Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 26, n. 3, outubro de 2018 a janeiro de 2019

 

 

Daniela Viegas da Costa Nascimento[1]

Jaqueline Araújo Silva[2]

Marcelo de Rezende Pinto[3]

Maytê Cabral Mesquita[4]

 

 

 

Quando o orgânico se torna “rótulo”:
discussões críticas sobre consumo e Agroecologia a partir de um empreendimento de Economia Solidária

 

 

 

Introdução

A pesquisa de tendências de consumo na sociedade contemporânea e a investigação sobre os fatores que influenciaram mudanças nos estilos de consumir, nas últimas décadas, indicam o estudo da viabilidade do consumo de alimentos na economia atual. As décadas finais do século XX assistiram à formação de um sistema agroalimentar que logrou sua internacionalização e hoje influencia a produção, a distribuição e o consumo de alimentos, chegando ao estágio de ditar dietas alimentares para amplos estratos da população urbana.

As novas tendências agroalimentares são discutidas como transformações sociais. Barbosa (2009a) aponta a cientificação do comer — intensificação da utilização da ciência na cozinha —, que faz parte da cientificação da vida cotidiana. Outra tendência identificada por Barbosa (2009a) é a busca da saudabilidade por meio da medicalização do comer, sintetizada na afirmação de que ‘somos aquilo que comemos’.

Os problemas nutricionais atuais tenderiam a estar associados mais ao excesso alimentar e à má qualidade nutricional das dietas do que a sua escassez (MENNEL; MURCOTT; OTTERLOO, 1992). Transições epidemiológica e nutricional fomentaram a associação entre os problemas alimentares e de saúde às condições de vida da sociedade moderna industrializada (WARD; COVENEY; HENDERSON, 2010).

Complementarmente, não se pode deixar de mencionar que existe uma articulação forte entre comida e sociabilidade (BARBOSA, 2009b), ou seja, por meio dos alimentos, os indivíduos e grupos sociais demarcam identidades e territórios, definem poder e hierarquias, assim como dão sentido aos valores e às classificações sociais (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006).

Em contrapartida, no Brasil, existe um movimento crescente de sujeitos interessados na mudança social e, procurando por propósitos, fazem uma transição de atuação no mercado para trabalhar na economia solidária. São experimentos que atuam na busca por um equilíbrio entre trabalho, missão, paixão e interesse pessoal. Os empreendimentos contemplam o comércio justo, o consumo sustentável, os sistemas em rede e não hierárquicos, o ativismo e a defesa de causas, o intercâmbio de conhecimentos, os novos modelos de educação ou de ocupação urbana, a inclusão e participação social, a agricultura urbana, a valorização dos mercados locais, entre outros.

Nesse contexto em que se oportuniza a emergência de questões tanto utilitárias como simbólicas dos alimentos, atrelada à construção de movimentos sociais interessados nas mudanças sociais, é que surge um novo desafio. Desafio este que parece estar no raciocínio e na lógica de como se aprende, se produz e se consome alimentos, buscando fontes mais diretas, sustentáveis e orientadas pelo impacto social. Os negócios da economia solidária em muitos casos são criados por empreendedores sociais, que observam não apenas uma oportunidade de negócio, como também um propósito a ser perseguido. Esse movimento, apesar de novo em termos de escala, é especialmente verificado em realidades de vulnerabilidade social ou baixa renda. Muitos dos novos conceitos, que ainda estão sendo delineados, estão em funcionamento há anos nesses locais, basicamente por necessidade. A perspectiva do consumo com responsabilidade, portanto, parece ser inseparável das ideias de igualdade social, responsabilidade ambiental e impacto social positivo.

Desta maneira, o consumo de alimentos orgânicos e agroecológicos envolve a ideia, além do consumo de um alimento, trazendo em seu bojo uma série de outras questões as quais este artigo pretende se debruçar. A primeira delas lança luz sobre o papel da alimentação como algo que não se limita à ingestão de nutrientes para a sobrevivência, mas serve para situar o indivíduo na sociedade de consumo atual, marcada por uma cultura de consumo em que os valores simbólicos e socialmente construídos dos bens ganham um papel de relevo. A segunda delas está relacionada à noção de que no processo de produção e comercialização de alimentos nessa perspectiva é possível perceber uma cadeia de distribuição de valores, ideais, poder e soluções para um futuro mais sustentável. A terceira questão vai no sentido de se trazer para a produção e o consumo de alimentos ideais relacionados à responsabilidade social e ambiental dos diversos atores envolvidos.

Sendo assim, este artigo tem o objetivo de relatar os resultados de uma pesquisa empírica na qual se buscou entender como se dá o consumo de alimentos agroecológicos a partir de um empreendimento de economia solidária. O fio condutor que motivou a elaboração do trabalho partiu da ideia de que esse contexto poderia oferecer subsídios para uma discussão teórica envolvendo as temáticas de cultura de consumo e empreendimentos de economia solidária local por meio da cadeia de produção, distribuição e consumo de alimentos orgânicos.

O artigo foi organizado da seguinte forma. Primeiro, buscou-se discutir, ainda que sucintamente, aspectos importantes da cultura de consumo e de questões relacionadas aos processos inerentes à produção, à distribuição e ao consumo de alimentos orgânicos. Julgou-se adequado também conduzir uma discussão acerca dos princípios e de algumas visões sobre empreendimentos baseados na economia solidária. Uma seção sobre os procedimentos metodológicos foi incluída no texto com o intuito de expor como a pesquisa empírica foi conduzida. Em seguida, os resultados da pesquisa são apresentados e discutidos. Por fim, as considerações finais tecem comentários conclusivos sobre o estudo.

 

Cultura de Consumo

O consumo é considerado um fato social, coletivo, sensível a interpretações simbólicas, culturais e públicas, que rompe com a concepção de consumo como algo individualizado, determinado como campo de estudo do marketing — comportamento do consumidor (ROCHA; BARROS, 2006). Trata-se de uma “renegociação do significado do tempo”, ou seja, de um tempo cíclico e linear, da sociedade de produtores, passa-se a um tempo pontilhista, marcado por uma multiplicidade de instantes, descontinuidades e fragmentações. (BAUMAN, 2008, p. 45).

