Estudos Sociedade e Agricultura
vol. 26, n. 3, outubro de 2018 a janeiro de 2019

 

 

 

Rafaela Vendruscolo[1]

Alessandra Matte[2]

Flaminia Ventura[3]

Jean François Tourrand[4]

Paulo Dabdab Waquil[5]

 

 

 

Entre a reconexão e a revalorização:

a constituição de convenções em mercados da agricultura familiar no Brasil, na Itália e na França

 

 

 

Introdução

O contexto agroalimentar mundial é marcado pela diversidade e pela dinamicidade. As preocupações com a alimentação promoveram a corrida por melhorias em tecnologias de produção agrícola, transformando os sistemas e as relações de produção. Nesse contexto, cadeias produtivas foram criadas e o distanciamento entre o produtor rural e o consumidor final foi, aos poucos, aumentando (PLOEG, 2008). Relações de proximidade e de conexão entre produtores e consumidores foram diluídas ao longo do processo de globalização, de acordo com Goodman, Sorj, Wilkinson (1990) e Ploeg (2008), transformando o agricultor em um produtor de matéria-prima para a indústria. Na concepção de Ploeg (2008), a produção de alimentos e o seu consumo passaram a ser desconectados tanto no que se refere ao espaço quanto ao tempo.

Entretanto, em meio a isso, crises alimentares, debates sobre a qualidade dos alimentos, preços dos produtos, contextos de situações de fome, entre outros fatores, têm nutrido debates em torno de transformações nas relações de produção e consumo. Diante disso, mesmo nos países ditos desenvolvidos, a questão agroalimentar vem sendo discutida em torno das consequências para a saúde e para o meio ambiente, trazidas pela agricultura denominada convencional (MORGAN; SONNINO, 2010). Portanto, é no contexto de questionamentos e de desconfianças, de parte dos consumidores, aos padrões de qualidade determinados pela indústria, nas redes de produção e comercialização industrial, que Cruz e Menasche (2011) chamam de um processo de ansiedade urbana, que torna visíveis novas/velhas formas de relações no que se refere à questão agroalimentar.

Assim, como modelos alternativos e contestadores da questão agroalimentar industrial que se apresenta, emergem novas estratégias de produção, distribuição de alimentos e de desenvolvimento. Ou, ainda, reconfiguram-se ou se tornam visíveis relações de produção e comercialização baseadas na confiança e na proximidade. Modelos que se afirmam na construção de convenções em torno das relações, dos produtos, da qualidade dos produtos e, portanto, dos mercados. No caso brasileiro, um conjunto de estratégias vem ganhando espaço e legitimidade, entre elas, ações que envolvem a construção social de mercados por meio de cooperativas e associações de produtores, grupos de consumo agroecológicos, iniciativas públicas e privadas de produção e consumo de alimentos saudáveis, entre tantas outras iniciativas (CRUZ; MATTE; SCHNEIDER, 2016).

As cadeias curtas, a reconexão, a revalorização, a venda direta, entre outros, são conceitos que têm sido utilizados de maneira frequente para definir, seja a construção de novas relações baseadas na retomada de antigas interpretações, seja na valorização de relações de proximidade que ainda perduram em locais em que a modernização da agricultura não mudou por completo o cenário agroalimentar (FONTE, 2010; MARSDEN; MORLEY, 2014; Friedmann; McMichael, 1989; PLOEG, 2008). Com isso, torna-se importante desenvolver estudos que analisem esse contexto agroalimentar que, apesar de parecer, por vezes, homogêneo, resguarda muita diversidade e oportunidade de coparticipação nas construções dos mercados da agricultura familiar. Além disso, o debate em torno da questão agroalimentar ainda é relevante diante das consequências que vêm sendo debatidas a partir de novos e velhos problemas relativos à alimentação. Para tal, deve-se levar em consideração a produção, a distribuição e o consumo dos alimentos, todos os atores envolvidos e suas relações, os quais promovem a dinamização do sistema agroalimentar.

Portanto, é nesse contexto de discussão que se insere a análise aqui proposta, em que o foco está nas relações de produção e consumo na França, na Itália e no Brasil. Como parte de um projeto de pesquisa relacionado a experiências de desenvolvimento dos mercados agroalimentares que envolvem a agricultura familiar nesses países, foram analisados alguns casos que permitiram compreender as convenções que orientam esses mercados. A análise está imersa nas discussões sobre a reconexão e a revalorização, ao passo que a teoria das convenções permite compreender os quadros valorativos comuns que orientam essas novas ou velhas relações.

Diante disso, apresenta-se, no próximo tópico, o quadro de referências a respeito da teoria das convenções que orienta essa análise. Na terceira seção, são apresentadas e analisadas as convenções relativas aos mercados da agricultura familiar nos três países pesquisados, apontando elementos que os distinguem. Por fim, são tecidas considerações finais a partir da análise, elencando aspectos que merecem atenção para próximos estudos relacionados à temática dos mercados na agricultura familiar nos três países.

 

Mercados agroalimentares a partir da análise das convenções

A descrição de qualquer mercado deve envolver a identificação das mediações sociais e das formas de articulação que dão vida a essa estrutura, a fim de analisar o modo como os atores resolvem problemas de coordenação, na medida em que se torna necessário olhar para além das trocas realizadas, contemplando também as formas como os seus membros regulam e politizam essas trocas. De alguma maneira, a mercantilização não é um processo uniforme e acabado que orienta e transforma por completo a vida dos agricultores familiares, mas sim um processo amplo e diverso, em que a complexa interseção de fatores temporais, culturais e sociais faz com que algumas coisas transitem no estado de mercadoria (PLOEG, 1993; LONG, 2007; APPADURAI, 2008).

