Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 27, n. 1, fevereiro a maio de 2019

 

 

 

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As novas ordens alimentares

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Fabiano Escher[1]

 

 

 

 

 

O livro As novas ordens alimentares lança uma abordagem que deve exercer influência significativa nos estudos agroalimentares durante os próximos anos. É uma obra ambiciosa, instigante e desafiadora. Fruto de mais de 10 anos de pesquisas dos professores Paulo André Niederle (Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS) e Valdemar João Wesz Junior (Universidade Federal da Integração Latino-Americana – Unila), em interação com outros colegas e membros dos grupos que integram,[2] os autores se esforçam em compreender e analisar as práticas sociais e os mecanismos institucionais envolvidos na construção, na coordenação e na estabilização dos mercados alimentares e agropecuários no Brasil. Por um lado, eles apresentam um referencial teórico extremamente original e inovador, que sintetiza contribuições da Economia das Convenções, do Neointitucionalismo Histórico e Sociológico e da Teoria das Práticas aplicadas à temática. Por outro lado, oferecem uma ampla e profunda análise histórica do sistema agroalimentar do Brasil, país exemplar nesse âmbito, sobre o qual ambos acumulam um vasto conjunto de dados e informações que lhes permitem pintar um quadro empírico abrangente. Com base nessa combinação de proposta teórica inovadora e evidência empírica abrangente, os autores visam superar a insuficiente contraposição entre as representações dominante do “agronegócio” e alternativa da “agricultura familiar” através de uma interpretação mais complexa e nuançada. Assim, soem ir além da homogeneizante imagem midiática do “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo” e demonstrar que a produção, a distribuição e o consumo alimentar no Brasil, em suas interrelações com os espaços rurais e urbanos, têm na diversidade e na heterogeneidade de práticas, atores e processos as suas marcas definidoras.

O primeiro capítulo do livro, de cunho teórico-metodológico, trata de introduzir o conceito de “ordens alimentares” como chave de leitura do sistema agroalimentar como campo de estudo e objeto de investigação interdisciplinar. Niederle e Wesz constroem a sua argumentação a partir de um diálogo crítico com duas das mais importantes abordagens nos estudos agrários, rurais e alimentares contemporâneos: a dos Regimes Alimentares, de Harriet Friedmann e Philip McMichael;[3] e a Perspectiva Orientada aos Atores, de Norman Long e Jan Douwe van der Ploeg.[4] Eles apontam que a análise dos regimes alimentares, com seu foco no nível macro, tende a uma visão homogeneizante que perde a especificidade de situações espaço-temporais que não seguem o script geral da sua periodização; enquanto a análise da perspectiva orientada aos atores é capaz de capturar a heterogeneidade no nível micro, porém falha em refleti-la no nível macro e em oferecer generalizações suficientemente fortes. A sua proposta, por conseguinte, é tratar de maneira adequada as dinâmicas no nível micro sem perder de vista as tendências no nível macro. Para fazer isso é preciso, segundo eles, uma “teoria de médio alcance” com foco em um “nível intermediário”, a saber, o nexo entre práticas (fazeres e dizeres), instituições (cognitivas, normativas e regulatórias) e artefatos (objetos, tecnologias e produtos). Este nexo é captado pelo conceito de “ordens alimentares”. São identificadas seis ordens na evolução do sistema agroalimentar brasileiro: a ordem comercial, a ordem industrial, a ordem financeira, a ordem doméstica, a ordem cívica e a ordem estética. Essas ordens alimentares contêm fronteiras permeáveis, por onde atores e objetos circulam, dinamizando processos de crítica, contestação, aliança e mudança decisivos para desestabilizar a legitimidade e o enraizamento do ordenamento social estabelecido e institucionalizar novas ordens. Assim, as incertezas do ambiente vão sendo reduzidas e as expectativas dos atores estabilizadas, permitindo que os mercados agroalimentares possam operar continuamente no tempo através das oscilações de conjuntura.

 

Figura 1 – Evolução das ordens alimentares ao longo do último século no Brasil


Fonte
: Niederle e Wesz (2018, p. 365).