Neste panorama, a esfera do consumo é alterada e passa a ser entendida em termos de novas categorias. Fontenelle (2015) analisa como a reestruturação da produção, que começou na década de 1980, transforma as práticas e formas de organização: a gestão do consumo passou a informar a produção, os limites entre trabalho e consumo tornaram-se turvos e a lógica do valor começou a permear até mesmo organizações sem fins lucrativos. Para entender a dimensão do consumo na sociedade contemporânea, segundo Portilho (2005), torna-se necessário posicioná-lo como uma prática social e cultural complexa. O direito e acesso aos bens de consumo constituem-se componentes da busca pela equidade.

Ainda assim, poucas são as pesquisas sobre aspectos culturais, simbólicos e ideológicos do consumo no Brasil, ficando sem aprofundamento questões como compreensão dos atos de consumo, seus sujeitos e contextos; análises em fontes primárias, pesquisas de campo e etnografias sobre práticas de consumo; padrões e rituais de consumo e compra de diferentes grupos sociais, idades, gêneros, religiões; mecanismos de mediação da cultura material e seu papel na contemporaneidade; estudo dos objetos e o que eles informam sobre a sociedade brasileira (BARBOSA; CAMPBELL, 2006).

Slater (2002) defende que a questão central da cultura do consumo é que ela articula a forma de organização da sociedade na vida cotidiana, pois, ao consumir, ocorre a reprodução dos modos de vida culturalmente significativos. Desta maneira, para o autor, toda forma de consumo é cultural, uma vez que envolve o compartilhamento de significados de maneira social. Barbosa e Campbell (2006) confirmam, afirmando que qualquer processo de seleção e até de descarte de objetos só faz sentido quando estes compuserem um sistema cultural específico. Objetos, bens e serviços seriam partes integrantes de sistemas de representações que os tornam reais para determinados grupos e indivíduos. A cultura material comunicaria esse processo, funcionando como um código que traduz quem é determinada pessoa e o contexto em que vive.

Sob o ponto de vista antropológico, Rocha (1995) citado por Pinto e Lara (2011), define que na cultura do consumo, indivíduos e objetos adquirem sentido, produzem significações e também distinções sociais. Barbosa e Campbell (2006) esclarecem que a antropologia do consumo explora as relações entre cultura, consumo e as concepções tangíveis entre indivíduos, relações sociais, formas de mediação e negociação.

A partir das relações dinâmicas que se estabelecem entre as ações de consumo, mercado e significados culturais, se introduz a Consumer Culture Theory (CCT), que explora a heterogeneidade de significados, multiplicidade dos grupos culturais, numa abordagem plural, baseada no conhecimento da cultura do consumo (ARNOULD; THOMPSON, 2005). Nesse sentido, a Consumer Culture Theory discute a distribuição heterogênea dos significados e a multiplicidade de grupos e manifestações culturais existentes nas diferentes formações sociais, uma construção de experiências. Ela estuda a constituição, manutenção e transformação das manifestações particulares de cultura de consumo. A base da teoria de consumo, para Pinto e Lara (2011), seria a maneira pela qual ela articula as questões diante da forma de organização da sociedade.

Os grupos de estudos da CCT envolvem: a) padrões sócio-históricos de consumo – retratam o consumo por classes, etnias, gênero e outras categorias sociais, que possam representar o consumo sob as condições diversas de recursos culturais; b) identidade dos consumidores – são imagens, identidade ou representações simbólicas, contradições culturais; c) mercado massivamente mediado por estratégias interpretativas dos consumidores – representações ideológicas do consumo, ação da mídia e ações de hegemonização dominantes; d) culturas de mercado – dinâmicas socioculturais envolvidas em comunidades, tribos, comunidade de marcas (ARNOULD; THOMPSON, 2005).

Já o conceito de subcultura de consumo é definido como um subgrupo de indivíduos que autosselecionam uma base comum de interesses por um determinado produto, marca, atividade, identificando-se com crenças, valores, rituais, jargões únicos e expressões simbólicas (SCHOUTEN; MCALEXANDER, 1995). A subcultura de consumo reforça a questão da identificação de indivíduos com os bens, tornados os mais compromissados com os produtos e as atividades de consumo. Essa relação estabelecida traz para o marketing as possibilidades de socialização dos novos membros, promove a comunicação e proporciona espaços para realização de eventos (SCHOUTEN; MCALEXANDER, 1995).

 

Cadeia de produção, distribuição e consumo de alimentos orgânicos

A visão do território enfatiza como uma sociedade emprega os recursos que possui na relação entre sistemas sociais e ambientais (ABRAMOVAY, 2010). Trata-se de elaborar projetos de desenvolvimento que atendam não só às demandas das comunidades locais e suas expectativas, mas também se insiram organicamente em suas realidades (JEAN, 2010). Desta maneira, enxerga-se um tipo de desenvolvimento alternativo, mais centrado no social do que na produção e nos lucros. Os mercados seriam, portanto, resultados de configurações tanto de interesses econômicos quanto sociais (SWEDBERG, 2003).

Percebem-se consumidores cada vez mais confusos e incertos com suas dietas alimentares, e com o que Bauman (2008) chamou de conveniência e moda do consumerismo, pelo qual a identidade dos indivíduos já não se dá mais por sua posição na divisão social do trabalho, mas pelo padrão de consumo. A cultura de produção e a cultura de consumo não seriam “purificadas”, não seriam categorias separadas da vida social, mas uma constituiria a outra (GOODMAN; DUPUIS, 2002), e mais atenção deveria ser dada ao processo de mudança nestas relações (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004).