Desse modo, a inserção das formas familiares de produção na sociedade mais ampla é integral à medida que essas categorias sociais procuram garantir espaços de manobra para assegurar sua sobrevivência e, sobretudo, tornarem-se mais fortalecidas. Para isso, os desafios da agricultura familiar consistem em alcançar novos níveis de qualidade e novas escalas de produção, desenvolvendo, principalmente, iniciativas autônomas que favoreçam as formas tradicionais de intermediação dos mercados (WILKINSON, 2008; SCHNEIDER, 2016). Portanto, pressupõe-se que há, por detrás das ações dos produtores familiares nos mercados, uma racionalidade que nem sempre pode ser explicada pela lógica do mercado capitalista, mas sim por uma ação respaldada pelas interações com outros atores. De acordo com Niederle (2011), os mercados refletem a pressão que as estruturas de mercado exercem sobre os atores, mas também podem representar uma estratégia deliberada dos próprios atores.

Os processos interpretativos sobre as formas existentes de relações econômicas passam a sofrer modificações a partir do final da década de 1980, quando intelectuais dão início a uma discussão que objetiva considerar formas de relações que incorporem aspectos, até aquele momento, não reconhecidos pela economia ortodoxa. Não significa, com isso, que as contribuições obtidas até aquele período eram equivocadas ou deixariam de cooperar com as interpretações acerca das relações nos mercados. Pelo contrário, o aporte de novos elementos para a compreensão e análise das relações mercantis passa a contribuir de forma significativa. Essas contribuições dão forma à Teoria das Convenções.

A Teoria das Convenções tem uma orientação fortemente interdisciplinar, que considera a ação individual e coletiva, e tem sido utilizada para entender a diversidade de formas de organização econômica, principalmente, os mercados. Eymard-Duvernay et al. (2006) argumentam que, ao evidenciarem a existência de valores de coordenação e racionalidade, os convencionistas propõem um programa de investigação cuja ambição interdisciplinar envolve a unificação das ciências sociais à economia. A proposta da referida teoria, segundo esses autores, é observar as interações fazendo uso de conceitos revisitados e remodelados de outras disciplinas, incorporando componentes semânticos. Isso porque, a linguagem é, então, a forma de coordenação adaptada a um mundo pluralista (EYMARD-DUVERNAY, 2009).

Corroborando com os autores, Lazega e Favereau (2002, p. 23) refletem que as convenções são muitas vezes “acordos sobre como se deve coordenar com os outros”, mas fundamentadas por interpretações tanto quanto a realização de um cálculo. As convenções permitem considerar que o ator não apenas calcula, mas fala, interpreta, resiste e reage às qualificações que procuram lhe enquadrar em um modelo de comportamento universal (EYMARD-DUVERNAY, 2009). Com isso, permitem explicar a indeterminação cognitiva de muitas situações, em que um único fato pode ser interpretado de diferentes maneiras, a depender da inferência feita e da forma como a informação é utilizada para compreendê-lo (EYMARD-DUVERNAY, 2002). Ou seja, é necessário prestar muita atenção às formas comuns de cognição e avaliação para apoiar as convenções de coordenação, que não podem ser reduzidas às preferências individuais (THÉVENOT, 2006; EYMARD-DUVERNAY et al., 2003).

Conforme alude Thévenot (2006), dentro de um contexto de incerteza generalizada com relação à interpretação de ações e à expectativa de atores, as convenções canalizam incertezas por meio de uma formatação convencional de eventos. É endossado por Batifoulier, Biencourt e Larquier (2003) que, para a Teoria das Convenções, todas as regras devem ser comple(men)tadas, pois há uma incompletude em sua estrutura, o que permite diversas interpretações. As abordagens mecânicas não estão preparadas para pensar e incorporar a incompletude. Para elas, as regras de comportamento são determinadas antecipadamente. “Interpretar é mudar a regra” (BATIFOULIER; BIENCOURT; LARQUIER, 2003, p. 22), ou seja, ao interpretar, abrem-se precedentes para a criação de uma nova regra a ser seguida. Corroborando com os autores, Eymard-Duvernay e Favereau (1996) apontam que os atores são capazes de modelar uma diversidade de formas de ação em um mercado, tendo duas principais formas susceptíveis de ocorrer: o ator social pode decidir sobre a ação, em segui-la ou não, como também pode criar uma nova (re)ação e reconstruir a convenção em vigor. Ou seja, um elemento fundamental no sistema de convenções é a capacidade de ação e agência do ator em modificar os acordos e se mover em um espaço onde coexistem várias convenções (EYMARD-DUVERNAY; FAVEREAU, 1996; AL-AMOUDI; LATSIS, 2014).

Desse modo, as convenções focalizam não apenas a assimetria das informações, mas também os valores distintos que são atribuídos à mesma informação, o que aponta para a pluralidade de formas igualmente legítimas de coordenação econômica (WILKINSON, 2008, p. 129). Nesse sentido, essa abordagem permite o reconhecimento da capacidade reflexiva dos atores, capazes de interpretar os constrangimentos estruturais e criar mecanismos para alterá-los. É nesse contexto que consumidores e produtores têm encontrado espaço para reagir às mudanças no cenário agroalimentar, criando formas de organização em resposta ao cenário de incógnitas relativo à segurança alimentar.