 

No decorrer dos capítulos subsequentes, a trajetória histórica e a configuração recente da agricultura brasileira são reconstituídas à luz do referencial das ordens alimentares. O segundo capítulo mostra que o sentido da modernização da agricultura é a conformação da ordem industrial, que por sua vez trouxe transformações de longo alcance sobre a totalidade do sistema agroalimentar brasileiro. Essa ordem emerge em meio ao chamado “processo de industrialização por substituição de importações” que inicia nos anos 1930, no qual o setor agropecuário deveria cumprir as “funções” de prover alimentos, matérias-primas e mão de obra para o setor urbano-industrial em expansão, mantendo os salários em níveis baixos e contribuindo para o controle da inflação, bem como gerar divisas através das exportações de produtos primários. Além disso, a modernização da agricultura implicava a conversão desta em mercado para a indústria. Assim, a partir dos anos 1970 formaram-se os “complexos agroindustriais”, com a introdução de inovações tecnológicas da “revolução verde” e a consolidação de relações intersetoriais a montante (mecânicas, químicas e biológicas) e a jusante (transformação de matérias-primas e processamento de alimentos). Isso elevou a produção, a produtividade e o consumo intermediário do setor e expandiu a fronteira da agropecuária para regiões até então não exploradas. Tal processo é mais visível na incorporação de novos artefatos tecnológicos (máquinas, insumos e produtos), mas não teria sido possível sem novas normas, instituições e políticas públicas orientadas ou criadas pelo Estado (crédito, pesquisa aplicada, extensão rural e ordenação fundiária, regulação dos mercados, classificação e controle de qualidade dos produtos, crença no progresso técnico) e novas práticas das firmas e dos agricultores integrados aos complexos (apropriacionismo e substitucionismo, especialização produtiva, economias de escala, massificação e padronização). Mas desde meados dos anos 1990 e, sobretudo, a partir dos anos 2000, observa-se uma reconfiguração da ordem industrial através de quatro frentes: uma nova onda de inovações tecnológicas integradas (agrotóxicos e transgênicos como o Round Up, tratores ou pulverizadores com computadores e sistemas de informação embarcados como a agricultura de precisão etc.); mudanças nas dietas e hábitos de consumo da população ligadas ao crescimento da classe média dentro e fora do país (alimentos ultraprocessados, revolução dos supermercados, restaurantes de comida a quilo e de fast food); expansão da fronteira agropecuária para novas áreas, puxada principalmente pela soja, a cana e o gado na esteira do boom das commodities (sendo a região chamada de MATOPIBA a mais exemplar); e fusões, aquisições e joint ventures de empresas, levando a concentração e transnacionalização do sistema agroalimentar sob a liderança do capital estrangeiro na maioria dos setores (máquinas e implementos, fertilizantes, sementes e agrotóxicos, trading de commodities, alimentos processados), com alguns poucos setores onde o capital nacional se destaca (bebidas e cervejas, papel e celulose e carnes e proteína animal).

Nos dois capítulos seguintes são discutidas as origens das ordens comercial e doméstica e as consequências sobre elas provocadas pela emergência e consolidação da ordem industrial. Denota-se aqui uma conexão de sentido entre as transformações do sistema agroalimentar brasileiro e a transição do primeiro para o segundo regime alimentar internacional. O terceiro capítulo trata da crise da velha ordem comercial, seguida pela sua reinvenção nas últimas décadas. A formação da ordem alimentar comercial no Brasil caracteriza-se pelas instituições do latifúndio, do escravismo e do sistema de plantation de produtos tropicais para a exportação, fruto do empreendimento colonial português no contexto das grandes navegações, do mercantilismo e da corrida imperial entre as potências europeias durante os seus processos de State building. A contraparte política desse modo de organização econômica configurava-se nas formas de dominação tradicionais patrimonialistas, como o patriarcalismo, o clientelismo, o coronelismo e o mandonismo, todas descritas e analisadas pelos grandes “intérpretes do Brasil”, brevemente revisitados pelos autores. Um ponto por eles destacado é que embora durante todo o período que começa com a Colônia, atravessa o Império e vai até o ocaso da República Velha predominasse uma dinâmica econômica voltada para o mercado externo, o mercado interno sempre jogou um papel importante, ainda que secundário. A ordem comercial é marcada pelo uso de artefatos tecnológicos defasados (produção primária, monoculturas de exportação, produtos não processados, baixa produtividade), práticas degradantes do ser humano e da natureza (extrativismo mineral predatório, desmatamento e espoliação de recursos naturais, grilagem de terras, corrupção, violência e assassinatos de líderes camponeses, indígenas e quilombolas, condições de trabalho precárias e análogas à escravidão, consumo conspícuo das elites) e instituições que reproduzem padrões arcaicos de desigualdade (flexibilização de legislações trabalhistas e ambientais, neocolonialismo, neoextrativismo e dependência, rentismo, autoritarismo, conservadorismo e bancada ruralista). Embora os autores utilizem expressões que indicam elementos de continuidade e de não ruptura, ao referirem-se ao século XXI como “o quinto século de latifúndio” e afirmarem que “o presente faz o futuro parecer o passado”, o argumento central do capítulo é de que há na verdade uma “reinvenção” de formas pregressas de exploração que contraditoriamente alimentam as formas contemporâneas de acumulação de capital na agricultura.