De acordo com Gomes (2009), produtos orgânicos são aqueles cultivados sem adubos químicos, agrotóxicos, pesticidas, sementes geneticamente modificadas ou fertilizantes sintéticos; o sistema de cultivo observa que as “leis da natureza” e todo o manejo agrícola estão baseados no respeito ao meio ambiente e na preservação dos recursos naturais.

Segundo Friedmann (2005), os alimentos tornam-se mercadorias, e como tais são tratados, buscando a sua durabilidade, sua desterritorialização, apropriando-se do seu caráter “natural” e substituindo-o. Daí decorre um movimento antagônico, mas que também pertenceria e comporia um complexo terceiro regime agroalimentar, que é o do “esverdeamento” do capitalismo. Os agricultores buscam mais autonomia, a partir da redefinição de relações e interações com os espaços sociais e o ambiente institucional, buscando formas diversificadas de reação e inovação (WISKERKE; PLOEG, 2004). Dos processos de inovação e desenvolvimento tecnológico à imersão em contextos sociais, a invenção e a criatividade seriam frutos de um intenso processo de interação e troca de experiências a partir de situações práticas e contingentes (AMIN; COHENDET, 2004).

De acordo com a Organic Monitor (2011) — considerada uma das mais importantes fontes de relatórios de produção orgânica do mundo —, a maior parte da produção mundial de orgânicos está na Oceania (34,7%), seguida pela Europa (23,4%) e América Latina (23%). Para a Organic Monitor (2011), o mercado global de produtos orgânicos atingiu o valor de mais de 50 bilhões de dólares no ano de 2008, apontando que os consumidores se encontram em sua maioria na América do Norte e Europa. Segundo Penteado (2003), além das feiras específicas e de pequenos varejos especializados em produtos orgânicos, as grandes redes de varejo de autosserviço estão aderindo aos produtos orgânicos (ABRAS, 2010). Além disso, o marco regulatório para produtos orgânicos foi instituído em 2011.

 

Princípios e algumas visões sobre a economia solidária

A economia solidária representa um “conjunto de atividades econômicas — de produção, distribuição, consumo e crédito — organizadas e realizadas solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras sob a forma coletiva e autogestionária” (BRASIL, 2007, p. 11). São organizações de abordagem econômica e social (cooperativas, associações, empresas recuperadas, clubes de troca, finanças solidárias, entidades de apoio, redes solidárias) que buscam formar relações solidárias, democráticas e equitativas, atuando para obter resultados econômicos e também sociais, políticos, culturais (SINGER, 2002; FRANÇA FILHO, 2008; CALBINO, 2016).

Nesse sentido, a economia solidária seria outro modo de produção, com princípios que se baseiam na propriedade coletiva ou associada do capital e no direito à liberdade individual (SINGER, 2002). Segundo seus defensores, seu papel seria o de superar o modo de produção capitalista implantando um novo ordenamento social. As qualidades subjetivas da economia solidária envolveriam a atuação no mercado local, facilitando o contato entre produtores e clientes e garantindo mais retorno em vendas; um atendimento considerado especial realizado muitas vezes por seus produtores ou pessoas próximas, o que favorece as vendas e atinge pessoas mais conscientes e cidadãs; e o apelo à contribuição social no momento da compra, na medida em que os clientes são levados a acreditar no valor social (produto com valor agregado).

Algumas correntes analisam que a mistificação promovida por seus representantes parece deslocar o valor objetivo da circulação no mercado. Discussões atuais (WELLEN, 2008; SINGER, 2002) apontam para a problematização das premissas da economia solidária a partir da transmutação do valor da troca em solidariedade, e da transformação de qualidades solidárias em mercadorias. Segundo seus críticos, esses seriam fatores que induzem à transformação da subjetividade em mercadoria. O que se vende é a relação comercial, e não o produto. Além disso, a publicidade em torno desse produto “social” ampliaria a visão de empresa ou mercado socialmente justa, trazendo valor econômico à empresa.

Apesar de a economia solidária apresentar algumas visões e correntes de pensamento já desenvolvidas, é um campo que configura um desafio de análise, exigindo a necessidade da desconstrução e reconstrução do referencial teórico na tentativa de aportar a inteligibilidade ao campo. Por causa do caráter múltiplo de objetivos que remetem às organizações solidárias, considerar a gestão na Economia Solidária implica ampliar diversas dimensões de análise (CALBINO, 2016).

 

Metodologia

A pesquisa tem abordagem qualitativa, pois se buscou, no estudo, compreender de forma mais profunda os fenômenos ligados aos indivíduos e aos grupos dos quais fazem parte, respeitando a importância da interpretação da complexidade das situações vividas, por meio de uma coleta de dados realizada no ambiente desses participantes (CRESWELL, 2003). Para Strauss e Corbin (2008), a pesquisa qualitativa refere-se a investigações sobre a vida, as histórias e os comportamentos de pessoas, bem como a funções organizacionais, movimentos sociais ou relacionamentos não conduzidos por procedimentos estatísticos ou formas de quantificação. A pesquisa é exploratório-descritiva, pois buscou proporcionar uma visão sobre o consumo de orgânicos e agroecologia na realidade de Belo Horizonte, Minas Gerais.

Quanto ao objeto de estudo, analisou-se o consumo de orgânicos com base na cultura de consumo, procurando identificar como os indivíduos participantes desse processo de produção e consumo vivem, sentem e se relacionam, produzindo novos conhecimentos sobre como essas pessoas/grupos se envolvem com esses empreendimentos de agroecologia. Foram pesquisadas tanto a perspectiva dos empreendimentos de consumo de orgânicos (como produtores e organizadores da feira) quanto a dos seus usuários (público consumidor) e parceiros (outros empreendimentos, empresas), que facilitaram esse processo de investigação do empreendimento estudado, que também foi alvo de observação simples, a partir de duas visitas em cada edição da Feira Terra Viva, e entrevistas realizadas in loco, conforme detalhamento no Quadro 1, a seguir.