Não obstante, a existência ou estabelecimento de uma convenção recai sobre os atores envolvidos em um mesmo espaço, por exemplo, em um mercado, em que as oportunidades e constrangimentos influenciam as ações, mas não as determinam por completo. Conforme Eymard-Duvernay et al. (2003), o ator, segundo a Teoria das Convenções, integra em sua conduta uma coordenação com o outro e com o bem comum, rompendo com a ideia de que este encontra-se por detrás de um cálculo egoísta. Assim, a Teoria das Convenções percebe o ator como um ser racional, que age e reage, interessado na satisfação individual e coletiva.

Por isso, a Teoria das Convenções não busca uma forma ideal de ação e interação das relações nos mercados, mas procura incorporar e reconhecer a pluralidade de modos de coordenação que representem a realidade. Em síntese, a Teoria das Convenções representa um importante aporte teórico para o estudo dos mercados, na medida em que procura observar a realidade de modo dinâmico, compreendendo as mudanças em curso e as já consolidadas.

Em estudo desenvolvido por Fonte (2008), na Itália, há um movimento de valorização do local como prática baseada no conhecimento das populações, em que se mobilizam diversas formas de conhecimento incorporadas em atores rurais e não rurais, no sentido de oposição ao homogêneo e em defesa do tradicional como um modo único e destoante do padronizado, preservando uma maneira de produzir e de consumir de uma população. Assim, para a autora, a valorização da origem dos alimentos reposiciona a produção local de alimentos em relação aos seus valores, associando-a com práticas de produção de um território e com a tradição dessa população. Da mesma forma, Cruz (2012), em seu estudo sobre a valorização de alimentos tradicionais e artesanais, com foco no Queijo Serrano nos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul, ao ouvir diferentes atores envolvidos com essa atividade, evidencia que, paralelamente ao avanço da globalização e da homogeneização do consumo alimentar, permanece coexistindo a produção local tradicional, sendo preservados os hábitos de consumo e produção locais.

Por isso, é fundamental repensar o local não como um movimento “romântico” para a emancipação deste, mas como uma ação coletiva, inclusiva e também reflexiva (DUPUIS; GOODMAN, 2005; FONTE, 2008). Desse modo, a revitalização da origem da comida representa também recuperar o conhecimento tradicional, que traduz a expressão do conhecimento local (FONTE, 2008).

Nesse cenário, a Teoria das Convenções sustenta que os mercados são mantidos por um conjunto de regras baseadas em uma incorporação a objetivos que recebem valorações diferenciadas e estão sujeitos a avaliações constantes, vindo a ter múltiplas formas de coordenação. Para essa teoria, a atividade econômica é socialmente construída e mantida por determinada ação coletiva e individual, levando à construção de um conjunto de regras e convenções que orientam as dinâmicas do mercado. A questão aqui posta permite observar o papel das convenções na coordenação de ações coletivas, que podem contribuir para explicar as novas estratégias agroalimentares que envolvem produtores e consumidores. Por isso, essa teoria fornece sustentação para a análise dos mercados da agricultura familiar na França, na Itália e no Brasil, na medida em que permite identificar como ocorre a coordenação das ações em torno desses mercados que emergem no contexto da discussão sobre a reconexão, relocalização e revalorização.

 

Convenções que orientam novos/velhos mercados da agricultura familiar na França, na Itália e no Brasil

Nesta seção serão apresentadas as características dos mercados da agricultura familiar nos casos pesquisados na França, na Itália e no Brasil. Para tanto, essa seção está subdividida em duas partes, as quais caracterizam e analisam os novos/velhos mercados, primeiramente na França e na Itália e, posteriormente, no Brasil. O propósito é apresentar reflexões sobre casos pesquisados, que indicam caminhos criados pelos produtores e consumidores de alimentos como novos mercados que, por vezes, acionam velhas relações, inclusive, como uma convenção que possibilita diferenciar o mercado ou os produtos.

 

Convenções e mercados da agricultura familiar na França e na Itália: aspectos da reconexão

Os mercados da agricultura familiar, nesses países, foram, ao longo do século XIX, sendo construídos em torno do processo de industrialização da agricultura, transformando os agricultores em produtores de matéria-prima. A construção das cadeias produtivas agroalimentares incorporou diversos atores no processo que vai da produção ao consumo dos alimentos. Contudo, ao longo do final desse século, e ainda hoje, muitos agricultores familiares passaram a assumir todas as etapas da produção e comercialização, criando ou recriando formas alternativas de mercados, em comparação com as cadeias produtivas agroindustriais. Na outra ponta, o consumidor passou a demandar a compra direta com o produtor, participando da construção da convenção em torno da venda ou compra direta.

Nos casos analisados na França e na Itália, a venda direta, como uma convenção construída contemporaneamente em contraposição às relações da cadeia produtiva industrial de alimento, emerge ao longo do final do século XIX. Ilustrando essas constatações, são apresentados dois casos italianos e dois franceses, nos quais é possível identificar as mudanças nas convenções de qualidade vinculadas à produção e à comercialização entre agricultores familiares e consumidores desses países. Influenciados pelas teorias de desenvolvimento relativas à produção e à comercialização direta de seus produtos, os produtores analisados encontram nessa estratégia a possibilidade de maior rendimento do seu produto, anteriormente comercializado com um intermediário ou diretamente com a indústria. É o caso, por exemplo, de um Caseificio italiano na região montanhosa de Abruzzo.

