa, o território Sertão do Apodi alcançou o valor de 0,839, um pouco maior do que o mesmo indicador do território Açu-Mossoró, representando, assim como neste último, uma classificação “Alta” entre as categorias de indicadores de identidade. Apesar de sugerir os efeitos de processos e da reestruturação produtiva e da estrutura econômica local, o que seria mais adequado para o território Açu-Mossoró, os entrevistados do território Sertão do Apodi também afirmaram a importância do indicador “Economia”. Talvez como um sensor da dinamização territorial a partir de potencialidades locais e baseado em modelos mais endógenos e diversificados. O terceiro indicador de Identidade Territorial para o território Sertão do Apodi foi o “Ambiente”, alcançando o valor de 0,819, também se configurando maior que o seu correspondente do território Açu-Mossoró, obtendo a classificação “Alta”, e ficando atrás apenas dos indicadores “Agricultura Familiar” e “Economia”.


Figura
3 – Território Sertão do Apodi: classificação dos Indicadores de Identidade

 

Categorias

Valor

Classificação

1. Ambiente

0,819

Alto

2. Agricultura familiar

0,922

Alto

3. Economia

0,839

Alto

4. Pobreza

0,774

Médio Alto

5. Etnia

0,338

Médio Baixo

6. Colonização

0,691

Médio Alto

7. Políticos

0,814

Alto

 

Fonte: SGE/MDA, 2011.

Legenda: 0,00–0,20 = Baixo; 0,20–0,40 = Médio Baixo; 0,40–0,60 = Médio; 0,60–0,80 = Médio Alto; 0,80–1,00 = Alto.

 

Deve-se considerar na análise que no território Sertão do Apodi o ambiente possui historicamente uma forte relação com a agricultura familiar e com experiências bem-sucedidas de organização coletiva implantada e difundida por décadas no território, especialmente pela iniciativa dos padres holandeses Peter Marinus Neefs (ou padre Pedro Neefs), André Demertetelaeere e Theodoro Johannes Franciscus Snijders, que chegaram a Apodi nos anos 1965, 1970 e 1983, respectivamente. Esses religiosos tiveram um papel fundamental no processo de articulação, politização e na criação das cooperativas e de outras organizações coletivas do território Sertão do Apodi, dotando agricultores familiares de mecanismos de autonomia, o que sugere, neste caso, o fato de a agricultura familiar ter se destacado na percepção dos entrevistados como o primeiro indicador da Identidade Territorial.

Na verdade, a pesquisa revelou que no território Sertão do Apodi, além do destaque da agricultura familiar, da economia e do meio ambiente, o indicador de identidade “Política”, com valor de 0,814, e o de “Pobreza”, com 0,774, considerados “Médio Alto” na classificação, aparecem com elevada influência na Identidade Territorial. No entanto, os indicadores “Etnia”, com valor de 0,338, e o indicador “Colonização”, com valor de 0,691, apareceram com valores abaixo de 0,7, sendo o indicador “Etnia” na percepção dos entrevistados o que demonstrou o mais baixo impacto na formação da Identidade Territorial. Estes dois últimos indicadores de Identidade Territorial revelam uma reduzida interferência ou pequeno interesse tanto em grupos que atuam baseados em crenças, perfis étnicos etc. como no processo de ocupação do território Sertão do Apodi. Graficamente, os valores das categorias de Identidade Territorial ficaram conforme mostra o Gráfico 2.


Gráfico 2
– Território Sertão do Apodi: valores das categorias de Identidade Territorial

Fonte: SGE/MDA, 2011.

 

Como visto, a pesquisa teve como principal finalidade analisar a percepção dos membros do colegiado dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi sobre Identidade Territorial. Entretanto, as variáveis utilizadas na análise seguem praticamente a mesma lógica de respostas para os dois territórios quanto aos mais baixos e mais altos indicadores de Identidade Territorial e demonstraram, conforme Quadro 2, uma representação aparentemente mais econômica do que de sentimentos de pertencimentos pelo seu lugar, pelo território. Cabe destacar que durante as entrevistas observou-se que a economia e as questões relacionadas ao meio ambiente, assim como a prática da agricultura familiar, se revelaram aspectos de maior importância no processo de construção da Identidade Territorial, do que os laços familiares e o sentimento de pertencimento pelo lugar, juntamente com os costumes e as tradições culturais.