 

Quadro 1 – Resumo da coleta de dados

Tipo de Público

Quantidade

Método

Feirante

2

Entrevista em Profundidade

Organizador da Feira

1

Entrevista em Profundidade

Demais Feirantes

5

Entrevista aberta

Consumidores da Feira

3

Entrevista aberta

Proprietário de empresa que vende orgânico em shopping

1

Entrevista aberta

Feira Terra Viva

2

Visitas dos pesquisadores – observação simples e entrevistas

Pesquisadores

2

Observação participante — inspiração etnográfica — vivência de uma semana consumindo orgânicos

Fonte: Dados da pesquisa.

 

A Feira Terra Viva é um empreendimento de economia solidária em Belo Horizonte que estabelece alianças entre produtores e consumidores de alimentos e produtos que respeitam a saúde, as relações humanas e o meio ambiente. Em quase dez anos de existência, a Terra Viva vem fortalecendo suas bases e se reformando para proporcionar cada vez mais benefícios às pessoas envolvidas, sejam elas consumidores, produtores ou colaboradores. A definição para a pesquisa com a Feira Terra Viva se deu por ser a maior feira de agroecologia/orgânico de Belo Horizonte, campo do estudo. É uma iniciativa que reúne diferentes segmentos da cadeia produtiva e de consumo de produtos agroecológicos, orgânicos e artesanais. Acontece semanalmente, em Belo Horizonte, em dois locais: todos os sábados pela manhã, das 9 às 13h, no bairro Floresta, e todas as quintas-feiras, de 16 às 20h, no bairro Pampulha. Ambos os bairros são considerados de classes A e B, segundo o Novo Critério de Classificação Econômica Brasil (CRITÉRIO BRASIL, 2016).

As duas feirantes, participantes das entrevistas em profundidade, foram selecionadas pelo critério de disponibilidade entre diversos produtores/comerciantes da Terra Viva. Segundo Bardin (2006), é interessante a utilização de entrevista pessoal em profundidade quando se tem por objetivo conhecer valores e julgamentos dos indivíduos sobre determinados fenômenos. Para preservar a identidade das entrevistadas, elas foram identificadas na análise pela letra E (referindo-se a Entrevistas), seguida por uma sequência de números de 1 a 2. O Quadro 2 contém os dados de caracterização das participantes.

 

 

Quadro 2 – Caracterização das participantes da pesquisa

Entrevistada

Idade

Estado Civil

Profissão e Relação com alimentação

E1

61 anos

Separada

Ex-professora de Geografia e atualmente produtora de produtos de alimentação e de limpeza veganos. É vegana.

E2

38 anos

Casada

Ex-professora de Matemática e atualmente produtora de massas orgânicas e veganas. É vegana.

Fonte: Dados da pesquisa.

 

 

As entrevistas com as duas feirantes foram realizadas no dia 20 de novembro de 2015, na cidade de Belo Horizonte. As entrevistas foram filmadas e transcritas a fim de manter a exatidão dos relatos obtidos, sendo que no roteiro foram incluídas questões sobre a origem da feira, a proposta e os produtos/serviços oferecidos, a visão sobre o mercado de orgânicos, os fatores para a compra de orgânicos, demanda da feira, apoios institucionais ou públicos ao empreendimento, análise sobre o futuro desse mercado, entre outras. O contato foi realizado durante as visitas dos pesquisadores à feira e, a partir da disponibilidade, foram agendadas as entrevistas, realizadas posteriormente, em estúdio de gravação.

Além da entrevista com as feirantes, foi realizada entrevista com o organizador da feira, responsável pelas duas edições (ambos os bairros). O objetivo foi entender como se dá a organização dos feirantes, os propósitos do empreendimento, a relação com a comunidade e o governo e o consumo de orgânicos na capital mineira. A entrevista foi gravada em áudio e vídeo, in loco, transcrita e analisada, tendo ocorrido em outubro de 2015.

Durante as duas visitas às edições da feira, em novembro de 2015, foram realizadas observações simples, compra e consumo dos produtos, além de entrevistas informais com os feirantes, com roteiro aberto. A pergunta de partida foi: como você se inseriu na Feira Terra Viva e como é sua relação com o empreendimento e os produtos orgânicos? Foram realizadas feitas cinco entrevistas, que compuseram a base de análise de dados.

Também foram feitas três entrevistas informais com os consumidores durante a visita à feira, objetivando entender o motivo de ida à feira, a relação com os produtos orgânicos e a disponibilidade de compra. Como forma de cruzar os dados com empreendimentos de ordem privada que também trabalham com orgânicos, foi realizada entrevista aberta com um proprietário de uma franquia de orgânico, com lojas em shoppings de Belo Horizonte. O público consumidor desta franquia é semelhante ao da feira. O objetivo da entrevista foi comparar os dados colhidos com os consumidores na feira Terra Viva, a fim de confrontá-los e colaborar com a base de análise das informações.

A observação participante foi realizada por parte dos pesquisadores envolvidos com esta pesquisa, que substituíram sua alimentação por produtos orgânicos, durante uma semana, como forma de experienciar a dinâmica do consumo de orgânico. Dois participantes compraram e consumiram somente orgânicos, em uma metodologia de “inspiração” etnográfica, de forma a vivenciar um pouco a realidade dos consumidores de produtos orgânicos. O intuito dessa observação é compreender de maneira mais aprofundada os significados das situações ou fenômenos relacionados ao consumo de produtos orgânicos, levando em consideração a importância da interpretação das múltiplas situações vividas por esses indivíduos nos diversos ambientes. Nesse sentido, os pesquisadores tiveram que ir a locais para identificar os produtos orgânicos, comprá-los, prepará-los, comê-los, como também observar e interagir com outros consumidores destes produtos, além de desenvolver sua rotina diária indo a vários lugares com a limitação de consumir apenas produtos orgânicos. A externalização dos achados de pesquisa foi feita por meio de relatos de campo.