Ao assumir a propriedade passada da geração anterior, o jovem deu continuidade à criação de gado de leite e de corte, bem como de ovelhas, mas modificando a propriedade a partir da agroindustrialização dos produtos e da venda direta dos subprodutos. Assim, o jovem casal passou a produzir queijos tipo Pecorino, Cacciocavalo, tradicionais na região, além de ricota e iogurtes, os quais são comercializados no local, que fica próximo a uma pequena cidade, e em feiras locais. Mais recentemente, como forma de diversificar e ampliar a produção, eles iniciaram o abate de bovinos e ovinos, em que a carne também é comercializada diretamente na propriedade. Essa, portanto, constitui uma propriedade em que a agroindustrialização dos produtos e a venda direta emerge da iniciativa de jovens que dão continuidade às atividades das antigas gerações, mas com novos contornos, que permitam abandonar a cadeia produtiva industrial ao qual estavam inseridos.

Por outro lado, e nesse mesmo contexto, identifica-se outro Caseificio, na mesma região, em que, apesar das antigas gerações já produzirem o queijo tradicional de ovelha Pecorino, esse era comercializado em supermercados ou demais pontos de venda em cidades vizinhas, não havendo a visita dos consumidores até a propriedade. Aos poucos, a produção de queijo foi sendo qualificada de acordo com conhecimentos adquiridos em capacitações que, associados aos conhecimentos tradicionais passados para geração, deu origem a inovações em termos de tipos de queijos, ampliando as possibilidades de comercialização.

As estratégias de divulgação e qualificação dos queijos em termos de novidades, aliadas à construção de um restaurante e de um agriturismo (hotel-fazenda) na propriedade, ampliaram o fluxo de pessoas que passaram a visitar e consumir os produtos do e no local. No restaurante do hotel, os visitantes também podem consumir, além dos queijos, carne de ovelha e hortifrutigranjeiros que são produzidos na propriedade. Nesse contexto, o agricultor expandiu as atividades construindo conhecimentos, não apenas na produção agropecuária, mas no beneficiamento, na criação ou qualificação de mercados, no atendimento e na relação direta com o consumidor, bem como no que se refere à questão de marca e marketing.

A convenção para a venda direta, construída de forma conjunta entre os produtores e consumidores, possibilitou, ao longo do tempo, a emergência de outra estratégia de desenvolvimento das propriedades na França e na Itália, qual seja o desenvolvimento do turismo e da gastronomia nas propriedades rurais. A natureza, a tranquilidade, a tradição, como aspectos de lazer, são valores acionados na coordenação dos atores visando ao desenvolvimento do agriturismo e dos restaurantes no rural. A pluralidade de vozes que conformam esses acordos coloca a oportunidade de mais rendimentos, de atração de mais pessoas para a venda direta e da possibilidade de inserção de mais pessoas da família nas atividades da propriedade, principalmente os filhos, como interpretações dos produtores rurais que constroem essas alternativas. Para os consumidores, em conformidade com os produtores, a conexão com o rural, com a paisagem, a natureza e, principalmente, com a origem dos alimentos são opções para quem almeja sair dos badalados pontos turísticos, principalmente, como atividade familiar com crianças.

Assim, o mercado da paisagem e do lazer, aliado à venda direta dos alimentos produzidos na propriedade, vem conformando a realidade de muitas propriedades como nos casos da região montanhosa da Itália, em que a produção de queijos e de carne de ovelha passou a ser servida no restaurante da propriedade. Cabe destacar que ambas possuem sucessão de jovens, os quais passaram a se envolver com os restaurantes e a hospedagem. Com o crescimento das atividades que envolvem produção de leite, fabricação dos queijos, venda direta, restaurante, hospedagem e produção de hortifrutigranjeiros para o restaurante, o Bio Agriturismo Valle Scannese é gerenciado por três membros da família, e emprega 22 pessoas, das quais, duas são da família. Aspecto também visualizado na propriedade em que a atividade de restaurante e hospedagem foi criada pelo casal de filhos que, após finalizar cursos superiores, retornou à propriedade ampliando as atividades.

A permanência dos jovens nas propriedades e as transformações decorrentes de suas ideias e seu trabalho também são observadas na cooperativa Società Agricola Campotenese na região da Calábria, Itália. A Cooperativa, criada na década de 1970 para a produção e comercialização conjunta de produtores de leite, atualmente, na terceira geração de associados, passou a beneficiar o leite e a carne, ampliando a produção para gado de corte e suíno, promovendo, assim, a venda direta na cooperativa. Toda a produção é feita na cooperativa e o trabalho é realizado pelos associados, desde a produção do leite até a comercialização. Nas imediações da cooperativa, alguns jovens associados criaram atrativos turísticos, como é o caso de hospedagem, de turismo de aventura, de passeios a cavalo, entre outros.

As atrações turísticas vão além da hospedagem, da gastronomia e da venda direta, ampliando para convenções concernentes às qualidades atribuídas ao rural que se referem à vivência e ao conhecimento das atividades de criação e da vida relacionadas à agropecuária. Refere-se a isso a chamada Fattoria Didatica na Itália, a qual propõe atividades de aprendizagem sobre os processos de produção atuais e algumas atividades tradicionais na região próprias da criação de animais com crianças e adolescentes. A atividade didática nessa propriedade propõe que os visitantes conheçam o funcionamento da criação das ovelhas desde o nascimento até a procriação, bem como as atividades de produção de leite e queijos. Além disso, possibilitam vivências na produção de hortaliças e frutas, bem como na alimentação necessária para as ovelhas.

 

Figura 1Ilustração das atividades desenvolvidas na propriedade que oferece a atividade didática de visitação

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Fonte: Ver mais em La porta dei parchi (2003).