Quadro 2
– Variáveis altas e baixas dos indicadores da Identidade Territorial

 

Territórios da Cidadania

Açu/Mossoró

Sertão do Apodi

Variável alta

Variáveis baixas

Variável alta

Variáveis baixas

Agricultura familiar

Etnia

Agricultura familiar

Etnia

Economia

Colonização

Economia

Colonização

Ambiente

Político

Ambiente

Pobreza

Fonte: SGE/MDA. Pesquisa de Campo, 2011.

 

Apesar de ter acontecido com mais intensidade no território Açu-Mossoró no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, onde o modelo exógeno do tipo top down concebido anteriormente no Polo Açu-Mossoró iniciou uma reversão através de um processo de reestruturação produtiva, esse movimento vem promovendo uma nova configuração do espaço rural. E nesse contexto verifica-se, portanto, uma coesão social cada vez mais presente dos atores com o território, dando-se ênfase às atividades mais endógenas e diversificadas que envolvem especialmente a agricultura familiar. Da mesma forma, mas numa intensidade muito menor, o processo de reestruturação vem provocando a reconfiguração do espaço no território Sertão do Apodi.

Essa afirmativa pressupõe a associação que se engendrou com a introdução de políticas públicas territoriais[7] pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA), com a articulação de “territórios produtivos temáticos”, e com temas comuns. Ou seja, território da fruticultura irrigada, da pesca, da ovinocaprinocultura, da apicultura, do artesanato, do leite, do arroz vermelho, da polpa de frutas, da cajucultura, entre outros. Ademais, percebe-se que nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi esses temas, ou cadeias produtivas, se destacam por meio da agricultura familiar e suas organizações coletivas, e determinam a configuração da Identidade Territorial.

Entende-se que a correlação de forças políticas observadas é importante quando fomenta e estimula a governança territorial, todavia, a interpretação dos sistemas produtivos de forma individual e isolada não favorece nem fortalece o território, embora seja essencial na definição dos projetos econômicos e dos municípios no processo de consolidação da Identidade Territorial. Quanto à Identidade Territorial, os resultados da pesquisa sugerem ser necessários a introdução e o permanente exercício de mecanismos de governança territorial na plenária dos colegiados (Codeters), ou seja, a participação mais ativa da sociedade civil e das instâncias do Poder Público: municipal, estadual e federal.

Entretanto, é impossível negar que com a reestruturação produtiva a Identidade Territorial tem sido reformulada para ambos os territórios, o Açu-Mossoró e o Sertão do Apodi, de forma a abranger e considerar as transformações produtivas praticadas no mundo, a licença de inserção produtiva nos mercados internacionais, ainda que relutantes na predominância da produção primária. As antigas influências regionalistas para os territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi tiveram pouca ou nenhuma expressividade, cedendo espaço na reconfiguração espacial produtiva. A realocação do centro produtivo dinâmico do interior para a capital fez com que os processos produtivos tradicionais não só perdessem espaço no conjunto dos municipios, como também a participação no desenvolvimento estadual.

Considerações finais

A partir das mudanças, se fez necessário questionar as alternativas ou estratégias que o Estado e as instituições adotaram no sentido de mobilizar e estabelecer mecanismos de política que se traduzissem em desenvolvimento territorial e dinamizasse os territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, consolidando as identidades locais. Isso considerando os desafios para a valorização da dimensão espacial em relação às identidades envolvidas, como possibilitando a inserção do espaço nas políticas de desenvolvimento territorial.

Na perspectiva das mudanças ocorridas nos dois territórios, algumas foram contrárias à relação do “espaço vivido e habitado”, descaracterizando sua história e suas identidades, apagando memórias e conhecimentos tradicionais locais devido à concepção de crescimento econômico que não internalizava nem considerava a capacidade coletiva dos atores locais. Quanto às mudanças ocorridas, a pesquisa revelou que os territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi são ambientes da intervenção de políticas que pretendiam a superação de estágios que retardavam o seu desenvolvimento, considerando que a relação entre os atores locais e as instâncias de Poder Público apresentava uma lógica verticalizada e centralizada de poder, dificultando a participação da maioria das pessoas dos territórios nesse processo.