Em um sentido similar, porém mais positivo, o quarto capítulo trata da crise e também da resiliência e das ressignificações da ordem doméstica. A chamada “agricultura de subsistência”, historicamente invisibilizada, formou-se às margens do latifúndio desde o início da formação do país por um conjunto de formas sociais que comungam de uma “condição camponesa” (moradores, agregados, caboclos, caipiras, colonos etc.). Mas subsistência não pode ser confundida com autarquia, pois é comum ao meio de vida dessas populações ir ao mercado vender excedentes e comprar o que não produz. Apesar da mercantilização da produção e da vida rural, é possível perceber na atual agricultura familiar a permanência de certas instituições (família, tradição, campesinidade, movimentos sociais e organizações políticas), práticas (reciprocidade, diversificação, artesanalidade, alternatividade, resistência e autonomia) e artefatos (base de recursos endógenos, matéria-prima própria ou local, instrumentos artesanais, saberes tradicionais) típicos da ordem doméstica. Entre as suas principais estratégias de reprodução, destacam-se: a reemergência da produção para o autoconsumo, presente em 70% dos estabelecimentos rurais brasileiros, com 8% do valor de produção total e mais de 30% da mão de obra ocupada; o processamento agropecuário dentro da propriedade, agregando valor e gerando renda e emprego através de agroindústrias familiares rurais, presente em 16,7% dos estabelecimentos, sendo a maior parte destinada para a venda (queijos, melado, cachaça, vinho, embutidos, tapioca etc.); a revalorização de produtos diferenciados denominados através de diversas convenções de qualidade, como alimentos artesanais, alimentos coloniais e alimentos caseiros, caipiras ou da roça. Todas essas convenções abrem oportunidades para a construção de novos mercados, mas também estão sujeitas aos riscos da descaracterização. Seja pela apropriação por empresas e cooperativas agroindustriais como estratégias de marketing, levando à banalização da imagem desses produtos, seja pela imposição de uma legislação sanitária inadequada, que equipara agroindústrias familiares de pequena escala e capitalistas de grande escala, obrigando os agricultores a incorporar práticas e artefatos externos que alteram as características dos seus produtos, rompendo com o saber-fazer tradicional.

Nos dois capítulos consecutivos, a discussão adentra a temáticas eminentemente contemporâneas. Na época neoliberal, vivemos novamente o que Polanyi (2000) definiu como uma tentativa de implantar um sistema de mercados autorregulado, cuja possibilidade prática não passa de uma cruel “ficção”, pois “deixar o destino do solo e das pessoas por conta do mercado seria o mesmo que aniquilá-los”. E os “contramovimentos” de hoje, nos termos da teoria das convenções, expressam contestações a este processo de mercantilização exacerbada da natureza e dos meios de vida através das chamadas críticas “ética” e “estética”. O estudo de Portilho e Barbosa (2016) aponta tendências de aproximação concreta dos consumidores à “causa” rural, agroecológica e da agricultura familiar, associada primordialmente aos valores da saúde humana e da sustentabilidade ambiental. Essa “politização do consumo” envolve novas formas de ação cotidiana, tanto na vida privada (escolhas “conscientes” ou “responsáveis”, “boycotts” e “buycotts” etc.) como na pública (grupos de aquisição e cooperativas de consumo, sistemas de rotulagem e certificação participativa etc.). Nesse processo, o mercado, mais do que o Estado, passa a ser o espaço de atuação dos “novos movimentos sociais econômicos” — que visam redefinir os valores da economia e as regras do jogo dos mercados alimentares. O argumento é que essas críticas aos problemas e impactos negativos das ordens industrial (contaminação por uso abusivo de agrotóxicos), comercial (subordinação a mercados oligopolizados) e financeira (endividamento e especulação) abrem caminho para a institucionalização das ordens cívica e estética.