 

Especificamente, a respeito do resgate do turismo rural como convenção de qualidade atribuída ao rural, cabe destacar a experiência italiana com a Transumanza, que consiste no processo pelo qual se realiza o acompanhamento do rebanho ovino para local em que haja alimentação, comumente realizada pelos pastores nas montanhas durante o verão e na planície durante o inverno. Atualmente, a transumância é realizada nessa propriedade como aspecto turístico, visto que essa prática foi sendo finalizada com o processo de modernização das atividades. Entretanto, algumas propriedades ainda a utilizam, principalmente levando as ovelhas para os pontos altos das montanhas no verão, sob a interpretação de que as pastagens naturais das montanhas permitem melhor sabor aos produtos.

 

 

Figura 2 – Cartaz informativo sobre a Transumanza na Fattoria Didatica

 

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Fonte: Registro feito pelos autores durante pesquisa de campo.

 

O resgate do antigo, da tradicionalidade, que está associado, seja ao lazer, seja aos padrões de qualidade, constitui, portanto, outra convenção importante no processo de transformação dos mercados da agricultura familiar nos casos estudados. Além do resgate das atividades como aspecto turístico ou de melhoria da qualidade dos produtos, destaca-se também o crescimento do resgate de raças locais que buscam associar os produtos aos territórios. Somam-se a isso, aspectos como rusticidade e adaptação ao local de raças que, historicamente, formaram rebanhos e que foram sendo substituídas pelo processo de melhoramento da modernização ao longo do século XIX.

Como movimento de resgate, acionando os valores descritos, destaca-se a criação de porcos em uma propriedade francesa, a qual beneficia a carne de porco em forma de conservas típicas do local, associada à produção de cereais orgânicos e de pães. As raças suínas foram substituídas aos poucos, concomitantemente à troca da alimentação dos animais que era adquirida externamente à propriedade por produtos produzidos nela.

A tentativa de diferenciação dos produtos e de vínculo com o local por meio da raça também foi a estratégia adotada por dois jovens produtores que compartilham a propriedade na região noroeste da França. Uma das atividades da propriedade é a criação de gado de corte para a venda direta da carne aos consumidores. Para isso, eles utilizam a raça Nantaise, típica da região noroeste, adaptada ao clima e solos úmidos, além de vincular a imagem do animal ao local e à sua história de ocupação e desenvolvimento. Portanto, a partir do arrendamento de uma área pública com pastagens naturais, os produtores aliaram a rusticidade da raça ao ambiente com diferenciação do produto final, fruto de uma alimentação à base de pastagem natural, que confere outro sabor e a imagem de uma carne mais saudável, na medida em que os animais não se alimentam de cereais e alimentos concentrados.

 

Figura 3 – Chamada de vinculação da raça de gado Nantaise ao território e imagem de animais pastando na propriedade analisada

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  Fonte: Registro feito pelos autores durante pesquisa de campo.

 

Essa tentativa de valorização da carne e da relação com o consumidor que aos poucos compreende o papel desse processo por meio da relação direta de compra com o produtor, também vem sendo adotada em experiências italianas. Como é o caso da propriedade de criação de gado de corte do tipo Chianina, a qual resgata essa raça típica do território italiano que era usada, principalmente, para tração e que foi sendo substituída por raças francesas após a modernização da agricultura. Em vários espaços de comercialização, e mesmo na venda direta desses produtores, a embalagem traz a apelação à raça Chianina como um diferencial para um produto que está ligado, portanto, ao território.

Se, por um lado, a vinculação histórica e territorial da raça, dos produtos derivados de um terroir e da comercialização pela venda direta é uma das convenções verificadas. Por outro, encontra-se fortemente o apelo à produção orgânica que, na Itália, recebe a denominação de Agricoltura Biologica (Bio), e na França, Agriculture Biologique (Bio). Muitos agricultores entrevistados na pesquisa, que buscavam conhecer a diversidade da agricultura familiar nos dois países, procuram na agricultura biológica, ou orgânica, no Brasil, a estratégia de diferenciação do produto. Reflexo de uma convenção construída nos últimos 20 anos que tem forte participação dos consumidores, os quais têm demandado produtos com um padrão de qualidade valorado por meio da não utilização de produtos químicos tóxicos.

Na propriedade de produção de leite e queijos Bio, destaca-se o cartaz de divulgação que possui a seguinte narrativa de reivindicação: “Encontre o gosto autêntico de um queijo de leite cru de vaca normanda maturado por três meses na propriedade” (Figura 4).

 

 

Figura 4 – Cartaz de divulgação do queijo produzido em uma das propriedades pesquisadas

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Fonte: Registro feito pelos autores durante pesquisa de campo.

 

Portanto, pode-se encontrar no cartaz de divulgação da propriedade algumas das convenções aqui referidas que apontam a direção dos mercados da agricultura familiar na França e na Itália. A autenticidade, o biológico ou orgânico e a venda direta são algumas das convenções aqui destacadas, demonstrando um processo de orientação das propriedades familiares para que sobrevivam e sejam competitivas perante o mercado industrial. Uma construção que se dá em conjunto com consumidores que constroem hábitos e padrões de qualidade ou de consumo que estão em consonância com as interpretações dos produtores.