O método de tratamento de dados utilizado foi a análise de conteúdo. Este arcabouço qualitativo de informações buscou levantar informações e percepções sobre as iniciativas de consumo de orgânicos, a partir do ponto de vista dos grupos envolvidos em seu funcionamento, entendendo o cenário deste tipo de consumo na realidade local. Os relatos foram categorizados com o objetivo de permitir uma visão mais ampla do ambiente em análise (BARDIN, 2006). Para ampliar a confiabilidade e qualidade dos resultados, a análise dos dados primários e secundários foi realizada por triangulação das fontes dessas evidências (EISENHARDT, 1989). Portanto, esta proposta apresenta limitações, sobretudo quanto à pesquisa de campo. Os métodos de coleta podem gerar desvios, tais como a inibição ou respostas tendenciosas causadas pela entrevista pessoal, o que compromete algum aspecto da análise. Corre-se o risco, também, de a coleta de dados não contemplar todo o cenário, na medida em que o mercado de orgânicos ainda está em formatação. Quanto ao tratamento dos dados, há o risco de equívocos ao tentar extrair tendências, captar intenções e distinguir os aspectos relevantes ao objetivo do trabalho.

 

Debates e dilemas dos produtos orgânicos

A Feira, objeto deste estudo, faz parte da Rede Terra Viva, empreendimento de economia solidária que estabelece alianças entre produtores e consumidores de alimentos e produtos que respeitam a saúde, as relações humanas e o meio ambiente. Os visitantes podem comprar produtos, fruto do trabalho de associações, cooperativas, assentamentos e agricultores familiares e urbanos. São hortaliças e vegetais orgânicos e agroecológicos, pães de fermentação natural e com ingredientes orgânicos, massas artesanais, quitutes integrais e sem glúten — e ainda produtos naturais de higiene e beleza, roupas e acessórios artesanais. A Feira realiza shows musicais, momentos de reflexão sobre alimentação e outras atividades de conscientização. Sob a forma de uma rede autogestionada, a Terra Viva é uma iniciativa que, além de oferecer alimentos saudáveis, isentos de insumos químicos, regionaliza a produção e a comercialização desses produtos dentro dos princípios da economia solidária e do comércio justo e solidário. Essa realidade parece encontrar eco no trabalho de Portilho (2009) quando a pesquisadora afirma que a “feira (...) se apresenta aos seus frequentadores como um espaço em que é possível construir, compartilhar, reforçar e materializar valores, insatisfações, ansiedade e um abstrato desejo de autonomia e participação na esfera pública” (PORTILHO, 2009, p. 65).

A primeira questão que chama a atenção nas pesquisas é a diferenciação que se estabelece a partir dos produtores e do coordenador da feira, sobre os produtos comercializados: eles fazem questão de enfatizar que os produtos são de agricultura familiar ou oriundos de assentamentos ou empreendimentos solidários, constituindo-se alimentos de agroecologia, e não alimentos orgânicos. Os agroecológicos seriam alimentos produzidos sem agrotóxicos, em respeito ao ambiente, aos trabalhadores e à saúde do consumidor. A produção agroecológica valoriza a biodiversidade e contempla o cuidado com as sementes, o solo, a água e o ar; o manejo dos resíduos e os procedimentos de pós-produção, envase, processamento, armazenamento, transporte e comercialização. Segundo informado, a qualidade dos produtos é garantida por meio dos mecanismos de controle social da Rede Terra Viva. Essa concepção está em alinhamento com o pensamento de Abramovay (2010), em que a visão do território enfatiza como uma sociedade emprega os recursos que possui na relação entre sistemas sociais e ambientais.

Já os produtos orgânicos atendem a um conjunto de regras e procedimentos adotados por uma entidade certificadora, que garante que o processo produtivo foi metodicamente avaliado e está em conformidade com as normas de produção orgânica vigentes. O produto orgânico brasileiro, exceto aquele vendido diretamente pelos agricultores familiares, deverá usar o selo do SisOrg – Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade Orgânica.

Além desses, a feira também comercializa produtos artesanais, ou seja, cujos ingredientes não necessariamente têm origem orgânica ou agroecológica. Em contrapartida, seu modo de produção baseado em saberes ancestrais — valorizando a cultura popular — oferece ao consumidor uma consciência palpável sobre a cadeia produtiva.

A partir dessa diferenciação, entende-se, na visão dos entrevistados, que o fato de um produto ser orgânico geraria discrepância com a economia solidária. O orgânico, de certa forma, é colocado em segundo plano por parte da organização da feira e dos feirantes entrevistados. É como se o orgânico fosse um rótulo, uma embalagem, uma forma de explorar a produção pelo sistema capitalista, o que fugiria dos princípios e ideais de cooperação propagados na feira. Os membros compartilham um sentimento de harmonia e comunhão — e não de comercialização pura e simples — ao, por exemplo, abraçar-se desejando que a feira seja boa para todos, que o alimento seja purificação e saúde aos que o receberão, ou na roda — uma espécie de oração conjunta com todos os feirantes — que inicia a feira, como um ritual de distribuição/venda dos alimentos e mercadorias.

Como discutido, os alimentos tornam-se mercadorias e, como tais, são tratados, buscando a sua durabilidade, sua desterritorialização, apropriando-se do seu caráter “natural” e substituindo-o. Daí decorre um movimento antagônico, mas que também pertenceria e comporia um complexo terceiro regime agroalimentar, que é o do “esverdeamento” do capitalismo (FRIEDMANN, 2005).

Mesmo com essa ideologia, verificam-se muitos desafios nesse mercado. Apesar de configurarem um mercado em alto crescimento, da alimentação saudável, da prevenção dos males à saúde, a feira, por exemplo, não tem parceria com outras organizações ou com o governo que possibilite sua ampliação. Outro fator é a falta de divulgação e mobilização, que fica a cargo da indicação e do boca a boca, que não são capazes de sustentar a força de um empreendimento.