Embora a construção e a manutenção do tecido social nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi tenham enfrentado resistência ao adentrar esses espaços, percebe-se bem mais no primeiro que os esforços têm sido permanentes, desde os anos 1980 até os dias atuais. Entretanto, essa trajetória não tem sido fácil, pois antigas crenças ainda se mantêm arraigadas como instituições arcaicas que antecedem o desenvolvimento territorial. Em trinta anos de ações públicas, muitas se distanciavam das atividades econômicas locais, pois se baseavam em modelos exógenos que contribuíam mais para a desconstrução das identidades e dos conhecimentos locais, e pouco levavam em conta o “nós”, ou a capacidade coletiva dos agricultores familiares.

Constatou-se que nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, em função do dualismo estrutural histórico na agricultura brasileira, podemos dizer que atualmente o contraste entre “agricultura familiar” e “agronegócio” fornece o quadro identitário mais geral no meio rural, o qual, entretanto, possui uma diversidade situacional e relacional nos dois territórios analisados. Embora seja multifacetária e tenha se constituído como “identidade atribuída” e não propriamente como “identidade construída” – e talvez por isso mesmo não seja uma categoria tão mobilizadora para a cooperação –, a SDT optou como estratégia de implementação da política territorial o “empoderamento” dos chamados agricultores familiares, adotando o protagonismo de sua participação em arenas deliberativas como estratégia fundamental para o desenvolvimento territorial.

 Com isso foi possível perceber que, embora no tempo e no espaço, acontecimentos políticos e sociais que passaram a apresentar propostas de desenvolvimento territorial via políticas baseadas em estratégias endógenas, considerando a valorização das identidades territoriais e do reconhecimento das diversidades regionais, têm encontrado significativa resistência. As identidades continuam a ser discutidas numa perspectiva transversal e de menor importância quando se trata dos projetos para o desenvolvimento do território, dando-se ênfase a aspectos mais econômicos do que os de sentimento de pertencimento pelo lugar, como constatado na percepção dos entrevistados a partir dos indicadores de identidade com variáveis mais altas. Isso em virtude das ações da política territorial que se encaminharam para um modelo homogêneo com viés executivo, em que, em alguns casos, ao colegiado territorial coube apenas validar as decisões já tomadas pelo governo federal.

É razoável destacar a fragilidade no diálogo entre os atores territoriais envolvidos no processo de desenvolvimento, o arrefecimento da sociedade civil no processo de gestão social dos projetos econômicos, e da necessidade urgente em estruturas de governança que sejam capazes de promover mudanças nas estratégias e concepção da intervenção dessas políticas no sentido da valorização das identidades. Assim, o desenvolvimento dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi deve ser pensado como a introdução das políticas poderá fortalecer a ação coletiva, ou o “nós”, as redes, as experiências e identidades, sendo necessário que ocorra uma avaliação criteriosa com uma participação ainda mais efetiva de todos os atores envolvidos nesses processos.

Dessa forma, faz-se necessário avançar não somente nos aspectos econômicos, mais nas dimensões social, político-cultural, demográfico-ambiental, entre outros, no sentido de superar dificuldades que postergam um processo de desenvolvimento territorial duradouro e sustentável. E as políticas devem considerar a valorização do conhecimento e das experiências acumuladas tradicionalmente por gerações, para que exista maior resistência dos mecanismos sociais locais de regulação na execução de atividades top down que agem mais na concepção de enclaves e se distanciam cada vez mais da realidade local, e que desconsideram a capacidade coletiva dos atores, desconstruindo o capital social e as identidades territorial.

Em síntese, diante das dificuldades que persistem ante as etapas que vão desde o planejamento até a gestão das políticas públicas, torna-se imperativo refletir sobre seus objetivos; que não somente os formuladores, mas toda a sociedade possa participar efetivamente desses processos, e que estes respeitem toda a diversidade local com vista a contribuir com a consolidação das identidades no processo de desenvolvimento territorial.

 

 

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NUNES, Emanoel Márcio; GONDIM, Maria de Fátima Rocha; SILVA, Márcia Regina Farias da. Identidade e reestruturação produtiva nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 27, n. 1, p. 137-166, fev. 2019.