 

Convenções em torno de novas estratégias de mercados no caso do Sul do Brasil

No sul do Rio Grande do Sul, Brasil, são identificados dois mercados coletivos de comercialização de carne ovina da pecuária familiar, denominação atribuída a uma forma de agricultura familiar que realiza a criação de animais, que refletem mudanças na valoração atribuída a esse produto por parte dos produtores e de uma lacuna no mercado consumidor, que demanda o produto, mas não encontra oferta. O primeiro deles refere-se à carne de cordeiro Alto Camaquã. Esse mercado envolve um território que abrange oito municípios e tem buscado oferecer um produto diferenciado. O segundo relaciona-se à carne de cordeiro Cacimbinhas, organizado e administrado por um grupo de pecuaristas familiares que compõem o Núcleo de Criadores de Ovinos e Caprinos de Pinheiro Machado.

Fundada em 2009, a Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (Adac) compreende a integração de uma rede de atores individuais e coletivos que têm um mesmo propósito, o desenvolvimento endógeno, de modo que seu objetivo central é promover e viabilizar estratégias de desenvolvimento endógenas com os agentes sociais, econômicos e políticos do território Alto Camaquã. Entre as ações, está a busca por um mercado diferenciado, que reconheça e valorize o diferencial dos produtos oriundos do território. Para tanto, foi criada a Marca Territorial Coletiva Alto Camaquã, de propriedade da Adac, sustentada na vinculação entre produto, pessoas e território, ao conectar identidade e origem dos produtos. A implementação da marca tem como propósito focalizar o conteúdo que sustenta essa definição e a forma de validação dos acordos, os quais permitem aos produtos extrapolarem o âmbito regional e possam vir a circular em mercados distribuídos em todo o território nacional e até mesmo internacional, levando consigo os atributos de qualidade a ele vinculados.

Nesse contexto, a carne de cordeiro possui um conjunto de aspectos que a diferenciam, por serem animais que se alimentam somente de pastagens naturais, em contrapartida desempenham importante papel de conservação do bioma Pampa. Sua criação é fruto da reprodução de uma tradição, de um modo de vida e de um saber-fazer permeado por conhecimentos tácitos dos pecuaristas familiares. Aliado a esses elementos, outro diferencial desse mercado é o aspecto coletivo de seu funcionamento, em que os diferentes atores definem estratégias de industrialização e comercialização da carne de cordeiro com a marca coletiva do território Alto Camaquã.

A valorização direcionada a uma ação ou escolha é suscetível a refletir as atividades e avaliações realizadas por seus pares, evidenciando que o valor atribuído não corresponde a uma ação pessoal isolada, mas, sim, a uma conjectura coletiva. Este tem sido o desafio dos atores envolvidos no território Alto Camaquã: romper com a convenção de que a ovinocultura não tem a capacidade de gerar retornos econômicos por meio do reconhecimento do produto animal criado no território. Os pecuaristas familiares passam a compreender que essa é a maneira de levá-los a ser verdadeiramente remunerados por sua produção, reconstruindo a interpretação sobre o bem comercializado. Nesse mesmo sentido, Wilkinson (2008, p. 127) destaca que essas características que diferenciam a produção familiar são vistas cada vez mais como vantagem estratégica na medida em que forem associadas à tradição, à natureza, ao artesanal, ao local, que, para o autor, passam a compor “um conjunto de valores agora premiado pelo mercado”. Assim, é fundamental o alinhamento de expectativas e o envolvimento dos diferentes atores em ações em busca de autorreconhecimento como parte do coletivo e de autovalorização como ação constante, utilizando essa diferenciação como oportunidade de mercado. Portanto, a preexistência da compreensão coletiva sobre o comportamento adequado significa que, para agir, cada ator requer o conhecimento comum embutido em convenções que configuram esses ambientes.

Na lógica da comercialização coletiva, o Núcleo de Criadores de Ovinos e Caprinos de Pinheiro Machado (NCOCPM) foi criado por um grupo formado unicamente por pecuaristas familiares com o objetivo principal de se organizar, unir forças, melhorar a forma de produção e, especialmente, comercializar a carne ovina. Atualmente, a iniciativa tem ganhado destaque, uma vez que se trata de um mercado de carne ovina construído e realizado única e exclusivamente por um grupo de pecuaristas familiares. Isso porque, esse grupo de produtores familiares encontra obstáculos no Brasil para adequar-se individualmente aos regulamentos específicos para comercialização da carne, em razão das condições mercadológicas estabelecidas pelos frigoríficos, o que ocorre em virtude de dificuldades em atender a exigências como quantidade mínima de animais comercializados, regularidade na oferta, homogeneidade em medidas de tamanho e peso dos animais, entre outros fatores. As convenções de qualidade construídas em torno dos frigoríficos vão de encontro à produção e às convenções de qualidade dos produtores e, até mesmo, de consumidores locais.

O principal mercado desses pecuaristas familiares, atualmente, é a comercialização de carne ovina com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Essa experiência de venda de carne ovina com o Pnae foi a primeira registrada no estado do Rio Grande do Sul, e foi fundamental para a consolidação do Núcleo e de sua inserção nos mercados. Para os pecuaristas do Núcleo, permanecer comercializando seus produtos com o Pnae é o principal objetivo, pois se trata de um mercado adequado para sua forma de organização produtiva no qual dificilmente terão como concorrência empresas multinacionais do setor de carnes. Paralelamente ao mercado proporcionado pela alimentação escolar, o Núcleo também comercializa carne ovina em supermercados locais e possui um ponto de venda no município. De maneira geral, as escolhas e ações do Núcleo estão atreladas a justificativas que não envolvem apenas o preço pago pelo animal e pela carne, mas também o propósito de constituir um mercado seguro e livre de sabotagens, ou seja, de situações de incerteza. Nesse processo, o Núcleo cria uma marca para seus produtos, denominada “Cacimbinhas”. Em essência, ele tem buscado aperfeiçoar a produção entre os sócios e comercializar em mercados locais e em feiras, procurando contribuir, principalmente, no abastecimento do mercado local. Além disso, todas as etapas são organizadas pelos pecuaristas familiares: a produção dos animais, o transporte, a agenda de vendas, o abate e a comercialização.