Apesar da importância deste mercado e da união e compartilhamento de valores, revela-se a fragilidade deste tipo de empreendimento, que muitas vezes se baseia no trabalho voluntário e dedicado de seus próprios fundadores, que se dividem em múltiplas tarefas entre organizar a feira, resolver problemas de produtores, divulgação, entre outros, o que impede um eficaz gerenciamento do negócio.

Diferentemente da perspectiva do empreendimento privado pesquisado — o proprietário de loja de produto orgânico em shopping —, o mercado é estruturado, possui fornecedores cadastrados e a disponibilidade de produtos varia, basicamente, pela sazonalidade. O mercado de orgânicos, por ter se tornado uma indústria, se organiza para oferecer todos os produtos, para não faltar nas gôndolas. Mas, por outro lado, o empreendimento não sobrevive apenas com a venda de orgânicos. Para se manter, a loja oferece outros produtos saudáveis, porém não necessariamente orgânicos. São produtos industrializados, mas que obedecem a altos padrões de qualidade de produção, ou que atendem a consumidores com controle alimentar, como diabéticos, sem glúten ou sem origem animal.

A edição da feira que acontece na região da Pampulha, por exemplo, já esteve em análise para possível encerramento, uma vez que não há muito movimento. São poucos comerciantes — o número não passa de dez, por edição. As vendas, praticamente, são realizadas entre os próprios produtores, que consomem os produtos para fabricação das suas mercadorias ou até mesmo para presentear um parente ou amigo. São poucos também os consumidores visitantes, resumindo-se àqueles que passam em frente ao local da feira, que é bastante apropriado em termos de espaço e ambientação, mas um ponto pouco comercial.

Já a feira do bairro Floresta, mais tradicional, é composta por mais de 20 feirantes. Até pelo fato de ser mais antiga, é mais movimentada, e seus produtos sempre acabam ao final de sua realização, demonstrando o sucesso da iniciativa. A feira está em um local de maior visibilidade, concentração e circulação de pessoas no bairro, facilitando sua divulgação, já que fica bem próximo às residências, pois a região é bem mais populosa do que a do bairro Pampulha, cujas casas são afastadas, exigindo deslocamento via automóveis.

Nesta pesquisa foram entrevistadas duas produtoras e também comerciantes da feira do bairro: E1 e E2. Para E1, que foi professora, a feira possibilitou continuar na área de educação, agora como educadora alimentar e ambiental. Começou consumindo produtos orgânicos há aproximadamente dez anos, e no momento trabalha na feira produzindo e comercializando produtos veganos associados à alimentação e à limpeza doméstica. Segundo E1, este nicho de mercado surgiu em virtude da falta desses produtos em Belo Horizonte. Atualmente, produz duas linhas: a de limpeza doméstica, que é produzida com matéria de agricultura orgânica ou de extrativismo sustentável, e a de produtos alimentícios.

Em se tratando do custo de produtos orgânicos, de modo geral, E1 diz que são produtos mais caros. Então gasta tempo pesquisando, para encontrar mais barato. Vale esclarecer que, de acordo com E1, na medida em que não se come quase nada industrializado, a alimentação fica mais barata. “Quando vou ao supermercado não acho quase nada pra comprar. Então, tenho que comprar in natura e fazer em casa, e isso barateia a alimentação.” Na realidade de Belo Horizonte, o orgânico, de modo geral, está em um nível mais alto de custo em relação aos alimentos industrializados. Esta é a visão, também, dos consumidores entrevistados, e se alinha à visão de Barbosa e Campbell (2006) sobre cultura e consumo. Todos falaram que o produto orgânico é mais caro, mas que procuram este produto visando ao cuidado com a saúde. A constatação de Barbosa (2009) de que “somos aquilo que comemos”, foi corroborada também na entrevista com os consumidores, que afirmaram que a alimentação orgânica traz mais consciência sobre o alimento e a maneira de se alimentar.

A entrevistada E2 também foi professora e há três anos resolveu abandonar a profissão e se dedicar ao que sempre gostou de fazer: massas artesanais veganas e vegetarianas. Relata que foi educada pela mãe vegetariana a se alimentar de forma saudável. Quando teve seus filhos, ficou mais atenta a tudo que estava levando para a mesa, e foi então que começou o consumo de orgânicos. Inicialmente, encontrou dificuldades, sobretudo de onde achar produtos, pois ainda era difícil encontrar nos supermercados de Belo Horizonte. Os filhos se acostumaram com a alimentação, pois foram criados dentro desta filosofia. Contudo, conforme E2, essa educação não é fácil, pois as crianças são bombardeadas com festas e aniversários, onde há muitos doces, frituras etc.

A tendência à saudabilidade foi identificada por Barbosa (2009a), Mennel, Murcott e Otterloo (1992), Ward, Coveney e Henderson (2010) e nas entrevistas de E1 e E2. Como relata o organizador da feira Terra Viva: “Os dois reais a mais que você gasta comprando cada alimento orgânico, te economizam milhares em medicação e hospital no futuro.” Percebe-se, portanto, que os feirantes reconhecem o preço mais alto da alimentação orgânica, mas que esse fator é balanceado diante de seus benefícios.

Como mencionado por Friedmann (2005), os alimentos transformaram-se em mercadorias. E2 esclarece que o produtor de orgânico produz pouca quantidade. “Então, quando as pessoas vão comprar e consideram somente o preço, ele entra como vilão. Porque o preço ainda é importante para quem não tem isso como filosofia.” E complementa: “Mas, quando você pensa nessa estrutura de que aquele produtor fez uma quantidade restrita, pensou na terra, na água, não usou agrotóxico e isso não vai prejudicar sua saúde, então, não é caro!”

Para E2, o selo de produtos orgânicos serve como uma vistoria e garantia para os consumidores de que aquele produto é orgânico. Porém, o produto com o selo significa comprar de uma indústria, de uma máquina, e não de quem produz, e isso é uma escolha do consumidor. Como afirmou o organizador da feira, o orgânico é um rótulo massificador e, sendo assim, não é desejado pelos produtores da agroecologia.