A ordem cívica nasceu em meados dos anos 1980, a partir de práticas empreendidas por grupos de agricultores apoiados por ONGs ecologistas e, posteriormente, policy makers simpáticos à sua causa (transição agroecológica, certificação participativa, comércio justo, novo cooperativismo e economia solidária), que contribuíram na criação de artefatos tecnológicos e logísticos para a construção de novos mercados e redes alimentares alternativas (feiras livres, grupos de consumo, políticas de compras públicas da agricultura familiar como PAA e Pnae, selos de qualidades diferenciadas para produtos ecológicos, quilombolas, indígenas e do extrativismo sustentável, circuitos curtos de comercialização) e instituições que congregam atores e dão sentido coletivo à suas práticas (segurança alimentar e nutricional, soberania alimentar, democracia alimentar, direito humano à alimentação adequada). E a ordem estética, mais recente, se baseia em um conjunto de práticas alimentares (trabalho imaterial, patrimonialização, customização, gastronomização e gourmetização da comida, gamificação da culinária) amparadas em artefatos manejados sobretudo por intermediários com apelo midiático como os chefs de cozinha (programas de televisão, aplicativos e redes sociais, índices, guias e sistemas de classificação, superalimentos) e incorporadas em normas e valores institucionalizados (economia das singularidades, pós-modernismo, biopolítica e governamentabilidade, identidade, gostos e estilos de vida, culto ao corpo, hedonismo, sustentabilidade, saudabilidade). É verdade que tais convenções estão sempre sujeitas aos riscos de apropriação por grandes empresas como estratégias de marketing que não passam de “greenwashing” ou “capitalismo verde” e da elitização e busca de distinção social por uma classe média com comportamentos “egotrip”. Entretanto, essa abordagem permite-nos compreender a política em torno de espaços específicos no sistema agroalimentar em que as práticas de produção e consumo orientam-se por lógicas distintas da acumulação de capital e do consumismo tout court, atribuindo conteúdo propriamente positivo àquilo que era negativamente (e às vezes pejorativamente) apreendido pela ideia de “alternativo”.

E o capítulo sete, último do livro, lida com um tema de importância distintiva, que é a constituição de uma ordem financeira no sistema agroalimentar. Os autores revisam a literatura sobre a financeirização, que trata da dominância do capital financeiro, dos motivos financeiros, dos atores financeiros, dos instrumentos financeiros e das instituições financeiras na operação da economia. Isso implica uma tendência a buscar o lucro crescentemente via canais financeiros ao invés de atividades produtivas, inclusive com firmas do setor produtivo atuando cada vez mais em atividades financeiras. A criação de artefatos e instrumentos tecnológicos aplicados às finanças (securities e derivativos, títulos financeiros, mercado de futuros, cultivos flex ou 4 Fs food, feed, fiber, fuel) permitiram a proliferação de certas práticas (maximização do valor do acionista, especulação e rentismo, abertura do capital, contratualização das transações, flexibilização produtiva, gestão de risco) que só podem ser realizadas graças à existência de instituições específicas (investidores institucionais, fundos mútuos, fundos de hedge, fundos de pensão, private equity funds, agências de avaliação de risco, governança corporativa, desregulação do mercado de capitais). Os autores mostram que a financeirização do sistema agroalimentar no Brasil tem ocorrido através de três vias principais: da abertura do capital de empresas do agronegócio na bolsa de valores, sendo este o setor com mais empresas listadas na BM&F; da especulação nos mercados futuros com derivativos de commodities agrícolas; e da conversão da terra e da natureza em ativo financeiro, aquecendo o mercado imobiliário rural com a grande entrada de capital estrangeiro no contexto de global land grabbing. Central para o argumento dos autores é o fenômeno da formação do que, recorrendo ao trabalho de Beckert (2017), eles chamam de “expectativas fictícias”: a antecipação ou previsão de ganhos ou perdas em “futuros imaginados” que mesmo que não se concretizem alteram os preços das commodities, os valores dos ativos das empresas, as escolhas tecnológicas, as estratégias de gestão, entre outros aspectos da economia real. Além de elevar a incerteza do ambiente, a financeirização acentua a desigualdade de poder e renda entre os atores envolvidos, aumenta a vulnerabilidade econômica e ecológica e dificulta a vocalização de demandas por mudança social, desafiando a capacidade dos sistemas agroalimentares de proporcionar meios de vida e segurança alimentar à população a longo prazo.

O livro de Niederle e Wesz foi capaz de construir uma perspectiva “pragmática” que lhes autorizou colocar à prova a visão homogeneizante, setorial e conservadora da agricultura brasileira que viceja em certas teses acadêmicas e em certos meios políticos, a qual deve se aprofundar nos anos vindouros. Essa perspectiva permitiu-lhes também problematizar e propor alternativas aos limites das abordagens “críticas” da economia política agrária e da sociologia rural praticada por boa parte dos intelectuais no nível internacional. Nas suas próprias palavras “ao invés de atores e estruturas, práticas e instituições sociais se tornaram as duas entidades principais de uma teoria de médio alcance, que supera os equívocos do individualismo e do holismo. As ordens alimentares são arranjos de regras, hábitos, valores, identidades, significados e artefatos associados a modos específicos de produzir, distribuir, vender, comprar, preparar e comer” (NIEDERLE, WESZ, 2018, p. 360). A principal conclusão do seu estudo, portanto, é que não são os atores, grupos ou classes sociais em busca dos seus interesses que moldam as ordens sociais do sistema alimentar, mas são os arranjos de práticas que ordenam os atores, os artefatos e as instituições em busca de mais estabilidade e redução das incertezas na operação dos mercados. Contudo, assim como as instituições e as convenções, as práticas também são objetos de interpretação e legitimação social, o que torna crucial examinar melhor o problema das relações de poder.