 

Figura 5 – Logotipo de diferenciação da marca coletiva ‘Alto Camaquã’ e da marca ‘Cacimbinhas’

           

Fonte: MATTE (2017).

 

A construção de novos mercados na pecuária familiar tem surgido principalmente das interações entre os pecuaristas familiares com outros atores sociais ligados ao campo institucional e político. A gênese desse processo está marcada pela necessidade de ampliar os meios para comercialização dos produtos e de romper com a dependência de intermediários, uma necessidade que emerge dos próprios pecuaristas, tanto os do Alto Camaquã como os do Núcleo (Cacimbinhas).

Para esses dois grupos, há diferentes convenções que têm orientado a organização de ambos, sendo elas: 1) na forma de produção; 2) no valor atribuído ao produto; 3) no interesse pelo mercado; e 4) na identidade. Em decorrência disso, os valores atribuídos ao produto final diferem. Enquanto para o Núcleo o propósito é assegurar a venda de animais dentro das condições que o produtor possa oferecer, para o Alto Camaquã, levando em conta as características de diferenciação do produto, há um valor imaterial que deve ser incorporado. O primeiro almeja ocupar um espaço específico destinado à produção familiar nas compras institucionais; o segundo busca alcançar mercados especializados, que estejam dispostos a adquirir o diferencial do produto. Em comum, ambos almejam garantir o controle de todas as etapas do mercado. Sobretudo, a diferença está no fato de que o Alto Camaquã quer construir uma identidade para a carne ovina comercializada, ao passo que o Núcleo percebe sua ação tão somente como forma de escoar a produção. O Alto Camaquã visa valorizar um modo de vida e mostrar que este é o diferencial de seu produto: a sua forma de fazer.

De todo modo, ambos os grupos têm representado a reação dos pecuaristas familiares e das organizações envolvidas com esses produtores em contrapartida à estagnação e ao distanciamento do mercado de carne ovina desses produtores. Esse momento se deve à oportunidade de valorizar um mercado que tem demandado carne ovina, ao interesse dos pecuaristas de romper com as restrições mercadológicas impostas pela indústria e de se desvencilharem da dependência do intermediário, entre tantos outros objetivos. Trata-se de duas formas de mercado que já possuem alguns anos de estrada e estão dispostas a permanecer, consolidando seu espaço e ampliando o alcance na inclusão de novos membros, como no acesso a novos mercados.

 

Considerações finais

Algumas crises na relação entre produtores agroalimentares, consumidores e cadeias agroindustriais, portanto, vêm conduzindo a transformações nas estratégias de produção e de consumo. Nessa direção, algumas possibilidades vêm sendo a de reconstruir as relações diretas entre produtores e consumidores e valorizar produtos locais e artesanais. Convenções que vêm emergindo da interação entre produtores e consumidores como copartícipes, visto que as convenções em torno dos mercados são possíveis a partir do alinhamento de interpretações entre produtores e consumidores. Assim, no contexto da reconexão e relocalização agroalimentar de alguns países europeus, a análise permitiu identificar algumas das convenções que foram construídas em estratégias agroalimentares diferentes das cadeias agroindustriais. Aspectos que também são levantados em dois casos no sul do Brasil que permitem analisar a necessidade de estratégias de valorização de produtos da agricultura familiar.

Dentro dessa discussão, as propriedades familiares da França e da Itália analisadas demonstram uma direção de qualificação dos mercados da agricultura familiar a partir da vinculação da qualidade dos produtos ao território, por meio do resgate de raças, do resgate histórico de produção e dos saberes que revelam aspectos de autenticidade e de tradicionalidade. Esses são, claramente, valores que chamam a atenção dos consumidores, os quais são participantes da construção dessas convenções na medida em que se relacionam com os produtores que passam a oferecer produtos que esses almejam em uma relação constante de construção. Isso quer dizer que, em um processo de construção de convenções que qualificam os produtos e a relação entre consumidores e produtores, não cabe identificar o protagonista do processo de qualificação, visto que, sendo valores compartilhados, são constantemente construídos e reafirmados.

A relação direta entre o consumidor e o produtor por meio da venda direta tem sido convencionada como um valor que confere diferenciação aos produtos na medida em que ambos constroem uma relação de confiança. Aspecto que vem conjuntamente com a busca dos consumidores em estar mais próximos da vida rural e dos aspectos produtivos agroalimentares, ao passo que visitam as propriedades em busca de consumir o rural. Ao mesmo tempo, os produtores têm ofertado esse produto, seja por meio da venda direta de alimentos na propriedade, seja por meio dos agriturismos e dos restaurantes que podem ser encontrados no mesmo local em que os alimentos são produzidos. Aliado a isso, observa-se a condução dessas propriedades para a produção biológica ou orgânica na medida em que essa convenção se fortalece.