Os produtos da Feira Terra Viva e de vários produtores das associações que são assistidas pela rede não têm o selo. São chamados de produtos agroecológicos. Entretanto, E2 apoia que os produtos orgânicos estejam sendo comercializados em redes mercadistas, pois as pessoas podem escolher entre alimentos que têm agrotóxicos e alimentos que não têm. Assim como o organizador da feira, o proprietário da loja de orgânico de shopping, os consumidores entrevistados e as feirantes entrevistadas concordam que o mercado de orgânicos é promissor e as pessoas, cada vez mais, passam a se preocupar com a alimentação, conforme descrito por Penteado (2003).

Tendo em vista, também, o crescimento econômico e o aumento do acesso a produtos mais valorizados por grande parte da população brasileira, em todas as suas camadas sociais, a alimentação passa a se tornar uma categoria de interesse e ampliação do consumo. Os orgânicos figuram como alimentos especiais que não eram disseminados em camadas como a classe média, que passou a considerar alguns desses produtos como componentes da compra mensal.

Arnould e Thompson (2005) ressaltam a tendência em formação de subgrupos de pessoas que se identificam e que se unem por valores em comum. Nesse sentido, a feira pode ser considerada um espaço em que se configuram círculos de interação social e convívio desses subgrupos (PORTILHO, 2009). E2 reforça esta predisposição e relata que a feira inicialmente era um lugar onde um grupo de consumidores e produtores, interessados em uma horta, vendia e consumia. A feira cresceu: “O consumidor é convidado a participar dos encontros, para ver como a gente calcula preço. As decisões são tomadas de maneira coletiva, todos votam e decidem, então acaba sendo uma relação ótima para o consumidor.” A informação, também confirmada pelo organizador da feira, reafirma a postura da produção agroecológica, que prevê o respeito aos indivíduos e a participação coletiva. Essas constatações parecem se aderir ao que é defendido por Portilho (2009) no sentido de que a atividade de consumo está imbricada à maioria das práticas da vida cotidiana. No mesmo sentido, essas constatações encontram amparo nos apontamentos de Arnould e Thompson (2005) quando definem o escopo dos estudos da Consumer Culture Theory nas identidades dos consumidores, nas representações simbólicas e nas contradições culturais, bem como nas representações ideológicas do consumo. 

Já com relação ao consumo no futuro, E2 se vê, com seus filhos, comendo orgânicos, sendo vegetarianos e ambientalistas. Ela espera pessoas saudáveis, voltando ao natural. Apesar de poder ser considerada uma ideia utópica ou distante, a fala da entrevistada aponta uma tendência de mais atenção com a alimentação por parte dos consumidores, por meio, inclusive, de uma maior cobrança de empresas e governos sobre uma atuação mais ambientalmente responsável e socialmente justa.

Para finalizar, E2 acrescenta que vegetarianos e veganos ainda são vistos como esquisitos. “É porque a gente está indo contra a maré, na contramão do que é imposto, do que é vendido, desejado, do que se vende na televisão, do que mostra nas novelas, na mídia.” Essa visão demonstra um alto nível de conscientização, reforçando como os feirantes atuam não só como comerciantes, mas também educadores ambientais.

A análise de inspiração etnográfica, com base na observação participante, foi realizada por parte dos pesquisadores envolvidos com esta pesquisa, que substituíram sua alimentação por orgânicos, durante uma semana, como forma de experienciar a dinâmica do consumo de orgânico. Os participantes relatam que a alimentação a partir dos orgânicos é mais cara e que tais produtos são mais facilmente encontrados em rede de supermercados que atendem majoritariamente a clientes das classes A e B. No entanto, se surpreenderam com o número de pessoas que estava comprando esses produtos, bem como com a disponibilidade de alimentos nesses supermercados. “Foi possível encontrar com facilidade, arroz, açúcar, café, biscoitos, massas, enlatados, sucos de caixinha, barras de cereal, cookies, dentre outros, e não apenas frutas e legumes orgânicos” (informação de pesquisa). Essa constatação retrata a falta de atenção ou percepção do consumidor comum quanto aos produtos orgânicos, que parecem adotar uma postura de certo preconceito, rotulando-os como caros ou indisponíveis, mesmo sem conhecê-los. Por outro lado, mostra que o mercado de orgânicos está se estruturando, ou seja, se tornando uma indústria com certificação, que explora a produção pelo sistema capitalista, contrariando os princípios e as ideais de cooperação da economia solidária defendidos pelos feirantes da Rede Terra Viva.

Os participantes também relataram que sentiram uma sensação maior de saciedade e mais dispostos com relação à saúde — apesar do pouco tempo e de poderem estar sugestionados  —, e relataram dificuldades quanto à participação em eventos sociais (festas, encontros), uma vez que nesses lugares não havia a presença de orgânicos, assim, não puderam se alimentar nos locais. Esse fator demonstra como a alimentação orgânica ainda é limitada a grupos de pessoas mais conscientizadas, ou ainda localizada na preocupação com a alimentação infantil, ou seja, a priorização dos filhos para a alimentação saudável.

A partir dos dados coletados em campo, percebeu-se a complexidade que envolve a produção, o consumo e a conscientização em torno dos alimentos orgânicos e, sobretudo, dos agroecológicos. O cruzamento dos dados entre os entrevistados demonstra que o campo abre diversas possibilidades de estudo, visto que está em constante transformação a partir da mudança de postura por parte dos consumidores, pressões perante as empresas e a legislação e sobre a atuação sustentável e o papel de cada indivíduo neste cenário.

 

Considerações finais

Este artigo objetivou, por meio de uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa, com finalidade exploratório-descritiva, relatar resultados de uma pesquisa empírica que teve o propósito de proporcionar uma visão geral sobre o consumo de orgânicos e agroecologia na realidade de Belo Horizonte, com base na cultura de consumo, a partir de um empreendimento de economia solidária local. Com base nos dados coletados, em confronto com as teorias trazidas à baila e resgatando os objetivos colocados para a pesquisa, percebeu-se como o consumo de alimentos agroecológicos envolve a ideia do consumo não somente do alimento, mas de uma cadeia de distribuição de valores, ideais, poder e soluções para um futuro mais sustentável.