Sem dúvida, estamos diante de um trabalho de fôlego que, conforme afirma John Wilkinson na contracapa, “estabelece um novo ponto de partida para pesquisas interdisciplinares no Brasil e faz uma contribuição importante aos debates internacionais”. Entretanto, não é um trabalho isento de críticas. A principal é que apesar de reconhecer a importância das relações de poder e descrever empiricamente os conflitos de interesse, a abordagem das ordens alimentares não prevê uma explicação clara e convincente para a dinâmica do poder e do conflito nos processos de mudança institucional e transformação estrutural. Por um lado, isso parece estar ligado à prioridade teórica atribuída aos conceitos de estabilidade e continuidade, ainda que se reconheça que situações descritas por esses conceitos são transitórias e contingentes, sempre sujeitas à força das críticas ética e estética. Por outro lado, ainda que os autores neguem a existência de uma hierarquia entre as ordens, a própria Figura 1 acima, que consta nas conclusões do livro, parece indicar a prevalência de uma ordem sobre as outras em determinadas épocas históricas (a comercial, a industrial e a financeira, sucessivamente). Porém, os autores falham ao ignorar e não explicar tal fenômeno, que segundo a economia política estaria associado à hegemonia de certas frações de classe burguesa e suas formas de capital. Nesse sentido, seria construtivo abrir o diálogo em busca de uma síntese que avançasse no rumo de, quem sabe, um “pragmatismo crítico”.

 

 

 

 

Referências bibliográficas

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FRIEDMANN, H.; MCMICHAEL, P. Agriculture and the state system: the rise and fall of national agricultures, 1870 to the present. Sociologia Ruralis, v. 29, n. 2, p. 93-117, 1989.

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PORTILHO, F.; BARBOSA, L. A adesão à “causa” rural e da agricultura familiar por consumidores e seus movimentos organizados. In: MARQUES, F. C.; CONTERATO, M. A.; SCHNEIDER, S. Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Porto Alegre: UFRGS, 2016.

 

 

NIEDERLE, Paulo André; WESZ JUNIOR, Valdemar João. As novas ordens  alimentares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2018. 429p. Resenha de : ESCHER, Fabiano. As novas ordens alimentares. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 27, n. 1, p. 215-224, fev. 2019.

 

 

Recebido em dezembro de 2018.

Aceito em dezembro de 2018.



[1] Economista com doutorado em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), pesquisador da Escola de Humanidades e Estudos do Desenvolvimento (College of Humanities and Development Studies – COHD) da Universidade Agrícola da China (China Agricultural University – CAU) e bolsista CAPES Brasil pelo Programa de Pós-Doutorado no Exterior. E-mail: escher_fab@hotmail.com.

[2] Os autores agradecem, principalmente, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural (GEPAD/UFRGS), o Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA/CPDA), o Observatório das Agriculturas Familiares Latino-Americanas (AFLA/UFRGS/UNILA), o Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (GEMAP/CPDA) e a Rede Políticas Públicas e Desenvolvimento Rural na América Latina e Caribe.

[3] A economia política dos Regimes Alimentares Internacionais, de extração marxista-estruturalista, inicialmente amparou-se nas teorias do Sistema-Mundo e da Regulação e posteriormente aproximou-se das ideias de Gramsci e de Polanyi, identificando três grandes períodos históricos de acumulação de capital e internacionalização da agricultura e da alimentação. Ver o artigo seminal de Friedmann e McMichael (1989) e os debates atuais entre Bernstein (2016), McMichael (2016) e Friedmann (2016).

[4] A Perspectiva Orientada aos Atores, que parte da crítica da economia política agrária pelo Interacionismo Simbólico, ao centrar-se nas noções de estilos de agricultura e impérios alimentares reconhece a existência das estruturas oligopólicas no controle dos fluxos agroalimentares globais, mas enfatiza as estratégias de resistência camponesa e a diversidade da agricultura e do rural. Ver o texto de Long e Ploeg (1994) que compila suas ideias básicas e os trabalhos recentes de Ploeg (2008, 2010).