Essas convenções são construídas e acionadas na França e na Itália em meio ao processo do que autores têm chamado de busca pela reconexão e relocalização do sistema agroalimentar. Ocorre, portanto, um movimento que permite aliar produtores e consumidores a estratégias que, para o consumidor, possibilite conhecer a origem dos alimentos que consome, bem como retomar uma relação mais direta com o rural. Para o produtor, constituem estratégias alternativas de produção e desenvolvimento da propriedade familiar no que se refere à agregação de valor aos produtos quando comparadas com as estratégias econômicas que os vinculam às indústrias.

No Sul do Brasil, o que também pode ser analisado em outros locais, observaram-se experiências que, em outro contexto, também buscam desvincular-se da convencional cadeia produtiva. Esta última liga os produtores de ovelha pesquisados aos frigoríficos que os distanciam do consumidor final. Visando maior valorização e agregação de valor aos produtos, dois grupos de produtores têm buscado construir convenções relativas à qualidade dos subprodutos da produção de ovelha que os permitem uma construção alternativa de mercados. Por um lado, observa-se a estratégia de busca por um diferencial concernente à vinculação da carne de ovelha ao território que abrange o Bioma Pampa e, dessa forma, confere um sabor diferenciado à carne, aos moldes do que podemos observar em alguns casos analisados nos países europeus. Por outro, um grupo procura acionar a relocalização do sistema agroalimentar que pode ser visto na Política Nacional de Alimentação Escolar, a qual consiste em um canal de comercialização com base na interpretação de que a alimentação nas escolas deve ser adquirida preferencialmente dos agricultores familiares do entorno.

Entretanto, observa-se que, tanto nos casos italianos e franceses quanto nos casos do sul do Brasil, as mudanças nas estratégias de mercado que passam da vinculação com a indústria ou intermediários como produtores de matéria-prima, para a relação com todas as etapas da produção à comercialização conduzem a novas necessidades. Principalmente, observa-se a necessidade de investimentos para o processamento e comercialização dos produtos, bem como o atendimento a uma legislação sanitária que, normalmente, está relacionada à produção industrial. Esses dois aspectos têm sido os principais entraves para que outros produtores compartilhem essas convenções, transformando um sistema agroalimentar que ainda possui significativas dependências das indústrias.

Por tais indicativos, cabe destacar, no Brasil, a necessidade de mais incentivos a estratégias que ampliem a produção e os mercados da agricultura familiar no tocante às convenções que aos poucos se constroem no país. Principalmente, porque observa-se que, em muitas regiões brasileiras, a relação entre consumidores e produtores ainda não foi completamente desconectada, necessitando ser valorizada e mantida.

 

 

 

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Resumo: (Entre a reconexão e a revalorização: a constituição de convenções em mercados da agricultura familiar no Brasil, na Itália e na França). A dinamicidade do cenário contemporâneo do setor agroalimentar trouxe transformações nas interpretações e condutas das relações entre produtores e consumidores de alimentos. Crises alimentares, oscilações de preços, padrões de qualidades, são alguns dos critérios ressignificados relativos à retomada ou à revalorização de relações mais próximas entre os agricultores, os produtores de alimentos e os consumidores finais. No que se refere a esse debate, buscamos compreender as convenções que orientam os novos/velhos mercados da agricultura familiar no contexto de dois países europeus, França e Itália, e no sul do Brasil. Partindo de entrevistas semiestruturadas e observação participante, foram analisados casos de mercados da agricultura familiar nesses países, os quais ocorrem por meio de relações diretas de comercialização do produtor com o consumidor final. Nesse contexto, novos mercados se dão principalmente a partir da constituição de um conjunto de novas convenções de qualidade e valorização dos produtos, as quais são construídas em um processo de coparticipação entre distintos atores e organizações, permeados principalmente por processos e relações que envolvem produtores e consumidores.

Palavra-chave: mercados; agricultura familiar; Brasil; Itália; França.

 

Abstract: (Between reconnection and revalorization: the constitution of conventions on family farm markets in Brazil, Italy and France). The dynamics of the contemporary scenario of the agro-food sector has brought about transformations in the interpretations and conduct of the relations between producers and consumers of food. Food crises, price fluctuations, quality patterns are some of the re-identified criteria around the resumption or revaluation of closer relationships between farmers, food producers and final consumers. Around this debate, we seek to understand the conventions that guide the new / old markets of family agriculture in the context of two European countries, France and Italy, and in the south of Brazil. Based on semi-structured interviews and participant observation, cases of family agriculture markets were analyzed in these countries, which occur through direct marketing relationships between the producer and the final consumer. In this context, new markets come mainly from the constitution of a set of new conventions of quality and valorization of products, which are built in a process of co-participation between different actors and organizations, permeated mainly by processes and relationships that involve producers and consumers.

Keywords: markets; family farm; Brazil; Italy; France.

 

 

Recebido em março de 2018.

Aceito em agosto de 2018.



[1] Doutorado em Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) e docente no Instituto Federal Farroupilha (IFFAR). E-mail: rafaela.vendruscolo@iffarroupilha.edu.br.

[2] Doutorado em Desenvolvimento Rural e pós-doutoranda em Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) e bolsista Capes/Fapergs DocFix. E-mail: alessandramatte@yahoo.com.br.

[3] Professora na Universidade de Perguria, Itália. E-mail: flaminia.ventura@unipg.it.

[4] Doutorado em Ciência Animal pela Universidade Paris XII, professor visitante na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisador no Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement (Cirad), Montpellier, França. E-mail: tourrand@aol.com.

[5] Doutorado em Economia Agrícola pela University of Wisconsin, Madison, EUA, professor titular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com atuação nos Programas de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) e Agronegócios (CEPAN). E-mail: waquil@ufrgs.br.