Como resultados, ressalta-se a postura de repúdio ao termo orgânico por parte dos produtores e feirantes pesquisados, visto que o selo significa um rótulo, ou seja, uma indústria, o que contraria os princípios da agroecologia, da pequena produção e seu produtor, preocupados com a terra, com a saúde e com as famílias. O respeito à produção não precisaria, segundo os entrevistados, de um rótulo para envolver uma cadeia de produção. Há que se pensar no pequeno produtor e respeitar suas condições de produção, para assim valorizar a alimentação saudável e com respeito às pessoas e à natureza.

De acordo com os entrevistados, há uma valorização crescente do mercado de orgânicos, e isso favorece o desenvolvimento de iniciativas de fomento à atividade. Porém, não se verifica, atualmente, nenhuma política articulada, tanto por parte do governo como de empresas, e até mesmo da sociedade civil organizada, para proteger o produto agroecológico, o pequeno produtor e o respeito à sua produção. Os olhos parecem estar voltados à grande produção da cadeia de orgânicos, que se estabelece em redes de produção nos moldes fabris, das máquinas e dos rótulos. É quando o produto da terra vira rótulo, quando o respeito ao produtor pequeno e verdadeiramente sustentável pode se perder ante a indústria exploradora do consumo, camuflado pelo rótulo de “orgânico”.

O rótulo orgânico passa a ser uma forma deturpada do mercado em explorar ainda mais o produto da terra e o seu produtor, usando das chancelas “orgânico”, “natural”, “direto do produtor”, para encarecer o artigo  e somar vantagem em cima da bandeira agroecológica quando, na verdade, o produtor não tem o retorno financeiro na mesma proporção. O produto ganha um valor premium no mercado, pode ser vendido mais caro, porém, o verdadeiro valor que o consumidor transfere para o mesmo não se efetiva para seu produtor. A cadeia de distribuição acaba ficando com a maior fatia e o sistema de exploração se repete, agora com um rótulo verde. Por isso a pesquisa aponta que os produtores agroecológicos, de fato, respeitam a terra, sua produção e a valorização desse tipo de alimentação e rejeitam o rótulo de “produto orgânico”, pois ele representaria uma forma de exploração. Isso vem reforçar a tese de alguns autores como Bauman (2008) que enfatizam a ideia de que, na sociedade de consumo atual, tudo pode ser transformado em “mercadoria”. 

Não se pode deixar de mencionar que a literatura consultada tanto no que tange à cultura do consumo, em especial a Consumer Culture Theory, como a que se refere à temática da economia solidária mostrou-se aderente ao contexto investigado inerente à cadeia de produção, distribuição e consumo de alimentos orgânicos.

Ainda assim, a articulação entre as temáticas é fértil, portanto, para profícuas discussões que não se encerram neste artigo. Para pesquisas futuras, indica-se a realização de mais entrevistas em profundidade, com outros feirantes, inclusive de outras feiras de orgânicos locais ou regionais, a fim de cruzar os dados coletados. Também é interessante realizar uma pesquisa mais estruturada com consumidores, dentro das bases da teoria da cultura de consumo, de forma a entender suas percepções, análises e postura diante do consumo de alimento orgânico e agroecológico. O campo também abre possibilidades para explorar os alimentos agroecológicos na perspectiva do consumo colaborativo e economia compartilhada, observando-se as dinâmicas e os atores articulados em rede.

 

 

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Resumo: (Quando o orgânico se torna “rótulo”: discussões críticas sobre consumo e agroecologia a partir de um empreendimento de economia solidária). O consumo de alimentos agroecológicos envolve a ideia do consumo não apenas de um alimento, mas de uma cadeia de distribuição de valores, ideais, poder e soluções para um futuro mais sustentável. Portanto, este estudo contempla uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa, com finalidade exploratório-descritiva, que visa proporcionar uma visão geral sobre o consumo de orgânicos e agroecologia na realidade de Belo Horizonte. Analisou-se o consumo de orgânicos com base na cultura de consumo, a partir de um empreendimento de economia solidária de produtos agroecológicos. Como resultados, ressalta-se a postura de repúdio ao termo orgânico por parte dos entrevistados, visto que o selo significa um rótulo, ou seja, uma indústria, o que contraria os princípios da agroecologia, da pequena produção e seu produtor, preocupados com a terra, com a saúde e com o respeito às pessoas e à natureza.

Palavras-chave: consumo; orgânico; agroecologia; economia solidária; Feira Terra Viva.

 

Abstract: (When organic food becomes a "label": critical discussions about consumption and agroecology in a solidarity economy enterprise).The consumption of agroecological food involves the idea of food consumption, as well as of a chain of distribution of values, ideals, power and solutions for a more sustainable future. This qualitative, exploratory study aims to provide an overview of the consumption of organic food and agroecology in Belo Horizonte, Brazil. The consumption of organic products was analyzed based on the culture of consumption in asolidarity economy enterprise for agroecological products. The results indicate that the interviewees reject the term organic. For them, organic products signifya label, that is, an industry. This stands in stark contrast with the principles of agroecology, of small-scale production and its producers, who are mainly concerned with the land, health and respect for people and nature.

Keywords: street markets; consumption; organic; agroecology; solidarity economy; Terra Viva Market.
 

 

Recebido em março de 2018.

Aceito em agosto de 2018.

 



[1]  Doutoranda em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). E-mail: dvcnascimento@gmail.com.

[2] Doutoranda em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). E-mail: jaquelinearaujorh@gmail.com.

[3] Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor permanente do Programa de Pós-graduação em Administração da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). E-mail: marcrez@hotmail.com.

[4] Mestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). E-mail: maytecam@yahoo.com.br.