 

 

Resumo: (Identidade e reestruturação produtiva nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte). Este trabalho objetiva analisar as políticas territoriais introduzidas a partir de uma perspectiva multidimensional das identidades locais como instrumentos que ressignificam ou dinamizam os territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte. A metodologia, tida para todo país pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT/MDA), se baseou especialmente na comparação dos dois territórios, considerando os indicadores de identidade e a produção do espaço, a partir das atividades econômicas que contribuíram ao longo do tempo na construção dos elementos identitários. Como resultados, foi verificado que a identidade produtiva dos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi modificou-se através de um processo de reestruturação produtiva que tem reconfigurado o espaço e as relações entre os atores. Por outro lado, políticas regionais introduzidas nos anos 1980, que relegaram a este espaço um desmonte das identidades locais e a construção da dependência e exclusão para a maioria dos agricultores familiares, têm sido revertidas partir dos anos 1990-2000, segundo a percepção dos entrevistados, por políticas territoriais que buscam considerar a capacidade coletiva dos atores, resgatar e valorizar as identidades territoriais.

Palavras-chave: reestruturação; agricultura familiar; Identidade Territorial; Território.

 

Abstract: (Identity and productive restructuring in the Açu-Mossoró and Sertão do Apodi territories of Rio Grande do Norte, Brazil). The objective of this study is to analyze the territorial policies introduced from a multidimensional perspective of local identities as instruments that give new meaning to or dynamize the Açu-Mossoró and Sertão do Apodi territories, from Rio Grande do Norte state, Brazil. The methodology, developed for the entire country by the Department of Territorial Development of the Ministry of Agrarian Development (SDT/MDA), was based in particular on the comparison of the two territories, considering the indicators of identity and the production of space, derived from the economic activities that contributed over time to the construction of the elements of identity. As a result, it was verified that the productive identity of the Açu-Mossoró and Sertão do Apodi territories changed through a process of productive restructuring that has reconfigured space and the relations between actors. On the other hand, regional policies introduced in the 1980s, which relegated to this space a dismantling of local identities and the construction of dependence and exclusion for many family farmers. But, this context was reversed beginning in the years 1990-2000, according to the perception of the interviewees, by territorial policies that seek to consider the collective capacity of the actors, to restore and value their territorial identities.

Keywords: restructuring; family farming; territorial identity; territory.

 

 

 

Recebido em fevereiro de 2018.

Aceito em dezembro de 2018.



[1] Doutor em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) e professor do Programa de Pós-Graduação em Economia (PPE) da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FACEM/UERN) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Nível 2 – CA AE) Administração, Contabilidade e Economia. E-mail: emanoelnunes@uern.br.

[2] Socióloga com mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (PPCISH/UERN). E-mail: fatimagondim@gmail.com.

[3] Doutorado em Ecologia Aplicada (Ambiente e Sociedade) pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP), pós-doutorado em Geografia pelo Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Coimbra e professora adjunta IV da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: mreginafarias@hotmail.com.

[4] Este trabalho resulta de pesquisas desenvolvidas no âmbito da agricultura familiar, e contou com auxílio financeiro do MDA/SDT/CNPq através do Edital 005/2009 – Gestão de Territórios Rurais; e da dissertação de mestrado intitulada.

[5] A Teoria da Ação Comunicativa, de Habermas (1990), apresenta um conceito de sociedade que associa a perspectiva subjetiva (interna “do mundo vivido”) à objetiva (externa, ou sistêmica) e ao resgate de um conceito de racionalidade dialógica. A teoria da modernidade habermasiana procura explicar a gênese da moderna sociedade ocidental, diagnosticar as suas patologias e buscar soluções para a sua supressão (FREITAG, 1995).

[6] O Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária (Procera) foi criado em 1985, dentro do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), visando aumentar a competitividade da agricultura dos assentamentos da reforma agrária e possibilitar a sua “emancipação” com a conquista do “direito de propriedade”, ou o título da terra.

[7] A exemplo do Apoio a Projetos de Infraestrutura em Territórios Rurais (Proinf), da Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), do Garantia Safra, do Plano Safra da Agricultura Familiar (via Pronaf), do Programa de Microcrédito Rural Orientado e Acompanhado (Agroamigo), do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).